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Taiwan na ONU

Criada em 1945, a Assembleia Geral é o principal órgão deliberativo da ONU, reunindo todos os Estados-membros sem distinção. Ao longo de oito décadas, tem sido fórum essencial para discutir temas relevantes para o equilíbrio internacional. Sua legitimidade deriva justamente do caráter universal, princípio que não pode ser comprometido por exclusões políticas arbitrárias.

A 80ª sessão abrirá formalmente em 9 de setembro de 2025, em Nova York. Entretanto, o tema da Assembleia Geral deste ano, “Juntos somos melhores: Oito décadas de compromisso com a paz, o desenvolvimento e os direitos humanos”, ecoa uma contradição gritante: enquanto defende universalidade, continua a falhar no sentido de fornecer vez e voz para nações que têm o direito de serem ouvidas, como é o caso da mais vibrante e aberta democracia da Ásia, Taiwan. 

Esta incômoda situação se baseia na Resolução 2758, aprovada em 1971, que se tornou objeto de distorções que comprometem a credibilidade do sistema multilateral. Embora trate exclusivamente da representação da China na ONU, a resolução tem sido utilizada por Pequim como argumento para excluir Taiwan da participação na organização e em suas agências. Uma interpretação que carece de fundamento político ou jurídico, uma vez que o diploma legal não reconhece Taiwan como parte da China e tampouco que o governo de Pequim deve representar o povo taiwanês no sistema das Nações Unidas.

A exclusão de Taiwan tem consequências práticas graves, uma vez que é capaz de fomentar tensões militares que colocam em risco a segurança de toda a Ásia-Pacífico e a estabilidade global. A ilha desempenha papel central na economia mundial — produzindo mais de 90% dos semicondutores avançados — e está localizada em uma rota marítima vital para o comércio internacional, onde transita cerca de metade da frota mundial de navios de carga. Sua exclusão não só debilita o multilateralismo, como expõe o sistema internacional a riscos desnecessários em um contexto de crescente rivalidade geopolítica.

Para além disso, em 2025, com apenas cinco anos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, a ausência de Taiwan nos debates das Nações Unidas mina a capacidade coletiva global de alcançar resultados. Taiwan tem um histórico robusto em áreas como saúde pública, igualdade de gênero, inovação tecnológica e combate às mudanças climáticas. Seu know-how e sua participação ativa poderiam acelerar avanços essenciais para o desenvolvimento global inclusivo e sustentável. Negar esse espaço é contrariar o próprio espírito da agenda multilateral.

A Assembleia Geral de 2025 oferece uma oportunidade histórica para corrigir esse descompasso. Garantir a participação de Taiwan e seus cidadãos, inclusive jornalistas, é fortalecer a democracia, proteger o direito internacional e assegurar que o sistema das Nações Unidas se mantenha fiel à sua missão de universalidade. O passaporte taiwanês é amplamente aceito no mundo, e sua rejeição em Nova York ou Genebra carece de fundamento jurídico, refletindo unicamente uma leitura política restritiva. Não se trata apenas de reconhecer Taiwan, mas de reconhecer que os princípios norteadores das Nações Unidas seguem como pilares essenciais da ordem internacional. A inclusão de Taiwan não é um favor, mas um imperativo moral e estratégico da estabilidade global.

Foto: Anton Vaganov/Reuters.

Aliança Washington-Moscou

A atual iniciativa de aproximação dos Estados Unidos com a Rússia,  adversário tradicional, não é um padrão   novo na diplomacia norte-americana. Ações diplomáticas surpreendentes e bruscas já ocorreram anteriormente. Devemos recordar que no pós-segunda guerra mundial houve a reversão das alianças, quando os inimigos, a Alemanha, a Itália e o Japão, países derrotados no conflito mundial, passaram a ser considerados pela diplomacia americana como aliados, receberam apoio para reconstrução e se transformaram em baluartes da nova ordem mundial, liderada pelos EUA.

Essa  nova organização estratégica internacional foi, no entanto, confrontada pela União Soviética e tivemos o período da Guerra Fria, no qual o mundo se dividiu em dois blocos antagônicos. A Guerra Fria caracterizou-se pela confrontação entre os blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que disputavam a primazia nos campos ideológico, econômico, tecnológico e geopolítico. Tratava-se de um ”zero sum game ” em que ao ganho de um jogador correspondia direta e simetricamente a perda do outro, mas não havia confrontação militar direta entre os líderes dos dois blocos, os Estados Unidos e a então União Soviética, mas sim por meio de interpostos países.

No entanto, mesmo nesse cenário internacional rígido, o governo americano assumiu em 1972 o risco diplomático de uma aproximação com a China, então parte do bloco sovietico, na forma de uma viagem do Presidente dos Estados Unidos a Pequim, articulada secretamente por Henry Kissinger.

Essa viagem, que procurava causar uma fissura no quase monolítico bloco sovietico da época da Guerra Fria, mostra que há importantes precedentes nas atitudes aparentemente superficiais do atual governo dos EUA. A existência de terras raras e outros minerais estratégicos no território ucraniano ajuda a  explicar a atual ambição americana em ter acesso à Ucrânia. 

A aproximação entre Washington e Moscou causa enorme preocupação na Europa e na Aliança Atlântica, que se sente vulnerável à continuação da agressão russa As populações da Europa Central e do Leste europeu, que estiveram sob o domínio da União Soviética, têm grande temor da Rússia.

O Reino Unido e França têm liderado uma tentativa de reação à iniciativa americana. O Primeiro-Ministro do Reino Unido patrocinou reunião de emergência em Londres com líderes europeus e da OTAN, incluindo Canadá. Nessa reunião ficou clara a decepção com a atitude americana e se iniciou a montagem de preparação de uma estrutura militar independente dos Estados Unidos que possibilite a Europa defender-se da Rússia autonomamente. 

Uma força militar autônoma da OTAN tem como precedente a relação da França com a Aliança Atlântica. Em 1966, em plena Guerra Fria, a França retirou suas forças do comando integrado da organização em busca de independência em relação aos Estados Unidos. Recorde-se que a França desejava principalmente manter suas armas atômicas, a “force de frappe”, força de dissuasão nuclear, sob seu controle. Foi só em março de 2009 que as forças francesas voltaram ao comando da Aliança Atlântica. Durante a guerra na Ucrânia, os europeus reforçaram a OTAN com a adesão da Suécia e Finlândia, países lindeiros com a Rússia, que ficou cercada pela Aliança. 

Os americanos têm considerado a China seu principal adversário  estratégico e tendem a reforçar seu esquema de alianças e seu  “containment” contra Pequim. No entanto, os Estados Unidos mantêm ativas  áreas de interesses comuns com a China principalmente no campo da tecnologia avançada como a produção de semicondutores. Trata-se de um relacionamento com áreas de convergência e divergência entre as maiores potências industriais comerciais e tecnológicas do mundo  A aproximação americano-russa prejudica a China, que tem apoiado, e reforçado, sua aliança com a Rússia durante a guerra na Ucrânia, ajudando-a em relação às sanções europeias e americanas impostas por causa da invasão da Ucrânia.

A OTAN, além de  ter reforçado sua composição com a adesão da Finlândia e da Suécia, tem aumentado também seus investimentos em defesa. No entanto, depois de tantos anos de dependência dos Estados Unidos, sua indústria militar encontra-se fragilizada e necessita investimentos maciços para recuperar sua capacidade, inclusive em relação a munições, setor extremamente dependente do fornecimento americano.

De sua parte, a Europa considera a Rússia seu inimigo estratégico, contra o qual deve se preparar, unir-se e armar-se, sem contar mais com os americanos.

Importante registrar que a ordem mundial inaugurada em 1945 com o fim da Segunda Guerra, que foi patrocinada pelos Estados Unidos e a chamada ” Pax Americana ” deixam de existir e uma nova ordem mundial deve começar. A ordem internacional do pós-guerra tinha como pilares o multilateralismo, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC,  OEA, a firmeza americana no compromisso com seus aliados.

Se a suspensão da assistência militar dos EUA à Ucrânia mostra o desmantelamento da atual estrutura de poder mundial, outro golpe na ordem vigente no pós-guerra é a imposição de tarifas unilateralmente pelo governo americano às importações do Canadá e México, países aliados e fronteiriços, além da China. Esses países reagiram imediatamente com tarifas retaliatórias. A imposição unilateral de tarifas destrói o que resta das tentativas de organizar e liberalizar o comércio mundial depois da Segunda Guerra, como por meio do GATT e depois da OMC, que perdeu importância e pode se dizer que está hoje agonizante. 

É interessante registrar que esse novo desenho da realidade internacional apresenta desafios  para a Europa, que se deve defender com seus próprios meios contra a ameaça russa. Ademais, devemos registrar que a OTAN é hoje  extremamente dependente da estrutura de informacao (ou inteligência ) americana. Ainda não se sabe se a organização conseguirá conter a Rússia sem  ajuda americana, mas os sinais são de que a Europa deve tentá-lo, mesmo porque não há alternativas.

A aproximação russo-americana, o recuo militar dos EUA na Europa, e a imposição unilateral de tarifas, representam fissuras, ou abalos, em uma ordem internacional em declinio.