No último sábado, 13 de janeiro de 2024, Lai Ching-te venceu as eleições presidenciais de Taiwan. É o representante do Partido Democrático Progressista, o governista, que chega ao poder pela terceira vez seguida, uma sequência inédita.
Foram eleições bastante tensas. O Partido Comunista Chinês definiu o pleito como a decisão entre guerra e paz. Lai Ching-te foi denunciado diversas vezes pelo país como um separatista perigoso.
Cinco dias depois das eleições, na quinta-feira, 18 de janeiro, a China realizou manobras militares e cruzou o estreito entre os dois territórios. Segundo Taiwan, foram manobras de combate aéreo e naval com 24 aeronaves e 5 embarcações. O estreito entre os territórios foi cruzado por 11 aeronaves.
No dia seguinte, o ministro das relações exteriores da China, Wang Yi, foi recebido oficialmente em Brasília pelo nosso ministro das relações exteriores, Mauro Vieira. Ele declarou que o Brasil apóia a política de “uma só China”, ou seja, a incorporação da democrática Taiwan pelo governo chinês.
O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Taiwan, em 1912. Oficialmente, chama-se República da China. A China tem o nome oficial República Popular da China. São duas Chinas, por isso o nome de “uma só China”.
As coisas começaram a mudar na Revolução Comunista Chinesa, em 1949. Esse regime jamais reconheceu a existência de Taiwan. Era considerada uma província rebelde, como segue até hoje.
Na época, no entanto, a China era representada na ONU por Taiwan, que tinha até assento no Conselho de Segurança. Mas era a época da Guerra Fria e as coisas começaram a mudar. Em 1971, os Estados Unidos pararam de dar apoio a Taiwan no Conselho de Segurança. Vários outros países democráticos do ocidente seguiram na decisão. O Brasil não. Fomos contra a retirada de Taiwan da ONU em 1971, ano em que a representação passou a ser feita pela China.
Três anos depois, em 1974, foram rompidas as relações diplomáticas entre Brasil e Taiwan. Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas as relações comerciais com Taiwan também continuam e somos o principal parceiro nas Américas. O comércio envolve soja, minério de ferro, café e eletrônicos de alta tecnologia.
Entre maio e junho de 2014, o Senado brasileiro mandou uma comissão a Taiwan. O relatório foi feito pelo então senador Jorge Viana, que hoje é presidente da Apex, Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Todas as despesas foram pagas pelo governo estrangeiro. Transcrevo parte do relatório:
“Em nossa Missão Oficial, surpreendeu-nos a relação entre Taiwan e China. Apesar de não possuírem relações diplomáticas (China vê Taiwan como província e Taiwan se declara autônoma), há entre ambos forte relação comercial. São cerca de 800 voos por semana entre Taipei, capital de Taiwan, e as principais cidades chinesas, além de uma intensa relação comercial. Se na política e na diplomacia não há qualquer diálogo, nas relações comerciais as coisas fluem muito bem.
O Brasil precisa observar melhor essas particularidades e ampliar as relações comerciais, intercâmbio técnico e científico com Taiwan – apesar da inexistência de relações diplomáticas.
Nesse sentido e como resultado desta Missão Oficial, defendemos que o Brasil facilite a retirada de vistos e amplie o status do escritório de Taiwan no Brasil e do escritório do Brasil em Taiwan.
Por fim, vale ressaltar que Taiwan e Brasil compartilham do mesmo princípio de democracia e proteção aos direitos humanos. Os povos dos dois lados demonstram extrema simpatia e calorosa recepção. Enquanto Taiwan desenvolve fortemente sua indústria de produtos eletrônicos e de semicondutores, o Brasil mostra sua força no setor automobilístico, de bioenergia e mineração. Em vista disso, e com a colaboração de comunidade taiwanesa no Brasil, acredito que há muito espaço para que esses laços bilaterais cresçam ainda mais”. (grifo meu)
Na época, o atual presidente da Apex era favorável à ampliação das relações entre Brasil e Taiwan. Relatou que a situação com a China era muito mais complexa do que um rompimento. Há a briga política, mas há laços de economia e sociedade entre os dois povos.
O mais importante é ter frisado a identidade com os princípios democráticos e o respeito aos direitos humanos, conceitos que não são seguidos pelo Partido Comunista Chinês.
A China tem investido fortemente no reposicionamento como liderança geopolítica mundial, principalmente pelas dificuldades internas atuais. A política de filho único, que já foi revertida, causou um envelhecimento da população que dificulta as contas públicas. O mercado imobiliário tem problemas. As políticas adotadas durante a pandemia pioraram ainda mais a situação.
Recentemente, a relação entre China e Taiwan começou a entrar novamente em rota de colisão. No final do ano retrasado, durante o 20o Congresso do Partido Comunista Chinês, foi reafirmada a intenção de ocupação do território de Taiwan, por meios pacíficos “se possível”. Isso acendeu o alerta da comunidade internacional, que passou a se reposicionar.
No próprio ano de 2022, diversas autoridades norte-americanas fizeram visitas oficiais a Taiwan. Em represália, a China realizou exercícios militares no estreito entre os dois países. O presidente Joe Biden chegou a dizer que os Estados Unidos pegariam em armas para defender o “status quo” na região. Depois, a diplomacia suavizou as coisas, deixando claro que o país não entraria em guerra. No entanto, continua armando Taiwan. Agora, após as eleições, o posicionamento foi bem diferente. Joe Biden declarou que os Estados Unidos não apóiam a independência de Taiwan.
O governo Lula já havia se antecipado a isso. Em 14 de abril de 2023, foi emitido um comunicado diplomático conjunto entre Brasil e China. Um dos ítens dizia o seguinte: “O lado brasileiro reiterou seu firme apoio ao Princípio de Uma Só China, reconhecendo o governo da República Popular da China como o único governo legítimo de toda a China, e Taiwan como uma parte inseparável do território chinês. Ao reafirmar o princípio da integridade territorial dos estados, o Brasil apoiou o desenvolvimento pacífico das relações entre ambos os lados do Estreito de Taiwan. O lado chinês expressou grande apreço por esse posicionamento”.
Agora, o Brasil deu um passo além. Não apenas reafirmou sua posição como recebeu o ministro das relações exteriores da China no dia seguinte dos exercícios militares em Taiwan. É uma declaração de enorme peso simbólico, que nos coloca definitivamente em um lado de um potencial conflito.
Os tentáculos chineses usando a influência do Brasil chegam também aos BRICS. No comunicado conjunto do ano passado, já havia um protocolo de intenções: “Ambas as partes avaliaram positivamente o diálogo e a coordenação que mantiveram dentro de organizações internacionais e mecanismos multilaterais, e continuarão a fortalecer esse intercâmbio no âmbito da ONU e de outras organizações multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, bem como em agrupamentos plurilaterais como o G20, BRICS e BASIC. Além disso, o lado chinês expressou seu apoio à Presidência Pro Tempore do BRICS pelo Brasil em 2025. Ambos os lados comprometeram-se a aprofundar ainda mais a cooperação em todas as áreas dentro do BRICS. Eles apoiaram a promoção de discussões ativas entre os membros do BRICS sobre o processo de expansão do grupo e destacaram a necessidade de esclarecer os princípios orientadores, normas, critérios e procedimentos para esse processo de expansão com base em ampla consulta e consenso”.
Depois disso, o Brasil propôs a entrada da China nos BRICS, junto com diversas outras ditaduras. Os detalhes estão no artigo “O Brasil trocou a Alca pelo Bricstão e isso tem consequências”, que escrevi para o Instituto Monitor da Democracia em setembro do ano passado.
Por meio do soft power e do domínio econômico, a China tem se colocado cada vez mais como liderança geopolítica mundial. Isso significa para os países aliados decidir entre uma liderança global fundada em democracia e direitos humanos ou o oposto. O Brasil parece já ter decidido.