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Luiza Possi é atacada e tem intimidade exposta por Maria Gadú depois de defender Bolsonaro

A cena é conhecida. Uma artista resolve falar de política, mas não do jeito certo. Em vez de repetir o discurso padrão da classe, ela grava um vídeo em que diz viver “tempos injustos”, fala de “ímpios no poder”, pede livramento divino e afirma crer em uma nação reconstruída “pelo nome de Jesus”. O contexto é a confirmação da pena de Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos de prisão. Luiza Possi, hoje casada, mãe de dois filhos e assumidamente cristã, escolheu se posicionar assim.

Não pediu voto, não convocou ato, não fez campanha. Luiza Possi apenas expressou a leitura de mundo que orienta a fé dela. A resposta não veio em forma de contraponto político, mas de ataque pessoal. Maria Gadú entrou nos comentários para revelar que as duas tiveram um relacionamento no passado, algo que nunca havia sido assumido publicamente, e escreveu: “Namoramos. Sim. E me arrependo amargamente”.

Não satisfeita, continuou: “Demorei muito tempo para me perdoar por ter vivido aquilo” e completou com a frase que marcou a violência simbólica do ataque: “Peça a Deus luz, verdade e humildade”. Ou seja, colocou a relação passada no campo do pecado e o presente de Luiza no campo da mentira.

O que está em jogo aqui não é fofoca de celebridade, é padrão de abuso. Expor a intimidade do outro para tentar destruir sua credibilidade pública é uma forma de violência.

Durante anos, Luiza Possi desmentiu o namoro com Gadú e relatou ter perdido contratos quando surgiram boatos sobre a relação. Em 2016, ela contou que, mesmo negando, o mercado passou a tratá-la como se aquela história fosse uma verdade que “simplesmente não podia existir”, acompanhada da frase amarga: “Luiza Possi não é gorda, não é gay, não é nada”. Ou seja, a suspeita sobre a orientação sexual dela já tinha sido usada como arma profissional no passado. Agora, a mesma história volta à cena, não para reparar injustiças, mas para punir a heresia política e religiosa.

Hoje, a cantora declara que “já foi bissexual” e que não é mais, que experimentou na juventude e agora se define de outra forma. Pode-se discordar, discutir conceitos de sexualidade fluida, criticar a ideia de que alguém “deixa de ser bissexual”. O que não se pode normalizar é que uma artista LGBT use essa biografia íntima como munição contra uma ex que ousou migrar de um imaginário progressista para um discurso cristão que inclui a defesa de Bolsonaro.

O ponto mais incômodo dessa história é a assimetria moral. O mesmo meio artístico que passou anos dizendo que “outing” é violência, que expor alguém sem consentimento é abuso, que não se usa sexualidade alheia como arma, agora assiste quase em silêncio à exposição de uma ex, com deboche e tom de penitência pública.

Nos comentários, Maria Gadú não só revelou o relacionamento como afirmou: “O tempo em que namoramos foi um erro”. Também escreveu que Luiza Possi “viveu uma grande mentira” e que seria necessário “Deus atuar na vida dela” para que encontrasse “verdade e humildade”. A mensagem é clara: a relação só volta à pauta porque uma das partes adotou hoje um discurso cristão que incomoda a bolha. Não é uma reparação histórica, é um acerto de contas ideológico.

A reação posterior de Luiza Possi, falando sobre querer ser porto seguro para os filhos, garantir que sempre terão uma casa para onde voltar quando o mundo pesar, mostra claramente que ela está tentando reenquadrar a narrativa no campo do afeto e da responsabilidade familiar. A internet, no entanto, respondeu com deboche e referências a músicas de Gadú, além de insinuações maldosas sobre o futuro dos filhos caso discordem da visão política da mãe.

É um ambiente tóxico em que a pauta da diversidade, em teoria voltada a garantir que ninguém seja reduzido a rótulos, se transforma em chantagem identitária. Você só é protegido se continuar obedecendo à cartilha. O dia em que ousar questionar a narrativa dominante, seu passado será usado como arma. O direito de rever trajetórias, amadurecer e mudar de opinião, tão celebrado quando alguém migra para o campo progressista, vira prova de hipocrisia quando o movimento é na direção contrária.

A mensagem enviada a qualquer artista que hoje esteja em dúvida é pedagógica no pior sentido. Se você experimentar, se se aproximar de um universo que odeia o cristianismo conservador, a conta virá caso escolha seguir outro caminho. Vão dizer que você é ingrato, traidor, “lobotomizado”, como escreveu o ex-marido de Luiza sobre ela.

A discussão não é sobre concordar ou não com a defesa de Bolsonaro, nem sobre a teologia da cantora. É sobre o limite entre crítica política e revanche íntima. Quem diz lutar por liberdade, diversidade e respeito à subjetividade alheia não pode achar normal que uma mulher tenha sua intimidade exposta anos depois como punição por ter se tornado cristã e assumir um posicionamento impopular na bolha.

Quando a mesma turma que denuncia abuso emocional, outing e violência simbólica aplaude ou silencia diante de um episódio assim, não está defendendo minorias, está defendendo um campo ideológico. Contra cristãos, pode tudo. Se for cristão e ainda por cima bolsonarista, aí a licença para agredir é quase automática.

A pergunta final não é retórica, é diagnóstica: a esquerda pode tudo?

A fadiga material das ruas: quando a militância troca o asfalto pelo feed, sem recuperar o fôlego

As ruas brasileiras, que nos últimos anos foram palco de mobilizações massivas, hoje revelam um esvaziamento visível. Não se trata de redução da polarização nem de perda de popularidade de Lula ou Bolsonaro, mas de uma fadiga material: o cansaço dos setores mais engajados, que percebem que protestos repetidos produzem efeitos cada vez mais escassos. Essa exaustão atinge tanto a direita quanto a esquerda e se expressa também no ambiente digital — não como revitalização, mas como outro sintoma do mesmo esgotamento.

As jornadas de junho de 2013 exemplificam esse processo. Não foram manifestações de direita; surgiram do Movimento Passe Livre, com pautas progressistas. Pesquisas do Datafolha mostravam apenas 10% de participantes identificados com a direita e 36% com a esquerda ou centro-esquerda. Mas o caráter plural — sindicatos, coletivos feministas, negros e LGBTQIA+, grupos autonomistas e patrióticos — abriu espaço para que a direita encontrasse ali um canal para disputar o debate público em pé de igualdade com a esquerda nos anos seguintes.

Hoje, porém, tanto a direita quanto a esquerda convivem com o desencanto. O “gigante” acordado em 2013 parece cada vez mais sonolento: atos pró-anistia em 2025 reuniram dezenas de milhares, muito menos que mobilizações anteriores. Já os protestos da esquerda tendem a ser seguidos por crescimento de rejeição, provocada pelos segmentos e atores que sustentam seu campo político. O resultado é ruidoso na forma, mas silencioso no efeito.

Essa fadiga não se limita ao espaço físico. No digital, o engajamento explode em números — a consultoria Bites registrou 1,48 bilhão de interações com políticos de direita entre janeiro e maio de 2025, mais que o dobro da esquerda e do centro juntos — mas esse volume não significa ação coletiva transformadora. Como aponta Raphael Castro no Ateliê de Humanidades, “a hiperatividade online pode mascarar a inanição cívica offline”. Em média, brasileiros passam 3h46 min por dia nas redes (acima da média global de 2h31 min), mas grande parte desse consumo político se traduz em curtidas, comentários e hashtags sem vínculo com estruturas permanentes de participação.

O risco é o mesmo que Durkheim descreveu como anomia social: perda de normas e objetivos coletivos. A pseudodemocracia pode seguir formalmente operante, mas sem engajamento real, com cidadãos dispersos e céticos.

Para evitar esse caminho, é preciso reconstruir o engajamento. Reativar redes de participação permanentes (digitais e presenciais) que liguem demandas locais a ações nacionais. Redefinir o papel dos atos: cada mobilização deve vir acompanhada de entregas concretas — campanhas, leis ou ações comunitárias. E reencantar o debate público com novas narrativas e rituais cívicos menos partidários e mais comunitários, capazes de unir cidadãos em torno de valores comuns.

Sem esse esforço, tanto as ruas quanto as timelines continuarão a dar sinais de vida — mas sem fôlego real. E a democracia corre o risco de esvaziar-se não por confronto, mas por desilusão.

Centrismo Municipal

Costumo dizer que eleições municipais tratam do cotidiano das pessoas e muito pouco sobre vertentes políticas ou lideranças nacionais. O pleito que se avizinha parece ser mais um episódio desta história, com pequenas exceções em algumas poucas capitais que insistem em apostar na polarização. Entretanto, eleições municipais são o que são, ou seja, uma oportunidade de discutir os problemas reais que fazem parte da vida do cidadão, desde o saneamento básico, passando pelo transporte, limpeza das ruas, conservação viária, iluminação pública entre muitos outros desafios.

Isso explica a razão de partidos centristas serem os maiores vitoriosos nesta dinâmica. O MDB é líder nesta tradição e sempre carregou o maior contingente de prefeituras. Para este nicho específico agora se encaminha o PSD de Gilberto Kassab, que se credencia como o grande partido centrista do Brasil, assim como foi por décadas o MDB, classificados na literatura política estrangeira como “catch all parties”, ou seja, agremiações que aceitam políticos das mais diferentes orientações e vertentes.

Isso é um fenômeno explicado pela ausência de ideologias claras na dinâmica municipal. Por tratarem de questões do cotidiano, a ligação política com a polarização nacional é diluída, sobressaindo-se nomes de bom diálogo e articulação, conhecedores dos temas locais e da demanda direta da população. Isso explica em larga medida porque grandes políticos nacionais geralmente não conseguem se transformar em decisivos cabos eleitorais em pleitos municipais.

MDB e PSD hoje lideram em número de prefeituras. O primeiro elegeu 799 prefeitos em 2020, enquanto o segundo chegou ao poder em 660 cidades. O movimento de fortalecimento destes partidos, entretanto, foi acentuado pelo contingente de prefeitos que migraram para estas agremiações nos últimos quatro anos. O PSD cresceu e atingiu a marca de 968 prefeituras, ultrapassando o MDB, que mesmo crescendo, caiu para o segundo lugar com 838. Os dois são os maiores expoentes do poder municipal brasileiro.

De olho neste movimento, Valdemar Costa Neto, mandachuva do PL, partido que neste momento abriga o bolsonarismo, não perdeu a chance de manter um pilar cravado no centrismo, como forma de ampliar a quantidade de prefeituras dominadas pela sigla. O PL, que detém o maior fundo partidário e eleitoral, quer também controlar o maior número de executivos municipais possíveis.

A esquerda, por sua vez, fez um movimento inverso que levou suas agremiações a um claro processo de desidratação, com chances de eleger prefeitos somente em quatro capitais e o partido de Lula com chances reais de não se eleger em nenhuma delas. Em 2016, a esquerda venceu em duas já no primeiro turno e foi para o segundo turno em outras nove. Em 2020, chegaram ao segundo turno em nove e venceram em apenas cinco. Como vemos, 2024 tem tudo para ser ainda pior. No PT, o desmonte é ainda mais preocupante. O partido controla menos prefeituras que PDT e PSB.

O pleito deste ano deve fazer com que PSD e MDB sigam na liderança, elegendo grande número de prefeitos, seguidos do PL, PP e inclusive União Brasil e Republicanos. Um centrismo municipal de resultados que espera pavimentar apoios municipais decisivos para eleger bancadas numerosas no Congresso Nacional em 2026, garantindo fatias generosas dos fundos que alimentam seus partidos e que podem, quem sabe, entregar também o Planalto.

A “internacional fascista” e o eixo autocrático

Vamos prestar atenção ao que dizem duas das mais reconhecidas instituições que monitoram os regimes políticos no mundo: o V-Dem Institute (da Universidade de Gotemburgo) e a The Economist Intelligence Unit (EIU). Segundo o V-Dem o Brasil não é uma autocracia (ou ditadura) e sim uma democracia não-liberal. Segundo a EIU o Brasil, igualmente, não é um regime autoritário (ou ditadura) e sim uma democracia não-plena.

Prefiro dizer – e já mostrei por quê em um artigo – que o Brasil tem um regime eleitoral parasitado pelos dois populismos do século 21: o neopopulismo dito de esquerda e o populismo-autoritário dito de direita e, portanto, está em risco de entrar em transição autocratizante. Isso significa que o Brasil, enquanto permanecer nessa condição de hospedeiro de populismos, não caminhará para ser uma democracia liberal ou plena. Mas, atenção: não significa que viraremos, nos curto ou médio prazos, uma autocracia eleitoral ou fechada (na classificação do V-Dem) ou que nos converteremos em um regime híbrido ou autoritário (na classificação da EIU).

Mas o risco continua porque os dois populismos que parasitam nosso regime político, embora não sejam iguais, têm, ambos, efeitos adversos sobre o regime do ponto de vista da democracia: o neopopulismo não costuma (a não ser em alguns casos extremos, como o da Venezuela e o da Nicarágua) matar o hospedeiro, enquanto que o populismo-autoritário pode, sim, acabar matando-o (como ocorreu na Hungria, na Turquia e em El Salvador – que se transformaram em autocracias eleitorais ou regimes autoritários).

Em outras palavras, no caso concreto do Brasil, o lulopetismo não mata o hospedeiro, mas o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização) impedindo que nosso regime eleitoral se converta em uma democracia liberal ou plena, enquanto que o bolsonarismo pretende matar o hospedeiro quando, além de impedir que nosso regime político vire um regime liberal, dificulta até mesmo que continuemos sendo uma democracia eleitoral.

Claro que para entender isso é preciso admitir que existem dois tipos de populismos no século 21 e não apenas o populismo dito de extrema-direita, como querem nos fazer acreditar os intelectuais acadêmicos de ciência política, muitos teóricos atuais da democracia e quase todos os jornalistas e analistas políticos na grande imprensa.

Estabelece-se a partir daí uma grande confusão, diria mesmo uma mistificação, na qual o grande ou principal (ou único) inimigo universal da democracia é o populismo-autoritário ou nacional-populismo dito de extrema-direita. Já mostrei em outro artigo que isso é falso. Das 89 autocracias que existem hoje no mundo (segundo o V-Dem), somente três são governadas por líderes nacional-populistas (Hungria, Turquia e El Salvador). Todas as demais são ditaduras islâmicas (que não podem ser caracterizadas como de direita ou de esquerda; e. g. Afeganistão, Arábia Saudita, Barein, Catar, Iémen, Jordânia, Kuwait, Líbia, Marrocos, Omã, Somália, Sudão) ou regimes na esfera de influência do eixo autocrático composto por Rússia, China, Irã etc. (e. g. Azerbaijão, Bielorrússia, Camboja, Chade, Gaza, Guine Equatorial, Mali, Síria, Sudão do Sul, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão) ou regimes declarada ou historicamente de esquerda ou extrema-esquerda (e. g. China, Coreia do Norte, Cuba, Laos, Venezuela, Nicarágua, Vietnam, Angola).

O eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat – a nova Índia de Modi, que é uma autocracia) ao qual estão se alinhando regimes eleitorais não-liberais parasitados por populismos de esquerda (e. g. México, Colômbia, Bolívia, Brasil, Honduras, África do Sul) é um inimigo muito mais perigoso e poderoso para as democracias liberais do que a chamada “internacional fascista” composta pelos populistas-autoritários ditos de extrema-direita (e. g. Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro) que, repita-se, só estão no governo em três países (com exceção de Meloni, pois a Itália continua sendo uma democracia liberal).

Isso não significa que a chamada extrema-direita não seja um perigo para a democracia. Mas significa que ela não representa o único, nem o principal, inimigo das democracias liberais (segundo o V-Dem 2023: EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Seicheles, Butão, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia).

Claro que a eleição de Trump (levando de carona Vance, Bannon e, agora, Elon Musk) pode alterar a correlação de forças no plano mundial, mas não mudar a natureza da principal ameaça à democracia representada pela ascensão do eixo autocrático. Com Trump ou sem Trump, o eixo autocrático continuará sendo a maior coalizão de ditaduras já conformada na história do planeta, atualmente empenhada em uma segunda grande guerra fria cujo objetivo último é exterminar as democracias liberais na face da Terra.

Com exceção do que pode acontecer com os EUA (e com o mundo) na hipótese da vitória Trump e de Putin que, situado no coração do eixo autocrático, investe no populismo de esquerda e no populismo de direita (Mélenchon e Le Pen, Lula e Bolsonaro) – porque sabe que a polarização tóxica entre os populismos é a principal arma de destruição das democracias liberais – essa cogitada “internacional fascista” é fichinha comparada ao eixo autocrático.