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O que é o Ocidente? Ele esqueceu de onde veio?

Gostei do título de um artigo que li recentemente na revista Spiked: “O Ocidente esqueceu de onde veio”. Muito daquilo sobre o quê tenho refletido e escrito de filosofia política e até de política propriamente dita passa por uma tentativa ainda um tanto canhestra de acusar esse esquecimento e lembrar as origens da nossa civilização.

E isso não surpreende uma vez que me entendo politicamente como alguém que defende aquilo que o filósofo francês Philippe Nemo chama, na sua Histoire des idées politique, de tradição democrática-liberal, cuja origem se confunde com a origem da própria civilização ocidental.

Falaremos ainda sobre esse pensador francês. Voltemos, porém, ao referido artigo. Trata-se, na verdade, da transcrição de uma entrevista do editor da Spiked, Brendan O’Neill, com Frank Furedi, autor do livro The war against the past: why the West must fight for its history (A Guerra Contra o Passado: Por que o Ocidente deve lutar por sua história).

Antes de introduzir a entrevista, O´Neill, com a escrita objetiva e incisiva que lhe é característica, faz um diagnóstico do atual estado de coisas:

“Estátuas são derrubadas, museus são esvaziados de seus artefatos, heróis nacionais são difamados como racistas e criminosos. De universidades a escolas primárias, de museus a conselhos locais, as instituições confiáveis para preservar e transmitir a memória histórica estão, em vez disso, travando uma guerra contra ela. As elites de hoje se voltaram decisivamente contra os ganhos da civilização ocidental e buscam pintar seu legado como tóxico”.

Trata-se de uma “virada anticivilacional” e Brendan O´Neill quer saber de Frank Furedi quando começou essa guerra contra o passado.

Segundo Furedi, “começou como um ataque bastante específico e direcionado a coisas como a escravidão na América ou como o Império Britânico se comportou no século XIX ou no início do século XX. Então, de repente, cada dimensão da experiência ocidental se tornou tóxica”, explica o acadêmico húngaro-canadense, acrescentando que, embora isso tenha aumentado em 2020, demorou muito para acontecer e o terreno para eclosão desse antiocidentalismo foi preparado na década anterior.

Memórias alternativas e versão identitária do holocausto

No seu livro, Furedi argumenta que “ao separar a sociedade de seu passado e fazer todo o possível para transformar o passado em uma espécie de área proibida, as pessoas estão esquecendo algumas experiências muito importantes.” Não apenas esquecendo, mas reinventando-as perigosamente, por meio da crianção do que ele chama de “memórias alternativas.”

Uma das memórias alternativas em voga é a versão identitária do holocausto, “aquela em que os judeus desempenham um papel bastante menor e indistinto. Em vez disso, você tem todos os tipos de grupos de identidade sofrendo em uma extensão muito maior do que qualquer outra pessoa sofreu. O Holocausto então se torna esse conjunto, onde diferentes grupos podem alegar que foram suas principais vítimas. Vemos isso na estranha tentativa de “queerizar” o Holocausto”.

Já estamos nos encaminhando, segundo Furedi, para algo imaginado por George Orwell no livro 1984, no qual um homem do Ministério da Verdade afirma que, em 2050, as pessoas não se lembrarão mais de quem foi Shakespeare nem quem foram todos os filósofos importantes:

“Já temos uma situação em que as pessoas não se lembram mais de quem é o verdadeiro Aristóteles, porque nos dizem que ele foi o fundador da supremacia branca. As crianças que vão à escola hoje podem ouvir que Churchill foi um criminoso de guerra. Quando você tem uma visão tão distorcida de um dos maiores ícones da história britânica do século XX, então você não consegue se lembrar muito sobre de onde veio”, conclui o escritor.

Precisamos, pois, ativar a memória da juventude, conectá-la com a notável jornada civilizacional à qual ela se vincula. O primeiro passo para combater o antiocidentalismo reinante é, obviamente, dar a entender o que é o Ocidente e o que estará em jogo se abdicarmos dessa herança cultural e espiritual que nos é própria.

O que é o Ocidente?

Na introdução do seu livro “O que é o Ocidente”, Philippe Nemo sugere que as circunstâncias geopolíticas de hoje reclamam algo como um “discurso à nação ocidental”.

Diante da já sentida crise do Ocidente, faz-se necessário uma tomada de consciência dos valores e ideais que o Ocidente representa. Essa tarefa torna-se mais urgente se considerarmos a hipótese de que, nessa civilização em crise, “foram alcançadas certas figuras do universal cujo desaparecimento ou enfraquecimento afetaria a humanidade como um todo.”

Em uma primeira aproximação, indica o pensador francês, a civilização ocidental pode se definir “pelo Estado de Direito, pela democracia, pelas liberdades intelectuais, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia de liberdade baseada na propriedade privada”.

Nada disso, porém, é natural, “esses valores, estas instituições são fruto de uma longa luta construção histórica”. Tendo isso em vista, e apoiando-se no conhecimento adquirido ao escrever a sua Histoire des idées politiques, Nemo propõe estruturar a morfogênese cultural do Ocidente em cinco acontecimentos essenciais:

1) A invenção da polis, da liberdade perante a lei, da filosofia e da ciência pelos gregos;

2) A invenção do direito, da propriedade privada, da “pessoa” por Roma;

3) A revolução ética e escatológica do cristianismo;

4) A “Revolução Papal” dos séculos XI-XIII, que escolheu usar a razão humana resgatando a ciência grega e o direito romano formulando a primeira grande síntese entre “Atenas”, “Roma” e “Jerusalém”;

5) A promoção da democracia liberal alcançada pelas grandes revoluções democráticas (Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, França, e então, de uma forma ou de outra, todos outros países da Europa Ocidental)

Jerusalém, Atenas e Roma

Essa estrutura apresentada por Philippe Nemo está em consonância com um importante discurso proferido pelo papa Bento XVI, em 2011, no Parlamento alemão. Na ocasião, Joseph Ratzinger propõe “algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito”.

No começo do discurso, Ratzinger já expõe algo fundamental da relação entre política e cristianismo que muitos políticos que se dizem cristãos atualmente andam esquecidos ou simplesmente desconhecem:

“Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação”, explica Bento XVI.

Por outro lado, é preciso considerar que o cristianismo “apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito.” Assim sendo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II a.C., dando-se então um encontro entre o direito natural desenvolvido pelos filósofos estoicos, e os mestres do direito romano. Neste contato, afirma Ratzinger “nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade”.

Nessa época em que a bandeira da defesa dos direitos humanos é frequentemente instrumentalizada por tendências políticas antiocidentais e anticristãs, é importante a recordação do papa de que “desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos”.

O que Bento XVI está explicando é que os teólogos cristãos tiveram um papel decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade quando tomaram posição contra o direito religioso e se deixaram influenciar pela filosofia, “reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação”.

Não convém entrar nos pormenores da sapientíssima argumentação de Bento XVI. Importa-nos mostrar que também ele aponta, nesse discurso, a necessidade de tomarmos consciência desse legado civilizacional que está atualmente posto em xeque:

“Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura”, orienta Joseph Ratzinger.

Os fundamentos da cultura ocidental são fortes o suficiente para resistir aos ataques de que tem sido alvo, desde que tomemos consciência do seu enorme valor e nos coloquemos em guarda na sua defesa.

A civilização ocidental, da qual a cultura da Europa é o reflexo mais visível, “nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma”, diz-nos Bento XVI.

Há tendências político-ideológicas cujos projetos passam pela destruição de cada uma das partes desse tríplice encontro. Isso explica muita coisa, inclusive o ódio a Israel que trouxe uma nova onda de antissemitismo à Europa.

Mas estamos atentos. Aos poucos, vamos resgatar a nossa memória cultural, refazer nosso percurso espiritual, apropriando-nos dos nossos valores e compreendendo que a nossa missão na terra é mais do que destruir tudo para reconstruir do nada.

Precisamos retomar o fio daquilo que de mais alto o ser humano foi capaz de alcançar e precisamos nos guiar pelo que de mais moralmente perfeito nos foi dado mirar.

A civilização ocidental evoluiu moralmente com o olhar voltado para Jesus Cristo. Desprezar esse modelo e renegar o cristianismo é justamente o caminho que aqueles que querem nos destruir estão nos incentivando a trilhar.

Feminismo progressista e esquerda talibã

Nesse mundo atravessado por espantosas ondas de violência e opressão, muitos acabam ficando anestesiados, perdendo, por conseguinte, aquela indignação espontânea e genuína diante da observação de eventos moralmente condenáveis. É preciso, porém, cuidado, para que não percamos a nossa capacidade de perceber o mal, julgá-lo como tal e condená-lo inequivocamente.

A ideologia é algo que, por vezes, oblitera a capacidade de julgar. Bem instalados dentro de determinados quadros teóricos que possuem um referencial ético próprio, pessoas ideologizadas são capazes de justificar situações concretas aberrantes em nome do bem abstrato que dizem defender.

Quem perde a capacidade de julgar, fanatiza-se. Existe fanatismo na política e existe fanatismo na religião. E existe uma religião cujo fanatismo se impõe por meio de força política porque nela política e religião são indissociáveis. Essa religião tribal e primitiva é o islamismo.

Todos sabemos que as mulheres são, de modo geral, oprimidas em todo o mundo islâmico. Um ou outro país islâmico no qual as mulheres não sejam tratadas como animais pode ser tomado como exceção que confirma a regra.

A coisificação da mulher está tão intrinsecamente ligada ao islamismo que muitos muçulmanos, ao serem acolhidos pelos países ocidentais, não transigem de forma alguma em relação a costumes tais como mutilação genital feminina, casamento infantil, casamento forçado e obrigação das meninas pré-púberes de usarem um hijab.

Essas são práticas subculturais do sul da Ásia e do oriente médio que não são exclusivas dos muçulmanos, mas que, entre os muçulmanos, são justificadas como práticas religiosas. No inevitável conflito entre tais práticas religiosas muçulmanas e o estado de direito do país ocidental que acolheu os muçulmanos o que você acha que deveria prevalecer?

Como a disseminação de um tosco multiculturalismo nos fez acreditar que nossa civilização não tem nada de superior às outras e que nossos valores não são universais porque valores universais não existem, claro que vai prevalecer o direito do macho muçulmano de extirpar o clitóris de uma menina e de casá-la com um sexagenário, afinal, quem somos nós, ocidentais cristãos brancos imperialistas para querer impor nossos valores aos outros?

O que as feministas dizem sobre isso? Aí é que está. Elas dizem pouca coisa. O abstrato patriarcado ocidental ocupa tanto a sua imaginação e gera tantas especulações que sobra pouco tempo para analisar e condenar o patriarcado real que oprime as mulheres do mundo islâmico. Perdidas nas divagações de que o patriarcado e o machismo estão difusos em todas as sociedades, tornam-se incapazes de observar e condenar a sua manifestação atual mais concreta.

A feminista progressista tem outras preocupações e, por isso, costuma ignorar a misoginia islâmica. Sua ocupação principal é defender o direito total e absoluto ao aborto em qualquer período da gestação; ela também costuma especular sobre uma “cultura do estupro” disseminada entre todos os homens brancos héteros ocidentais que são invariavelmente machistas e estupradores em potencial; por fim, algumas acharam por bem defender o direito não apenas da mulher, mas de quem “se identifica” como mulher.

O Talibã, a estupidez da Anistia e a complacência da ONU

Foi noticiado recentemente que o regime do Talibã, no Afeganistão, recrudesceu as leis com as quais escraviza as mulheres. As novas regras, determinadas pelo “Ministério para a propagação da virtude e prevenção do vício” proíbem agora as mulheres de falar ou cantar fora de casa e de irem para a escola depois de completarem 12 anos de idade. São 35 novas regras de opressão que se somam a outras mais antigas, como a obrigatoriedade do uso da burca.

Segundo o artigo “Onde está a solidariedade com as mulheres do Afeganistão?” publicado na revista Spiked, a Anistia Internacional comentou a situação e apelou ao Talibã para acabar com sua “perseguição baseada em gênero”, mas caracterizou, em postagem no X, essa perseguição como sendo contra aquelas que “se identificam como meninas.”

Segundo Candice Holdswoth, autora do artigo, a descrição “profundamente estúpida” foi reescrita para se referir apenas a mulheres e meninas: “claramente, alguém na Anistia percebeu que essa linguagem absurda e woke não pode ser usada para descrever a situação das mulheres no Afeganistão, que nunca poderiam ´se identificar´ dentro ou fora do fato de serem mulheres”.

Holdswoth também deplora o acovardamento cúmplice da ONU que tem trabalhado para integrar o Afeganistão à comunidade internacional sob a justificativa de que a aproximação com os países civilizados poderia ter sobre os talibãs alguma influência moderadora:

“No início deste ano, a ONU publicou um roteiro no qual o secretário-geral António Guterres sugere que os direitos das mulheres melhorarão com o tempo, à medida que a ONU constrói uma relação de trabalho com o Talibã. Na realidade, a situação só piorou progressivamente”, denuncia a escritora.

As mulheres afegãs, sob o Talibã, estão vivendo um pesadelo distópico, estão sendo vítimas de abusos terríveis que nem todas conseguem suportar. Muitas mulheres “estão sendo levadas à depressão e ao suicídio por desespero total”, alerta o referido artigo. Diante desse quadro, porém, o secretário-geral da ONU, António Guterres, limitou-se a dizer que viu as novas regras do Talibã com preocupação. Essa pusilanimidade levou Holdswoth a concluir seu artigo em tom de desabafo:

“O Talibã tem uma longa história de brutalizar mulheres e não há nenhuma indicação de que esses extremistas islâmicos tenham reformado suas visões. […] O Afeganistão é agora um inferno de miséria e sofrimento para as mulheres. É chocante que alguém tenha se convencido de que poderia ter sido diferente sob o Talibã, com base no que todos sabemos sobre a ameaça que o extremismo islâmico representa para mulheres e meninas.”

A esquerda talibã no Brasil

No começo desse artigo dizíamos que existe fanatismo na política e existe fanatismo na religião. Como a ideologia não pode conviver com a espiritualidade verdadeira, ela, por vezes, se une ao fanatismo religioso, que é uma deturpação da espiritualidade vivida, sentida e real. Isso explica, em parte, a aliança nefasta entre a esquerda e o Islã, que já mencionei em artigos anteriores.

No Brasil, parte significativa da esquerda tem um histórico de simpatia pelo Talibã. Em 2021, quando forças de intervenção dos EUA saíram do Afeganistão, o site brasileiro “Diário da Causa Operária” – ligado ao Partido da Causa Operária (PCO), de autodeclarada orientação marxista-leninista-trotskista – publicou uma reportagem celebrando a vitória do Talibã com registros os mais entusiasmados.

Rui Costa Pimenta, presidente do PCO, declarou na ocasião: “a vitória do talibã está inspirando os povos do oriente médio a irem pelo caminho de uma ampla revolução armada, a revolução popular para derrubar os governos corruptos financiados pelo EUA”. Em seguida, ele reclamou de correntes de esquerda que não eram suficientemente alinhadas com o fundamentalismo islâmico.

Se Rui Pimenta escarneceu a parte da esquerda não fanática chamando-a “esquerda pequeno burguesa”, não será demais chamar a parte da esquerda à qual ele pertence de esquerda talibã.

Infelizmente a esquerda talibã brasileira vai além de Rui Pimenta e do PCO: ela também influencia o governo Lula e está representada na direção do PT.

A esquerda talibã é aquela que na guerra entre Israel e o Hamas, justifica as atrocidades do Hamas e condena Israel; que na guerra entre Israel e Irã, prefere alinhar-se ao regime dos aiatolás.

A esquerda talibã brasileira se põe abstrata e retoricamente em defesa da democracia, mas, quando começa a guerra de grupos terroristas sustentados por uma teocracia perversa contra um país minúsculo que é a única pátria dos judeus e única democracia do Oriente médio, essa esquerda coloca vergonhosamente o nosso país ao lado do eixo do mal.

O contraditório apoio da esquerda a Putin, um plutocrata fascista

Uma das narrativas mais usadas – e abusadas – pela esquerda é a denúncia do “imperialismo” como culpado por todas as injustiças e horrores do mundo. Todavia, aí mora uma flagrante contradição: desde a edificação na Rússia da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1922, a política marxista-leninista (bolchevismo), passou a ser, fundamentalmente, de caráter imperialista.

A pregação originária do marxismo é internacionalista: para a completa vitória, a revolução proletária terá de ser realizada sem fronteiras, sem predomínio de qualquer país; reza a doutrina. Todavia, a partir de 1922 a URSS desenvolveu um política expansionista com total predominância e no interesse do poder centralizado pelo Partido Comunista (marxista-leninista) em Moscou.

A fantasia internacionalista, na prática já esfarrapada, teve grande abalo teórico quando Stalin elaborou a nova doutrina do “socialismo em um só país”. A partir de então, o internacionalismo proletário marxista foi reduzido à afirmação chauvinista da primazia da URSS e do seu Partido Comunista, concomitantemente à total subserviência dos Partidos Comunistas de todos os outros países.

O corolário dessa nova práxis doutrinária foi o culto à personalidade de Stalin, o mais arraigado e repugnante exercício de submissão a um tirano de que se tem notícia na história contemporânea.

Pode-se considerar que tudo isso é coisa velha e o stalinismo um regime/doutrina já desmascarado em sua perversidade e, em geral, rejeitado até no âmbito da própria esquerda. Nada obstante, nos dias atuais, uma franja desatinada da esquerda descortina uma nova narrativa pela qual busca reviver o passado de expansionismo soviético projetando suas fantasias no atual ditador da Rússia, o belicoso Vladimir Putin.

Aqui no Brasil, intelectuais marxistas, jornalistas lulopetistas e até partidos políticos declaram sua simpatia por Putin e apoiam atos de expansão imperialista como a invasão da Ucrânia, incidindo em nova contradição, uma vez que Putin não é marxista, não é comunista e não é socialista.

A plutocracia de Putin

Putin é um plutocrata que governa apoiado por uma rede de bilionários enriquecidos por esquemas de corrupção facilitados ou promovidos pelo governo.

A riqueza dos plutocratas amigos de Putin não é escondida, mas pelo contrário ostentada não só na própria Rússia como em vários países do exterior, por cujos mares tais nababos costumam navegar em seus luxuosíssimos iates.

Para sustentar tal poder, o governo Putin – principalmente após o início da guerra de invasão da Ucrânia, – enveredou pela prática de controle social tipicamente fascista, com censura e repressão extremas aliadas a um nacionalismo expansionista.

Já em setembro de 2022, a então relatora da ONU sobre a Rússia, Mariana Katzarova, alertou em relatório que os métodos repressivos russos recrudesciam e se sofisticavam com a edição em série de leis que visavam abafar qualquer crítica ou oposição.

Embora reconhecendo que a repressão de Putin não era comparável à repressão de Stalin, o relatório exortava a comunidade internacional a barrar o tirano enquanto fosse tempo.

Com efeito, não é fácil atingir o horror da repressão stalinista, mas o regime de Putin tem feito esforço.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

O “regime desagradável” de Lula e o fascismo na Venezuela

Imagine que você é mãe de um adolescente de 14 anos. Seu filho é um menino idealista, que se juntou a outros colegas do ensino médio para protestar contra um governo que prendeu o prefeito da sua cidade e outros líderes da oposição. A cidade está um caos, você está sem notícias. De repente, passa a circular no Twitter fotos do seu filho caído no chão com a massa encefálica exposta. Ele foi atingido na cabeça por um disparo da Guarda Nacional Bolivariana que reprimia os protestos. Como você classificaria um regime no qual isso acontece?

Nove anos se passaram depois do referido acontecimento (o menino chamava-se Kluiver Roa e foi assassinado em 2015, em San Cristóbal, Venezuela) e o regime contra o qual os venezuelanos protestavam permanece o mesmo.

As forças de segurança desse regime, e os coletivos – grupos armados pró-governo – têm sistematicamente atacado manifestações desde 2014, com ações violentas, espancamentos brutais e tiros à queima-roupa. Por isso mesmo, durante alguns anos, os protestos diminuíram. O regime não assassinou apenas Roa, mas matou, prendeu e torturou milhares de cidadãos. Como você classificaria um regime no qual isso acontece?

Crimes contra a humanidade foram cometidos sob esse regime como parte de uma política de Estado para reprimir opositores. Esse regime prendeu opositores políticos e os impediu de concorrer a cargos públicos. No país onde vige esse regime, o Judiciário parou de funcionar como um poder independente do Estado desde 2004.

Nesse regime, as autoridades estigmatizaram, assediaram e reprimiram a imprensa, fechando veículos dissidentes. Lá as autoridades assediam e perseguem defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil que tratam de direitos humanos e emergências humanitárias.

Esse regime submete o seu povo a uma grave emergência humanitária, com milhões sem acesso a cuidados de saúde e nutrição adequados. Esse regime provocou o êxodo de cerca de 7,1 milhões de venezuelanos, gerando uma das maiores crises migratórias do mundo. Como você definiria esse regime?

Há muitos anos se sabe que a Venezuela não vive sob o regime democrático e há muitos anos o presidente Lula sustenta que a Venezuela é uma democracia. Nos últimos dias, porém, essa “narrativa” voltou-se fortemente contra ele, que se viu pressionado a fazer uma grande concessão e dizer que a Venezuela é um “regime desagradável”, apesar de que, nas suas palavras “não é uma ditadura.”

Ditadura de esquerda

A fala cínica e irresponsável do presidente Lula espanta e causa indignação em pessoas razoáveis, mas ela está em consonância com o julgamento que parte da esquerda brasileira faz, ainda neste momento, sobre o regime da Venezuela.

Há uma franja extrema da esquerda, na qual o PT está incluído, que aceita a falsa vitória eleitoral de Nicolás Maduro, justifica a violência passada e aplaude a violência em curso no país vizinho.

Há também uma outra parte da esquerda, um tanto mais moderada, que consegue ver o que todo mundo vê, reconhece as fraudes e violências perpetradas pela ditadura chavista, mas chega à astuciosa conclusão de que o atual regime da Venezuela não é de esquerda, mas sim de direita.

Louvamos o repúdio dessa esquerda moderada à ditadura da Venezuela, mas o regime da Venezuela não é de direita, é de esquerda mesmo; assim autoproclamado e aclamado pelos seus pares, tais como a China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e o Brasil.

O que ocorre e pode confundir é que na Venezuela amadureceram características de um modelo político historicamente identificado como de direita: o fascismo.

Extremismos políticos

Cabe aqui uma breve revisão explicativa: desde a origem na Revolução Francesa, os termos esquerda e direita marcaram profundamente as lutas políticas. Os partidos e regimes que os adotaram entraram, por sua vez, por veredas modificadoras: algumas benéficas, outras de extrema perversidade.

No caso da esquerda, a perversidade, que já havia dado as caras no regime de Terror na própria França, iria materializar-se na Rússia, no início do século XX, com o bolchevismo; atingindo seus extremos nos horrores do stalinismo. No caso da direita, a perversidade marchou pela Itália de Mussolini e chamou-se fascismo; porém, atingindo seus extremos de horrores na Alemanha de Hitler, com o nazismo.

Tais modelos perversos, embora historicamente antagônicos, nunca deixaram de guardar semelhanças importantes; a começar pela característica de que são regimes de hipertrofia do Estado. Além disso, em ambos os casos, toda a sociedade é mantida sob controle; controle este que significa censura, perseguição, prisão, tortura e morte.

Deve ser considerado também outro divisor retórico entre o totalitarismo de esquerda e o totalitarismo de direita: Autoproclamando-se “comunista” pelo início do século XIX, e principalmente pela influência do marxismo, a esquerda protagonizou terríveis violências; todas, porém, realizadas em nome do bem, de um futuro radioso de igualdade e fraternidade, com toda a riqueza da terra sendo possuída em comum (comunismo). Já o totalitarismo de direita, aquilo que se tem chamado de nazifascismo, costuma declarar abertamente as perversidades a que se propõe.

É fato que correntes de esquerda e de direita afastaram-se grandemente de seus antepassados perversos; tendo, aliás, sido esta a tônica no século XX desde o fim da Segunda Grande Guerra (1940-1945).

No século XXI, porém, de um lado e de outro, prosperam exercícios de volta às perversidades. A revolução bolivariana ou o bolivarianismo do século XXI é um desses exercícios protagonizados pela esquerda.

Fascismo real e fascismo imaginário

Na Venezuela, o modelo ditatorial de esquerda, embora acalentando a intenção bolchevista de total usurpação estatal da propriedade e dos sistemas produtivos, avançou por uma linha mais tipicamente fascista que bolchevista. Não tendo chegado ao comunismo – a exemplo de todas as ditaduras de esquerda –, o chavismo adequou o seu insaciável desejo de poder a uma espécie de capitalismo de Estado.

O fascismo é uma ideologia de difícil definição, pois carece de alguns princípios filosóficos que a fundamentem. Alguns autores chegam a considerá-lo não uma ideologia propriamente dita, mas uma síntese de elementos contraditórios de diferentes ideologias em um projeto específico.

Se formos rigorosos em relação à classificação, talvez a Rússia seja hoje o exemplo mais próximo de uma experiência fascista. O filósofo russo Aleksandr Dugin, ideólogo de Putin, admite, inclusive, o fascismo como ideologia legítima para subverter o que considera uma “decadência ocidental liberal”.

Não é à toa que orbitam hoje, em torno da Rússia, regimes autoritários e ditatoriais tanto de esquerda, quanto de direita. Eles têm em comum o mesmo desprezo pela democracia, pela liberdade, pela ordem espontânea, pelo pluralismo.

O esquerdo-fascismo vem se espalhando pelo mundo, especialmente em setores da intelectualidade que enveredaram pelo apoio entusiástico a toda tirania, por mais atrasada, repressora e cruel que seja, desde que seja antiocidental; como é o caso, por exemplo, da teocracia iraniana, que escraviza mulheres e que persegue e assassina homossexuais.

Na sua sanha repressora, o atual ditador venezuelano prometeu, e já começou a cumprir, um “banho de sangue”. Contudo, já bastante acostumado à retórica bolchevista, tem abusado daquele recurso já denunciado por George Orwell nos livros A Revolução dos Bichos e 1984; este recurso esdrúxulo é aquela linguagem de porco que consiste em usar os termos no sentido exatamente contrário aos fatos.

Na Venezuela de hoje, no momento mesmo em que a repressão manda contra os opositores a polícia e as milícias, prendendo e matando, como é típico da política fascista, este mesmo regime repressor chama suas vítimas de “fascistas”; e vai além, encaminha uma nova “Lei contra o Fascismo, o Neofascismo e Expressões Similares”.

A legalização da violência com a justificativa de combater supostas ameaças ao regime e garantir a ordem (ou seja, uma prática fascista) se impõe sob o pretexto de combate a um fascismo imaginário.

Alegando a existência de uma conspiração fascista apoiada por estrangeiros para derrubá-lo, Maduro recrudesceu mais o regime após as eleições cujo resultado fraudou. Ativistas dos direitos humanos afirmam que a velocidade e a escalada da repressão são sem precedentes na história recente da região.

Por esses dias, Maduro deflagrou a “Operación Tun Tun” (“Operação Toc Toc”). O nome faz referência às frequentes visitas de homens fortemente armados e vestidos de preto que, a serviço de Maduro, capturam oponentes em suas casa.

O próprio Serviço de contrainteligência militar do regime (DGMI) publicou na sua conta do Instagram vídeos de algumas dessas capturas.

María Oropeza, por exemplo, uma das organizadoras da campanha de Maria Corina Machado, aparece sendo detida ao som da trilha do filme de terror de 1984 A Hora do Pesadelo: “Um, dois, Freddy está vindo atrás de você! Três, quatro, é melhor trancar a porta!”, alertam as letras sinistras da música.

Um segundo vídeo do DGCIM mostra outra prisão com trilha sonora de uma adaptação para filme de terror de Carol of the Bells, cuja letra modificada alerta: “Se você fez algo errado, então ele virá! … Ele vai te procurar! É melhor você se esconder!”

Como você chama isso? Eu chamo de terrorismo de Estado, praticado por um regime ditatorial que tende ao totalitarismo. Lula chamaria de incidente normal de um “regime desagradável”, onde há “uma briga” porque perderam as atas de votação.

O lulopetismo vai afundar com suas ditaduras amigas

A ideologia marxista – ou marxista-leninista – já não existe em lugar nenhum do mundo em sua forma original, tendo-se repartido por formas peculiares de esquerdismo; umas mais brandas, outras mais extremas e nefastas.

Algumas dessas ramificações ideológicas vão se prolongando para além dos seus fundadores, como é o caso do castrismo em Cuba ou do chavismo na Venezuela.

No Brasil, a principal ideologia de esquerda ainda é o lulopetismo. Por sobre o respaldo do embasamento sindical do seu início, essa sub-ideologia estendeu seus tentáculos pela sociedade com confessado objetivo gramsciano de hegemonia cultural.

Nesse objetivo, avançou bastante: uma parte da Igreja católica brasileira, vinculada à teologia da libertação, é francamente lulopetista; nas universidades o lulopetismo herdou o intenso ativismo político das décadas de 60 e 70 do século passado; na imprensa há lulopetistas confessos, inconfessos e mesmo os que o são inocentemente, sem nem se dar conta; no ambiente artístico e cultural dá-se o mesmo.

A força arraigada do lulopetismo manteve a viabilidade eleitoral de Lula mesmo quando ele esteve preso. Naquele momento, se fosse elegível, seria eleito mesmo dentro da cadeia.

Em tese, com a eleição de Lula em 2022, o lulopetismo, vitorioso, deveria se fortalecer. Mas é o contrário que está acontecendo; ele hoje definha e se esgarça.

O terceiro governo Lula tem decepcionado muitos entusiastas dos mandatos anteriores. Trata-se de um governo fraco e ruim; sofrível, quando muito. No PT, Lula é forte e age como autocrata; no governo, submete-se às chantagens dos fisiológicos do centrão e é mais governado do que governa.

Lula está desconstruindo rapidamente a tal frente ampla que o elegeu. Nessa desconstrução, aliás, o presidente conta com a peçonha transbordante das alas extremistas do lulopetismo, que atacam com furor qualquer pessoa ou entidade que apresente alguma discordância.

Se ele realmente for candidato à reeleição, a nova frente lulista avançará apenas do PT para as franjas mais extremistas da esquerda; as mesmas que, no meu entender, estão catalizando repulsas que levarão ao esgotamento do próprio lulopetismo.

Visão tosca, primitiva e retrógrada

Convém notar que a frente ampla que elegeu Lula não era uma frente pró-Lula propriamente dita, mas uma frente pró-democracia. A ameaça reacionária representada pelos aloprados bolsonaristas foi entendida, naquele momento, como mais perigosa para a democracia do que o retorno de Lula ao poder.

Por mero pragmatismo e não por convicção democrática, Lula aparenta internamente algum respeito às instituições. Isso porque ele sabe que não contaria com o apoio da sociedade se explicitasse seu ranço autoritário e empreendesse abertamente alguma manobra inconstitucional.

Restou para ele, então, admirar e bajular aqueles que conseguiram estabelecer, lá fora, em seus países, a ditadura que ele não logrou estabelecer aqui. Da Venezuela a Rússia, passando pelo pelo Irã, Lula aproximou o Brasil do que há de mais contrário à civilização, aos direitos humanos, à liberdade e à democracia.

Como corretamente afirmou o professor Denis Rosenfield, em recente artigo, “a sua convicção antidemocrática transparece principalmente em sua visão das relações exteriores”. 

William Waack também foi no ponto quando asseverou que Lula acredita estar do lado certo, inevitável e vitorioso da história, aquele que vai destruir o “imperialismo americano” com ajuda da China e da Rússia.

Lula e sua assessoria internacional, segundo Waack, “entendem a grande ruptura geopolítica atual em linha com um determinismo no sentido de que é inevitável o triunfo do ´Sul´ (os pobres, os emergentes, os espezinhados pela hipocrisia Ocidental) conduzido pela China. Essa visão de mundo parte da premissa de que valores como democracia ou direitos humanos são mero pretexto de países ocidentais para avançar seus interesses, sobretudo econômicos. E que sanções não passam de ferramentas para atrapalhar os contestadores dessa ordem. É uma visão tosca, primitiva e retrógrada.

As ditaduras latinas amigas

A fraude eleitoral na Venezuela foi escandalosa e a violência anunciada é praticada pelo ditador Maduro e seus esbirros sem nenhuma cautela ou pudor; mesmo diante de práticas tão abjetas, o lulopetismo extremista realça a “democracia” chavista e enaltece o ditador Maduro.

Tal discurso, expresso sem rodeios, esfrangalha a capa democrática com que o lulopetismo tradicional tentou se cobrir; e sem essa capa o lulopetismo torna-se imprestável e inviável.

No caso da Nicarágua, as violências da ditadura de Daniel Ortega contra o povo do seu país vieram a ter alguma resposta do governo brasileiro apenas quando a perseguição contra o clero católico chegou ao ponto de o próprio Papa Francisco pedir para Lula intervir.

Como se sabe, a ala progressista da Igreja Católica no Brasil é ponto de apoio do Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação. Mesmo que se deva considerar a reação tardia do governo brasileiro aos abusos perpetrados pelo regime nicaraguense, resta patenteada a ferocidade de um ditador que Lula defendeu por muito tempo e que o lulopetismo extremista continua a defender.

O presidente Lula e a ala do PT na qual restou algum juízo já dão mostras de perceber o potencial de desgaste devido ao acovardamento e a cumplicidade diante das tiranias latinas. Apenas por isso começam a esboçar reações diplomáticas um pouco mais condizentes com a bela tradição da escola do Barão do Rio Branco.

Ainda assim, são reações eivadas de cinismo. Celso Amorim, por exemplo, declarou em recente entrevista à GloboNews que não tem confiança nas atas disponibilizadas pela oposição venezuelana. Falta-me a paciência quando leio na imprensa que isso é prudência diplomática. Não é. É maldade, cara de pau, falta de caráter e hipocrisia.

Defesa de Maduro e a demência fanática da extrema esquerda

A eleição presidencial já não é mais a questão central no drama atual da Venezuela, dado que a fraude já se consumou. O episódio de 28 de julho tornou-se pano de fundo catalisador nos discursos de mobilização das partes em luta: de um lado, o povo lutando por liberdade e democracia; do outro, a repressão de uma ditadura cujo objetivo é aquele de todas as tiranias: manter-se no poder.

A repressão de Maduro avança no prometido “banho de sangue”, assassinando dezenas de cidadãos. O ditador inflama seus sequazes bradando que já prendeu mais de 2 mil opositores e prenderá outros mais, enviando-os para prisões de segurança máxima (onde são praticadas torturas).

A sacrificada luta do povo venezuelano impõe-se como objeto de maior preocupação dos países democráticos de todo o mundo e à consciência das pessoas que sinceramente defendem a liberdade e os direitos humanos. Não é o caso do presidente do Brasil, nem dos seus assessores internacionais, nem do seu partido.

Internacionalmente, cresce a repulsa democrática, humanista e civilizatória a uma ditadura assassina, fraudulenta, mentirosa, corrupta e bizarra que é esta do ditador Nicolás Maduro. Inúmeros países já reconhecem Edmundo Gonzáles como o legítimo vencedor das eleições na Venezuela. Vergonhosamente, o Brasil não está entre eles.

É bem verdade que há certa pressão da imprensa, de políticos e da sociedade civil para que Lula não escancare de vez sua índole autoritária e devolva o Brasil aos trilhos da civilização, dando um passo atrás na sua diplomacia do mal. Não menos verdade, porém, é que há uma pressão do lado oposto.

A esquerda fanática

Mario Vitor Santos, por exemplo – que já foi ombudsman da Folha e hoje é colunista e apresentador de um site desprezível cujo nome nem convém citar – escreveu o espantoso texto “Maduro, não entregue as atas.”

Dirigindo-se retoricamente ao tirano da Venezuela como “presidente” que acabou de ter uma “vitória consagradora”, o militante escreve que “alguns inimigos inexplicavelmente inclusive o Brasil, se juntaram a seus arquinimigos para humilhá-lo e a seu povo”.

O patético texto foi pinçado aleatoriamente como uma amostra do grau de retração intelectual ao qual a mentalidade de certa parte da esquerda está submetida.

Mario Vitor acha que a cumplicidade do governo Lula com a ditadura de Maduro é de pouca monta e exige uma entrega total aos caprichos do ditador. Ele é a espécime de um tipo. Um tipo fanático, intolerante, autoritário e liberticida.

Ao permitir a nota do PT parabenizando Nicolás Maduro pela sua vitória, Lula estava testando a força dessa ala mais radical e extrema; ao declarar cinicamente que o pleito eleitoral na Venezuela foi “teoricamente pacífico”, um processo que “não tem nada de grave, nada de assustador”, Lula estava testando até que ponto ele pode continuar tratando os brasileiros como idiotas.

Como Lula não é burro, já deve ter percebido que não será tão fácil quanto ele esperava construir uma narrativa por meio da qual Nicolás Maduro se mantenha no poder sem que isso implique para ele (Lula) uma grande perda de popularidade.

Não é pragmatismo; é cumplicidade cínica

Muitas vozes da esquerda já se levantaram contra Maduro e sua fraude eleitoral. Até mesmo alguns lulopetistas notórios repeliram Maduro abertamente. Tudo isso é bem-vindo porque torcemos pelo aumento da pressão contra o ditador, venha ela de onde vier.

É preciso, porém, perceber as nuances da forma como a crítica contra Maduro está sendo apresentada pela esquerda. Como bem disse o jornalista Rodolfo Borges, em recente artigo em O Antagonista, o “governo Lula não é mediador na Venezuela, é cúmplice.”

Isso deveria estar óbvio, mas chama atenção os vários artigos que circularam nos quais se tenta passar a ideia de que a diplomacia do Brasil, em relação à Venezuela, estaria sendo prudente e pragmática.

Na análise da jornalista Eliane Cantanhêde, para citar um exemplo, Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira sabem que Maduro perdeu a eleição e conversam sobre isso a portas fechadas, mas a portas abertas “é preciso manter a frieza e aguentar firme a pancadaria interna para buscar soluções.”

Para Cantanhêde, esses homens virtuosos “estão agindo com cautela e estratégia para não romper pontes com Maduro”. Segundo ela, eles estariam muito preocupados em evitar o prometido banho de sangue ou um golpe militar. Como se ambas as coisas já não tivessem acontecido! Como se o país já não fosse há anos uma ditadura militar e como se o banho de sangue já não estivesse em curso.

Em um artigo posterior ao acima citado, Cantanhêde continua batendo na mesma tecla: o Brasil aliou-se a México e Colômbia “para manter o diálogo” com a ditadura venezuelana com “o sonho de chamar Maduro à razão”.

A jornalista reconhece a inegável fraude, a “coragem impressionante” dos oposicionistas e a loucura autoritária de Maduro, mas insiste em colar no governo Lula uma boa intenção que claramente não existe.

A intenção do PT, de Celso Amorim e de Lula sempre foi garantir a perpetuação do poder de Nicolás Maduro e criar justificativas que tornassem essa ignomínia um pouco menos indigesta aos eleitores brasileiros.

A tese da colunista de que Maduro fez “todo mundo de bobo” não é apenas infantil, é também perniciosa porque escamoteia a verdade e tenta manter na cara de Lula a máscara de democrata e humanista que o mundo todo está vendo cair.

Espero, realmente, que o governo brasileiro não se deixe arrastar pelo surto de demência fanática da extrema-esquerda, saia das cordas do acovardamento diplomático e venha a cumprir o papel que pode cumprir na transição de poder de Maduro para a oposição vitoriosa.

Espero isso porque torço pela libertação da Venezuela e porque acredito no instinto de sobrevivência do animal político Lula e não porque acredito nas suas boas intenções em relação a um povo que ele mesmo ajudou a escravizar.

Lula vai romper com Maduro ou ser cúmplice de uma carnificina?

A fraude na eleição de domingo passado, 28 de julho, na Venezuela não foi nenhuma surpresa, mas apenas a conclusão de um projeto criminoso que vinha transcorrendo a olhos vistos: olhares espantados, ingênuos ou cúmplices.

Meu olhar esteve sempre com os espantados; incluindo o espanto com a ingenuidade de democratas que insistiam em confiar nos bons propósitos do ditador candidato, mesmo diante de fraudes e violências escancaradas.

O presidente Lula e o PT não estão entre os ingênuos, são cúmplices.

O Brasil foi um dos fiadores do Acordo de Barbados, pactuado em outubro de 2023 entre o governo Maduro e grupos de oposição da Venezuela, que abriu caminho para a eleição presidencial de 2024.

Tratava-se de um acordo de boas intenções eleitorais. Uma das partes sendo um tirano – embora de uma tirania enfraquecida –, imponha-se muita cautela, mas também cabia alguma esperança e, de modo geral, achou-se que valia a pena tentar.

Rapidamente, porém, Maduro começou a exacerbar em seus métodos escusos: fraude após fraude, violência após violência, o ditador tentou acabar com as chances da oposição muito antes do pleito. Essa oposição, liderada pela corajosa María Corina Machado, resistiu. E resistiu, mesmo prevendo a monumental fraude em que se iria concluir o processo eleitoral, afinal, esta era a forma de luta política que lhe estava posta.

Agora, estando já escancarada a fraude, tornada oficial pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), essa luta política prossegue, com desdobramentos já assustadores e ainda mais imprevisíveis.

Cinismo e cumplicidade de Celso Amorim

Neste momento gravíssimo do povo venezuelano, tanto o governo brasileiro quanto o partido do presidente Lula assumem atitudes de cinismo e se prestam ao papel sujo de validação do projeto criminoso do ditador Maduro.

O governo brasileiro, diga-se, depois que Maduro ameaçou o povo venezuelano com um “banho de sangue”, passou a expressar sua cumplicidade bolivariana com alguma manha diplomática, como que se acautelando.

No domingo eleitoral, já no avançado das votações, falando de Caracas, o enviado de Lula, assessor especial Celso Amorim, saiu-se com uma fala enviesada da qual destaco os trechos seguintes:

“Estou acompanhando de perto o processo eleitoral venezuelano. Ainda há mesas de votação abertas. É motivo de satisfação que a jornada tenha transcorrido com tranquilidade, sem incidentes de monta;

“O presidente Lula vem sendo informado ao longo do dia. Vamos aguardar os resultados finais e esperamos que sejam respeitados por todos os candidatos”.

Antes do fim do dia, tiros disparados contra eleitores mataram uma pessoa na cidade de Guásimos, do estado de Táchira. Um dia depois já eram registradas mais de 10 mortes pela ação da repressão policial e de milícias chavistas.

Nesta terça-feira, 30, o Procurador Geral da Venezuela, Tarek William Saab, anunciou a prisão de 749 oposicionistas em protestos, acrescentando que foram presos por “terrorismo”.

Esse mesmo Saab prepara a prisão de María Corina, tendo acusado ela e mais dois líderes opositores – Leopoldo López e Lester Toledo – de serem responsáveis pelo “ataque ao sistema de transmissão do Conselho Nacional Eleitoral (CNE)”.

Sobre tais atrocidades não se tem notícia de qualquer manifestação do “tranquilo” Celso Amorim. Nem de Lula, que, segundo Amorim, está sendo informado sobre tudo.

A cumplicidade do PT

Se a cumplicidade do governo Lula se expressa com alguma cautela, a cumplicidade do PT revela-se ansiosa e apressada. Em nota, o PT diz que a escandalosa fraude do ditador venezuelano foi uma “jornada pacífica, democrática e soberana”; e destila lá outras tantas despudoradas sabujices.

No plano internacional, a fraude de Maduro teve apoio de ditaduras: Nicarágua, Cuba, China, Rússia, além da terrível teocracia iraniana e mais alguns regimes autoritários.

Quanto aos países democráticos, a maioria já denuncia a fraude; enquanto alguns permanecem na cautela da desconfiança e exigem transparência. O mesmo acontece com organismos multilaterais, como a ONU.

A OEA, por sua vez, avançou em uma condenação duríssima; bastando que se destaque o seguinte trecho:

“Ao longo de todo este processo eleitoral assistimos à aplicação, por parte do regime venezuelano, do seu esquema repressivo complementado por ações destinadas a distorcer completamente o resultado eleitoral, colocando esse resultado à disposição das mais aberrantes manipulações”.

Tensão nas ruas

No momento em que concluo este artigo, início da noite de terça-feira, 30 de julho, a situação na Venezuela é tensa, grave, quase explosiva.

Há manifestações chamadas tanto pela oposição quanto pelo regime ditatorial de Maduro. A oposição pediu manifestação pacífica, mas a repressão policial e as milícias chavistas irão armadas até os dentes.

Não se deve esquecer que Maduro prometeu um “banho de sangue”. Se há algo que talvez possa coibir a intenção sanguinária do tirano será a mais forte pressão internacional para que seja feita uma transição de regime e o poder seja entregue para o presidente verdadeiramente escolhido pelos venezuelanos: Edmundo González Urrutia.

O governo brasileiro não pode mais permanecer em acovardada cautela; tem de se decidir pela firme condenação do ditador aliado ou pela definitiva cumplicidade com a carnificina.

O que esperar da farsa eleitoral na Venezuela?

Há muita gente especulando sobre a reação de Nicolás Maduro ao resultado da eleição presidencial prevista para este domingo, 28 de julho, na Venezuela.

As pesquisas independentes dão ampla vantagem ao candidato da oposição, Edmundo González Urrutia. No Brasil e mundo afora, os mais otimistas esperam que Maduro aceite o resultado das urnas; os mais pessimistas acham que Maduro não aceitará o resultado.

O realismo impõe o pessimismo. Não por achar que Maduro não reconhecerá o resultado das urnas, mas por achar que ele acatará o resultado. Parece contraditório, mas é apenas uma conclusão óbvia: o resultado será acatado porque muito provavelmente já está decidido.

Uma ditadura brutal

Nicolás Maduro é um ditador brutal que se tem mantido no poder através de contínuas fraudes e violências. A eleição de que estamos tratando se desenrolou cercada de fraudes e violências por parte do regime chavista desde que foi anunciada, há quase cinco meses.

Deve-se considerar, inicialmente, que a principal líder oposicionista, María Corina Machado, foi impedida de concorrer, assim como a primeira pessoa que ela indicou para substituí-la.

Centenas de pessoas ligadas à Maria Corina foram presas de modo absolutamente arbitrário, pessoas comuns que lhe deram suporte sofreram represálias, ela e González Urrutia fizeram campanha de carro (pois ela foi impedida de usar companhias aéreas nacionais) , o carro da sua equipe de campanha sofreu sabotagem e o seu chefe de segurança foi detido.

Urrutia não teve acesso à propaganda na TV aberta e sua foto aparecerá apenas três vezes na cédula eleitoral, formatada para favorecer Maduro, que aparece 13 vezes, representando partidos reais e fictícios.

O regime de Maduro impediu 4,5 milhões de exilados venezuelanos — ou cerca de 21% do total de votantes, de se registrarem pra votar no exterior; os centros de votação foram manipulados e muitos deles estão em locais que fornecem subsídios sociais e em edifícios residenciais pagos pelo governo, onde pessoas sofrem intimidação para que votem em Maduro, sob pena de perderem seus benefícios.

Esses são só alguns exemplos das inúmeras arbitrariedades das quais se valeu o tirano nessa campanha. Por que, então, acreditar que o ditador, que fraudou e violou direitos políticos e civis durante toda a campanha agirá com idoneidade precisamente no Dia D do domingo eleitoral?

O cinismo maquiavélico de Celso Amorim

Isso só faz sentido na cabeça dos incautos e dos maquiavélicos, como o assessor especial da Presidência do Brasil, Celso Amorim, enviado de Lula para acompanhar esse processo eleitoral “impecável” que transcorre no “ambiente de paz” de uma “democracia consolidada”, conforme as palavras do cínico diplomata brasileiro e do hipócrita chanceler venezuelano que o recebeu.

Se – contrariamente ao que o realismo impõe – ocorrer de a oposição vencer e o resultado ser oficialmente reconhecido, será porque o regime chavista, que vem apodrecendo a olhos vistos, apodreceu de vez e as forças que o sustentam concluíram que não vale mais a pena sustentá-lo.

O regime da Venezuela tem trazido tantas desgraças para seu povo que, na última década, cerca de 7 milhões de pessoas já fugiram da miséria socialista-bolivariana. Isto em um país de cerca de 29 milhões de habitantes. Ou seja, mais ou menos um quarto da população emigrou. Ainda assim, a ampla maioria dos que ficaram rejeitam o regime.

A ditadura de Maduro é só uma narrativa?

Há quem diga que tudo que se diz contra Maduro faz parte de uma narrativa ideológica de direita. Especialmente, quem disse isto foi o presidente Lula, que é o maior arrimo internacional da ditadura chavista.

Maduro, porém, é um ditador tão podre que até o presidente brasileiro se disse “assustado” quando o presidente da Venezuela ameaçou um “banho de sangue” no caso de vitória da oposição.

Bastou essa tímida reação de Lula para a “cabra louca” (que é como o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, chama Maduro) responder com uma mordida e uma patada: primeiro mandou Lula tomar chá de camomila, depois acusou o sistema eleitoral brasileiro de fraudulento.

Além de um banho de sangue sobre o povo da Venezuela, o ditador tem no seu alforje de planos sanguinários uma guerra de invasão contra o vizinho país da Guiana. Por enquanto, não conseguiu dar início à guerra de invasão. Atualmente, dá-se de barato que tenha sido um blefe; mas sempre será preciso se precaver contra blefes de tiranos.

Quanto ao “banho de sangue”, Celso Amorim, o conselheiro de Lula para assuntos de ditadura externa, disse que Maduro não se referia a um banho de sangue para breve, mas a longo prazo, no âmbito da luta de classes.

Esse conselheiro lulo-petista, que costuma passar seu pano sujo para as ditaduras aliadas, é o observador enviado por Lula para a Venezuela. Ninguém duvida que ele está lá para ver todas as fraudes de Maduro e fazer o seu papel sujo de validação.

Extrema esquerda: do terror francês ao terror dos nossos dias

A revista Crusoé trouxe como capa da sua edição 323 o tema “Extremo engano”. A oportuna matéria, assinada por Duda Teixeira, apontou o “alarmismo seletivo” da cobertura das recentes eleições legislativas na França: “É imprescindível que qualquer pessoa possa soar o alarme ao identificar alguma ameaça à democracia […] o problema das últimas semanas é que as advertências foram feitas unicamente em relação a partidos políticos da direita, sem qualquer crítica para a esquerda”, escreveu o jornalista.

Embora eu tenha abordado esse tema nos meus últimos artigos, retorno a ele em outra perspectiva, a fim de esboçar um começo de explicação acerca dessa ameaça que vem da esquerda.

A dificuldade em perceber as ameaças reais à democracia começa pela falta de clareza acerca do quê exatamente está sob ameaça. Democracia não é um conceito unívoco. O termo comumente faz referência ao povo como conjunto de cidadãos aos quais cabe o direito de tomar decisões coletivas, mas o modo como se acredita que isso deva se dar remete a posições políticas ou a tradições políticas praticamente opostas.

Embora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, tenha se inspirado na declaração de independência americana, de 1776, o artigo 6 da declaração francesa marca uma diferença importante ao afirmar que “A lei é a expressão da vontade geral.” No ensaio “Sobre a Revolução”, Hannah Arendt chama atenção para essa diferença. Sob o influxo das ideias de Jean-Jacques Rousseau, a lei fora identificada à vontade do povo, enquanto na constituição americana não há essa identificação.

O que isso tem a ver com a nossa discussão sobre esquerda, direita e democracia? É que a tradição política de esquerda está mais próxima da concepção rousseauniana de democracia e, de modo geral, mais vinculada ao pensamento político de Rousseau.

Rousseau e o ideário da esquerda revolucionária

A democracia, para Rousseau, é fundamentalmente plebiscitária. Para ele, a soberania está na Assembleia una e indivisa que institui a lei, que é a expressão direta da vontade geral. A vontade geral, por sua vez, é um conceito paradoxal, que não equivale à soma das vontades particulares coletivamente expressas, mas à soma das diferenças das vontades que se autodestroem. Essa ambiguidade teórica se reflete na recepção ambígua da sua obra, cuja influência é reivindicada tanto por projetos políticos libertários quanto por projetos políticos totalitários.

Além da noção de vontade geral e democracia plebiscitária, há outros aspectos da obra desse inspirador do ideário da Revolução Francesa que marcam a visão de mundo da esquerda. Para Rousseau, foi o estabelecimento da propriedade privada da terra que originou a injusta desigualdade entre os homens.

Desde o momento em que o primeiro homem cercou uma porção de terra e disse “isto é meu” deu-se uma espécie de clivagem entre a idílica idade de ouro na qual vivia o “bon sauvage” e a época civilizada, marcada pela diferença entre proprietários e não proprietários, ricos e pobres, exploradores e explorados.

A partir daí, a história prossegue como um processo de intensificação dessa injustiça. Quanto mais se tem, mais se sente necessidade de explorar. A ideia da exploração da força de trabalho, posteriormente teorizada por Karl Marx, já está, de certa forma, posta por Rousseau. Além disso, há a ideia de que todos os primeiros contratos sociais são injustos e refletem apenas pactos por meio dos quais se perpetua a diferença entre ricos e pobres.

O direito civil, que assegura o direito à propriedade privada, seria apenas a consolidação jurídica da desigualdade. Não haveria, portanto, diferença fundamental entre os tipos de governo: democracias, oligarquias, monarquias: todos seriam formas de manter e aprofundar as desigualdades até o momento em que a sociedade seria refundada por um novo contrato, legitimado pela vontade geral.

O que Rousseau parece mostrar – e que ainda hoje é aceito pela militância radical de esquerda – é que o desenvolvimento histórico da sociedade europeia vai no sentido do aprofundamento da injustiça, da corrupção e da servidão até que esse movimento seja interrompido à força, por uma revolução.

Vê-se que aqueles que hoje se autointitulam progressistas são, na verdade, aqueles que não creem no progresso natural e espontâneo da sociedade; creem, ao contrário, na necessidade da violência para engendrar o progresso.

Robespierre: virtude e terror

Uma importante figura histórica que reivindicou o legado de Rousseau, agindo politicamente inspirado por sua filosofia, foi Robespierre, o líder jacobino, visionário e fanático que fez do fervor revolucionário a sua religião.

Aliás, cá estamos no contexto de surgimento das concepções políticas de esquerda e direita, tão controversas nos dias atuais: durante a Revolução Francesa, os radicais jacobinos, que acabaram por decidir pela decapitação do rei Luís XVI, costumavam sentar-se à esquerda na Assembleia, enquanto os girondinos, que defenderam um Estado descentralizado, a monarquia constitucional e rejeitaram a execução de Luís XVI sentavam à direita.

Robespierre, líder jacobino, liderou um golpe de Estado, apoiado pelos sans-culottes, que desmantelou os girondinos, prendeu os seus dirigentes e formou o Comitê de Salvação Pública, insistindo que o poder supremo deveria emanar da Assembleia e que os ministros deveriam ser meros executores das suas decisões.

Como principal dirigente desse comitê, Robespierre discursou, em 1794: “Devemos sufocar os inimigos internos da República ou perecer com ela; a primeira máxima da sua política deve ser que lideremos o povo pela razão e os inimigos do povo pelo terror […]. Este terror nada mais é do que uma justiça rápida, severa e inflexível”.

Com base nisso, ele iniciou a etapa conhecida como Grande Terror, fase mais sangrenta da revolução, que condenou à morte milhares de pessoas, com a mera justificativa de que o executado era um “inimigo do bem comum.”

Robespierre, também conhecido como “o incorruptível”, defendeu a violência e a repressão como um mal necessário para alcançar uma república justa e pacífica. Com a violência, tentou impôr o seu ideal de uma república democrática e virtuosa. Também é dele a frase: “O terror, sem virtude, é desastroso. A virtude, sem terror, é impotente.”

Violência e libertação

Essa mentalidade revolucionária e totalitária responde por inúmeros crimes contra a humanidade. Do grande terror francês aos Gulags soviéticos, o princípio de uma violência libertadora e emancipatória dirigiu as ações de líderes políticos e seduziu as mentes doutrinadas pela ideologia malsã.

Por mais que mentes mais lúcidas tenham rechaçado a violência política, muitos ainda a aceitam, sendo justamente esse o aspecto que caracteriza o extremismo, o qual foge às balizas civilizatórias que mantêm o conflito político no âmbito do dissenso saudável que reflete o pluralismo de ideias.

Há ainda uma corrente política, inspirada em dada corrente filosófica, que prega abertamente a violência revolucionária. A única diferença é que mudaram os que são considerados opressores (logo, precisam ser destruídos) e aqueles que são considerados oprimidos (logo, precisam ser justificados).

Os novos oprimidos

Como bem notou o filósofo Luc Ferry, no texto “Judéophopie, compreendre la nouvelle donne”, os muçulmanos são os novos proletários.

A guerra Israel-Hamas e a posterior ocupação das universidades ocidentais com idiotas úteis berrando pela aniquilação de Israel com um keffiyeh na cabeça, provam o ponto. Sinwar é o Che Guevara do século XXI.

Essa mudança de foco não começou agora. Em 1972, por exemplo, Jean-Paul Sartre escrevia no jornal La Cause du peuple: “Nesta guerra, a única arma dos palestinos é o terrorismo. É uma arma terrível, mas os oprimidos não têm outra; e os franceses que aprovaram o terrorismo da FLN contra o povo francês também devem aprovar a ação terrorista dos palestinos. Este povo abandonado, traído e exilado só pode mostrar a sua coragem e a força do seu ódio organizando ataques mortais”.

Não causa estranhamento, portanto – embora cause indignação – que um político extremista como Jean-Luc Melénchon, líder do partido La France Insoumise (LFI), tenha minimizado e justificado o cruel, bestial e indefensável ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro.

Jean-Luc Melénchon é um entusiasmado admirador de Robespierre e tem se esforçado para reabitá-lo e torná-lo modelo da nova França que ele quer fundar.

Como bem notou Duda Teixeira, na matéria da revista Crusoé anteriormente citada, o programa da sua campanha para presidente da França, em 2022, incluía a instalação de uma Sexta República: “Citando a Revolução Francesa de 1789, o programa pedia uma Assembleia Constituinte com uma estratégia revolucionária com vistas a uma ruptura profunda e que levaria a uma convulsão democrática.”

A histeria em torno de uma ameaça da extrema-direita, supostamente representada no partido de Marine Le Pen (RN) foi responsável pelo êxito da aliança de esquerda Nouveau Front Populaire (NFP).

Embora o presidente francês, Emmanuel Macron, não esteja minimamente inclinado a cometer o disparate de nomear Melénchon como primeiro-ministro, a dissolução da Assembleia e o tal arco republicado armado contra o Rassemblement National (RN) tornou possível a eleição de 71 deputados da França Insubmissa (LFI), um partido radical, revolucionário e antissemita.

Onde está o extremismo?

Isso quer dizer que a direita radical ou populista não representa uma ameaça à democracia? Qualquer projeto político que destoe das conquistas basilares no que concerne aos direitos humanos e que planeje uma ruptura com a constituição do seu país é uma ameaça. Mas essa ameaça deve ser avaliada a partir de fatos reais e de posturas políticas concretas, sem “alarmismo seletivo”.

No momento em que eu ainda trabalhava nesse artigo, o ex-presidente dos Estados Unidos e atual pré-candidato, Donald Trump, foi vítima de um atentado. No que concerne às minhas convicções políticas, considero Trump, Marine Le Pen, Bolsonaro e outros desse tipo como representantes de um projeto nacional-populista que rejeito. Mas a apresentação política desse projeto é legítima e essas ideias devem ser combatidas com ideias melhores, cuja aceitação ou não se refletirá nas urnas.

O combate ao nacional-populismo de direita passa pelo combate ao negacionismo de quem teima em não ver extremismo na esquerda radical que presta culto à violência.

A França tomba nas mãos da extrema esquerda e do Islã

As redações ao redor do mundo respiram aliviadas, a aterrorizante “extrema direita” não venceu na França. A esdrúxula e incongruente união de última hora entre o campo macronista (Ensemble) e a Nova Frente Popular (França insubmissa, ecologistas, socialistas e comunistas) conseguiu – em uma reviravolta política que o Le Figaro descreveu como “surpresa monumental e um verdadeiro salto no desconhecido” – bloquear a temida ascensão do partido de Marine Le Pen. A barreira contra o Rassemblement Nationale deu certo, mas lançou a França no colo da extrema-esquerda.

Como assim extrema esquerda? Existe isso? Existe e acabou de obter uma grande vitória na França. Mas ela só existe no mundo real, não consta no vocabulário de boa parte dos jornalistas, que fizeram reserva de mercado das expressões “extrema”, “ultra” e “radical” para o outro lado do espectro político.

O cronista Eduardo Affonso se referiu a esse estranho fenômeno como um processo de “mexicanização da política e da linguagem”. Onde deveríamos encontrar reportagens ou análises políticas, encontramos comentário de novela mexicana:

“Mexicanizaram a política e a linguagem. Sim, apertem os cintos: a direita sumiu. A polarização agora é entre esquerda e extrema direita. De um lado do ringue — de calção vermelho, pés descalços e mãos nuas — temos a esquerda (progressista, democrática, de profundos valores humanistas, zelosa defensora dos pobres e oprimidos) e do outro — de armadura azul, portando o raio da morte — a extrema direita (fascista, desumana, de tapa-olho)”, escreveu Affonso.

Niilismo

Eu não tenho esse talento para escrever crônica, não possuo essa irreverência inteligente capaz de apontar o nó cego de uma questão séria, de modo leve, e fazer rir. Há certo peso na minha escrita. Ela é um pouco sombria. O mundo que vejo é sombrio. É um mundo que não percebeu que por trás da perda de sentido da linguagem está uma perda real de sentido, um niilismo que está gradualmente sendo substituído por novas ideologias, por novas religiões políticas.

E aqui não pretendo afirmar que aquilo que estão chamando hoje de “extrema-direita” seja a resposta adequada a essa crise. A própria direita política, inclusive a brasileira, parece não ter consciência de si nem do peso da sua história. Entendem-se como cidadãos de bem, belos e morais, esquecendo-se da quantidade de mal que a tentativa de introjetar na estrutura política e administrativa do Estado uma concepção moral absoluta já causou.

O que me parece é que, à esquerda e à direita, há muitos que já não identificam suas próprias raízes nem trazem consigo a consciência histórica dos males que a radicalização desses posicionamentos trouxe à humanidade.

Filosofia, política e linguagem

Um dos problemas básicos da filosofia tem sido o estudo da relação entre o ser e a linguagem ou a coisa e seu significado. Se atentarmos para isso, veremos que muitos problemas filosóficos poderão ser resolvidos com uma análise da linguagem, o que não reduz o escopo da filosofia, uma vez que o que resta como problematizável após a depuração dos falsos problemas é justamente aquilo que cumpre analisar com o rigor filosófico de quem se debruça sobre o real e não sobre o discurso.

O discurso político é o mais problemático do ponto de vista de uma abordagem filosófica porque faz parte do político o manuseio conceitual inadequado para fins de poder. Conjugado a isso, tem-se ainda a ambiguidade própria dos conceitos aí formulados, que não possuem a rigidez epistemológica de uma definição própria das ciências “não humanas”, nem a objetividade pretendida por aqueles que querem impor sua ideologia.

Faz parte do jogo político essa pretensão e essa ambiguidade, mas também faz parte do esforço de compreensão tentar limpar o terreno discursivo antes de tratar os problemas, deixando claro que os conceitos da ciência política não são estáticos nem unívocos.

Palavras como democracia, esquerda, direita, fascismo, liberalismo, conservadorismo, etc. não têm como referente algo fixo, com propriedades imutáveis, mas a própria experiência humana. Há uma experiência originária fundante do próprio conceito, que precisa servir de referência, mas há também as oscilações posteriores de significado, que se relacionam com as novas experiências históricas e com a história do uso que se faz do próprio conceito em questão.

“O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) — um após o outro, um mais brutalmente que o outro — demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia”, escreveu Hannah Arendt no prefácio à sua obra Origens do totalitarismo.

Não se trata de direita e esquerda. Ambas descambaram nos regimes totalitários. Trata-se do ser humano e de sua dignidade. Pouco importa se um ou outro lado do espectro político arvora-se retoricamente defensor dessa dignidade. Nesse momento decisivo, pouco importa o discurso, mas a ação concreta, a oposição firme e não ambígua a tudo aquilo que é indefensável porque fere a humanidade na sua dignidade.

A extrema esquerda intolerante e antissemita

O mais proeminente e o mais radical dos líderes da aliança da esquerda francesa, Jean-Luc Mélenchon, foi o grande vitorioso dessa eleição.

Mélenchon, que em certa ocasião chegou a bradar “La République, c’est moi!”, discursou logo após os primeiros resultados, exigindo que o presidente Emmanuel Macron chame a Nova Frente Popular para formar o governo. Segundo ele, após a vitória do NFP, Macron deve “sair, ou nomear um primeiro-ministro das nossas fileiras”. A aliança, disse ele, “está pronta para governar”.

Jordan Bardella (RN), por sua vez, lamentou que o resultado da votação tenha jogado “a França nos braços da extrema esquerda”.

O Rassemblement National não chegou ao poder dessa vez, mas ainda reúne um terço dos eleitores e suas pautas principais continuarão a se impor. A direita populista continuará forte na França e no mundo porque as pessoas se saturaram da hipocrisia de uma esquerda que segue à risca intelectuais amorais como Herbert Marcuse que, no texto “Repressive Tolerance”, negou o valor universal da tolerância para pregar literalmente “intolerância contra os movimentos da direita e tolerância aos movimentos da esquerda.”

Desde 7 de outubro de 2023 essa hipocrisia deixou de ser apenas estúpida para se tornar repulsiva. A esquerda, que retoricamente afirma estar do lado dos mais fracos, tolerou, justificou ou comemorou o pogrom bestial perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense.

A França, outrora palco da revolução em meio a qual os conceitos de direita e esquerda adquiriram seu significado político, sucumbiu, mais uma vez, ao radicalismo quando achou que seria uma boa ideia unir esquerda e extrema-esquerda antissemita numa “Nova Frente Popular”.

Essa aliança de extrema-esquerda, que saiu vitoriosa nessas eleições devido à renúncia de muitos candidatos macronistas em favor de candidatos da NFP que pudessem vencer o RN, foi firmemente rechaçada pelo que restou de inteligência, bom senso e idoneidade moral na França.

Em um manifesto no qual tentaram contrapor o universalismo humanista ao sectarismo de uma esquerda identitária e tribalista, os signatários do “arco republicano contra o antissemitismo” apelaram aos franceses para não votarem na “nova praga vermelho-marrom, não votar nesta mentira, falaciosa e pseudo ´Nova Frente Popular´, uma verdadeira impostura em circunstâncias tão trágicas.”

Percebam que o ponto de atenção do referido manifesto não é Marine Le Pen, o seu jovem pupilo Bardella, ou o seu partido Rassemblement National. A ameaça não é a tal “extrema-direita” que deixou as redações em polvorosa. Os signatários do manifesto sabiam que a hora era grave e a situação perigosa porque uma nebulosa político-ideológica antissemita estava avançando, distorcendo concepções, tornando-se cúmplice do terrorismo islâmico e aliando-se àqueles que querem “impor a sharia obscurantista”.

Enxergar isso e lutar contra isso seria o dever de uma consciência realmente humanista e autenticamente democrática ou republicana. Diante da urgência dessa luta, como afirma o manifesto, esquerda e direita perdem sua relevância conceitual, são posições secundárias. Só existe esquerda e direita dentro da política democrática, que é uma invenção ocidental; em uma República Islâmica só existirá a vontade do aiatolá, que é a vontade de Alá.

Islamo-esquerdismo é um fascismo

O próprio filósofo francês Michel Onfray, um dos signatários desse manifesto, autor de mais de cem livros, já explode em si mesmo a falsa ideia de que esquerda e direita são conceitos estáticos e suficientes para dar conta de fenômenos políticos e de pessoas em constante transformação.

Ele, que já se autointitulou um “socialista libertário não liberal” e já foi descrito como “puritano hedonista”, “revolucionário dândi” e outros paradoxos, parece fazer parte hoje daquele time de ateus que reconhece o valor incontornável da civilização judaico-cristã e que, por isso, insiste em defender o Ocidente contra seus inimigos internos e externos. “Hoje você tem o direito de ser antissemita, racista, homofóbico, misógino, desde que seja em nome do Islã”, denuncia o filósofo, que hoje se entende como um “conservador de esquerda” ou um “anarquista conservador”.

Seja como for, o prolífico autor tem sido uma das poucas vozes lúcidas na luta atual contra as loucuras do identitarismo woke e do islamo-gauchismo (islamo-esquerdismo) que assola a França. As recentes declarações e publicações de Michel Onfray têm o condão de desmontar a ideia preconcebida de que o ódio aos judeus é exclusividade da extrema-direita.

Em artigo que publicou no jornal Le Figaro logo após o ataque bestial de 07 de outubro, ele explica como o antissemitismo, que sempre esteve presente na esquerda, retornou com grande força por trás do antissionismo de fachada:

“Mélenchon, e os da LFI e do NUPES que o seguem, herdam este antissemitismo de esquerda. Depois da Shoah, não podemos mais ser antissemitas à moda antiga, somos agora antissionistas; a mudança semântica permite-nos vestir a velha podridão com um novo casaco. A incapacidade em que esta esquerda se encontra de chamar de terrorista um massacre em massa de populações civis inocentes, mulheres, idosos, crianças incluídas, por serem judeus, o que constitui um crime contra a humanidade, acrescenta um capítulo à história do antissemitismo de esquerda. Normal que, não querendo ver essa infâmia entre eles, afirmem encontrá-la entre Marine Le Pen, culpada de ser filha de seu pai!”, escreveu Onfray no referido artigo intitulado “O islamo-esquerdismo é um fascismo.”

E concluiu:

“Marx fez da vanguarda esclarecida do proletariado a elite destinada a impor a sua ditadura; Lenin queria que esta vanguarda fosse constituída militarmente como um partido. […] Mélenchon substitui o proletariado messiânico pela população composta pela delinquência periférica, pelo tráfico de drogas, pelo tráfico de armas, pelo niilismo dos black blocs, pelo jihadismo dos subúrbios que anda de mãos dadas com a misoginia, a falocracia e, claro, o antissemitismo. Ele acredita que está explorando isso; mas ele é de fato quem está sendo instrumentalizado.

Os apoiadores jihadistas não querem saber de mulheres cisgênero, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, casais de lésbicas, transições transexuais, barrigas de aluguel, saladas de quinoa, turbinas eólicas e bicicletas elétricas da pequena burguesia

Nupesiana. Este braço que Mélenchon arma para seus fins pessoais se voltará contra ele quando chegar a hora. Nestas horas terríveis, os judeus seriam os primeiros a serem sacrificados. E, portanto, a França com eles”.

Como se vê, alguns filósofos, por insistirem em lidar com o real por trás dos discursos, acabam sendo capazes de conceber discursos proféticos.