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Autoridade e autoritarismo, segundo Hannah Arendt

A autoridade, explica Hannah Arendt, é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Isso se dá porque ela sempre exige obediência. Contudo, “a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou.[1]” A autoridade se contrapõe não apenas à coerção pela força, mas também à persuasão através de argumentos: “onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso[2]”. É na hierarquia, cuja legitimidade é reconhecida tanto por aquele que manda quanto por aquele que obedece, que a autoridade se assenta.

No ensaio O que é autoridade?, Arendt delimita o conceito em questão a fim de possibilitar a sua contraposição à estrutura de governo totalitária, que se erigiu também como uma resposta à crise da autoridade. Longe de confundir autoritarismo com autoridade legítima ou governos autoritários com regimes totalitários, suas reflexões acerca do tema têm por objetivo depurar os conceitos a fim de que as análises alcancem o fenômeno do totalitarismo na sua peculiaridade e distinção. Na sua interpretação, o desenvolvimento de formas totalitárias de governo relaciona-se, em algum grau, com “o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais[3]”.

A crise de autoridade a que ela se refere não se limita à perda de prestígio do governo ou do sistema de partidos, mas de algo anterior, que se espalha “em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural[4].” Além disso, essa perda da autoridade não pode ser analisada como fenômeno isolado, uma vez que se trata apenas da “fase final, embora decisiva, de um processo que, durante séculos, solapou basicamente a religião e a tradição[5].”

Essa crise maior, não apenas da autoridade, mas da religião, da tradição e da própria razão, tornou-se patente na contemporaneidade, principalmente através das críticas de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, pensadores que “desafiaram os pressupostos básicos da religião tradicional, do pensamento político tradicional e da metafísica tradicional invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.[6]” Responsabilizar, porém, os pensadores rebeldes do século XIX pelas catástrofes do século XX seria “ainda mais perigoso que injusto[7]”, pois “as implicações manifestas no evento concreto da dominação totalitária vão muito além das mais radicais e ousadas ideias de quaisquer desses pensadores[8]”. É preciso, ao contrário, reconhecer-lhes a grandeza por “terem percebido o seu mundo como um mundo invadido por problemas e perplexidades novas com as quais nossa tradição de pensamento era incapaz de lidar[9]”.

Kierkegaard, Marx e Nietzsche, segundo Hannah Arendt, “situam-se no fim da tradição, exatamente antes de sobrevir a ruptura”.[10] Eles radicalizaram a abordagem ao passado pelo fio da continuidade histórica, questionando a tradicional hierarquia conceitual que dominara a filosofia ocidental desde Platão e que Hegel dera por assegurada, sendo “para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse[11]”, mas não podem, por isso, responder pela brutal quebra que houve em nossa história: “esta brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia cristalizaram em uma nova forma de poder e de dominação[12]”.

Tendo por pano de fundo a sua crítica à noção linear de História típica da modernidade, Arendt aponta certas fragilidades nos argumentos de liberais e conservadores quando estes abordam a dicotomia autoridade versus liberdade. Liberalismo e conservadorismo seriam, segundo ela, “a expressão política da consciência histórica do derradeiro estágio da época moderna”[13] e procederiam “sob a implícita suposição de que as distinções não são importantes”. O uso que ambas as vertentes fazem dos conceitos de história, progresso e decadência responderiam pela incapacidade de distinguir, atestando seu pertencimento a uma época na qual tais conceitos “começaram a perder sua clareza e plausibilidade por terem perdido seu significado na realidade público-política sem perderem inteiramente sua importância”.[14] Liberalismo e conservadorismo teriam mostrado, em conjunto, que estivemos diante de um retrocesso simultâneo tanto da liberdade quanto da autoridade, mas, por se manterem dentro das categorias de uma filosofia da história, foram insuficientes na interpretação do fenômeno totalitário, o qual analisaram não na sua essência e originalidade, como evento qualitativamente distinto, mas sim como mera medida de distanciamento daquilo que traziam como expectativa:

“O liberalismo mede um processo de refluxo da liberdade, enquanto o conservadorismo mede um processo de refluxo da autoridade; ambos denominam de totalitarismo o resultado final esperado e veem tendências totalitárias onde quer que um ou outro esteja presente[15].”

A crítica de Arendt, portanto, não se limita ao liberalismo e ao conservadorismo enquanto tais, mas à falta de sutileza das ciências sociais, políticas e históricas como um todo. O filósofo (no caso, a filósofa) vê diferenças de natureza onde o pesquisador comum enxerga apenas diferenças de grau. Por partir do pressuposto de que há uma constância do progresso na direção da liberdade organizada, as teorias liberais olham cada desvio desse rumo como um mero processo reacionário e perdem de vista as nuances de cada forma de governo, desconsiderando as diferenças entre elas:

“Isso faz com que passem por alto a diferença de princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total eliminação da espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários, por intermédio dos seus diversos métodos de condicionamento. O escritor liberal, preocupado antes com a história e o progresso da liberdade que com as formas de governo, vê aqui apenas diferenças de grau, e ignora que o governo autoritário empenhado na restrição à liberdade permanece ligado aos direitos civis que limita, na medida em que perderia sua própria essência se os abolisse inteiramente – isto é, transformar-se-ia em tirania[16].”

Aqui se torna patente a importância do rigor conceitual: autoritarismo não pode ser confundido com totalitarismo. Por trás da confusão liberal inclinada a ver tendência totalitária em toda limitação autoritária jaz, segundo Arendt, a “confusão mais antiga de autoridade com tirania e de poder legítimo com violência[17]”. É preciso, pois, salientar as distinções:

“A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. Seus atos são testados por um código que […] não foi feito pelos detentores efetivos do poder. A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior ao seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado[18].”

As distinções entre sistemas tirânicos, autoritários e totalitários propostas por Arendt são a-históricas e antifuncionais. Elas implicam que, no mundo moderno, a autoridade desapareceu tanto no mundo livre quanto nos chamados sistemas autoritários e que a liberdade “está sob ameaça em toda parte, mesmo nas sociedades livres, tendo sido, porém, abolida radicalmente apenas nos sistemas totalitários, e não nas tiranias e nas ditaduras[19]”.

A autoridade, explica Hannah Arendt, não se acha necessariamente presente em todos os organismos políticos. Tanto a palavra (auctoritas) quanto o conceito são de origem romana e não estiveram presentes nem na língua grega nem nas várias experiências políticas da história grega[20]. A experiência da pólis, como se sabe, era baseada no logos, na doxa, na consideração do mundo comum a partir de diversos pontos de vista: “Em um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, tais como apresentados aos cidadãos de Atenas pelos sofistas, o grego aprendeu a intercambiar seu próprio ponto de vista, sua própria opinião com os seus concidadãos[21]”.  O governo absoluto, por sua vez, era conhecido pelos cidadãos da pólis como tirania e uma das principais características do tirano era governar por meio da pura violência[22].

Não havia, portanto, na experiência política grega efetiva uma relação em que o elemento coercitivo repousasse na relação mesma e que implicasse simultaneamente obediência e liberdade. Foi isso que Platão e Aristóteles tentaram introduzir na vida pública da pólis e, para tanto, foram buscar exemplos das relações extraídas da administração doméstica e da vida familiar gregas[23]. Foi após a morte de Sócrates que Platão começou a descrer da democracia, passando a considerar a persuasão insuficiente para guiar os homens, buscando então algo que se prestasse a compeli-los sem o uso de meios externos de violência[24].

Para Arendt, o contexto no qual o pensamento grego se acerca mais estreitamente do conceito de autoridade é “na República, de Platão, onde ele confrontou a realidade da pólis com um utópico governo da razão na pessoa do rei-filósofo[25]”, cujo poder coercitivo repousaria não na pessoa do rei, mas nas ideias que são percebidas pelo filósofo[26]. A verdade do filósofo, porém, não possui a mesma validade na “esfera dos assuntos humanos que o filósofo tivera que abandonar para percebê-la[27]”. Há, pois, uma “dicotomia entre o ver a verdade em solidão e isolamento e o ser capturado nas conexões e relativismos dos negócios humanos[28]”.

A perda de vista dessa dicotomia esconde, muitas vezes, uma vontade de domínio que se disfarça sob um manto pedagógico. Foi sob esse manto que o pensamento político platônico influenciou boa parte da teoria política ocidental. Platão não apenas “pretendeu introduzir uma espécie de autoridade no manejo dos negócios públicos e na vida da pólis[29]” como também tentou fazer com que essa autoridade política adquirisse um caráter educacional, sobrepondo ao reino da política o modelo educacional por meio da autoridade.

Não foi, porém, na Grécia, que a palavra e o conceito de autoridade se estabeleceram, mas em Roma, assentando-se na tradição e na religião, perfazendo a tríade que se sustentava na experiência da fundação romana. Com o declínio do Império, a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Católica, que assumiu a tríade religião, autoridade e tradição. Uma vez que a Igreja adotara a distinção romana entre autoridade e poder, reivindicando para si a primeira,[30] a posterior separação entre Igreja e Estado teve por inconveniente implicar a perda, no âmbito político, do “elemento que, pelo menos na História ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e permanência[31]”.

O famoso declínio do ocidente ou a crise do mundo atual é interpretado por Hannah Arendt como “declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político[32]”. As revoluções da época moderna seriam, por seu turno, “gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza[33]”.

Com exceção da Revolução Americana, todas as revoluções, desde a francesa, malograram em seus objetivos, tendo terminado em restauração ou tirania. Isso indica, segundo Arendt, que a autoridade – tal como se desenvolveu na experiência romana e foi compreendida à luz da filosofia política grega – não se reestabeleceu em lugar nenhum e que precisamos lidar com o fato de que vivemos hoje em uma esfera política sem autoridade, confrontados com os problemas elementares da convivência humana “sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, auto evidentes[34]”.

Notas

[1] ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. p.129

[2] Idem. p.129

[3] Idem. p.128

[4] Idem. p.128

[5] Idem. p.130

[6] Idem. p.53

[7] Idem. p.54

[8] Idem. p.54

[9] Idem. p.54

[10] Idem. p. 55

[11] Idem. p.56

[12] Idem. p.53

[13] Idem. p.139

[14] Idem. p.139

[15] Idem. p.137

[16] Idem p.133-134

[17] Idem p.134

[18] Idem p.134

[19] Idem p.142

[20] Idem p.142

[21] Idem. p.82

[22] Idem. p. 143

[23] Idem. p. 143

[24] Idem. p. 147

[25] Idem. p. 145

[26] Idem. p. 149

[27] Idem. p.155

[28] Idem. p.156

[29] Idem. p.159

[30] Idem. p.169

[31] Idem. p. 170

[32] Idem. p. 185

[33] Idem. p. 185

[34] Idem. p. 187

Aborto, Conservadorismo e Democracia

Em seu famoso livro A Mentalidade Conservadora, Russell Kirk (1918-1994) elencou, como primeiro cânone do conservadorismo, a “crença em uma ordem transcendente, ou corpo de leis naturais, que rege a sociedade, bem como a consciência”. A partir dessa premissa, defendeu que “problemas políticos, no fundo, são problemas morais e religiosos”. Finalmente, concluiu que “a verdadeira política é a arte de perceber e aplicar a Justiça, que deve preponderar em uma comunidade de almas”.

Amparada nas instituições do Estado de Direito e da economia de livre mercado, uma sociedade democrática, de acordo com os conservadores, deve promover os princípios da Ordem, da Liberdade e da Justiça como meios adequados para proteger os direitos humanos fundamentais à vida, à autonomia e à propriedade privada. Nesse sentido, a defesa do aborto como um direito é contrária ao respeito inalienável à vida e à dignidade da pessoa humana.

Na encíclica Centesimus Annus (1991), o Papa São João Paulo II (1920-2005) alertou que, “se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções políticas podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder”, tendo acrescentado que “uma democracia sem valores se converte facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”. O mesmo tipo de crítica ao “risco da aliança entre democracia e relativismo ético” foi denunciada pelo mesmo romano pontífice, na encíclica Veritatis Splendor (1993), ao ressaltar que tal conjunção “tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade”. Por fim, na encíclica Veritatis Splendor (1995), ao tratar, especificamente, do problema da noção de autonomia absoluta, que legitima a inaceitável prática do aborto, em sociedades democráticas, São João Paulo II afirmou que:

O primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte – mesmo que seja maioritária – da população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: O próprio “direito” deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Desse modo, e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a “casa comum”, onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.

Em outra passagem do mesmo documento pontifício, temos a advertência de que “reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros”, ao que João Paulo II concluiu que “isto é a morte da verdadeira liberdade”. Nessa mesma linha, em um dos capítulos do livro A Política da Prudência, encontramos a ressalva de Russell Kirk, segundo a qual “a defesa doutrinária da contracepção e do aborto pelos progressistas é uma prova do desejo de morte dominante”.

Infelizmente, ao ignorar tais princípios, a atual gestão federal anunciou, no dia 17 de janeiro de 2023, em nota conjunta à imprensa do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Saúde, do Ministério das Mulheres e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania o desligamento do Brasil do Consenso de Genebra, cujo documento firmado por diferentes países, além de reafirmar que “todos são iguais perante a lei” e que “os direitos das mulheres são inalienáveis, integrais e parte indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” defende que, “em caso algum deve o aborto ser promovido como método de planejamento familiar”, além de acentuar a necessidade de proteção do nascituro e ressaltar que “não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional da parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

Tal decisão equivocada do governo federal é um retrocesso na defesa da vida e da família, que, dentro da legalidade do Estado de Direito e do processo democrático, precisa ser combatida, não apenas por conservadores e/ou cristãos. Não é possível termos uma sociedade livre, próspera e justa sem defendermos o direito inalienável à vida, especialmente das crianças ainda não nascidas. Opor-se ao aborto é um dever de todos que defendem os princípios do verdadeiro conservadorismo.

As grandes potências miram a África

É importante registrar, nesse momento de mudanças no macro cenário internacional, que as grandes potências têm mostrado interesse em se aproximar do continente africano.

Os Estados Unidos promoveram, no período de 13 a 15 de dezembro de 2022, em Washington, reunião em que participaram 49 delegações de países africanos. Essa cúpula foi a primeira reunião abrangente realizada desde 2014, quando por iniciativa do então presidente americano Barack Obama realizou-se a primeira cúpula entre os EUA e países africanos. De acordo com o Departamento de Estado dos EUA a reunião daria prosseguimento a entendimentos estabelecidos pelo presidente norte americano durante suas visitas a países africanos. Teria como foco comércio, investimentos, segurança e democracia.

Antes da reunião de 2014 a China havia lançado em 2013, o importante programa Belt and Road, também chamado de Nova Rota da Seda, concentrado principalmente em investimentos em infraestrutura e que tinha como um de seus focos a África. A Nova Rota da Seda tem dado grande impulso à influência global da China. Embora a reunião de 2014 tenha sido inspirada também pelas ligações familiares do presidente Barack Obama com a África, não há dúvidas de que já havia uma reação dos EUA à crescente presença comercial da China no continente africano. Essa iniciativa americana não apresentou resultados relevantes, e durante a administração Trump a África não foi objeto de atenção. Trump chegou mesmo a se referir a países africanos de modo pejorativo, causando grande desgaste diplomático.

A cúpula de 2022 mostrou uma tentativa de recuperar terreno, pois desde 2013 a ofensiva chinesa com a concessão de créditos em condições favoráveis a países africanos têm reforçado os canais diplomáticos sino-africanos, apesar de críticas ao endividamento excessivo de países pobres e da utilização de mão de obra chinesa no lugar da africana em obras de infraestrutura. A China tem buscado garantir fontes de energia, e suprimentos minerais e agrícolas para a manutenção de seu crescimento econômico e sua política de aumentar o padrão de vida de sua população. Trata-se de estratégia consistente e de longo prazo, que os americanos buscam contrarrestar, mas por enquanto sem êxito.

A Rússia também tem buscado maior presença no continente africano, até mesmo como forma de mitigar seu isolamento internacional por causa da invasão da Ucrânia e das sançõesimpostas pela Europa e pelos EUA. Em Julho de 2022 o Ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov realizou um périplo pela África, tendo visitado o Egito, o Congo, a Etiópia e Uganda. Procurou afirmar a ajuda russa em termos de segurança alimentar, pois o continente africano tem sido muito prejudicado pelas interrupções no fornecimento de grãos causados pela guerra rusoo -ucraniana. Por outro lado, recorde-se que a Rússia herdou imagem favorável da antiga União Soviética de ser potência anti-imperialista, pois se deve recordar que durante a Guerra Fria, a URSS apoiou ativamente a luta contra as potências coloniais na África.

Depois de anos de ausência, por causa do desmantelamento da União Soviética, a Rússia busca ter maior presença e influência no continente africano. Vertente importante do papel russo é o fornecimento de armas, e estima-se que países africanos são responsáveis pela compra de aproximadamente vinte por cento das exportações de armas da Rússia. Ademais, sabe-se que o Wagner Group, exército privado, composto de mercenários que têm atuado em várias situações bélicas, teria ligações com o governo de Moscou, e funcionaria como braço auxiliar não oficial do governo russo para intervenções militares. Essa rede de mercenários tem presença em vários pontos da África e atua também no treinamento de tropas regulares.

De outra parte, as principais potências coloniais, o Reino Unido e a França, continuam a ter forte presença nas suas antigas colônias africanas, apesar de terem visto sua capacidade de projeção internacional de poder diminuir. Sua influência continua em termos comerciais, de venda de armas e treinamento militar e também com a utilização de “soft power “, com o qual o Reino Unido e a França mantêm vivos seus laços políticos e culturais com as antigas colônias.

Observe-se que algumas diretrizes de política externa americanas não têm tido a continuidade e a consistência necessárias para darem bons frutos. Há o exemplo da recente Cúpula afro-americana de 2022 que se caracterizou mais como reedição de ideias lançadas por ocasião da reunião de 2014, e sem um programa de investimentos robusto. Temos, ademais, o caso da Cúpula das Américas de 2022 que buscou corrigir o declínio da influência americana na América Latina, mas com escassas possibilidades de êxito, também pela falta de previsão realista de investimentos e de incentivos concretos ao comércio. Essas iniciativas não apresentaram consequências palpáveis e não tiveram continuidade, o que tem gerado frustrações e aberto espaço para a busca de influência da China, e mesmo da Rússia. Interessante observar que as ações dos EUA têm sido reativas, para se contrapor a situações com as quais a diplomacia norte-americana se defronta.

No que diz respeito ao Brasil, é importante que nossa diplomacia acompanhe acuradamente a ofensiva chinesa porque, em busca de fontes de fornecimento de “commodities” e minerais, o país asiático tem investido maciçamente na infraestrutura da África, o que pode abrir caminho para que alguns países africanos venham a ser concorrentes do Brasil na área de produtos de base.

Democracia e Cristianismo

Alguns defensores do regime democrático costumam recorrer ao ditado em latim “vox populi, vox Dei” [A voz do povo, a voz de Deus]. No entanto, o mais antigo registro dessa máxima se encontra em uma carta, do ano de 798, enviada para Carlos Magno (742-814) por Alcuíno de York (735-804), na qual o monge inglês afirmou que: “não se deve ouvir aqueles que costumam dizer: ‘A voz do povo, a voz de Deus’, pois o tumulto das pessoas comuns está sempre perto da loucura”. Em grande parte, a visão negativa de muitos cristãos acerca dos riscos da democracia repousa no fato de a massa ter escolhido libertar o criminoso Barrabás no lugar de Jesus, o que acarretou a crucificação de um inocente.

No entanto, as diversas igrejas cristãs, em suas advertências sobre os riscos inerentes ao regime democrático, também rejeitam as diferentes formas de governos autoritários, ao reconhecerem que tiranias, ditaduras ou modelos totalitários são incompatíveis com a correta visão sobre a natureza humana e os ditames da boa ordem social. Uma das melhores explanações sobre a apropriada relação entre democracia e cristianismo foi apresentada pelo saudoso Papa São João Paulo II, em vários documentos de seu magistério pontifício.

O grande Romano Pontífice, na encíclica “Centesimus Annus”, promulgada em 1º de maio de 1991, assim expressou a aprovação católica ao regime democrático:

“A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou de objetivos ideológicos” (CA §46).

Algumas décadas antes da promulgação da “Centesimus Annus”, na “Radiomensagem Natalina” proferida em 25 de dezembro de 1944, encontramos uma importante advertência do Papa Pio XII (1876-1958), que reconheceu a existência na modernidade de dois tipos de governos democráticos. O primeiro modelo, segundo o Romano Pontífice, transforma os integrantes da sociedade numa multidão amorfa, numa massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada por um governante ou por um partido político. O segundo tipo entende o povo como um conjunto de pessoas, cada uma das quais, no próprio lugar e a seu modo, apta a formar a própria opinião a respeito da coisa pública e da liberdade para exprimir a própria sensibilidade política e fazê-la valer em maneira consoante com o bem-comum. O primeiro tipo é a chamada democracia popular, vigente em diferentes países socialistas, como China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e Venezuela, dentre outros. O segundo tipo é o modelo anglo-saxão de democracia liberal.

De acordo com essas perspectivas defendidas pela Igreja Católica, não devemos aceitar qualquer forma de democracia. Em uma democracia liberal, mais importante do que a escolha democrática dos governantes pelos membros de uma comunidade política, a legitimidade desse modelo se fundamenta nas possibilidades tanto de mudar pacificamente os grupos dirigentes quanto de fiscalizar os atos administrativos e fiscais da gestão pública. O endosso do Papa João Paulo II ao modelo democrático anglo-saxão ficou explícito nas encíclicas “Veritatis Splendor”, de 6 de agosto de 1993, e em “Evangelium Vitae”, (1995), obras nas quais são defendidas as noções de lei civil como continuidade da lei moral e do Estado como protetor e promotor dos direitos individuais (VS §101 / EV §71), bem como na exigência da transparência administrativa por parte dos governantes (VS §101). Em uma passagem da já citada “Centesimus Annus”, o Romano Pontífice afirmou que:

“Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da ‘subjetividade’ da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade” (CA §46).

Em última instância, a verdade moral, o Estado de Direito e a liberdade econômica devem ser os fundamentos da democracia representativa. Existem limites éticos ao processo democrático que devem ser respeitados. Algo que seja, intrinsecamente, falso, errado, mau ou desprezível não poderá ser mudado pela vontade da maioria. Na encíclica “Evangelium Vitae”, o papa João Paulo II afirmou que:

“Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congênitos que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover. Importa retomar, neste sentido, os ‘elementos fundamentais da visão entre lei civil e lei moral’, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições jurídicas da humanidade” (EV §71).

Tal como defendido pela tradição conservadora desde seus primórdios, com Edmund Burke (1729-1797), até nossos dias, com Russell Kirk (1918-1994) e Sir Roger Scruton (1944-2020), a chamada Doutrina Social da Igreja compreende que uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito, que, por sua vez, não pode ser mantido sem realmente assegurar a efetividade da lei, cujos fundamentos se encontram na moral. Infelizmente, em nosso país, muitos que alegam defender o regime democrático parecem negligenciar esses princípios jurídicos e morais essenciais para a vigência da democracia.

Como as Big Techs se uniram para semear o divisionismo entre agentes reguladores

Big Techs superaram as diferenças entre si e se uniram para dividir republicanos e democratas que tentavam fazer uma regulamentação econômica para o setor. Não estamos falando de um movimento de discurso público apenas, mas do investimento de bilhões em lobby, acima até do investimento de indústrias como a farmacêutica e de armas.

A campanha foi classificada como épica pela Bloomberg, que ouviu 45 pessoas envolvidas nos esforços para esmagar duas legislações, uma de democratas e outra de republicanos. As Big Techs tiveram sucesso e as leis foram enterradas esta semana. Não farão parte do pacote final de votações do Congresso, divulgado na última segunda-feira. Podem eventualmente ser pautadas depois, mas o movimento foi marcante para os legisladores.

As iniciativas legislativas foram derivadas de uma investigação de 18 meses conduzida pelo democrata de Rhode Island David Cicilline. Não foi ele, no entanto, que sugeriu as leis.

A primeira era o “American Innovation and Choice Online Act” que impediria as Big Techs de usar suas plataformas para tirar vantagens de novos competidores e esmagar novos players do mercado. O “Open App Markets Act” seria a regulamentação de Apple e Google sobre as lojas de aplicativos dos telefones celulares.

Ambas iniciativas foram tratadas como uma ameaça à sobrevivência da indústria em si pela coalizão formada por Apple, Amazon, Facebook e Google. Democratas e republicanos pareciam ter as mesmas ideias sobre as leis, que tendiam a ser aprovadas. O lobby investiu em insuflar o divisionismo entre os partidos.

O lobby criou narrativas de publicidade e imprensa, financiar grupos de pressão, enviar lobistas a Washington e também investir em campanhas de políticos. Somente em publicidade voltada aos argumentos que amedrontavam republicanos e democratas com perda de votos foram gastos US$ 130 milhões. Outros USS 100 milhões foram gastos especificamente com lobby.

A artilharia contra os republicanos era focada em liberdade de expressão e liberdade de mercado. Campanhas ferozes, locais e nacionais, das Big Techs e de seus grupos financiados, argumentavam que a regulamentação castraria a liberdade.

Na realidade, era o oposto. Somente com a regulação haveria liberdade de mercado nesse segmento específico. Ele é controlado por um punhado de gigantes que usa seu poderio tecnológico para esmagar e tirar do cenário qualquer outro competidor.

A campanha que mirava os democratas era centrada nos argumentos de que a nova legislação seria prejudicial para as minorias e reduziria a privacidade online, já que o governo controlaria as empresas.

Novamente, a realidade é o oposto. Se apenas um punhado de empresas controla todo novo segmento da hipercomunicação, são elas que colocam as mãos sobre a privacidade das pessoas. As diversas brechas e problemas que já surgiram nesse campo no mundo todo deixam claro que deixar as coisas como estão não é solução.

Além disso, com poder global de comunicação e investimentos poderosos, as Big Techs investem no discurso divisionista do identitarismo, que impede qualquer tipo de avanço para as minorias. Ao fragmentar a sociedade em grupos de oprimidos colocados uns contra os outros, essas empresas se colocam como gatekeepers da inclusão.

O poder não é dado a nenhuma minoria, é cedido momentaneamente por quem já está no poder aos representantes de minorias que se mantenham na narrativa divisionista criada pelas Big Techs.

Elas e suas plataformas se tornam o símbolo da defesa de minorias, aniquilando qualquer possibilidade de avanço real ou diminuição do poderio de um setor tão predatório.

Houve obviamente problemas de negociação por parte dos autores das leis. Políticos sucumbiram ao discurso de que perderiam votos e muitas vezes se deixaram levar pelas rivalidades pessoais durante as negociações.

Divisionismo é uma das formas mais antigas de conquistar poder e, aparentemente, é uma ferramenta utilizada com frequência pelas Big Techs na defesa de seus interesses. São empresas pragmáticas que sabem colocar os antagonismos no armário quando interessa dividir grupos que possam regular sua atuação.

Os legisladores garantiam ter votos suficientes para aprovar as duas regulações ainda este ano. Elas deveriam ir a plenário, estavam prontas. O líder da maioria, senador Chuck Schumer, tomou a decisão de não levar nada a voto, garantindo que não havia número suficiente para aprovação. As filhas dele trabalham na Amazon e Facebook.

É uma derrota importante, mas o mesmo movimento foi feito na União Europeia e acabou vencido pelas autoridades. O Think Tank Economy Security project acredita que é apenas uma questão de tempo.

Para o diretor de relações governamentais, antimonopólio e políticas de competição da organização, Alex Harman, as Big Techs estão apenas adiando o inevitável. “Elas não estão ganhando, estão perdendo em câmera lenta”, sentencia.

Não há dúvidas que as Big Techs trazem muitas inovações importantíssimas que mudam as possibilidades e as vidas das pessoas. Isso não dá a elas o direito de substituir a institucionalidade e governar o mundo como bem queiram. Estamos justamente presenciando o freio de arrumação.

O Regime Democrático não é um Fim, mas um Meio

Uma das citações repetidas com maior frequência pelos defensores do regime democrático é a sentença do estadista conservador inglês Winston Churchill (1874-1965), segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas”. No entanto, os tendenciosos defensores acríticos da democracia tendem a negligenciar o caráter mais amplo dessa reflexão do grande líder britânico, que, em discurso proferido em 11 de novembro de 1947, afirmou o seguinte:

“Muitas formas de governo foram tentadas e serão tentadas neste mundo de pecado e aflição. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou onisciente. De fato, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos”.

O ponto nessa fala de Winston Churchill que deve ser enfatizado por um conservador, além daquele que engloba a natureza pecaminosa de nosso mundo, é o da imperfectibilidade de todos os regimes políticos. Encontramos, na visão churchilliana, um aspecto distinto do conservadorismo, reflexo das concepções teológicas de Santo Agostinho (354-430), que se manifestou nas reflexões teóricas ou na prática política de eminentes conservadores, dentre os quais merecem destaque os nomes do irlandês Edmund Burke (1729-1797), do americano John Adams (1735-1826), do brasileiro Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), do inglês Benjamin de Disraeli (1804-1881) e, mais recentemente, tanto dos americanos Ronald Reagan (1911-2004) e Russell Kirk (1918-1994) quanto dos ingleses Margaret Thatcher (1925-2013) e Roger Scruton (1944-2020), dentre outros.

Todos esses pensadores ou estadistas, assim como Winston Churchill, aceitaram os aspectos positivos do sistema representativo democrático liberal enquanto um “meio” pacífico de mudança política, entretanto, todos rejeitaram a ideologia do democratismo, que adota a falsa noção da democracia como sendo um “fim” em si mesmo. Fundado nas propostas igualitaristas apresentadas nos escritos do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o democratismo é uma noção radical que serviu de inspiração para as errôneas concepções democráticas adotadas pelos jacobinos durante a Revolução Francesa, por liberais revolucionários e por diferentes tipos de socialistas.

De certo modo, o conflito entre duas concepções distintas acerca do regime democrático foi apresentado, em 1924, no livro Democracia e Liderança, pelo filósofo político e crítico literário americano Irving Babbitt (1865-1933), ao ter contraposto a “imaginação idílica” rousseauniana, fundamento do democratismo, à “imaginação moral” burkeana, que está de acordo com as práticas da representação política adotadas pelas democracias liberais modernas. A noção igualitarista do democratismo apresenta a democracia como um fim em si mesmo, que servirá como fármaco para as mazelas da sociedade, enquanto a concepção liberal defendida também pelos conservadores entende o regime democrático como um mero processo de escolha dos governantes, que precisa estar submetido à defesa dos direitos individuais, do Estado de Direito e da economia de mercado.

Ao tratar do problema do democratismo nos Estados Unidos da América, no capítulo 18, “Governo Popular e Mentes Imoderadas”, do famoso livro A Política da Prudência, de 1993, o conservador Russell Kirk advertiu que:

“Todas as ideologias, até mesmo o democratismo, levam os tolos à imoderação – e logo à servidão. O que o ideólogo-mestre busca é o poder, não a liberdade. Nas palavras de Edmund Burke, ‘Homens imoderados nunca podem ser livres. As paixões lhes forjam os grilhões’. A ideologia é fanatismo político e irrealidade. Longe de preservar nossa liberdade, a ideologia do democratismo já enfraqueceu a estrutura constitucional norte-americana, e fará ainda mais danos à causa da liberdade ordenada, a não ser que nós, norte-americanos, reconheçamos o perigo e renovemos os antigos limites ao impulso igualitarista”.

O democratismo representa uma ameaça à Ordem, à Justiça e à Liberdade em proporções semelhantes às das ideologias totalitárias. Um verdadeiro conservador deve rechaçar qualquer postura ideológica, até mesmo uma defesa imoderada da democracia.

A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte II)

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Os sofistas, a política e o humanismo de Protágoras

O problema do caráter natural ou convencional daquilo que é considerado justo ou injusto é abordado pela maioria dos sofistas, embora a resposta dada a essa questão não seja sempre a mesma. É quase lugar comum a afirmação de que os sofistas teriam contraposto a lei à natureza, mas apenas Hípias e Antifonte estabeleceram explicitamente essa contraposição[1].

Hípias desvaloriza a lei na medida em que esta se afasta da natureza. Para ele, a natureza une os homens, ao passo que a lei frequentemente os divide. Dessa distinção entre lei natural e lei posta pelos homens, ele tira conclusões importantes que apontam para um ideal cosmopolita e igualitário que será desenvolvido posteriormente no período helenista. Hípias mostra, por exemplo, que as leis discriminatórias que separam os cidadãos de uma cidade e outra ou que dividem os cidadãos dentro de uma mesma cidade não fazem sentido se tomarmos por base a natureza, que iguala todos. Fundamentando-se também na distinção entre natureza e lei, Antifonte radicaliza ainda mais tais concepções, afirmando que gregos e bárbaros são por natureza absolutamente iguais e rejeitando, por conseguinte, discriminações baseadas nas origens[2]:

“O “iluminismo” sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da pólis, mas também o mais radical preconceito comum a todos os gregos acerca da própria superioridade em relação aos outros povos: todo cidadão de qualquer cidade é igual ao da outra e todo homem de qualquer classe é igual ao da outra, porque por natureza todos os homens são iguais entre si.”[3]

Philippe Nemo destaca como característica geral entre os sofistas a consciência de que o nomos “deve ser libertado do jugo da tradição e da sacralidade; que ele pode ser alterado pelos homens, seja criando-o arbitrariamente, seja, ao contrário, modificando-o para aproximá-lo de um padrão ideal[4]”. Werner Jaeger, por sua vez, destaca como aspecto comum a todos os sofistas “o fato de serem mestres da areté política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la[5]”. Enquanto uns, como Górgias, ensinavam apenas a retórica, outros, como Protágoras, iam além de uma educação meramente formal do entendimento e estimulavam o desenvolvimento da totalidade das forças espirituais: “a poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes dessa terceira forma de educação sofística[6]”.

A educação universal almejada por Protágoras é uma educação política, uma vez que, nesses tempos clássicos, a ideia de uma paideia, de uma alta formação é inseparável da ideia de Estado e sociedade[7]. Essa educação para o Estado significa, para Protágoras, educação para a justiça[8].

Vimos que no séc. V Atenas entrava em sua era de ouro, sob a liderança de Péricles, atraindo de toda a Grécia os que se destacavam por serem conhecedores e bons intérpretes das leis. Dentre estes estava Protágoras que, em 444.a.C, já havia sido encarregado por Péricles de redigir a legislação de uma das colônias gregas.

Reconhecido e admirado não apenas por Péricles, mas também por ilustres filósofos da época, Protágoras se ocupa principalmente com aquilo que torna possível a sociedade política e a sua conservação, além de buscar ensinar o decoro e a justiça, virtudes necessárias para que a pólis possa existir da melhor maneira possível.

Protágoras entende a justiça como aquilo que é útil à pólis e o mais útil é a sua conservação, sem a qual não pode existir o cidadão. Não se trata, portanto, de pensar uma justiça absoluta e transcendente, mas uma justiça concernente ao âmbito de uma realidade fenomênica, que se apresenta e se constitui na pólis. Essa realidade com a qual Protágoras se ocupa é a realidade política, que também é a região da doxa, da opinião, donde a importância da lógica, do argumento bem encandeado, ferramentas que os sofistas manejavam muito bem. A virtude política, que torna possível e boa a vida em comunidade, está vinculada à sua utilidade para a própria pólis.

No âmbito da política ou da jurisprudência, a justiça seria alcançada não pelo conhecimento absoluto almejado pela filosofia, mas por uma convergência momentânea de pontos de vista contraditórios. A política, estando mais circunscrita ao âmbito da persuasão que ao da busca da verdade, encontra na retórica seu instrumento. Com a arte da retórica, os sofistas ensinavam a tornar forte o argumento mais fraco, municiando seus discípulos para um torneio de argumentos e contra-argumentos, ensinando-os a crítica e a persuasão.

Com a sua doutrina do homem-medida, Pânton chremáton metron estin ánthropos (“O homem é a medida de todas as coisas”), Protágoras introduz o humanismo no pensamento grego: não são mais o cosmos ou os deuses que estabelecem as leis e os limites, mas o próprio homem.

A interpretação dessa famosa sentença de Protágoras requer alguma cautela. Ao apresentá-la no diálogo Teeteto, Platão a reduz a um relativismo gnosiológico (“o que é para mim é para mim, o que é para ti é para ti.”) e o homem-medida acaba sendo apresentado como o indivíduo, embora não se possa depreender do próprio Protágoras que ele deva ser tomado em outro sentido que não o mais genérico. Segundo alguns especialistas, a particularização do conceito homem no referido diálogo teria sido exposta no interesse das hipóteses metafísicas e teológicas que Platão queria demonstrar.

Essa ressalva é importante porque tê-la em mente possibilita mitigar ou moderar o relativismo de Protágoras, ressaltando os seus aspectos positivos e a importância política e pedagógica dessa valorização do homem. Na política, importa a doxa, a opinião dos cidadãos na medida em que formam consensualmente decisões úteis para a comunidade. O que Protágoras se propõe a ensinar como sendo uma espécie de techné política é a capacidade de conhecer o que é bom – ou seja, o que é útil para a pólis – e de persuadir os cidadãos fazendo com que aquilo que é bom também pareça bom e justo para todos.

Protágoras desenvolve uma pedagogia em consonância com o seu relativismo. O seu ensino focaliza as virtudes necessárias ao bem comum. A realidade que ele busca conhecer e ensinar não é a realidade metafísica do ser, mas a realidade humana, criada pelo homem e transformada por ele. Essa transformação se faz pela educação, ou melhor, por uma paideia, uma formação integral que envolve mente e corpo. A transformação social que assegura a manutenção e o progresso da pólis passa pela formação dos indivíduos segundo o ideal do cidadão.

Essa formação deve ser universal. Os sofistas têm o mérito de iniciar a transição de uma educação privada, limitada à nobreza, para uma educação generalizada, aberta a todos os cidadãos. Com eles, a antiga paidéia aristocrática aproxima-se da moderna educação urbana. Embora o ideal de formação aristocrática baseada na areté guerreira e heroica seja substituído pela areté política, esse novo ideal de formação é extremamente abrangente, implicando um conjunto de exigências física e espirituais.

O posterior conflito pedagógico de Platão com Protágoras se dará em dois níveis. O primeiro é político: Platão tinha uma concepção aristocrática de ensino, enquanto Protágoras tinha uma concepção democrática[9]; o segundo é teórico-filosófico: a sabedoria que sustenta o projeto platônico é de base ontológica, enquanto a sabedoria que sustenta o projeto de Protágoras e dos sofistas em geral é empírica e pragmática. Para quem sente frio, conseguir um agasalho é mais importante do que inquirir sobre a essência do calor e do frio. Há problemas inerentes à vida comum que precisam ser abordados com um tipo de sabedoria prática.

A sofística faz parte de uma tradição tanto de valorização quanto de dessacralização do logos: “O logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento da alma e da cidade[10]”. O sábio sofista é uma espécie de médico: assim como o médico se vale de um medicamento para melhorar o corpo de um homem doente, o sofista se vale das palavras para cuidar um mau estado da alma dos cidadãos. Por meio de discursos eloquentes, o sofista consegue trocar opiniões más e nocivas por opiniões benéficas e úteis, melhorando assim a própria pólis.

Note-se que não se trata de substituir a doxa por uma episteme, como pretenderá Platão. O que se almeja não é substituir a opinião pela verdade, mas uma opinião perniciosa por outra opinião mais sadia. Assim como a recuperação da saúde do corpo pode se dar por métodos radicais (incisões, ablações, cauterizações) ou métodos menos traumáticos (dietas, medicamentos), também a recuperação ou a manutenção da saúde do corpo social pode se dar por métodos violentos (repressões, insurreições, revoluções) ou por métodos lentos e graduais (por meio da persuasão discursiva). A educação sofística transforma a alma do aluno para melhor através do logos e essa transformação se mostra útil, vantajosa e benéfica para a pólis porque predispõe os ouvintes ao acordo necessário para a vida em comunidade.

A política é uma questão de logos. É a controvérsia que possibilita o triunfo da opinião mais vantajosa, que emerge como consenso momentâneo do choque de uma pluralidade de ideias e de opiniões dissonantes. O logos se confunde com a arte política e a polis se constitui na retórica. O que o homem-medida de Protágoras proclama é que a medida do homem está na palavra, e que a vida política encontra nela seu fundamento:

“Polis, logos, sofística: o caráter eminentemente político da sofística é, antes de tudo, uma questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Péricles e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega – que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porque falam, a mesma que Jacob Burckhardt chamará de “o sistema mais tagarela de todos” – teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.”[11]

(continua…)

[1] REALE, História da Filosofia V. I São Paulo: Paulus Editora; 2017. p.79

[2] REALE, p.79

[3] REALE, p.79-80

[4] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, p.104

[5] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego, p. 343

[6] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego p.342

[7] Ibid. p.351

[8] Ibid.p.374

[9] “O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a virtude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente “melhores”, sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, enfim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que democracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística – no final das contas, espantosamente moderna – de desunir ética e política, assegurando, simultaneamente, a democracia.” (CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. São Paulo: Ed. 34, 2005 p.69)

[10] CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66

[11] CASSIN, Bárbara. CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66

A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte I)

Atenas é a última das grandes cidades gregas a aparecer na história, portanto, o Estado jurídico ático pressupõe um longo processo de evolução que esboçaremos sucintamente aqui, ressaltando os pontos mais relevantes para a tradição democrática, liberal e humanista que pretendemos expor e defender.

Justiça, lei e ordem

Embora A República de Platão e a Política de Aristóteles sejam comumente referidas como as primeiras grandes obras a teorizarem a política, é preciso considerar que a própria cidade grega clássica (a pólis, de onde provém o termo política) antecede esses escritos, que são, na verdade, reflexões tardias acerca da singular formação política grega, cujo processo se desenvolveu entre o fim da idade média grega até a época de Sócrates e dos sofistas.

Não se trata apenas de um desenvolvimento político, mas do desenvolvimento cultural e do refinamento espiritual grego, que tem no surgimento da polis e da política uma de suas etapas e de suas culminâncias. Esse processo de evolução confunde-se com a consolidação da justiça (díke) como o mais alto ideal a ser buscado, como a areté (virtude) por excelência.

Na obra Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, Philippe Nemo divide didaticamente esse processo da formação política grega em três etapas: a primeira seria a legitimação das noções de justiça (themis, dikè) e ordem social (eunomia) por meio do aparecimento e da valorização de tais noções nas obras de Homero e Hesíodo; a segunda seria a tomada de consciência de que a justiça só pode ser garantida por intermédio de uma lei (nomos) igual para todos (isonomia) que deve ser escrita, e a terceira etapa seria a conscientização de que a própria lei pode ser tirânica e que, por isso, deve poder ser criticada, passando a possibilidade dessa crítica pela distinção entre natureza (physis) e convenção (nomos)[1].

A nova moral grega começa a se delinear na obra de Homero: “embora Homero ainda sustente o ideal de destreza guerreira como a mais alta medida de valor da personalidade humana, na Odisseia já se percebe uma elevada estima pelas virtudes espirituais[2]”. Nessa obra, já existe, por exemplo, a noção de que os julgamentos proferidos podem ser corrompidos, donde a importância de um senso de justiça, virtude atribuída ao personagem Ulysses.

Embora houvesse, na Grécia arcaica, uma administração da justiça, não havia leis públicas fixas, muito menos escritas. Esse antigo estado de coisas está descrito da obra de Homero, como bem nos explica Werner Jaegar na sua obra Paideia: a formação do homem grego, no capítulo intitulado “O estado jurídico e seu ideal de cidadão”. Enquanto themis é a justiça decretada por um Deus ou por um rei, díke é um veredito que se opõe à hybris (aquilo que é desregrado ou perverso):

“É com outro termo que se designa, em geral, o direito: thémis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e thémis. Thémis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei.” Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio saber. O conceito de díke não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto thémis.”[3]

No período da pólis, posterior aos tempos homéricos, esse significado técnico da díke será alargado, relacionando-se mais ao elemento normativo que se encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas:

“Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hýbris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao direito. Enquanto thémis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade, e à sua validade, díke significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra díke se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como thémis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à díke tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.”[4]

Jaeger destaca ainda que, na acepção mais ampla, a palavra díke trazia consigo, na sua origem, o sentido de igualdade, e que foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de díke, que se consolidou a medida justa para a atribuição do direito, dando início a uma evolução política que, por extensão sucessiva da ideia de igualdade, levaria à instauração da democracia:

“Esse matiz de igualdade na palavra díke mantém-se no pensamento grego através de todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado jurídico democrático, opunha-se abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos homens.”[5]    

A democracia enquanto governo do povo ou das massas não deriva necessariamente da exigência da igualdade de direitos e de leis escritas, mas o Estado de direito sim. O que hoje chamamos de Estado democrático de direito ou democracia liberal tem início, no Ocidente, com uma consciência jurídica na qual os ideais de liberdade e igualdade mesclam-se de um modo quase indiscernível. Essa vontade de justiça que está na origem da nossa formação cultural e política desenvolve-se na vida comunitária da pólis e “converte-se numa nova força formadora do homem, análoga ao ideal cavaleiresco do valor guerreiro nos primeiros estágios da cultura aristocrática[6]”. Esse novo ideal humano da pólis antiga é aceito pela filosofia do século IV a.C., sendo a antiga cidade-estado, segundo Jaeger, o primeiro estágio na caminhada do ideal humanista e a raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles.

Se a obra de Homero tergiversa entre uma moral arcaica e uma moral pré-cívica, a obra de Hesíodo surpreende – do ponto de vista da contraposição à moral aristocrática da Grécia arcaica e guerreira – ao expor, em Os trabalhos e os dias, uma grande valoração do trabalho, da paz e da justiça.

A justiça e o trabalho se complementam: Zeus, que condenou o homem ao trabalho, concedeu-lhe também a justiça para que trabalhe em paz[7], sendo o próprio trabalho indutor da justiça. Hesíodo afirma, na referida obra, que existem duas formas de luta: uma negativa, destrutiva, praticada pelos aristocratas, e outra positiva, que direciona a mesma força vital para o trabalho, sendo o motor de uma competição sadia e de uma concorrência fecunda; o trabalho, a produção e a emulação que a impulsionam seriam uma espécie de remédio para as querelas civis e as guerras[8]. A mensagem que brilha, portanto, nos versos de Hesíodo é a de que o reino do direito deve suplantar o reino da força e que a sociedade não deve se apoiar sobre a violência e a hýbris. Por mais que prevaleça o direito do mais forte, o ideal de um Estado de Direito se delineia:

“Vimos que foi a ideia do direito que deu ao ansioso pensamento do homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos de violentas alterações da ordem social econômica, motivadas pelas tentativas de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro a apelar para a divina proteção da Díke, na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade contra a maldição da hýbris e designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus.”[9]    

O período que vai do reaparecimento da escrita até o estabelecimento da democracia em Atenas, sob Clístenes, convencionalmente chamado de Arcaico (750 – 500 a.C.), marca a consolidação da pólis e daquilo que muitas vezes foi chamado “milagre grego.” Essa evolução de Atenas começa, de certa forma, com o arconte Drácon. Isso porque, embora tenha editado leis severas (“draconianas”), tais leis foram supostamente estabelecidas no intuito de reestabelecer a ordem e pôr fim a um conflito social, refreando a vingança após um massacre relacionado a um golpe de Estado de Cilón. Para Jaeger, porém, as proverbiais leis draconianas significaram “mais uma consolidação das relações recebidas que um rompimento com a tradição[10]”. De todo modo, importa notar que essas leis foram escritas, tendo sido decidido que elas seriam aplicadas a todos indistintamente, o que representa um primeiro passo em direção ao ideal de isonomia.

Sólon, por sua vez, vai além de Drácon ao empreender uma codificação escrita das leis e abala o status vigente ao defender que nem a origem social nem as relações hereditárias definem os direitos. Embora os direitos ainda estejam relacionados à riqueza, a mudança não deixa de ser um progresso considerável.

Sólon foi um dos chamados “sete sábios” pela tradição. Esses sábios contribuíram vivamente para a organização da pólis e para a difusão de um pensamento laico e racional. Esses legisladores e pensadores políticos foram contemporâneos dos primeiros filósofos gregos, os chamados filósofos da physis. O próprio Thales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, foi também um desses sete sábios. Trata-se, portanto, de um momento singular de efervescência cultural e espiritual no qual se buscou apreender tanto as leis do universo quanto as leis sociais. A própria ideia de lei é a marca desse momento. O mundo não é caos, é cosmos, ou seja, ele é perpassado por uma racionalidade que o ordena, por uma lei que não é simplesmente a imposição de uma potência sagrada antropomórfica, mas é uma justiça racional:

“Sólon concebe claramente a ideia de uma legalidade intrínseca da vida social. Convém recordar que na Jônia Tales e Anaximandro, filósofos da natureza milesianos, ensaiavam por essa época as primeiras passadas na ousada senda do conhecimento de uma lei estável do devir eterno da natureza. Aqui como lá, trata-se do mesmo impulso para uma concepção intuitiva de uma ordem imanente no curso da natureza e da vida humana e, portanto, de um sentido e de uma norma interna da realidade.”[11]

Com as novas condições da vida social na polis, forma-se o cidadão como um novo tipo de homem, moldado a partir de uma moral mais refinada na qual o autodomínio, a moderação, a temperança, em uma palavra, a sophrosine passa a ser buscada como uma das principais virtudes. O ideal da justa medida se sobressai e, com ele, a evidência da necessidade da lei. A justiça (dikè) espelha uma lei comum superior que garante o acordo e harmonia entre as partes.

Sólon tem um papel fundamental na defesa desse novo ideal, aproximando dikè sophrosyne e apresentando a obediência à lei como a atitude mais compatível com os seres racionais que somos. Já se pode falar aqui de uma ideia fundamental para o pensamento político ocidental, de um modo geral, e para o liberalismo, de modo particular: o aparecimento da lei como forma de estabelecer harmonia entre os homens não por imposição arbitrária, mas como forma legítima e consensualmente aceita de garantir a segurança e a prosperidade dos cidadãos. Aqui cabe a apresentação de uma interessante anedota destacada por Plutarco:

“Um amigo de Sólon […] vendo-o redigir as leis gargalhou e objetou que simples textos não podem nada contra as injustiças e a ambição dos cidadãos. ‘Esses textos são como teias de aranha: retêm os fracos e os pequenos que ficam presos nela, mas sob os pés dos ricos e poderosos elas se rompem’. Sólon respondeu a isso dizendo: os homens mantêm os contratos que nenhuma das duas partes têm interesse em violar e eu, de minha parte, adapto as leis aos cidadãos de modo a lhes fazer ver que é melhor praticar a justiça do que a ilegalidade”.[12]

Sólon pautou sua atuação político-legislativa pela crença na força transcendente da justiçaEmbora as ideias relacionadas ao direito e à lei que ele propagava e defendia já prevalecessem na vida pública da Jônia, o entusiasmo poético com o qual ele as difundiu moldou para as gerações vindouras um novo tipo de homem, um novo ideal a ser buscado:

“Também Sólon fundamenta sua crença política na força de Díke, cuja imagem descreve com visível coloração hesiódica. […]Sólon não redescobriu as ideias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo: limitou-se a desenvolvê-las. Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível na ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a hýbris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm, cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.”[13]

A ideia de lei traz consigo o ideal de igualdade, que se desenvolve progressivamente com Sólon, Clístenes e Péricles. Em Sólon a defesa da igualdade guarda o tom aristocrático: seu foco é igualdade diante da lei (isonomia) e não um igualitarismo radical (isomoiria). Ele sabe que a radical igualdade reclamada muitas vezes pelo povo só poderia ser obtida por meio de uma tirania, que transformaria os cidadãos em escravos. São as reformas políticas de Clístenes que democratizarão a igualdade para além da isonomia, ampliando a participação do demos nos processos decisórios da pólis, estabelecendo que todos os cidadãos poderiam participar igualmente das decisões e das nomeações políticas (seja por voto ou sorteio aleatório):

Com Clístenes, a pólis acaba se tornando um universo homogêneo, sem status hierárquicos, onde todos os cidadãos sucedem-se regularmente nos lugares de comando e obediência e pensam em si mesmos definitivamente como iguais em dignidade, juízes igualmente competentes de uma verdade racional e de uma lei que não expressa a vontade ou o privilégio de ninguém, mas são uma realidade objetiva que se impõe a todos[14].

Na época da Guerra do Peloponeso, Péricles retomará aspectos da democracia reformada por Clístenes e a luta contra o partido oligárquico, minoria que se apresentava como kaloi kagotoi (bela e boa) e que se contrapunha ao povo[15]. A fim de fortalecer o poder do demos, Péricles aprimora procedimentos políticos, criando, por exemplo, o misthós, retribuição pecuniária paga aos cidadãos atenienses mais pobres que exercessem funções públicas: é o esboço do nosso moderno aparelho de Estado[16].

Mesmo entre pensadores de pendor mais aristocrático, a noção de lei acaba ganhando aderência. Mas, junto à aceitação e defesa da lei, advém também alguns questionamentos: a lei tem caráter absoluto ou relativo? Ela está sempre em consonância com a justiça ou a justiça a transcende? O primeiro grande historiador grego, Heródoto, tendo desenvolvido suas pesquisas por muito tempo através de diversos países, verificou que os costumes e as leis que regem uma sociedade não têm a mesma fixidez e imutabilidade das leis naturais. Está posta, portanto, em Heródoto, a distinção entre physis e nomos que atingirá seu apogeu na segunda metade do século V com Protágoras e outros sofistas:

“Estava surgindo uma nova geração que começava a perceber que o nomos poderia ser uma tirania, uma série de costumes e convenções impostas aos homens que pode nem sempre querer conformar-se a ela. Após um “olhar circular” em todos os países conhecidos, pode-se preferir os costumes dos outros e ter dúvidas sobre a validade dos seus próprios costumes. O espírito crítico, mesmo revolucionário, é despertado por esta consciência decisiva, amplificada pelos sofistas.”[17]

(continua…)

[1] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. Paris : Quadrige/PUF, 1998. p.38

[2] ROCHAMONTE. C. Introdução à Filosofia política: democracia e liberalismo. São Paulo: Edições 70, 2022. p.21

[3] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p.134

[4] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.135

[5] Ibid. p.135

[6] Ibid. p.138

[7] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. p.51

[8] Ibid. p. 50-51

[9] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178

[10] Ibid. p.175

[11] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.180

[12] PLUTARCO. Vida de Sólon. Apud NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. P. 79

[13] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178

[14] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.84

[15] Idem.p.92

[16] Segundo Aristóteles (Constituição de Atenas), o Estado ateniense sob Péricles acabou apoiando com fundos públicos mais de 20.000 funcionários.

[17] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.103

Invasão da Ucrânia. Erro estratégico russo?

Algumas iniciativas e ações do Governo russo, desde o início da invasão da Ucrânia, suscitam questões sobre o sistema de informações russo, sua capacidade militar, a condução das operações, e a cadeia de comando. As últimas derrotas, em setembro e outubro de 2022, das tropas de ocupação russas na região ucraniana de Donbass, levaram a retiradas caóticas com abandono de blindados, munição e equipamentos. Os ucranianos conseguiram recuperar territórios em áreas de tradicional influência étnica do invasor. Motivadas e bem articuladas, as forças ucranianas contaram com armas mais modernas e sofisticadas fornecidas pela OTAN e pelos Estados Unidos. Os militares russos tiveram problemas logísticos, ficaram gravemente desabastecidos e sofreram com instruções confusas, em momento em que estão cansados pela já longa campanha militar, iniciada em fevereiro de 2022.

Na esteira do recuo, o Governo do Kremlin convocou 300 mil reservistas, o que levou a fuga e exilio maciço de homens em idade de prestação de serviço militar, e a protestos públicos, objetos de forte repressão, causando desgaste político às lideranças do país. Esses conscritos terão que passar por treinamento militar antes de seguirem para o combate. A imprensa, oficial, passou a criticar o alto escalão militar, poupando naturalmente a figura de Putin, que tem sofrido pressão de setores mais radicais do espectro político russo no sentido de que o líder russo deveria ser ainda mais firme na invasão. Seguiu-se a realização de referendos nas áreas de influência étnica russa onde têm raízes movimentos separatistas pró-russos que têm lutado para integrar a Federação Russa.

Os referendos deram vitória quase total (mais de noventa por cento) aos separatistas e foram considerados manipulados pelas potências ocidentais. Tendo como fundamento a vitória nos referendos, o Governo russo institucionalizou a incorporação dos territórios e realizou cerimônia pública no final de setembro no Kremlin, sob o comando do Presidente Putin, e com a presença dos dirigentes dos novos territórios de Zaporíjia, Kerson, Luhansk e Donetsk. Embora esses territórios não estejam sob completo controle da Rússia, a anexação formal faz com que os russos considerem suas divisas como fronteiras da Federação Russa e um ataque a esses territórios seja visto como um ataque direto à Federação. Ademais, deve facilitar o aumento do processo de absorção cultural e administrativa dos territórios anexados, apesar da ausência de reconhecimento internacional.

A Ucrânia reagiu a essas ações com pedido formal de entrada na Aliança Atlântica. Há uma cristalização da posição estratégica ucraniana, embora a adesão à OTAN não seja possível no curto prazo. As considerações acima provocam questões sobre a estratégia russa em relação à invasão da Ucrânia. Um grande problema estaria na área de informações.

O sistema político russo estaria sem condutos adequados de interação com a sociedade, por ser fechado e monolítico, e não ter imprensa livre que facilite a entrada de informações. O sistema fechado ao seu meio ambiente social tem levado a uma inanição, ou seja, falta de informações adequadas para o processo de tomada de decisão. Isso explicaria por exemplo a expectativa de que a população ucraniana receberia bem os invasores, que seriam vistos como libertadores, expectativa que se revelou inteiramente falsa. Tampouco o Governo russo estaria bem informado sobre a vontade ucraniana de lutar, a mobilização de civis da Ucrânia, e a reação e apoio da OTAN e dos Estados Unidos.

A fracassada tomada de Kiev, junto com os eficientes ataques ucranianos a longa e vulnerável (inclusive pelo precário fornecimento de combustível) coluna de blindados que se dirigiam paraa capital mostraram, além de informações inadequadas, falhas da doutrina militar da Federação da Rússia, herdada da antiga União Soviética. Assim, ao invés de tomar rapidamente a capital e instalar um governo pro-russo, como esperado, houve uma mudança de estratégia, que passou a ter como foco a região do Donbass, base de separatistas, onde os russos estão sofrendo as atuais derrotas.

Por outro lado, a estrutura militar russa mostrou falhas na cadeia de comando, com falta de liberdade dos comandantes no teatro de operações para tomarem decisões, que foram concentradas em Moscou. Essa falta de flexibilidade imobilizou o exército invasor em várias situações e o tornou alvo de ataques ucranianos, cujas forças têm maior motivação, unidades mais ágeis e mais autônomas.

Há informações de que o próprio Presidente da Federação Russa estaria dando ordens diretamente a generais no campo de batalha, contraditórias em relação as instruções do Ministério da Defesa. Outras informações dão conta de que, além da falta de interação do sistema político com a sociedade, o Presidente russo teria se isolado demasiadamente, desde a pandemia, ouvindo apenas a um círculo restrito de assessores de sua inteira confiança. Assim, além da falta de informações fidedignas, o governo russo estaria com dificuldades no processo de tomada de decisão de alto nível.

Embora a Rússia esteja tendo êxito ao contornar as sanções ocidentais desde o início da guerra, não tem conseguido o domínio nem mesmo de territórios pro-russos no Donbass, o que tem levado o governo a se sentir acuado e a reiterar as ameaças de uso de armas de destruição em massa, inclusive nucleares. A explosão da ponte que liga a Rússia a Crimeia, vital para suprimentos, e motivo de orgulho pessoal do Presidente Putin, levou a uma barragem de misseis russos contra a Ucrânia, de forma indiscriminada, atingindo alvos militares e civis. Note-se que esses bombardeios, de retaliação, além de causarem revolta na população civil, não devem levar a benefícios estratégicos russos, pois tropas que realmente conquistam e mantêm território são compostas pela infantaria.

Não se consegue ver os ganhos russos com a invasão, que se arrasta desde fevereiro de 2022, na medida em que a Federação Russa não logrou vitórias estratégicas, fez com que as potências ocidentais se unissem e se mobilizassem, e tem perdido prestigio até em territórios de tradicional influência étnica na Ucrânia. Mesmo a China, sua aliada, tem se mostrado crescentemente reticente e cautelosa em relação a invasão, como manifestado na reunião da Organização de Shanghai, em 15 de setembro no Uzbequistão pelo dirigente chines, que disse ” ter preocupações ” com a guerra na Ucrânia.

Rousseau: vontade geral e democracia totalitária

Jean-Jacques Rousseau é um escritor de bela e eloquente retórica, de estilo cativante e ideias instigantes; como filósofo, porém, é controverso, contraditório, politicamente com ideias ora vistas como de direita (anti-intelectualismo, culto da natureza e da força, ódio ao progresso, etc.) ora de esquerda (igualitarismo, economia dirigida pelo Estado, racionalidade construtivista, etc.), sendo ora apropriado pela tradição democrática e liberal, ora apontado como adversário dessa mesma tradição. Nesse artigo pretendemos mostrar, sob o respaldo do texto de Philippe Nemo em sua Histoire des idées politiques aux temps moderne et contemporains, que ele é realmente um adversário dessa tradição democrática, liberal e pluralista que defendemos e que a interpretação que melhor lhe convém é a que o coloca como precursor do jacobinismo, da mentalidade antiliberal, como um expoente da literatura utópico-revolucionária e antidemocrática.

Em textos anteriores, temos insistido na relação da tradição liberal com a própria Paidéia grega e seu momento de formação do estado jurídico ateniense, lendo assim uma espécie de direcionamento humanista da história ocidental que sofreu, não obstante, inúmeros desvios e ataques que fizeram com que o dinamismo da sociedade aberta recrudescesse sob a inspiração de ideias autoritárias e/ou totalitárias que germinaram em momentos terríveis da nossa história.

Pois bem, em um texto conhecido como Prosopopéia de Fabricius, que faz parte do seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau reprova nos romanos o terem sucumbido aos encantos da Paidéia grega. Entre Esparta, protótipo de Estado forte, totalitário, belicoso e disciplinar e Atenas, berço da nossa civilização, protótipo do Estado constitucional e das democracias liberais, Rousseau escolhe o primeiro, em consonância com a apologia da força daqueles que “sabem fazer” em detrimento daqueles que só “sabem dizer”.

O referido discurso consiste da resposta elaborada por Rousseau à seguinte questão proposta em concurso pela Academia de Dijon: “O reestabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?” Rousseau responde negativamente e ainda afirma que, ao contrário, as artes e as ciências (que aqui simbolizam o progresso) corromperam os costumes. A civilização seria, pois, prejudicial, causa de ruína da felicidade primitiva dos homens. O homem saído das mãos da natureza, o bon sauvage, seria superior ao homem civilizado. “Escolhendo a natureza contra a civilização, explica Philippe Nemo, Rousseau tomou partido pelo cinismo; escolhendo Esparta contra Atenas, ele tomou partido por aquilo que Karl Popper chama ‘sociedade fechada[1].’”

Alguns anos depois, Rousseau acha por bem responder a uma nova questão posta pela Academia de Dijon, dessa vez acerca da origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural. A resposta será o seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, no qual expõe as hipóteses de que no estado de natureza não havia desigualdades, as quais se estabelecem somente a partir do momento em que o homem, tornando-se social, adota a propriedade. Rousseau explica ainda que essa desigualdade se retroalimenta até criar as sociedades hierarquizadas, concluindo então que tal situação é manifestamente contrária à lei natural.

Ao buscar o homem puro, natural, Rousseau encontra nele dois traços essenciais: o amor de si (amour de soi) e a piedade (pitié), que podem ser entendidos como a preocupação com a autoconservação e a repugnância em ver um semelhante sofrer. Não obstante o fato de reconhecer a piedade como um sentimento natural, Rousseau não reconhece no homem natural a inclinação à sociabilidade. Assim como Maquiavel e Hobbes, e em contradição com o pensamento tradicional de Aristóteles ou dos estoicos a esse respeito, o filósofo genebrino interpreta o ser humano como não tendo capacidade nem vontade de formar laços sociais baseados em um sentimento inato de justiça.

Nota-se, pois, que a antropologia rousseauniana, apesar da formulação do bom sauvage, contém aspectos pessimistas, dentre os quais a paradoxal compreensão da liberdade ou da perfectibilidade humana como falibilidade[2], uma vez que ela estaria fundada sobre as paixões e não sobre a razão, sendo ela motivo de grandes infortúnios para a espécie humana.

O homem natural imaginado por Rousseau é algo próximo a um animal. Ele tem necessidade (besoin) e não desejos (désir); ele nem se presta à depravação de pensar: “Quase ouso garantir que o estado de reflexão é um estado não natural e que o homem que medita é um animal depravado.[3] Desprovido de desejos, ele pode viver em paz e em estabilidade, o que torna difícil a explicação da motivação da passagem do estado de natureza para a sociedade civil, que Rousseau empreenderá, porém, com críticas à teoria de Hobbes.

Para Rousseau, a luta de todos contra todos de que fala Hobbes não se deve à luta pela subsistência, mas à luta pela proeminência, paixão que não existiria no estado de natureza, mas teria sido criada pela sociedade. No estado de natureza mesmo, os homens não conheceriam a guerra. Se, para Hobbes, não havia, no estado de natureza, nem justo nem injusto, para Rousseau não havia ali nenhum tipo de relação moral: nem vício nem virtude. O bom selvagem é como a besta loura pensada por Nietzsche em A genealogia da moral – é um ser amoral que pode expressar uma força bruta, mas o expressa com inocência[4].

Não havendo nenhuma lógica imanente ao seu pensamento (como era o caso da “guerra de todos contra todos” postulada por Hobbes) que justificasse a saída do homem do estado de natureza, Rousseau começa a conjecturar ou inventar eventos que teriam conduzido a essa passagem. Sua primeira conjectura tornou-se antológica e expressa com bastante força sua opinião negativa em relação à propriedade privada:

“O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer ‘isto é meu’ e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém[5]’“.

A partir daí, a teoria do primeiro contrato social de Rousseau, aquele que estaria na origem da sociedade civil, é concebida como uma astúcia, como um artifício imaginado pelos ricos e realizado para sua própria vantagem; um contrato que apresenta as leis como sendo iguais para todos quando, em realidade, só aproveitaria aos poderosos e aos ambiciosos:

“Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade […] Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o género humano ao trabalho, à servidão e à miséria[6]”.

Pouco importa se se trata de monarquia, aristocracia ou democracia. Para Rousseau, todos esses regimes tradicionalmente apresentados pela ciência política não passam de variantes do mesmo contrato social que favorece os poderosos[7]. É aí que se explicita a inclinação revolucionária do pensamento de Rousseau: é necessário mudar esse estado social através de um novo contrato (nouveau contrat), dessa vez legítimo porque fundado na Vontade Geral.

No artigo Économie politique (1755) que escreveu para a Enciclopédia de Diderot, Rousseau apresenta-nos algumas funções do Estado, dentre as quais destaca-se a educação doutrinária e a direção da economia. Para “fazer reinar a virtude” que, para Rousseau, é a conformidade das vontades particulares à Vontade Geral, a educação deve ser retirada dos pais[8]. A obediência atual dos cidadãos ao Estado não seria suficiente; far-se-ia necessário preparar a obediência futura por meio de uma educação na qual as crianças devem ser constantemente sugestionadas a desprezarem seu próprio eu e a se submeterem ao todo, habituando-se a só enxergarem o indivíduo através das suas relações com o Estado, percebendo sua própria existência como parte dele[9]. Rousseau também advoga para o Estado a direção política da economia. Tendo o dever de cuidar da subsistência dos cidadãos, o Estado deve dirigir a economia no sentido de criar uma igualdade de condições.

É na obra Do contrato social (1762) que encontraremos o quadro constitucional que operacionaliza esse Estado revolucionário[10]. Nesse livro, Rousseau expõe uma teoria de Estado na direção de uma democracia totalitária de pendor coletivista, onde é acentuado o poder coercitivo do Estado sobre os indivíduos, legitimado por esse filósofo enquanto expressão daquilo que chamou de a “Vontade Geral.”

É na explicação cheia de aporias desse conceito que o texto de Rousseau, normalmente fluido, se faz mais áspero. A Vontade Geral, explica Rousseau, não é necessariamente a vontade de todos. A vontade de todos é apenas a soma das vontades particulares, enquanto a vontade geral olha para o bem comum. A vontade geral do povo não é, pois, a vontade coletivamente expressa nas assembleias populares, mas a soma das diferenças das vontades que se autodestroem[11].

O paradoxo sustentado por Rousseau é o de que, ao me forçar a obedecer ao interesse geral, eu me forço a ser livre. Isso se daria porque a minha vontade particular é baseada nas minhas paixões e estas me cegam, fazendo com que eu pense que quero algo além do que quer o Estado. Ao descobrir, porém, a Vontade Geral, eu a reconheço como minha verdadeira vontade, dando, a partir de então, meu assentimento a tudo o que o Estado quer.[12] Mesmo que a vontade geral esteja bastante distante da minha vontade inicial, ela está sempre certa e tende sempre para a utilidade pública. Philippe Nemo nos chama atenção ainda para a incompatibilidade do pensamento de Rousseau com o pluralismo próprio da tradição democrática-liberal:

“Rousseau é fundamentalmente um inimigo de disputas e sutilezas, fruto da civilização. As pessoas que se adaptam aos seus desejos são os bravos camponeses suíços que querem coisas simples e são unânimes em decidir as raras mudanças necessárias em suas leis. Eles nem são sutis o suficiente, diz Rousseau ternamente, para ser enganado. Com eles, é fácil determinar a vontade geral. Rousseau assim confirma sua condenação do pluralismo”[13].

Do exposto conclui-se, como foi dito de início, o caráter antiliberal e antidemocrático de Jean Jacques Rousseau. A noção de vontade geral é incompatível com a ideia de democracia formulada no contexto da Grécia antiga, no qual as mais diversas ideias eram consideradas e debatidas na Ágora por homens livres e intelectualmente maduros. A compreensão de que a verdade, a justiça ou o que é melhor para o bem comum sejam algo muito mais complexo e heterogêneo do que o resultado da unanimidade homogênea de caracteres simplórios cuja vontade se anula perante o Estado é um ponto crucial das democracias liberais, cuja delicadeza, grandeza e fragilidade consiste justamente na sustentação dinâmica do tênue equilíbrio das razões e vontades individuais que não se anulam, mas colaboram e cooperam para uma sociedade saudável e capaz de progredir.

Além disso, segundo Philippe Nemo, há no pensamento de Rousseau uma espécie de “soteriologia milenarista laica[14]”, que se expressa no anelo por um retorno ao paraíso perdido do bom selvagem. Seu pensamento aureola-se assim, segundo o autor, do caráter cripto-religioso e fanático próprio das ideologias de esquerda. De resto, cumpre notar que o pensamento de Rousseau se inclina para outro aspecto bastante característico das sociedades fechadas: a “perfeita identidade entre coesão política e coesão religiosa”, identidade essa que foi abalada quando “os judeus inventaram um monoteísmo estrito que era incompatível com a existência das religiões nacionais[15]”; abalo esse que foi agravado em seguida pelo Cristianismo. Ou seja, a divisão entre um poder espiritual com vocação universal e um poder temporal como vocação nacional, fragilizou, segundo Rousseau, a unidade do Estado, sendo necessário pôr fim a tal separação por meio de uma “profissão de fé puramente civil” que enunciará os sentimentos de sociabilidade do bom cidadão. A despeito da auréola do novo dogma da religião civil, ela seria sancionada pelo braço secular do Estado, tal qual, alguns anos depois, Robespierre tentou fazer para impor à base de guilhotina o culto da deusa razão.

[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains: Quadrige/PUF, 2002, Paris. p.806

[2] Idem p.809

[3] “J’ose presque assurer que l’état de réflexion est un état contre nature, et que
l’homme qui médite est un animal dépravé” (ROUSSEAU, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes).

[4] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.812

[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes

[6] Idem.

[7] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.817

[8] “On doit d’autant moins abandonner aux lumièçes et aux préjugés des pères l’éducation de leurs enfants, qu’elle importe à l’Etat encore plus qu’aux pères; car selon le cours de la nature, la mort du père lui dérobe souvent les derniers fruits de cette éducation, mais la patrie en sent tôt ou tard les effets.” (ROUSSEAU. L´article Economie Politique de L´Encyclopedie”)

[9] Idem. p.818

[10] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.819

[11] « Il y a souvent de la difference entre la volonté de tous et la volonté générale ; celle-ci ne regarde qu’à l’intérêt commun, l’autre regarde à l’intérêt privé, et ce n’est qu’une somme de volontés particulières: mais ôtez de ces mêmes volontés les plus et les moins qui s’entre-détruisent, reste pour somme des différences la volonté générale» (ROUSSEAU, Le contrat social – 1762)

[12] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.830

[13] Idem. p.833

[14] Idem. p.817

[15] Idem p.839