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Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Clube Autocrático

O ano inicia com um novo formato do BRICS. Entram no clube fundado por China, Brasil, África do Sul, Rússia e Índia, os seguintes novos sócios: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O bloco passa a ser formado por dez países depois desta que é considerada a mais importante ampliação do grupo que opta por uma guinada autocrática, tornando-se definitivamente um fórum hostil ao movimento democrático.

O novo BRICS ou BRICS 10, como tem sido chamado em alguns fóruns internacionais, é composto em sua vasta maioria, ou seja, 80%, por países que não possuem qualquer traço democrático em suas estruturas, sendo considerados ditaduras ou autocracias.  As exceções são Brasil e África do Sul. Nenhum membro, entretanto, pode ser classificado como uma democracia liberal plena.

A avaliação é a mesma daquela realizada pelos principais órgãos que medem os níveis de democracia em escala global, como a Freedom House sediada nos Estados Unidos, Universidade de Gotemburgo na Suécia e Economist Intelligence Unit com base no Reino Unido. O cálculo geral mostra que hoje existe uma ampla maioria de ditaduras e autocracias no mundo e o número de democracias vem regredindo constantemente.

O movimento de expansão do BRICS, portanto, é a expressão clara deste movimento pelo qual passa o mundo em tempos recentes, porém, as consequências deste caminho ainda não foram medidas. Entretanto, causa ansiedade notar que nações classificadas como democracias eleitorais ou imperfeitas como o Brasil se deixem seduzir pela aliança com países que violam garantias e liberdades conquistadas ao longo da História. Nosso país deveria rumar em sentido oposto, consolidando alianças com democracias.

Dentro do BRICS 10, o Brasil agora estará ao lado de autocracias eleitorais, ou seja, aquelas que realizam eleições simplesmente protocolares como Rússia, Egito, Índia e Etiópia, onde sabemos antecipadamente os vencedores. Além destas, agora somos sócios de autocracias fechadas, países já sem qualquer pudor em aplicar uma política despótica, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Irã e China, considerados também regimes autoritários consolidados.

Em Buenos Aires houve uma correção de rumo. O novo governo fez a opção por declinar do convite do BRICS, uma vez que não acredita nos propósitos de um grupo que possui a autocracia como fator balizador e a liderança da China como farol. Os argentinos foram além e falam em diminuir a dependência do investimento chinês que tem tornado aos poucos muitos países reféns dos desejos de Pequim.

Este é o principal ponto deste clube autocrático. O BRICS está longe de ser uma iniciativa que eleva países periféricos a serem partícipes do concerto internacional. O grupo se tornou a principal base de lançamento de iniciativas, financiamento e apoio mútuo de uma política baseada em interesses que estão em confronto direto com os valores ocidentais de liberdade e democracia. Um clube que mina os esforços em prol da democracia, liberdade e soberania daqueles que rejeitam sua cartilha. Uma forma de imperialismo e dominação que de forma silenciosa vem impondo sua agenda e seus interesses em escala global.  

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal

Israel x Hamas: direito de defesa com proteção aos civis

Há uma meta a ser cumprida na guerra Israel-Hamas: a eliminação do grupo terrorista que que invadiu Israel, exterminou e sequestrou civis. Ceder agora é ser passivo diante da monstruosidade perpetrada, é condescender com a barbárie.  

O direito de resposta de Israel à ignomínia à qual seu povo foi exposto é inegável. Não há corrente do Direito Internacional que não reconheça a legitimidade da resposta, uma vez que as fronteiras do país atacado de forma vil e selvagem estão expostas aos terroristas, que não respeitam leis ou tratados.

O direito de defesa pressupõe, no entanto, o respeito às normas internacionais que regem as relações entre os povos. Os civis devem ser protegidos tanto quanto os combatentes do Hamas devem ser alcançados. A estratégia para isso deve ser a entrada em Gaza por terra, uma vez que o bombardeio aéreo indiscriminado daria vitória a Israel, mas à custa de muitas vidas inocentes.

A invasão por terra não será fácil; haverá muitas baixas israelenses. Ou seja, Israel exporá a vida dos seus filhos para resguardar a vida de civis palestinos. Como isso pode ser moralmente equivalente às atrocidades perpetradas pelo Hamas?

Não se trata aqui de guerra comum, onde duas nações se enfrentam por questões econômicas e geopolíticas, mas de conflito no qual há um abismo entre a bestialidade de um ataque terrorista deliberado, com grau de crueldade inimaginável, e a resposta de guerra a ele.

Ambos os eventos são traumáticos, ambos levam ao luto e ao sofrimento, mas um responde à agressão iníqua e está respaldado pelo direito e pelas leis, outro rege uma orquestra demoníaca de vozes enfurecidas que berram contra o fim de Israel e o extermínio dos judeus.

Uma vez nos calamos e demoramos a retaliar. Uma vez esperamos para ver até onde o mal poderia ir. A resposta veio como a máquina infernal da SS, com seus fanáticos enfileirados; a resposta veio com os campos de concentração; a resposta foi a morte de milhões de inocentes. Milhões de judeus.

Não nos cabe agora repreender Israel pelos seus erros no antigo problema com os palestinos. Não cabe porque esse é um problema diplomático, que só poderá ser resolvido se houver diplomacia, algo impossível em um Estado islâmico, uma teocracia na qual o pensamento mundial deve se curvar a Allah e aos seus fiéis.

O mundo ocidental está brincando com o risco da sua própria aniquilação. A impressão que dá é que luta nas ruas, universidades e redes sociais para ser subjugado por um poder despótico e cruel.

O movimento político-ideológico que sustenta o Hamas tem ramificações enormes, por isso a mídia ainda não se colocou formalmente ao lado de Israel, banindo de seus quadros aquele que manifeste inclinações antissemitas e favoráveis aos terroristas. Mas é imperioso que emissoras e redações condenem formal e explicitamente um discurso cujo resultado já vimos no passado.

O holocausto foi possível porque a máquina de propaganda nazista foi eficaz, porque a aquilo que há de pior na espécie humana foi catalisado por líderes através do imenso poder da propaganda.

Os que hoje silenciam frente ao horror do atentado contra os israelenses, silenciariam na terrível noite dos cristais; os que hoje comemoram o que consideram uma façanha do Hamas, comemorariam os expurgos de Hitler. A desumanidade quando vista e não condenada abre espaço para desumanidades maiores e cada vez mais aberrantes.

Não há que se negar a boa fé e o senso de justiça dos que verdadeiramente almejam a paz entre os dois povos, mas há que se considerar que, uma vez que o mal tomou o caminho deliberado de negá-la, o bem não pode silenciar e esconder-se. Trata-se de uma resposta humana, dentro da humana falibilidade.

O mundo não é o paraíso celeste de espíritos redimidos. O mundo é o que é: um lugar de lutas e aprendizados, expiações e provas, dores e resgates. É neste quadro que devemos nos mover. E quando a guerra começa é preciso saber para que lado ir. O meu lado é o da civilização.