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Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Lula e a “reeleição” de Maduro na Venezuela

A questão com Maduro representa o maior desafio diplomático que o governo Lula já enfrentou. A resposta de Lula à eleição de Maduro talvez não signifique muito para a Venezuela, onde a situação é complicada, mas é de extrema importância para o Brasil. A maneira como o governo Lula se posicionará indicará o que ele considera ser uma democracia.

É claro que muitos dirão que já sabiam, que Lula sempre demonstrou suas intenções. Mas a situação agora é diferente. Classificar situações diferentes como iguais é um erro, e precisamos evitar sermos dominados por políticos que se aproveitam dessa confusão. No momento, a questão é: o que o governo Lula fará?

Lula conseguiu enviar um emissário para observar as eleições na Venezuela, algo que outros líderes, como Boric, Milei e Lacalle Pou, não fizeram. Lula declarou que se esforçaria para que o processo fosse democrático. No entanto, se seu enviado disser que as eleições não foram democráticas, isso representará uma derrota gigantesca para Lula, colocando-o em uma sinuca de bico.

Até agora, o comunicado do Itamaraty afirmou que o processo foi pacífico, o que contradiz os relatos de prisões, desaparecimentos e mortes. Lula ainda está indeciso sobre qual caminho tomar. Se optar por apoiar Maduro, ele pode se alinhar às grandes ditaduras, mas isso terá um preço alto para o Brasil, incluindo consequências econômicas e políticas.

Os países ditatoriais enfrentam bloqueios e boicotes internacionais que afetam profundamente suas populações. Caso o Brasil se alinhe a essas ditaduras, a população brasileira também sofrerá as consequências, incluindo aqueles que fazem oposição ao governo.

Portanto, a declaração de Lula sobre a Venezuela é crucial para nós. Se ele aceitar a fraude eleitoral na Venezuela, isso indicará os movimentos futuros do Brasil. Não importará se você gosta ou não de Lula; todos nós estaremos nesse barco. A questão agora é: o povo brasileiro tem maturidade para pressionar o governo a não reconhecer como democrática uma eleição fraudada ou preferirá ver o circo pegar fogo apenas para dizer “eu avisei”?

Como o crime organizado deforma a democracia latino-americana

Quando o crime está em ascensão, a própria democracia sofre uma crise de confiança.

O assassinato do candidato presidencial equatoriano Fernando Villavicencio, há um mês, sublinha uma ameaça crescente à democracia em toda a América Latina: a influência crescente de grupos criminosos e de governos que parecem relutantes ou incapazes de enfrentar o crime organizado.

O poder do crime organizado põe em risco o futuro da região e, como importante motor da migração para os Estados Unidos, aponta para uma deterioração ainda maior da crise fronteiriça antes de melhorar.

O crime organizado está presente na América Latina há décadas, mas aumentou dramaticamente a sua presença geográfica nos últimos anos e evoluiu para se tornar mais adaptável e inovador. Mesmo com o aumento da produção e do tráfico de drogas, muitas organizações criminosas diversificaram-se para outras atividades, como a extorsão, a mineração de ouro e o tráfico de seres humanos. Em alguns países, grupos criminosos outrora dominantes dividiram-se em grupos menores. E as linhas entre organizações criminosas e grupos armados de orientação ideológica tornaram-se cada vez mais tênues.

Esta expansão do crime organizado ameaça a democracia latino-americana em vários níveis.

Primeiro, o fracasso dos governos democráticos em fazer progressos contra o crime reforça a crença de que a democracia não é adequada para resolver problemas. Isto é visto mais claramente na edição de 2023 da pesquisa de opinião pública Latinobarómetro, que conclui que apenas 48% dos latino-americanos preferem a democracia a outros sistemas de governo (abaixo dos 63% em 2010), e que um número crescente está aberto ao autoritarismo. A turbulência política em alguns países reduziu ainda mais o foco dos governos no crime, minando qualquer possibilidade de consenso sobre políticas anticrime e reduzindo a coordenação entre governos, criando mais oportunidades para a exploração do crime organizado.

As organizações criminosas também estão corroendo a democracia através das suas extensas ligações com as elites políticas da região. Antes de ser assassinado, Villavicencio denunciou a classe política do seu país por ter sido contaminada pelo crime organizado, num caso apresentando uma queixa contra 21 candidatos a presidente de câmara com alegadas ligações a grupos criminosos. À medida que o crime organizado se tornou mais fragmentado e se expandiu para novas atividades, procurou novas alianças políticas, o que foi facilitado pela fraqueza dos partidos políticos.

Em alguns países, o crime organizado também desafia diretamente a governança democrática, intimidando funcionários ou impedindo os governos de desempenharem funções básicas.

Na Colômbia, os grupos criminosos expandiram o seu controle territorial, ameaçando ou banindo funcionários eleitos que não cooperam, apropriando-se de fundos públicos destinados a infraestruturas e outros serviços, ou restringindo a circulação dos residentes. A Ouvidoria de Justiça da Colômbia alertou recentemente que as eleições regionais marcadas para 29 de outubro poderiam ser comprometidas pela expansão de grupos criminosos e pela sua interferência no processo eleitoral.

No México, os cartéis exibem regularmente a sua força, desafiando cada vez mais o monopólio governamental sobre a violência. O destacamento mais frequente de militares por parte do Presidente López Obrador para combater os cartéis não resultou em ganhos tangíveis para os mexicanos que estão sujeitos às depredações dos cartéis.

De acordo com um estudo da Universidade de Chicago, 13% da população da América Latina vive atualmente sob um sistema de governança criminal, no qual o crime organizado governa ou co-governa um território ou população. O exemplo mais extremo está na Venezuela, onde o regime de Nicolás Maduro preside um sistema em que grupos criminosos favorecidos colaboram com o regime para ajudá-lo a manter o controle e a explorar conjuntamente o tráfico de drogas e a mineração ilegal de ouro.

A criminalidade na região está criando um terreno fértil para regimes mais autoritários. Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele subjugou as notórias gangues de rua do país através de um programa de encarceramento em massa e mantendo um estado de emergência desde março de 2022. Ele agora tem o maior índice de aprovação de qualquer líder na região, está sendo copiado nos países vizinhos Honduras e está inspirando líderes com ideias semelhantes em toda a região. Ele também planeja concorrer à reeleição, embora a Constituição de El Salvador proíba a reeleição presidencial.

À medida que o crime organizado continua a evoluir e a expandir-se, os líderes democráticos da região devem trabalhar para demonstrar que é possível combater o crime organizado no contexto de uma democracia robusta. Isto exige que os governos mantenham um compromisso de longo prazo para construir sistemas de aplicação da lei e de justiça que possam resistir à influência corruptora dos criminosos, desenvolver abordagens localizadas que reflitam a natureza adaptável e fragmentada do crime organizado atual e cooperar entre si no combate às organizações transnacionais.

Também exige maior compromisso e urgência por parte dos Estados Unidos. A população da América Latina precisa de melhores opções do que os modelos da Venezuela e de El Salvador.

Publicado originalmente no Dallas Morning News.