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Brasil-Argentina. Geopolítica na América do Sul

Às vésperas da posse do novo presidente argentino Javier Milei, cabe lembrar uma das mais audazes e bem sucedidas ações estratégicas da nossa diplomacia, pela qual o Brasil logrou superar uma rivalidade histórica que era ameaça constante à paz e à estabilidade na América do Sul. Na década de 1980, o Brasil tomou a iniciativa de aproximar-se da Argentina, seu tradicional adversário.

 A rivalidade entre brasileiros e argentinos data mesmo dos tempos coloniais, quando as Coroas portuguesa e espanhola buscavam a ocupação da América do Sul, e agravou-se com a Guerra da Cisplatina, de 1825 a 1828, na qual o Brasil, já independente, lutou contra as Províncias Unidas do Rio da Prata, que viriam a formar a Argentina. A antiga província brasileira da Cisplatina foi perdida, e, em 1825, o Império Britânico, com fortes interesses econômicos na Argentina e no Uruguai e também interessado na livre navegação do Rio da Prata, patrocinou a independência do Uruguai, com a intenção de estabelecer um buffer state, ou estado tampão, no território do Uruguai – que foi chamado de “um algodão entre dois cristais”.

 Potências regionais que disputavam a hegemonia na América do Sul, o Brasil e a Argentina alimentavam uma rivalidade acerba. As forças armadas dos dois países mantinham importantes guarnições na fronteira, e os planos de estado maior dos militares dos dois países contemplavam sempre a hipótese de guerra. 

 Na década de 1970, o Brasil teve uma fase de crescimento acelerado de sua economia, ao passo que a Argentina, apesar de contar com uma agricultura pujante e com uma indústria relativamente avançada, sofria crescentemente com as consequências de medidas populistas que vinham sendo adotadas desde o peronismo na década de 1940.

A aceleração do crescimento do Brasil e a decadência argentina trouxeram a percepção de que, do ponto de vista econômico, o equilíbrio entre as duas potências regionais estava rompido, na medida em que o Brasil tomava a dianteira. Essa percepção tornou-se mais aguda no serviço diplomático brasileiro, onde se percebeu que o momento era propício a uma aproximação entre os dois países, embora os militares ainda continuassem com a convicção de que a Argentina era o nosso principal oponente.

No início dos anos oitenta, a diplomacia pátria elaborava estratégia para uma aproximação com a Argentina. Essa estratégia baseava-se na construção de uma rede de interesses comuns, fazendo que as áreas de concordância sobrepujassem os pontos de atrito e divergência. Buscou-se, ao mesmo tempo, diminuir a resistência das forças armadas a uma distensão com o país que consideravam potencial inimigo.

A reaproximação bilateral levou a um histórico encontro entre o presidente do Brasil, José Sarney, e o da Argentina, Raúl Alfonsín, em 30 de novembro de 1985. Na reunião, que ocorreu na fronteira entre Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, Sarney e Alfonsín assinaram a “Declaração do Iguaçu”, base para o início de uma nova era de integração regional. Os chefes de Estado assinaram, ainda, a “Declaração Conjunta sobre Política Nuclear”, na qual as duas nações concordaram com o desenvolvimento pacífico de tecnologia nuclear conjunta.

O aprofundamento da chamada “diplomacia das cataratas”, por meio dos acordos diplomáticos em Iguaçu, consistiu em um marco do rapprochement, ou reaproximação, entre as duas potências regionais, que deixavam para trás a rivalidade histórica. Houve, no entanto, a necessidade de tomar diversas medidas para construir uma confiança mútua e sólida, as chamadas confidence building measures, pois o nível de suspicácia entre o Brasil e a Argentina estava em nível elevado e eram necessárias iniciativas que elevassem o grau de confiança entre as nações vizinhas. Entre as iniciativas, a mais importante foi a abertura de informações recíprocas sobre os programas nucleares das duas potências regionais, o que resultou na criação da Agência Brasileiro-Argentina de Controle e Contabilidade de Material Nuclear (ABACC). Essa medida contou com a supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), das Nações Unidas, o que serviu para dar mais legitimidade ao arranjo, cujo objetivo precípuo era o de promover aproximação e confiança recíproca. 

A seguir tivemos, no cenário internacional, a derrocada da União Soviética e o fim da Guerra Fria, acontecimentos que abriram espaço para a aceleração da globalização. Nesse contexto, o governo brasileiro envidou esforços para a criação de uma zona de livre comércio Brasil-Argentina. Esse mecanismo de abertura comercial, a princípio restrito às trocas entre as duas potências sul-americanas, chamou a atenção dos vizinhos do Cone Sul, o Uruguai e o Paraguai. Outrora rivais históricos, os dois países solicitaram formalmente sua adesão à área de livre comércio, para não ficarem à margem da união entre as duas maiores economias da América do Sul.

Como consequência da aproximação diplomática entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, os quatro países assinaram, em 1991,  o Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, o Mercado Comum do Sul. Embora o Mercosul tenha enfrentado várias dificuldades, algumas como consequência da diversidade da dimensão das economias que o integram, outras derivadas dos entraves normais em todo processo de integração econômica, sua existência simboliza a paz na América do Sul, que algum tempo atrás estivera ameaçada por risco real de guerra entre as potências regionais.

A iniciativa diplomática do Brasil de se aproximar da Argentina a partir da década de 1980, neutralizando uma potencial e acirrada rivalidade, tem contribuído, desde então, para a paz e a estabilidade na América Latina como um todo. A superação da rivalidade histórica entre ambos não somente evitou um confronto bélico que seria destrutivo para o Cone Sul, como também representou o embrião de um projeto muito mais amplo de integração regional, o qual, por meio do chamado spillover effect, irradiou seus efeitos para o entorno geográfico, atraindo as parcerias de Paraguai e Uruguai, além de servir como base para novas iniciativas e arranjos de concertação política e econômica na região. 

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança. 

Juego Político

Desde as eleições primárias realizadas na Argentina poucos meses atrás, ficou claro que não caminhávamos para eleição resolvida no primeiro turno e que certamente os dois mais votados teriam um segundo encontro com o eleitorado. Se a sensação naqueles dias era Javier Milei, o nome do momento passou a ser Sérgio Massa, que entra nesta etapa mais fortalecido, porém, sem uma clara perspectiva de vitória. O jogo está aberto.

Milei representa um voto de reação, enquanto Massa recebe um voto de ação e isto explica o salto alcançado pelo atual Ministro da Economia nos últimos dias. Massa é o candidato dos peronistas, que há décadas estão enraizados em praticamente todos os setores da sociedade civil argentina. Pense em qualquer setor civil organizado, desde associações de bairro, entidades de classe, sindicatos patronais ou de trabalhadores, conselhos e até organizações esportivas – todos possuem representantes ou dirigentes ligados do peronismo.

O peronismo consiste em uma máquina muito bem calibrada que funciona como motor de seu partido em períodos eleitorais, mas que também atua como catalizador popular para manifestações contra o governo, como aconteceu com Macri e De la Rúa, mas também a favor, como nos anos Duhalde, Kirchner e agora Fernandez. Vencer o peronismo nas urnas é trabalho difícil, talvez apenas um desafio menor do que manter-se no poder diante de sua oposição forte, virulenta e bem articulada.

Isto explica a vitória de Massa nas eleições deste domingo. Nas semanas pré-eleitorais e especialmente no dia da eleição, a máquina peronista começa a funcionar somando votos mediante sua mobilização. A oposição precisa estar muito bem organizada para vencer a estrutura robusta do peronismo ou precisa estar com vantagem confortável para não ser surpreendida.

Javier Milei tem a seu favor o ímpeto de reação, afinal comanda uma campanha baseada no antagonismo e de cunho emocional que se baseia na estratégia de ruptura com as práticas peronistas. Seus 30%, somados ao eleitorado de Patrícia Bullrich, podem lhe entregar a vitória. Conta a seu favor que este eleitorado é frontalmente contrário aos governistas, logo, se Milei se movimentar com habilidade, tem a vitória diante de si.

Em termos de governo, Milei, que elegeu 38 deputados e oito senadores, precisaria dos votos e apoios da coalizão de Bullrich, que elegeu 94, atingindo uma soma que fornece maioria no parlamento para governar. No Senado, juntos não chegam a ter maioria, mas podem chegar perto das 37 cadeiras necessárias. Como vemos, uma aliança que faz sentido não apenas em sentido eleitoral, mas também em termos de governabilidade.

Sergio Massa certamente carregará consigo os votos dos outros dois candidatos de esquerda, Juan Schiaretti e Myriam Bregman, que somados chegam perto de 10%. Porém, para vencer, Massa precisará ir além destes apoios. O peronismo precisará operar sua mágica e impulsionar sua musculatura para virar o jogo. Será a partida da ação peronista contra a reação ao sistema político impulsionado por Milei. Será uma eleição disputada e o vencedor, seja quem for, assume (além da crise) um país dividido.