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Foto: Anton Vaganov/Reuters.

Aliança Washington-Moscou

A atual iniciativa de aproximação dos Estados Unidos com a Rússia,  adversário tradicional, não é um padrão   novo na diplomacia norte-americana. Ações diplomáticas surpreendentes e bruscas já ocorreram anteriormente. Devemos recordar que no pós-segunda guerra mundial houve a reversão das alianças, quando os inimigos, a Alemanha, a Itália e o Japão, países derrotados no conflito mundial, passaram a ser considerados pela diplomacia americana como aliados, receberam apoio para reconstrução e se transformaram em baluartes da nova ordem mundial, liderada pelos EUA.

Essa  nova organização estratégica internacional foi, no entanto, confrontada pela União Soviética e tivemos o período da Guerra Fria, no qual o mundo se dividiu em dois blocos antagônicos. A Guerra Fria caracterizou-se pela confrontação entre os blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que disputavam a primazia nos campos ideológico, econômico, tecnológico e geopolítico. Tratava-se de um ”zero sum game ” em que ao ganho de um jogador correspondia direta e simetricamente a perda do outro, mas não havia confrontação militar direta entre os líderes dos dois blocos, os Estados Unidos e a então União Soviética, mas sim por meio de interpostos países.

No entanto, mesmo nesse cenário internacional rígido, o governo americano assumiu em 1972 o risco diplomático de uma aproximação com a China, então parte do bloco sovietico, na forma de uma viagem do Presidente dos Estados Unidos a Pequim, articulada secretamente por Henry Kissinger.

Essa viagem, que procurava causar uma fissura no quase monolítico bloco sovietico da época da Guerra Fria, mostra que há importantes precedentes nas atitudes aparentemente superficiais do atual governo dos EUA. A existência de terras raras e outros minerais estratégicos no território ucraniano ajuda a  explicar a atual ambição americana em ter acesso à Ucrânia. 

A aproximação entre Washington e Moscou causa enorme preocupação na Europa e na Aliança Atlântica, que se sente vulnerável à continuação da agressão russa As populações da Europa Central e do Leste europeu, que estiveram sob o domínio da União Soviética, têm grande temor da Rússia.

O Reino Unido e França têm liderado uma tentativa de reação à iniciativa americana. O Primeiro-Ministro do Reino Unido patrocinou reunião de emergência em Londres com líderes europeus e da OTAN, incluindo Canadá. Nessa reunião ficou clara a decepção com a atitude americana e se iniciou a montagem de preparação de uma estrutura militar independente dos Estados Unidos que possibilite a Europa defender-se da Rússia autonomamente. 

Uma força militar autônoma da OTAN tem como precedente a relação da França com a Aliança Atlântica. Em 1966, em plena Guerra Fria, a França retirou suas forças do comando integrado da organização em busca de independência em relação aos Estados Unidos. Recorde-se que a França desejava principalmente manter suas armas atômicas, a “force de frappe”, força de dissuasão nuclear, sob seu controle. Foi só em março de 2009 que as forças francesas voltaram ao comando da Aliança Atlântica. Durante a guerra na Ucrânia, os europeus reforçaram a OTAN com a adesão da Suécia e Finlândia, países lindeiros com a Rússia, que ficou cercada pela Aliança. 

Os americanos têm considerado a China seu principal adversário  estratégico e tendem a reforçar seu esquema de alianças e seu  “containment” contra Pequim. No entanto, os Estados Unidos mantêm ativas  áreas de interesses comuns com a China principalmente no campo da tecnologia avançada como a produção de semicondutores. Trata-se de um relacionamento com áreas de convergência e divergência entre as maiores potências industriais comerciais e tecnológicas do mundo  A aproximação americano-russa prejudica a China, que tem apoiado, e reforçado, sua aliança com a Rússia durante a guerra na Ucrânia, ajudando-a em relação às sanções europeias e americanas impostas por causa da invasão da Ucrânia.

A OTAN, além de  ter reforçado sua composição com a adesão da Finlândia e da Suécia, tem aumentado também seus investimentos em defesa. No entanto, depois de tantos anos de dependência dos Estados Unidos, sua indústria militar encontra-se fragilizada e necessita investimentos maciços para recuperar sua capacidade, inclusive em relação a munições, setor extremamente dependente do fornecimento americano.

De sua parte, a Europa considera a Rússia seu inimigo estratégico, contra o qual deve se preparar, unir-se e armar-se, sem contar mais com os americanos.

Importante registrar que a ordem mundial inaugurada em 1945 com o fim da Segunda Guerra, que foi patrocinada pelos Estados Unidos e a chamada ” Pax Americana ” deixam de existir e uma nova ordem mundial deve começar. A ordem internacional do pós-guerra tinha como pilares o multilateralismo, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC,  OEA, a firmeza americana no compromisso com seus aliados.

Se a suspensão da assistência militar dos EUA à Ucrânia mostra o desmantelamento da atual estrutura de poder mundial, outro golpe na ordem vigente no pós-guerra é a imposição de tarifas unilateralmente pelo governo americano às importações do Canadá e México, países aliados e fronteiriços, além da China. Esses países reagiram imediatamente com tarifas retaliatórias. A imposição unilateral de tarifas destrói o que resta das tentativas de organizar e liberalizar o comércio mundial depois da Segunda Guerra, como por meio do GATT e depois da OMC, que perdeu importância e pode se dizer que está hoje agonizante. 

É interessante registrar que esse novo desenho da realidade internacional apresenta desafios  para a Europa, que se deve defender com seus próprios meios contra a ameaça russa. Ademais, devemos registrar que a OTAN é hoje  extremamente dependente da estrutura de informacao (ou inteligência ) americana. Ainda não se sabe se a organização conseguirá conter a Rússia sem  ajuda americana, mas os sinais são de que a Europa deve tentá-lo, mesmo porque não há alternativas.

A aproximação russo-americana, o recuo militar dos EUA na Europa, e a imposição unilateral de tarifas, representam fissuras, ou abalos, em uma ordem internacional em declinio.

Foto: Sergei Bobylev/Sputnik.

Xeque Mate

Estamos diante de uma partida de xadrez no tabuleiro internacional e Moscou vem trabalhando com foco no longo prazo, com a preparação de jogadas e armadilhas com vistas a atingir seus propósitos. Tudo indica que vem logrando êxito, especialmente diante dos últimos acontecimentos.

Desde que assumiu o poder, Putin tem um grande objetivo, que é a reconstrução do império russo por meio das fronteiras perdidas diante da desintegração da União Soviética em 1991. Em discurso em 2005, pontuou que o colapso da URSS foi “a maior catástrofe geopolítica do século” e que “para o nosso povo, isso se tornou um drama de verdade. Dezenas de milhões de nossos cidadãos se viram fora de nossa Federação”. Reconstruir este espaço se tornou sua obsessão.

Duas décadas depois, a Europa se tornou dependente do gás russo e o país abriu a porta dos conselhos de suas empresas para políticos europeus. Passou a investir em uma máquina de propaganda e desinformação por meio de canais oficiais e não oficiais no exterior, envenenou opositores e encarcerou dissidentes do regime, além de manipular eleições no exterior, seja pelo apoio financeiro ou por meio de estratégias de seus canais de comunicação e informação. 

Isso significa que o Kremlin vem desenhando este caminho há tempos. Uma estratégia como esta é algo preparado de forma meticulosa no longo prazo e agora vem colhendo resultados reais. O enfraquecimento da Otan, a ascensão de governos populistas ao redor do mundo, assim como a consolidação de um eixo autocrático está dentro dos planos traçados por Moscou. Nada, até o presente momento, fugiu do script.

A ação militar sobre a Ucrânia, com a sua invasão, é apenas mais um capítulo desta história. Agora, que tudo se encaminha para um acordo onde o leste do país ficará sob a tutela de Moscou (que já havia tomado a Criméia), será uma questão de tempo para que o Kremlin avance por todo o país. Um aperitivo do que pode vir depois, colocando em risco o Báltico e o Cáucaso antes de ampliar ainda mais seu espectro.

Em 1904, o geógrafo inglês Halford Mackinder desenvolveu a teoria do Heartland. Ele situou esta região na zona territorial que abrange os continentes europeu e asiático, que recebe a denominação de Eurásia. Pela profundidade do território e suas riquezas, aquela nação que controlasse esta faixa de terra e suas saídas marítimas estratégicas, dominaria o mundo. Poucos entendiam de geopolítica como Mackinder, entretanto, ao ler seus ensinamentos, é possível antever cada um dos passos dados por Vladimir Putin. Em face de seu objetivo, claro e bem traçado, vemos que os movimentos do Kremlin estão espalhados em várias frentes, são coordenados e pensados no longo prazo, inclusive incluindo suas alianças e criação de novos fóruns internacionais. Uma arquitetura de poder que vem corroendo as estruturas democráticas do mundo ocidental nos seus valores, lideranças, eleições e decisões, por meio da desinformação, financiamento e infiltração. Se o Ocidente não reagir, o xeque-mate será inevitável.   

Foto: Natalia KOLESNIKOVA AFP.

Imperialismo Autoritário

O imperialismo é um conjunto de ideias, medidas e mecanismos que, sob determinação de um país, procuram efetivar políticas de expansão, domínio territorial, econômico ou cultural sobre outras regiões geográficas. Apesar do conceito de imperialismo, derivado de uma prática assente na teoria econômica, ter somente surgido no início do século XX, sua prática é recorrente ao longo dos séculos por muitas nações, civilizações e mais recentemente por Estados-nação.

Existem alguns países que possuem o imperialismo como elemento norteador de suas ações, um verdadeiro traço de suas personalidades como nação. Este elemento está claramente presente no pivot da Ásia, a Rússia, que ao longo dos séculos foi palco de políticas expansionistas. É possível identificar este elemento no domínio soviético em países da Ásia Central e do Leste da Europa, tornando-se suas repúblicas. Em tempos mais recentes, este elemento está presente na tentativa de domínio econômico, político e cultural dos mesmos países, agora independentes, atingindo seu ápice com a invasão territorial da Ucrânia ordenada pelo Kremlin.

O imperialismo também sempre foi presente na Ásia, seja na Mongólia, o maior império de terras contíguas da história, mas passando também pelo Império Khmer, atualmente o Camboja, pela ascensão do poderio nipônico na expansão e domínio do Japão pelo continente e mais recentemente em escala local e global pela China, que passou a ser governada pelo Partido Comunista desde a Guerra Civil que terminou em 1949, levando o antigo líder, Chiang Kai-shek, a viver no exílio, em uma ilha conhecida como Taiwan.

Assim como a Rússia, que ainda sente o gosto amargo do fim do império soviético, quando possuía duas dezenas de repúblicas, hoje países independentes, na sua esfera de influência e domínio, a China também custa a aceitar a realidade de que ao longo de décadas Taiwan se tornou um país independente. Pequim se expandiu para o Tibete e outras regiões da península asiática, porém jamais conseguiu controlar Taiwan, um desejo antigo que mexe com as placas tectônicas da geopolítica internacional.

Isso se explica porque Taiwan se tornou um país independente de fato e de direito ao longo dos anos, adotando todos os passos necessários para firmar-se como economia relevante, parceiro comercial confiável, uma democracia plena e centro vibrante na área de inovação e tecnologia, com índices altíssimos de educação. O país que produz hoje cerca 66% da produção mundial de chips, com 56% destes semicondutores saindo da lavra da TSMC, possui em torno de si um chamado “escudo de silício” que o protege, uma vez que um abalo econômico causado por uma guerra na região seria algo devastador para a economia de todo o planeta.

O imperialismo tornou-se um risco no atual plano das relações internacionais, pois tem sido usado de forma sistemática por regimes antidemocráticos para consolidar e ampliar o poder de líderes autoritários. Os casos são vários e começam pelos aqui já citados, ou seja, pelo avanço da Rússia pela Ucrânia, das ameaças chinesas em direção a Taiwan, porém também nas ameaças da Venezuela à Guiana, do expansionismo iraniano no Oriente Médio, da instabilidade causada pela Coréia do Norte em direção ao Seoul. O gene do autoritarismo, uma prática que se tornou popular em tempos recentes, carrega consigo os riscos do imperialismo, colocando o mundo em situação cada vez mais instável e perigosa em tempos recentes.

A OTAN, a Rússia e a Ucrânia

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados Unidos, que lideraram a aliança vitoriosa, empenharam-se em estabelecer políticas que, de um lado, consolidassem sua posição de liderança, e, de outro, que contivessem a União Soviética e o comunismo em expansão.

De início, assistiu-se a uma reversão das alianças: os países derrotados, que compunham o Eixo – composto por Alemanha, Itália e Japão –, foram cooptados pelos vencedores e aproximaram-se da coalizão que venceu a guerra. Para essa reversão das alianças, foi essencial o Plano Marshall, que, iniciado em 1948, forneceu recursos para a recuperação e a reconstrução dos países europeus atingidos pelo conflito. Os países derrotados foram desarmados e passaram a enfrentar fortes restrições ao desenvolvimento de suas forças armadas e de sua indústria bélica, não podendo mais ter ou fabricar armas ou equipamentos de ataque, mas apenas de caráter estritamente defensivo. Já em 1952, os países europeus participantes do Plano Marshall atingiram os níveis de produção do período anterior à Guerra, o que abriu caminho ao futuro mercado comum europeu1.

Esse progresso econômico, com forte ajuda das subvenções americanas, contribuiu para frear o avanço do comunismo na Europa Ocidental, onde os partidos de inclinação marxista aumentavam sua participação – a exemplo do que ocorria na Itália e na França. No entanto, no Centro e no Leste europeu o comunismo aumentava sua presença e foi-se formando um bloco de países comunistas, liderados pela União Soviética. O mundo dividia-se em dois campos antagônicos e consolidava-se o período da Guerra Fria, no qual os blocos rivais se digladiavam, disputando influência política, econômica, industrial e tecnológica. A corrida armamentista entre os dois polos acirrava-se continuamente. Tratava-se de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um lado correspondia direta e simetricamente à perda do outro, e os líderes, os Estados Unidos e a União Soviética, impunham exigências de alinhamento e lealdade extremamente rígidas.

A expansão do comunismo, incentivada pela União Soviética, bem como pela China, sua aliada, atingia ou ameaçava países em várias partes do mundo, o que levou os Estados Unidos a empreenderem uma política de contenção, ou containment. Essa política deve muito de sua base teórica ao diplomata norte-americano George Kennan, que, em 1947, servindo em Moscou, redigiu o famoso long telegram , depois publicado na revista Foreign Affairs sob o pseudônimo “X”. Observe-se que a China, que se tornou comunista em 1949, era ainda um país subdesenvolvido, e o começo do seu crescimento econômico, tecnológico e militar data das décadas de 1970 e 1980. Assim, a principal preocupação dos EUA durante toda a Guerra Fria era a URSS, situação que perdurou até a derrocada da União Soviética no início da década de 1990.

Ao ter a estrutura estatal comunista desmontada, a então União Soviética, sucedida pela Rússia, viveu forte crise institucional, econômica e social. As poderosas forças militares soviéticas chegaram a ficar sem recursos para honrar os salários dos soldados, situação humilhante para uma antiga superpotência. A estrutura do bloco

soviético também ruiu. Os EUA poderiam então ter tentado atrair a Rússia para o sistema economico ocidental e buscar atrai-la também para valores e costumes ocidentais, pelos quais a juventude de então tinha fascinação.

Em 1949, formou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, sob a égide dos Estados Unidos. Tratava-se de mecanismo regional de defesa coletiva: seu tratado constitutivo previa que um ataque a qualquer de seus membros seria considerado um ataque contra todos (capítulo 5 do tratado constitutivo); todos os demais membros, portanto, tinha a obrigação de repelir agressões bélicas contra qualquer de seus integrantes. A reação soviética e de seus aliados europeus à criação da OTAN foi a fundação, em 1955, do Pacto de Varsóvia, estrutura igualmente defensiva.

A OTAN perdeu seu objeto principal que era defender o Ocidente da União Soviética e da expansão do comunismo quando ocorreu o desmantelamento da URSS e o consequente fim do regime comunista entre seus aliados do Leste europeu. No entanto, o acordo atlântico foi mantido e expandiu-se dos 12 membros iniciais para os atuais 31, contando a Finlândia2 e a Suécia, que está em processo final de adesão. A expansão da OTAN foi um dos motivos alegados pelo Kremlin para a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, quando seria iminente a colocação de baterias de mísseis próximo à fronteira russa, em território ucraniano, e mesmo a adesão da Ucrânia à OTAN. A expansão da OTAN aumentou o sentimento de cerco da Rússia, que existe desde os tempos imperiais.

A OTAN tem sido crucial na defesa da Ucrânia por meio do fornecimento de armamentos e de informações, além do treinamento de tropas. O apoio dos países da OTAN tem permitido à Ucrânia resistir à invasão de uma potência que conta com forças muito superiores. A aliança atlântica, que se encontrava dividida antes da invasão, uniu-se contra a ameaça russa, movimento que não era esperado pelo governo do Kremlin.

As próximas eleições nos Estados Unidos serão importantes para definir os rumos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O governo anterior dos EUA caracterizou- se por críticas acerbas à Aliança Atlântica, alegando que o peso da defesa da Europa recaía principalmente sobre os norte-americanos. No caso de vitória dos Republicanos no sufrágio deste ano, é possível projetar que em um Governo Trump, se retomar sua política do primeiro mandato, haverá uma significativa diminuição do apoio dos EUA à Ucrânia, deixando a Europa responsável pela defesa ucraniana, o que desequilibraria a guerra a favor da Rússia.

Artigo Embaixador Marcio Florencio Nunes Cambraia em conjunto com o Cientista Político Marcio Rodrigo Penna Borges Nunes Cambraia.