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Foto: Ali Haj Suleiman

O lamento da esquerda pelo fim da ditadura de Bashar Assad

Em várias cidades da Síria, multidões fizeram festa para celebrar o fim da ditadura de Bashar Assad. Especialmente em Damasco, a capital, milhares de pessoas ocuparam ruas e praças para expressarem alegria e júbilo pela destruição de uma tirania brutal que, passando de pai para filho, já durava mais de 50 anos.

Tais manifestações foram registradas, com abundantes imagens que percorreram o mundo pelos canais de TV e pela internet. Não obstante, parte da esquerda desprezou o povo sírio, declarou a derrota de Assad como trama pérfida do imperialismo e derramou-se em desalentado pranto pelo fim de uma das mais ignóbeis ditaduras da história.

Certamente, não foi toda a esquerda: existem correntes de uma esquerda moderada, como o trabalhismo e a social-democracia, que conservam o juízo e honram a convivência democrática. Todavia, é a estridente esquerda sul global que se vem fazendo ouvir mais intensamente.

Essa esquerda autoritária, inimiga declarada da civilização ocidental, fez opção preferencial pelas autocracias e chora a ditadura que agora se foi.

Saydnaya, “matadouro humano”

As perversidades do regime sírio estão agora em foco, com destaque para Saydnaya, prisão militar ao norte de Damasco, um local de tortura e matança do regime de Bashar Assad.

Qualificada como um “matadouro humano” por organizações de direitos humanos, essa prisão foi construída pelo pai de Bashar, o então ditador Hafez Assad. Desde então, tornou-se esconderijo de atrocidades, onde milhares de pessoas foram detidas, torturadas e executadas:

“Numa das salas, os corpos dos presos eram esmagados numa prensa…”; “Depois do esmagamento, segundo relatos dos rebeldes, o que sobrava dos cadáveres era dissolvido em ácido”, diz o trecho de uma reportagem da Euro News.

A mesma matéria denuncia uma verdadeira política de extermínio em Saydnaya: “Entre 2011 e 2015, 13 mil pessoas foram enforcadas nesta prisão, de acordo com a Anistia Internacional – várias dezenas de execuções por enforcamento foram ali consumadas todas as semanas.”

Pepe Escobar e Jeffrey Sachs

Nada disso, porém, comove a hipócrita esquerda sul global, cujo discurso tem se concentrado em apontar participação da Otan e de Israel na campanha contra o regime deposto e em lamentar a queda de Bashar Assad como uma derrota na “luta anti-imperialista”.

Pepe Escobar, por exemplo, “jornalista” brasileiro, inflamado defensor da tirania de Putin na Rússia e da tirania dos aiatolás no Irã, definiu a queda de Assad, em entrevista à TV 247, como “um dos espetáculos mais tristes da história” e lamentou o fim da ditadura de Assad como “uma derrota estratégica enorme para a Rússia e para o Irã”.

Já o economista norte-americano Jeffrey Sachs, que se tornou querido da extrema esquerda por sua predisposição contra Israel e os EUA, escreveu o seguinte, em artigo no site progressista Common Dreams: “[…] Sem dúvida, Assad muitas vezes cometeu erros e enfrentou um descontentamento interno severo, mas seu regime foi alvo de colapso por décadas pelos EUA e Israel.”

Como podemos ver, Jeffrey Sachs concede, en passant, que Assad cometeu erros e enfrentou descontentamento. Porém, esta miserável concessão diante dos horrores de mais de 50 anos de atrocidades dos Assad é apenas um cisco em meio a um rio de lágrimas vertidas em honra da ditadura morta ao longo do referido artigo.

O futuro da Síria

Não sendo possível a quem tem bom senso negar a importância do fim de uma tirania de meio século, ainda assim, há reais motivos de preocupação com o futuro da Síria.

Como já amplamente divulgado, as forças rebeldes vitoriosas são compostas por facções heterogêneas que vão de grupos moderados até fundamentalistas islâmicos radicais.

A facção principal, o grupo Hay’at Tahrir Sham (HTS) é uma organização política e paramilitar jihadista. O líder desse grupo, Abu Mohammed Jawlani foi chefe de uma antiga afiliada da organização terrorista Al Qaeda.

Porém, desde que abriu dissidência da sua antiga organização, Al Jolanne passou a dar vazão a um discurso mais moderado e tenta mostrar abertura para o diálogo; se há fortes motivos para preocupação, não é, porém, descabido que se alimentem esperanças.

O presidente Joe Biden mandou mensagem afirmando que os EUA querem colaborar para levar adiante o processo de transição para uma Síria independente e soberana; porém, marcando a posição de continuar lutando contra o Estado Islâmico.

Países europeus como França, Espanha, Inglaterra, Polônia, Itália e Alemanha mandaram mensagens semelhantes, enfatizando a construção da soberania Síria e alertando contra o perigo dos extremismos.

Enfim, querem ajudar. Já os esquerdistas sul globalistas querem atrapalhar. Se pudessem, retornariam com o ditador Assad e reativariam a prisão de Saydnaya.

Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo

“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”, escreveu Marx, em 1848, na abertura do Manifesto Comunista. Após causar muito terror e desgraça, esse espectro foi, num certo sentido, exorcizado. Mas ele, assim como o nazismo, foi apenas a manifestação de outro espectro mais difícil de afastar: a inclinação humana ao coletivismo e a tendência ao totalitarismo.

O espectro do totalitarismo voltou. Isto já deveria estar claro para uma mente mais alerta. O ódio difuso e mal dissimulado, o resgate de velhas fórmulas de preconceito, o medo arraigado de perder o próprio bem-estar (como se o bem-estar fosse um valor supremo), o delírio febril em torno de líderes e o pouco apreço ao indivíduo real que sofre, vítima do infortúnio ou do ódio de desajustados de pendor autoritário são alguns sintomas desse retorno.

O espírito do nosso tempo requer uma análise mais psicológica do que política. O analista político não alcança as sutilezas do movimento interno das massas.

Psique coletiva

Se considerarmos toda a história da humanidade, a civilização é ainda uma novidade, de modo que não deveríamos nos espantar tanto quando pessoas se comportam de um modo primitivo.

Há duas formas, porém, de nos relacionarmos com o primitivo: atualizando-o psiquicamente por meio da manifestação de seus símbolos e engrandecendo a personalidade pela assimilação de alguns dos elementos dispersos do inconsciente coletivo ou nos deixando subjugar inconscientemente pela sua força.

A psique coletiva compreende as partes inferiores das funções psíquicas, por conseguinte, como explica Carl Gustav Jung, o indivíduo que incorporar inconscientemente a psique coletiva preexistente ao seu próprio patrimônio ontogenético estenderá de modo ilegítimo os limites de sua personalidade, inflando-a, intensificando a importância do ego e levando o indivíduo a uma patológica vontade de poder.

O desenvolvimento da personalidade exige sua diferenciação da psique coletiva a fim de evitar uma nefasta fusão do individual no coletivo e o cultivo espiritual dessa personalidade pelo processo de autoconhecimento é condição para que indivíduos não sucumbam às suas próprias sombras e, sucumbindo, abram as portas para a sombra coletiva.

O nazismo só foi possível porque um enorme número de indivíduos espiritualmente embotados, psiquicamente fragilizados tornaram possível aquela terrível psicose em massa.

Islamismo, identitarismo e o tribalismo anti-universalista

Infelizmente vivemos hoje algo parecido. O massacre perpetrado contra judeus em território israelense em 7 de outubro de 2023 deu uma amostra do que o ódio bestial como sombra projetada pela psique coletiva do Islamismo é capaz de fazer e o suporte que parte do Ocidente deu aos perpetradores daquele massacre deu uma amostra do tipo de violência que a adoecida psique ocidental é capaz de justificar.

Apesar de ser uma religião mais nova que o judaísmo e o cristianismo, o islamismo se expressa como uma religião primitiva, tribal, fechada. Suas práticas, seus cultos, mas principalmente sua moral é incompatível com uma sociedade aberta e em constante evolução. Por isso mesmo encontram nela guarida milhões de almas entorpecidas e ainda imaturas, incapazes de assumir as altas responsabilidades que cabem a um indivíduo autônomo e consciente de si.

Do lado ocidental, o primitivismo aflora na política como sentimento de apego a grupos identitários. Como explica Antônio Risério no seu livro “Identitarismo”, a esquerda atirou longe o marxismo para se associar “tanto ao totalitarismo terceiro-mundista quanto ao obscurantismo religioso dos aiatolás da morte, ao antissemitismo e ao neorracismo”.

Após o vazio ideológico gerado pela crise do comunismo, a nova esquerda “elege o muçulmano ou o negro como arquétipo do “oprimido” e sucedâneo do “proletariado”: “A ditadura iraniana pode prender e matar mulheres, o fanatismo muçulmano pode incendiar homossexuais vivos na Nigéria, os ex-comunistas chineses podem promover campanhas genocidas contra os uigures. E tudo bem: não existe pecado fora dos limites geográficos tradicionais do Ocidente. […] O identitarismo, em seu tribalismo antiuniversalista, conduz-se como se não tivesse absolutamente nada a ver com isso”.

Ocidente e democracias liberais

A cultura ocidental não é superior em um sentido absoluto, pois cada povo e cada civilização tem sua contribuição a dar à humanidade. Mas há de se reconhecer que, do ponto de vista político, mais vale uma sociedade regida pelo direito e pelo respeito à liberdade individual do que sociedades regidas pela sharia ou pelo despotismo oriental.

A superioridade política do Ocidente está na liberdade dada ao indivíduo sob parâmetros éticos universais. Não se chegou a isso de uma hora para outra. Sua conquista, tanto no sentido das lutas concretas, quando dos esforços intelecto-morais para concebê-la, confunde-se com o próprio desenvolvimento civilizatório.

É um pouco nesse sentido que penso deva ser lido o clássico de Francis Fukuyama, “O fim da história”, ou seja, não no sentido de um fim concreto da história ou da perenidade de uma forma muito específica de regime político, mas como a intuição de que o impulso moral que está na base das democracias liberais não pode ser eliminado porque há algo de essencial nessa concepção política ocidental que é a democracia.

Paradoxalmente, sua essência é sua própria incompletude ou abertura, como explica o filósofo francês Henri Bergson, para quem o ideal democrático é originalmente religioso, é o eco político do apelo à fraternidade lançado pelo cristianismo. O apelo é definitivo, a resposta a ele depende da humanidade.

Homem primitivo e sociedade fechada

A democracia é, segundo Bergson, de todas as concepções políticas, a mais distante da natureza, a única que transcende, ao menos em intenção, as condições da sociedade fechada. Atribuindo ao homem direitos invioláveis, ela pede também ao homem uma fidelidade inalterável ao dever, uma capacidade de ser livre e autônomo, legislador e sujeito, um cidadão ideal, tal como queria Immanuel Kant.

Mas o homem, infelizmente, está mais perto da natureza do que do seu ideal. E o recrudescimento para o primitivismo das sociedades fechadas é uma ameaça constante que não pode ser menosprezada.

A sociedade fechada é aquele onde seus membros são indiferentes ao resto dos homens, estão sempre prontos a atacar ou a se defender, restritos a uma atitude de combate. Para ela, faz-se necessário um chefe que estabeleça, de um lado, o comando absoluto e, de outro, a absoluta obediência.

Autoridade, hierarquia e fixidez são as marcas de uma sociedade primitiva, que se reproduzem em sociedades não-democrática de qualquer época. A sedução que uma tal estrutura social ainda provoca em muitos é uma prova de que, por trás do verniz civilizatório, o instinto primitivo ainda pulsa em nós. Há “um instinto profundo de guerra que recobre a civilização”, explica Bergson.

A força do indivíduo

Estamos, então, condenados à fatalidade da guerra, ao retorno ao primitivismo das sociedades fechadas? Não, se aprendermos a lidar com as disposições da espécie que subsistem no fundo de cada um de nós.

Talvez devêssemos levar a sério a máxima da psicologia analítica segundo a qual algo interno que não se torna consciente acontece no mundo externo como uma sina. Somos nós que fazemos a nossa própria época. “Todo o futuro, toda história do mundo, brota fundamentalmente como uma gigantesca somatória das forças escondidas nos indivíduos”, escreveu Carl Gustav Jung

Deveríamos, pois, exigir de nós mesmos e dos políticos, maior consciência psicológica em vez de projetarmos coletivamente nosso primitivismo.

O avanço tecnológico não nos salvará, se não nos salvarmos de nós mesmos. “A humanidade geme, meio esmagada sob o peso do progresso que realizou”, escreveu Bergson no último parágrafo de seu último livro. “Ela não sabe o suficiente que seu futuro depende dela…”.

Foto: Igo Estrela/Metrópoles.

Anistia sim; para Bolsonaro e para a “rataria”, não

Felipe Moura Brasil publicou, em O Antagonista, texto extenso e criterioso detalhando palavras e ações não republicanas de Jair Bolsonaro e seu entorno, elencadas desde julho de 2022 até o recente indiciamento pela Polícia Federal do ex-presidente e mais 36 envolvidos como suspeitos em uma tentativa de golpe de Estado.

O título do artigo – “Como Bolsonaro alimentou a ´Rataria´”– já indica ao leitor o nível rebaixado no qual os planejamentos do assalto ao poder transcorreram. “Rataria”, no caso, foi palavra usada por um dos participantes do plano para designar os aliados mais aloprados do então ainda presidente Bolsonaro: aqueles que estariam dispostos a agir fora do limite de inibições éticas.

Há quem continue negando os fatos ou minimizando sua gravidade. Se o caro leitor é um desses, sugiro consultar as quase 900 páginas do inquérito da PF que resultou no indiciamento ou ir direito à cronologia dos fatos resumida no artigo supracitado. Limito-me aqui a comentar o tema da Anistia aos condenados do 8 de janeiro.

PL da Anistia

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 5064/2023 que concede anistia aos acusados e condenados pela invasão das sedes dos três poderes da República em 8 de janeiro de 2023.

Esse PL tinha boas chances de ser aprovado até quando sobrevieram, seguidamente, a tragédia do bolsonarista suicida que atacou o Supremo Tribunal Federal e o inquérito em tela. Agora, sua aprovação tornou-se improvável; e muitos já dão a antes possível Anistia como morta e enterrada.

Mas a anistia me parece justa, desde que haja o cuidado de afastar o claro objetivo de anistiar os condenados pela sublevação de 8 de janeiro do insinuado propósito de fazer subir nesse PL um “jabuti” para recuperar a elegibilidade de Bolsonaro e/ou salvá-lo antecipadamente de possíveis futuras condenações em face dos vários inquéritos policiais de que é objeto; medida que poderia se estender aos 36 outros envolvidos no inquérito do momento.

A inelegibilidade de Jair Bolsonaro deve ser considerada à parte. O ex-presidente foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral por ter – quando no cargo de Presidente da República – reunido embaixadores para desabonar a Justiça Eleitoral brasileira contando mentiras (pelo menos, ele jamais juntou às graves acusações que fez nenhum fiapo de prova). Portanto, esses fatos não estão vinculados aos episódios de 8 de janeiro e não tem cabimento apelar para que sejam tratados no PL da Anistia.

Os condenados do 8 de janeiro de 2023 e a rataria

Embora haja vínculos entre a invasão dos três poderes em 8 de janeiro de 2023 e o suposto planejamento de golpe de Estado transcorrido entre novembro e dezembro de 2022, eles não são a mesma coisa; e mais: condenação é uma coisa e inquérito é outra.

Quem é condenado está cumprindo pena ou foragido. Quem é alvo de inquérito – salvo decretação de prisão preventiva – permanece em liberdade com largo tempo pela frente para poder se defender. A defesa de Bolsonaro e dos outros 36 envolvidos tem a oportunidade de tentar provar que são inocentes sem necessidade de pleitear qualquer anistia.

Em relação aos “peixes pequenos” já condenados pela baderna de 8 de janeiro há uma flagrante injustiça na forma de exorbitância das penas: condenações de até 17 anos de reclusão para pessoas que vandalizaram os ambientes dos poderes, quebraram vidraças, surrupiaram lá uns objetos, sentaram nas cadeiras de autoridades, escreveram desaforos em estátuas com batons…

Sem dúvida, são ações reprováveis e merecedoras de punição; jamais, porém, num exagero de dosimetria de pena que revela mais o desejo de vindita do que o cumprimento sensato e equilibrado daquilo que a Lei e a Justiça ordenam.

Qual seria a dosimetria justa nesses casos? Não sei, mas o bom senso diz que os condenados já pagaram o suficiente; daí a urgência da viabilização do PL da anistia.

A injustiça contra os condenados do 8 de janeiro tornou-se ainda mais patente com as revelações do inquérito da “rataria”.

Os referidos condenados – na maior parte gente humilde e anônima – foram instrumentalizados: usados como massa de manobra por gente poderosa que segue livre. Se agora essa gente – ou parte dela – encontra-se num certo aperto por causa do inquérito da PF, que não busque escapar prejudicando aqueles que já foram tão prejudicados por suas inescrupulosas manipulações; que não tente a “rataria” pegar carona na anistia alheia.

Imagem: murathakanart/Shutterstock

Ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente

Há quem defenda que a terceira guerra mundial já começou. Há quem julgue que falar em terceira guerra mundial é exagero. O fato é que se desdobram diante dos nossos olhos sonolentos e incrédulos uma série de alianças e movimentações militares muito preocupantes. A sequência de lances da última semana não pode ser menosprezada:

Em resposta ao envio de tropas norte-coreanas para lutar pela Rússia na guerra de invasão contra a Ucrânia, o presidente cessante dos Estados Unidos, Joe Biden, liberou o uso de mísseis de longo alcance contra as regiões russas de fronteira. Ato contínuo, o tirano da Rússia, Vladimir Putin, revisou a doutrina nacional de defesa a fim de alargar as condições de uso do arsenal nuclear.

Na nova doutrina, o lançamento de mísseis de longo alcance contra a Rússia passou a ser motivo para uso de armas nucleares. Mísseis esses que logo foram disparados pela Ucrânia. Sergei Lavrov, o ministro das relações exteriores da Rússia declarou então – em solo brasileiro, pois aqui estava por ocasião da cúpula do G20 – que o ato era visto “como uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia” e que a Rússia responderia de maneira “apropriada”.

É verdade que Putin já levantou o espantalho nuclear dezenas de vezes, mas até para quem está acostumado com a retórica das trocas de ameaças bélicas, o momento é preocupante.

Poder de destruição e poder político

Recordo-me de um trabalho escolar de História que precisei fazer, em 1995, a fim de marcar os cinquenta anos do lançamento da bomba atômica sobre as cidades japoneses Hiroshima e Nagazaki. Aluna aplicada que eu era, fiz boa pesquisa; o que li e as imagens que vi foram impressionantes para os meus doze anos de idade. Quase consigo reviver a sensação de choque e angústia com que colei os recortes de uma edição especial sobre o tema em uma cartolina para a apresentação escolar.

Um clarão apocalíptico e milhares de vidas aniquiladas instantaneamente. A liberação de uma enorme concentração de energia e seus efeitos devastadores. A radioatividade como terrível subproduto da já pavorosa explosão. Se há um inconsciente coletivo, essa imagem provavelmente está lá, nas profundezas do nosso psiquismo, e os acontecimentos atuais são de modo a favorecer a sua eclosão em estranhos pesadelos.

Putin está, mais uma vez, blefando? Tal questão nos desperta para a enorme responsabilidade ética que pesa sobre a política atual.

Em fragmentos de textos nos quais disserta sobre a definição de Política, a pensadora Hannah Arendt explica que a pergunta sobre se a política ainda tem algum sentido é “forçosamente formulada em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição cujo monopólio os Estados detêm.” É no mínimo instável uma situação na qual “a continuidade da existência da humanidade e talvez de toda a vida orgânica da terra” depende da política; e de políticos que costumam blefar.

Questionada, em entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel, sobre a probabilidade real de uma guerra nuclear, além de toda a retórica, Sharon K. Weiner, uma professora de Relações Internacionais da Universidade de Princeton e especialista em estratégia de armas nucleares respondeu: “O que me incomoda é que, a despeito do fato de que morreríamos numa guerra nuclear, ambos não temos voz na questão de saber se as armas nucleares serão ou não utilizadas.”

Alguns trechos dessa interessante entrevista, publicada em abril deste ano, me chamaram atenção. Segundo a professora, “não existe nenhum acordo secreto para impedir o uso de armas nucleares antes que o mundo seja destruído”. Ninguém sabe bem o que acontecerá se a Rússia realmente usar armas nucleares contra a Ucrânia porque não há diretrizes de como evitar uma escalada. A única estratégica com a qual se trabalha é a lógica de que “a outra parte poderá, em algum momento, sentir-se compelida a desescalar – simplesmente para salvar o mundo.”

A hipótese de que não haverá uma guerra nuclear sustenta-se, portanto, em uma crença na racionalidade dos políticos que têm poder de decisão sobre o uso de tais armas. Ninguém usaria armas nucleares porque o mundo poderia acabar. “Ninguém é doido de começar uma coisa dessas”, ouço por aí. Não me parece que este seja um argumento decisivo e tranquilizador. Há, pois, alguma probabilidade de que o atual conflito se desenvolva da pior forma possível.

Caça aos judeus, ignorância coletiva e justificação do mal

Os pais de Anne Frank mudaram-se de Frankfurt para Amsterdã para fugir do ódio antissemita que tomava conta da Alemanha. A menina judia aprendeu a nova língua, fez novos amigos, frequentou a escola e levou uma vida relativamente tranquila até que, em 1940, os nazistas invadiram a Holanda.

Durante os dois anos em que permaneceu escondida no anexo secreto da empresa de seu pai, a menina registrou suas impressões em um diário que ganhou ao completar treze anos. Sua história, sabemos, não teve um final feliz. O diário de Anne Frank chegou até nós, mas a menina judia morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen, em 1945, aos quinze anos de idade.

Após a segunda guerra, o diário tornou-se conhecido em todo o mundo, sendo difundido principalmente em escolas, para adolescentes da idade dela, com o objetivo de conscientizar as novas gerações acerca do horror do holocausto.

Organizações e instituições de combate à violência, à intolerância e ao antissemitismo foram criadas sob a inspiração do seu nome. Memoriais se espalharam e monumentos foram construídos.

Um monumento é um símbolo, um signo. Uma sociedade que ergue um monumento em memória de uma vítima do holocausto está expressando seus valores, está dizendo que honra as vítimas, que não nega a história e que vigia contra o retorno ao passado sombrio. Em 2024, porém, a estátua de Anne Frank, em Amsterdã, foi duas vezes vandalizada.

Militantes “pró-Palestina” escreveram nela com tinta vermelha o slogan “Free Gaza”. Que tipo de valores subjacentes se fazem expressar por tal ato, também ele simbólico? Que tipo de modelo social defendem aqueles que clamam pela destruição de Israel, veem no Hamas uma legítima forma de resistência, honram a memória de terroristas e desonram a memória de uma menina judia morta em um campo de concentração nazista?

Revisionismo histórico e ódio ao Ocidente

Há uma ideia difusa na sociedade que precisa ser contida. Não por meio da força, apenas, porque a força é insuficiente para deter a propagação de ideias más.

É preciso refletir sobre o ponto principal de toda essa inversão de valores que fez com que o próprio holocausto fosse deturpado, passando a ser apresentado como um dentre tantos outros ataques contra minorias, quando se tratou fundamentalmente de uma tentativa de apagar a história judaica da face da terra, apagando o seu povo por meio do extermínio.

É o sentido histórico que o povo judeu carrega que está sendo combatido, pois o revisionismo requer que o historiador conceba os fatos não como o desenrolar no mundo de uma ideia divina, de uma revelação ou de um projeto pedagógico de emancipação espiritual, mas como uma luta sem trégua entre opressores e oprimidos, cuja redenção dependerá de uma solução política e não do triunfo do homem sobre si mesmo em busca de um reino que não é desse mundo.

O que se confronta e o que se tenta eliminar desde sempre não é apenas o povo judeu, mas aquilo que a sua história guarda, um sentido transcendente e sagrado, indispensável para a compreensão dos valores éticos e morais que nos moldaram e que, felizmente, ainda nos moldam.

Somos uma civilização socrático-platônico-judaico-cristã, como bem percebeu Nietzsche, que a confrontou com muito mais genialidade e elegância do que o fazem hoje esses jovens incultos e furiosos que vão às ruas com seus keffyehs cantando “From the River to the Sea, Palestine will be free” e erguendo cartazes “globalize the intifada.”

Sabe-se que os nazistas estabeleceram relações especiais com a irmandade muçulmana; hoje, porém, quem mantém esses laços estreitos são as entidades políticas de esquerda, fenômeno que tem sido chamado de islamoesquerdismo, espectro ideológico que responde pela quase totalidade dos ataques antissemitas dos dias atuais.

A aliança entre o fundamentalismo islâmico e a extrema esquerda é compreensível porque tem por base o ódio ao Ocidente e aos seus valores universais, cuja recusa abre caminho para a justificação da violência mais bestial.

Por outro lado, trata-se de uma aliança estúpida porque, cedo ou tarde, os aliados ocidentais serão submetidos à mesma violência que hoje justificam contra o suposto inimigo comum.

Pogrom em Amsterdã e culpabilização da vítima

Mas o que me motivou a começar esse texto citando Anne Frank foi o não tão inesperado Pogrom que ocorreu em Amsterdã, em 7 de novembro de 2024.

“Nós falhamos com a comunidade judaica dos países baixos durante a segunda guerra mundial e ontem falhamos novamente”, declarou Willem-Alexander, rei dos países baixos, um dia depois do ocorrido.

O que ocorreu nessa noite na mesma terra em que viveu a icônica menina judia? Multidões de migrantes muçulmanos do norte da África e do Oriente Médio que vivem na Holanda, junto com seus aliados progressistas “Pró-Palestina”, começaram uma caçada contra judeus israelenses, que estavam na capital holandesa para assistir a uma partida de futebol do time Maccabi Tel Aviv.

Torcedores foram emboscados, jogados em rios, atropelados por carros, espancados até ficarem inconscientes.

Como no dia 7 de outubro de 2023, muitos agressores filmaram o próprio ato, vangloriando-se da barbárie. Em um dos vídeos que vi, um jovem caído no chão levava vários chutes enquanto tentava se afastar rastejando e dizendo “eu não sou judeu”. Em outro vídeo, os agressores exigiam do agredido que dissesse “Palestina livre!”, em outro vídeo, ouve-se alguém do grupo agressor gritar “hoje vamos caçar judeus.”

Mesmo com todos esses vídeos, houve jornais que noticiaram o ocorrido como sendo uma simples confusão, mais uma briga de torcida. Houve quem se apressasse em dizer que alguns torcedores do Maccabi entoaram cânticos racistas e rasgaram uma bandeira da Palestina, logo…os judeus mereceram a violência de que foram vítimas.

A retórica ofensiva e inflamada contra o Estado de Israel, essa distorção da realidade que estamos acompanhando há décadas, essa perda progressiva de contato dos jovens com seus valores em instituições de ensino rendidas à hegemonia de um pensamento que transgride e destrói para nada de bom construir, toda essa repulsiva justificação da violência por motivações político-ideológicas já foi longe demais. É preciso dar uma basta nessa ignorância coletiva que facilmente se torna ódio coletivo e violência coletiva.

Pensamento crítico não é o pensamento do revoltado ou do revolucionário infantilizado e dementado por ideologias ruins. Pensamento crítico é aquele que vê as nuances de uma situação e que a julga com o repertório moral que lhe é próprio.

É preciso, pois, um repertório moral. É preciso saber distinguir o certo do errado, o moral do imoral e encarar com seriedade e honestidade os inúmeros dilemas éticos que se apresentam em tão conturbados dias.

Não há, porém, dilema ético algum entre condenar ou justificar o massacre contra civis israelenses em 7 de outubro de 2023; não há dilema ético nenhum entre condenar ou justificar o ataque contra torcedores israelenses em 7 de novembro de 2024. O que há é uma degradação moral do ser humano que os justifica.

Arquivo/Estadão Conteúdo - 20/10/2020

Crônica do fracasso anunciado da esquerda

A esquerda brasileira foi vastamente derrotada nas eleições municipais de 6 de outubro de 2024. Essa derrota já era esperada, pois vinha sendo construída abertamente pelo presidente da República e seu partido. Lula, autocrata do PT, domina de cabo a rabo a esquerda brasileira; podendo-se dizer que o rabo é constituído por minúsculos partidos de extrema-esquerda que acham ainda insuficiente o apoio de Lula ao ditador da Venezuela, muito discreta sua afeição ao tirano russo invasor da Ucrânia e tímida sua agressividade contra Israel.

O referido fracasso político-eleitoral no âmbito municipal indica para breve um novo e mais grave fracasso: Lula provavelmente não será reeleito e a tendência é que uma aliança democrática mais à direita eleja um novo presidente da República em 2026.

Não que a esquerda vá morrer – o que não seria nada saudável para uma democracia – mas a torcida da esquerda democrática deve ser para que a esquerda lulopetista se afogue no charco da sua própria irrelevância.

Antes de seguir na exposição da construção do fracasso anunciado da esquerda brasileira, convém uma rápida exposição – como que um gancho – da história da esquerda e do fracasso histórico do marxismo.

A promessa do paraíso e o inferno do poder

A Revolução Francesa de 1789 inaugurou duas amplas correntes políticas que, em recorrentes enfrentamentos mais ou menos agudos, passaram a dominar o cenário político internacional: “la gauche” (esquerda) e “la droite” (direita).

A esquerda é, portanto, anterior e bem mais ampla que o marxismo. Todavia, vendendo-se como ciência em uma época galvanizada pelo cientificismo, o marxismo avassalou a esquerda mundial desde o início do século 20 e, com a Revolução de 1917, na Rússia, avançou internacionalmente por meio de expansão imperialista da sua feição leninista-stalinista lá implantada ou por replicadas revoluções.

Em todo esse avanço, que chegou a dominar metade do mundo, o marxismo se sustentou na promessa de construção do paraíso na terra; tendo embora o cuidado de afirmar a necessidade de uma fase transitória infernal chamada de ditadura do proletariado. Tal ditadura – que nunca foi do proletariado, mas do partido marxista ocasionalmente no poder –, não conseguindo construir o prometido paraíso proletário, tratou de garantir o paraíso de poder dos dirigentes.

Autoritário desde sua elaboração teórica e desde suas primeiras ações na Liga Comunista e na Primeira Internacional Comunista – como denunciado pelo anarquista Bakunin, colega de Marx na Primeira Internacional –, o marxismo, quando vitorioso, quando colocado em prática, degenerou até a perversidade tirânica do leninismo-stalinismo.

A social democracia

Deve-se, no entanto, registrar que marxistas destacados repudiaram tais práticas autoritárias; como foi o caso do alemão Eduard Bernstein, que fez a primeira revisão do marxismo, e de Rosa Luxemburgo, que desde o início da implantação do regime leninista na Rússia o denunciou como sendo não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado.

Cabe também registrar que a Segunda Internacional (Internacional Socialista) – de origem marxista, que teve Engels entre seus fundadores – abandonou, a partir da revisão de Bernstein tanto o autoritarismo da fase de transição quanto a promessa do fim paradisíaco, deixando de lado o fanatismo revolucionário para defender os interesses dos trabalhadores no âmbito da democracia e do reformismo.

O fim é nada, o caminho é tudo”; essa frase, encontrada na obra de Monteiro Lobato, resume bem o ideário da esquerda reformista social-democrata. Creio que deva ser sempre relembrada, especialmente pelos inescrupulosos maquiavélicos que dizem que o fim justifica os meios.

Protesto contra o antissemitismo na Bélgica — Foto: AFP

Marxismo, identitarismo, decolonialismo e o novo antissemitismo

Por esses dias escrevi alguns parágrafos para a orelha do livro do professor Rodrigo Jungmann, que será publicado em breve. No seu ensaio, intitulado “Deturparam Marx?” Jungmann declara que o texto nasce de um “assombro com a popularidade do comunismo entre professores, estudantes, formadores de opinião brasileiros, a despeito de toda a inegável crueldade inerente a esse sistema”. 

Comento, então, que, de fato, esse cenário é preocupante, tanto mais que a justificação da violência revolucionária presente na teoria marxista transmutou-se, dando as caras hoje, por exemplo, como legitimação do terror islâmico num cenário em que palestinos são colocados no papel dos oprimidos da nova era, sendo os muçulmanos, por conseguinte, interpretados e apoiados como novos sujeitos revolucionários para os quais toda “resistência” é legítima.

Tenho refletido e escrito sobre isso desde o dia 7 de outubro de 2023, quando um ataque bestial, grotesco, horrendo, cruel e covarde perpetrado pelo grupo terrorista palestino Hamas contra israelenses/judeus foi festejado pela extrema esquerda como um ato de resistência. Parece-me não ser possível compreender tão odiosa atitude sem ter em mente essa chave de interpretação: os muçulmanos substituíram o proletário do papel de oprimidos. Para que se tenha uma dimensão do que isso significa convém considerar algumas nuances da teoria marxista. Para isso me valho do ensaio acima referido que prefaciei.

Depois de demonstrar, em livro anterior (“Marx e Engels: o que não te contaram”), a existência, na obra de Marx e Engels, de racismo, antissemitismo e homofobia, Jungmann expõe, em “Deturparam Marx”, trechos nos quais ambos defendem a violência extremada e o terror a serviço da causa revolucionária. Os males do comunismo, explica, não contradizem os ditames teóricos do marxismo, mas são sua consequência natural. Isso pode parecer lugar-comum para quem é anticomunista desde criancinha, mas é importante atentar para explicação da justificação da violência extremada e do terror.

Com seu materialismo histórico dialético, Marx julga ter solucionado o enigma da história. Na sua interpretação dogmática, a história é movida incessantemente por uma luta de classes entre opressores e oprimidos. Há, em sua visão de mundo, uma teleologia imanente, incompatível, por óbvio, com a escatologia cristã, perpassada por uma teleologia transcendente. Dito de outra forma, a teoria de Marx é uma religião política que prega a inevitabilidade do paraíso na terra, sob a forma da consumação do comunismo, após, claro, a superação do estágio nada agradável da ditadura do proletariado.

O marxismo, explica Jungmann, “não se apresenta como um conjunto de hipóteses, mas antes como ciência consumada das condições propícias ao advento desse futuro radioso.” Essa pretensão à infalibilidade tem como corolário a intolerância política, afinal, como você acha que se comporta alguém que se julga detentor de uma verdade redentora, acredita que a moral é apenas uma superestrutura ideológica e vê na religião apenas o ópio do povo?

Identitarismo e decolonialismo

Essa mentalidade dogmática, intolerante, revolucionária, fanática ficou um tanto adormecida depois do fim da União Soviética, da queda do muro de Berlim e da constatação factual de que o socialismo só trouxe desgraça à humanidade. À semelhança, porém, de um germe nefasto que permanece latente esperando ocasião de se manifestar, o vírus totalitário encontrou na política identitária da nova esquerda o ambiente adequado para se proliferar.

É para isso que aponta um artigo do escritor português, João Pereira Coutinho, publicado na Folha de S.Paulo, em 7 de outubro de 2024. O artigo trata da “alegria macabra” que sucedeu o pogrom do Hamas contra os judeus um ano atrás. Ele recorda, então, outro atentado terrorista islâmico, o de 11 de setembro de 2001:

Eu ainda me lembro dos dias seguintes aos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001. Das expressões de júbilo que, aqui e ali, aplaudiam Osama bin Laden. Mas eram vozes raras. Não havia multidões nas ruas de Londres, Paris ou Berlim com cartazes do gênero ´I love Al Qaeda´ ou ´Do Atlântico ao Pacífico, a América será livre´.

O que mudou em duas décadas? O que fez com que o vírus do antissemitismo, aparentemente cristalizado, se disseminasse a ponto de termos visto universidades no mundo todo ocupadas por jovens ocidentais dementados, portando orgulhosamente seus keffiyehs, berrando cânticos que pedem a aniquilação de Israel e hostilizando estudantes judeus?

Ecoando a análise do jornalista britânico Brendan O’Neill, Coutinho escreve: “Quando o 11 de Setembro aconteceu, os festejos foram modestos porque não havia ainda um roteiro que os enquadrasse na luta anti-imperialista. Faltava, digamos assim, repertório. Para O’Neill, o roteiro surgiu com a radicalização das ´políticas de identidade´ que se espalharam nos 20 anos seguintes e que começaram a atribuir valor moral a certos grupos de acordo com a cor da pele, o pretenso privilégio e o lugar que ocupam na hierarquia racial”.

Essa radicalização das políticas de identidade, por sua vez, deu-se concomitantemente ao desenvolvimento e grande difusão de outra ideologia radical: o decolonialismo, que nada mais faz do que atualizar a velha dicotomia marxista que lê o mundo pela estreita fórmula de opressores e oprimidos.

No ciclo vicioso da eterna doutrinação, os jovens da atual geração são o produto de uma educação que se esmerou em demonizar o Ocidente, reduzindo a história da civilização ocidental a processos de violência colonizadora por meio da escravização dos povos africanos, do genocídio dos povos indígena ou da subjugação de povos árabes, sempre em favor do privilégio europeu e posteriormente dos interesses norte-americanos.

As revisões do marxismo que firmaram as bases da nova esquerda aposentaram o proletariado como sujeito revolucionário. Foucault, por exemplo, ensinou aos novos esquerdistas que há uma microfísica do poder, que as relações de poder estão por toda parte, invisíveis. No nosso mundo pós-moderno, pós-estruturalista, pós-colonial e pós-verdade não há, pois, sujeito revolucionário, mas discursos revolucionários que criam o tempo todo novos sujeitos.

O novo sujeito revolucionário pode ser qualquer minoria, desde que se ache oprimida por poderes invisíveis, se ache vítima de uma dívida história pela qual exige ser ressarcida ou se sinta ofendida pela sociedade “heteronormativa”, “patriarcal” que não presta culto (ainda) às suas idiossincrasias sexuais.

De modo algum são os pobres de espírito enaltecidos pelo Cristo, nem os desvalidos que o poder dos homens curvou mas que a fé na eternidade enobreceu; são, ao contrário, os que deserdaram da fé cristã para crer somente na violência redentora da política.

Desumanização dos judeus e islamoesquerdismo

O ressentimento está disperso e a falta de uma estrutura de poder visível e palpável contra a qual se insurgir torna indispensável que se eleja um inimigo comum, capaz de homogenizar a vozes estentóricas e revoltadas que bradam contra tudo e contra todos.

O Ocidente, vimos, já havia sido condenado. Mas o que é o Ocidente? Uma tradição moral, jurídica e religiosa; um epopeia espiritual ainda em curso cujas raízes se assentam na fé no Deus de Israel, na razão filosófica dos gregos e no pensamento jurídico de Roma, como belamente explicou o papa Bento XVI em discurso já citado por mim em artigo anterior.

O marxismo, vimos, é uma cosmovisão teleológica materialista incompatível com a teleologia judaico-cristã. Que povo da terra é um testemunho vivo da ação de Deus no mundo senão o povo hebreu, o povo de Israel, os judeus? A resistência, a persistência, a sobrevivência e a existência dos Judeus em Israel é quase a materialidade de uma finalidade que não é desse mundo mas que se mostra no mundo.

Toda política de viés totalitário precisa eleger um inimigo. Por que não os judeus mais uma vez? Basta adaptar um pouco o discurso. Não mais um ódio de raça, por que, afinal, somos antirracistas. Que tal um ódio ao povo disfarçado de ódio ao lar desse povo? Mas como transformar as vítimas do holocausto em carrascos?! Dá-se um jeito. Nada que décadas de revisionismo histórico não resolva.

Por meio das narrativas mais disparatadas, eivadas de contradições, preconceitos, ignorância soberba e má-fé, a intelligentsia esquerdista conseguiu, em algumas décadas, transformar os judeus em brancos privilegiados colonizadores opressores genocidas nazistas. É o que denuncia Frank Furedi no artigo “A desumanização woke dos judeus”:

Do ponto de vista da política de identidade, há pouco espaço para empatia em relação à situação do judeu supostamente hiperbranco. Como supostos possuidores de tanto poder e privilégio, o povo judeu não tem direito ao status de vítima, mesmo quando é brutalizado à vista do mundo. Os pecados cometidos pelo Hamas em 7 de outubro são muito fáceis de lavar quando suas vítimas não são mais consideradas totalmente humanas.

A desumanização dos judeus possibilitada pela retórica identitária casou bem com o antissemitismo islâmico. A autoaversão ocidental à sua própria história após décadas de lavagem cerebral marxista, neomarxista e congêneres possibilitou essa estranha aliança chamada islamoesquerdismo.

Essa aliança, porém, tem os dias contados. No instante em que as forças ocidentais tombarem e os véus e as burkas que cobrem as pobres mulheres no Islã precisarem cobrir as estranhas mulheres trans ocidentais, esta já não será apenas a veste obrigatória, mas a própria mortalha dos incautos que padecerão sob a espada de Allah, após renegarem o Deus justo de Israel e o Cristo compassivo, que sustenta a moral e a liberdade que ainda reina no Ocidente.

O possível crime de antissemitismo do governo Lula

Por critério puramente ideológico, o governo brasileiro vetou uma licitação vencida com toda legitimidade por Israel. A denúncia foi feita pelo próprio ministro da Defesa do governo Lula que declarou, nesta terça-feira 9 de outubro: “Houve agora uma concorrência, uma licitação… Venceram os judeus, o povo de Israel, mas, por questão da guerra, do Hamas, os grupos políticos… Nós estamos com essa licitação pronta, mas, por questões ideológicas, nós não podemos aprovar”.

O ministro José Múcio não entrou em detalhes, mas se trata da compra de canhões que ficam acima de caminhões blindados e que as Forças Armadas do Brasil consideram de grande importância; daí o desabafo/denúncia do ministro da Defesa.

Outro detalhe que o ministro deixou de lado – ou não nomeou incisivamente – foi o aspecto possivelmente criminoso do veto; imposto, aparentemente, por motivo de ódio ideológico antissemita: no Brasil, de acordo com a Constituição de 1988, antissemitismo se inclui nos crimes de racismo.

A fala do ministro José Múcio é grave; precisa ser investigada na via judicial e levada em conta pelo Parlamento. Neste âmbito, já se adiantou o deputado Kim Kataguire, que pretende convocar o ministro da Defesa para dar explicações na Comissão de Fiscalização da Câmara.

A denúncia do veto a Israel foi a mais grave, mas não foi a única. Uma outra, talvez não criminosa, mas também prejudicial aos interesses brasileiro, refere-se ao veto a uma venda de munições de tanque para a Alemanha em 2023: “Temos uma munição no Exército que não usamos. Fizemos um grande negócio. Não faz, porque senão o alemão vai mandar pra Ucrânia e a Ucrânia vai usar contra a Rússia e a Rússia vai mexer nos nossos acordos de fertilizantes”, disse o ministro José Múcio.

A referida iniciativa do deputado Kim Kataguire de convocar o ministro de Lula para esclarecimentos foi seguida de outra semelhante pelo deputado Alfredo Gaspar, que nesta quarta-feira, 9, apresentou convite para ouvir José Múcio não só quanto à denúncia sobre o veto à licitação vencida por Israel, mas também sobre a venda de munições para a Alemanha.

Os nobres deputados, todavia, devem ter em mente que outro personagem – mais que ninguém envolvido nestes assuntos – deve ser convidado ou convocado para dar explicações: Celso Amorim, conselheiro do presidente Lula e ministro paralelo do Exterior. Foi Amorim quem orientou Lula quanto ao veto à licitação vencida por Israel, e tem longamente orientado Lula na amistosa relação entre o presidente brasileiro e o tirano imperialista invasor da Ucrânia.

Antiocidentalismo, antissemitismo e estupidez

O mundo está em guerra. A bem da verdade, nunca esteve em paz. Mas o leitor sabe do que estou falando. Há duas guerras em curso que têm mobilizado a política externa das principais potências europeias e dos Estados Unidos. 

Embora o Brasil seja insignificante no que tange à continuação ou ao fim da guerra no Oriente Médio e na Ucrânia, a postura do presidente Lula em relação a esses dois conflitos deixou bastante claro o seu pendor liberticida, seu apreço pela tirania, sua admiração por regimes fortes, ditatoriais e cruéis, seja ele representado na forma de uma teocracia fundamentalista islâmica, como é o caso do Irã com seus tentáculos terroristas, seja representado na forma de um pan eslavismo expansionista reacionário, como é o caso da Rússia.

A corrosão ideológica do terceiro governo Lula traz deformidades antigas como o antiocidentalismo e o antiamericanismo, acrescido de componentes idiossincráticos do mandatário e, como novidade, uma forma sui generis de antissemitismo mal disfarçado, escorado em um antissionismo desvairado e estridente. Por este aspecto, considere-se, a nova extrema esquerda presta à extrema direita um relevante serviço, arrebatando-lhe a identificação com o repugnante preconceito antissemita, tradicionalmente vinculado à extrema-direita nazista.

O antiocidentalismo da nova esquerda é um balaio cheio contrassenso. Por exemplo, desde a Revolução Francesa – quando o termo “esquerda” ganhou sua conotação política – todas as correntes esquerdistas propugnaram pelo progresso. O marxismo, representação máxima da esquerda desde o início do século 20, apresenta sua linha evolutiva da humanidade com foco no progresso da civilização europeia, que os revolucionários deveriam estender para o mundo todo.

Eis que os ideólogos antiocidentalistas pretendem agora que o progresso da humanidade dependa da condução de países os mais atrasados do mundo, como o Irã. Essa estupidez, parida por intelectuais do Ocidente, pretende que a primeira condição para a felicidade universal seja a destruição de toda a construção civilizatória de origem ocidental.

Nesse momento em que o Ocidente é ameaçado pela Rússia e pelo fundamentalismo islâmico, Ucrânia e Israel atuam como escudos para o mundo livre. Lula e Celso Amorim, porém, tenho denunciado insistentemente, optaram pela diplomacia do mal, fazendo do Brasil o idiota útil de tais regimes tirânicos. São traidores da pátria, atuam contra o interesse da nossa nação e do nosso povo. Bem sei que as instituições no Brasil são bastante frágeis, mas, como cidadã, não posso ter outra atitude senão exortar o parlamento a agir.

Lula na ONU: desvio de caráter, covardia e diplomacia do mal

Os redatores do Itamaraty não tiveram dificuldade em elaborar o discurso exibido pelo presidente Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU. A gosto do freguês, redigiram o de praxe: discurso para momentos de grande solenidade, ideologicamente carregado, vazado numa linha de narrativa arrogante e seletiva. 

Diante, porém, do quadro inescapável da realidade, o contraste entre supostas intenções e gestos efetivos tornou-se patente e a fala empolada de Lula revelou-se como um tecido de enganações: um discurso cosmético, sem substância e incoerente.

O próprio Lula já declarou que uma narrativa bem construída supera todos os obstáculos. Disse isso como conselho ao seu amigo Nicolás Maduro, ditador da Venezuela. E no seu discurso maquiado da ONU, com efeito, ele realizou a façanha de fechar os olhos para a crise humanitária causada pela ditadura no país vizinho e arregalá-los para crises e guerras em locais muito distantes, como Oriente Médio e Ucrânia.

E a Venezuela, Lula?

Ocorre que precisamente a crise da vizinha Venezuela é a única em que as palavras de Lula e atitudes do governo brasileiro poderiam ter uma influência de monta. Assim, tão descabida omissão seletiva configura desvio de caráter e covardia diplomática.

Vale lembrar que a própria Missão Independente da ONU divulgou recentemente um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela entre setembro de 2023 e agosto de 2024. Segundo o documento, “o governo da Venezuela intensificou dramaticamente os esforços para esmagar toda oposição pacífica ao seu domínio, mergulhando a nação numa das mais agudas crises humanitárias na história recente.”

O relatório da ONU informa que, na primeira semana após as eleições, por exemplo, foram presas cerca de 2.000 pessoas, incluindo mais de 100 menores de idade e algumas pessoas com deficiências. Pelo menos 25 pessoas foram executadas, a maioria jovens pobres, incluindo dois menores.

Se a omissão sobre a Venezuela mostra a face de uma diplomacia inerte e covarde, os pitacos de Lula em relação às guerras no Oriente Médio e na Ucrânia mostram que a sua ignorância está a serviço do seu ativismo no que tenho chamado de diplomacia do mal.

A diplomacia do mal

Lula começou o seu discurso com uma saudação especial a Mahmmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina.Os semelhantes se atraem e se entendem. Assim como Lula, Abbas tem posicionamentos ambíguos e escorregadios em relação a questões fulcrais. Assim como Lula, ele costuma acender uma vela para Deus e outra para o diabo.

Abbas, que consegue matizar seu discurso e disfarçar suas reais intenções a ponto de estabelecer diálogo com autoridades europeias e americanas, tirou, por um momento, a máscara da moderação por ocasião do seu tributo em honra do terrorista Ismail Haniyeh. Em agosto, no Parlamento da Turquia, Abbas expressou o que realmente pensa: “A América é a praga e a praga é a América.” Antiocidentalismo e antiamericanismo são, como sabemos, a senha capaz de reunir esquerda radical e islã em uma perigosa aliança. 

Após cumprimentar o amigo duas caras, com quem se encontrou no dia seguinte, Lula tentou colar em si a máscara de pacifista, desfilando platitudes e lamentos acerca do crescimento dos gastos militares globais que poderiam ser usados para combater a fome e enfrentar a mudança do clima. Ele se queixou também de que “o uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando a regra.”

Oh sofista hipócrita! Por que, então, estás aliado a Putin, que violou o direito internacional com o uso da força ao invadir um país soberano, trazendo morte e desgraça a um povo já tão sofrido? Povo esse vitimado inclusive, no passado, pela grande perversidade do Holodomor, o genocídio de milhões de ucranianos, que morreram de fome, em razão da política econômica de Stalin, ditador cruel até hoje reverenciado pela extrema esquerda.

Tu mentes, Lula, quando afirmas que “o Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano”. Jamais houve condenação firme, apenas considerações ambíguas e levianas que equiparam o país invadido e o país invasor em um mesmo grau de responsabilidade pela guerra.

Além disso, segues tu e o líder da tua diplomacia do mal, Celso Amorim, com demonstrações de simpatia pelo tirano do Kremlin. E mesmo agora, a alegada firmeza contra a invasão se perde na omissão do nome do país invasor. 

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, faz bem em desmascarar reiteradamente o teu cinismo, acusando-te de fazer “teatro” e de ter intenções escusas com uma proposta de paz articulada com a China e o país invasor.

Disseste, ainda, presidente Lula, em teu discurso malandro, que “não podemos esperar por outra tragédia mundial, como a Segunda Grande Guerra, para só então construir sobre seus escombros uma nova governança global”. Deus nos livre de uma terceira guerra, mas Deus nos livre também de uma governança global sob os valores dos teus aliados ditadores e terroristas.

O evento político-militar que mais tem aproximado o mundo de uma Terceira Guerra é precisamente a invasão criminosa da Ucrânia pela Rússia: nada há de mais parecido com o início da Segunda Guerra, que se deu com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista. Não é algo bonito de se dizer, mas a verdade é que a Ucrânia só pode alcançar a paz com armas.

Da mesma forma, a verdade dura e obliterada no discurso de Lula, sempre crítico e condenatório em relação aos esforços de defesa de Israel, é que a paz no Oriente Médio depende da força bélica desse pequeno país. Certeira foi Golda Meir, ex-primeira-ministra de Israel, ao afirmar que “se os palestinos baixarem as armas, haverá paz. Se os israelenses baixarem as armas, não haverá mais Israel”.

Ladainha e meio ambiente

A ladainha de Lula na ONU prolongou-se enfadonha, abordando temas os mais díspares. Ele criticou “experiências ultraliberais”, posou de valentão contra “plataformas digitais”, defendeu “forte regulação da economia doméstica”, divagou em torno de uma “inteligência artificial emancipadora que também tenha a cara do Sul global”, achou tempo para tomar as dores da ditadura cubana e terceirizou o problema das queimadas do Brasil ao mesmo tempo em que afirmou que não os terceirizaria.

Lula cobrou do mundo rigor na proteção do meio ambiente, quando – em grande parte pela omissão, incompetência e irresponsabilidade do seu governo – o Brasil está sendo devastado por incêndios: com flora, fauna e inteiros biomas destruídos; com grande parte deste país continental coberto pela fumaça; com milhões de pessoas – especialmente idosos e crianças – sendo vítimas de males respiratórios.

Sobre tamanha catástrofe, situação desesperadora sem fim previsto, Lula falou de forma dispersa e evasiva, com frases de compreensão complicada, como essa: “O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania”. Qual foi, Lula, o país estrangeiro ou agente nacional traidor que, nessa emergência de incêndios, pediu ao governo brasileiro para “abdicar da sua soberania”?

O fato é que Lula fez muito pouco em relação às queimadas. Seu governo não está enfrentando o desafio da crise climática; por enquanto, está contornando o desafio. Muitos dos que lucram com a degradação ambiental submetem o governo com chantagens no Congresso Nacional. Variados ilícitos ambientais vêm prosperando em todas as regiões do país sem dar muita atenção à alegada intransigência governamental. O combate ao garimpo ilegal, forte no início do governo, arrefeceu. Quanto ao crime organizado, até mesmo por enfrentar um governo desorganizado, está ganhando a guerra.

Enfileirando platitudes, supostas boas intenções e enganações o discurso do presidente do Brasil na ONU foi longe, mas a repercussão internacional ficou aquém do pretendido. No Brasil, sempre há quem jogue confete, faça festa e coloque qualquer bobagem que Lula diz nas alturas. Fora da bolha ideológica da esquerda lulista e da mídia chapa branca, porém, viu-se apenas mais um discurso hipócrita facilmente desmascarado.

Lula não quer paz; quer a rendição da Ucrânia e do Ocidente

Vladimir Putin assinou, em agosto desse ano, um decreto que facilita a entrada na Rússia de estrangeiros que buscam fugir dos ideais liberais ocidentais. No texto do referido decreto, a Rússia é apresentada como um país onde “os valores tradicionais reinam supremos.” 

Quem quiser, portanto, renegar os valores do Ocidente em nome dos valores espirituais e morais tradicionais russos poderá solicitar ao Kremlin sua residência temporária fora da cota aprovada pelo governo russo e sem fornecer documentos que confirmem seu conhecimento da língua russa, história russa e leis básicas.

Parece uma proposta tentadora para quem tem uma inclinação conservadora, uma tendência reacionária e está incomodado com a depravação moral do “Ocidente satânico”? Não se esqueça, porém, que, para Putin, liberdades individuais e direitos humanos são apenas idiossincrasias ocidentais desprezíveis.

Os valores espirituais e morais tradicionais que Putin quer representar são o pan-eslavismo, o nacionalismo, a ortodoxia religiosa e a autocracia. Trata-se, obviamente, de ideologia avessa à democracia, construção ocidental por excelência. 

Não surpreende, portanto, que, tal como ocorreu na Segunda Guerra Mundial, o chamado mundo livre esteja se unindo, mais uma vez, para conter o delírio expansionista de um psicopata que resolveu invadir e anexar uma nação livre, democrática e soberana.

O fascismo de Putin

A analogia da Rússia sob Putin com a Alemanha sob Hitler não é totalmente despropositada. Uma analogia só é possível porque há diferenças; guardadas as devidas diferenças, salta aos olhos as semelhanças. Uma delas é que, assim como o líder alemão, o líder russo também usa uma justificativa étnica para seu objetivo de anexação da Ucrânia. 

Além disso, há a expectativa de estabelecer uma nova ordem antidemocrática, antiliberal com a clara proposta de substituir o que se considera a “decadência ocidental” por um regime baseado na força de um líder. A Rússia putinista é o regime atual que mais se aproxima dos regimes fascistas do século XX.

Dizer que a invasão da Ucrânia foi uma atitude defensiva de Putin face um suposto expansionismo da Otan é narrativa de professor de história de ensino médio para doutrinar adolescentes com seu ranço antiocidental. A guerra da Rússia é uma guerra expansionista e não vai parar na Ucrânia se a Ucrânia cair. A Ucrânia, portanto, precisa parar a Rússia e o Ocidente precisa apoiá-la na sua justa guerra de defesa.

Lula apoia Putin

O Brasil não tem nada a ver com isso. Não deveria se meter a não ser para fazer o que todo governo decente do mundo está fazendo: declarando apoio explícito à Ucrânia quando não tem poderes para apoiá-la efetivamente. Para infelicidade e vergonha dos brasileiros, porém, Lula insiste em fazer o contrário. 

A Secom nos informa que ele conversou com Putin por telefone, nessa quarta-feira, 18 de setembro. 

Sem força moral para confrontar a ditadura que oprime nossos irmãos na Venezuela, incapaz de exercer uma boa influência na circunscrição territorial em que essa influência é esperada, a América Latina, Lula se arroga arauto da paz mundial, apresentando-se, junto com a China, como mediador para um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia.

Uma importante jornalista brasileira refere-se, na sua coluna, a essa movimentação como se fosse uma iniciativa séria e promissora: “o governo agora trabalha com a China, em silêncio e comedidamente, na busca de algum acordo de cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia”, escreve ela, acrescentando as seguintes informações: “na semana passada, o chanceler russo Sergei Lavrov conversou com o brasileiro Mauro Vieira em Riad, na Arábia Saudita, e depois com o assessor internacional Celso Amorim, em Moscou. E Amorim já engatou contatos com seu correspondente chinês.”

O que a colunista não cita é o que o próprio presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, já escancarou a desfaçatez de Lula e da sua diplomacia do mal, rejeitando a proposta sino-brasileira como “destrutiva” e acusando-o de fazer “teatro”. 

Em declaração recente para o brasileiro Metrópole, Zelensky denunciou a astúcia do governo brasileiro ao se mancomunar com a Rússia e a China para uma “proposta de paz”:

“É apenas uma declaração política. Eu disse a Lula e ao lado chinês: ´vamos sentar juntos, vamos conversar´. […] Por que você de repente decidiu que deveria ficar do lado da Rússia? ´Ah, nós vamos fazer nossa proposta (de paz)´. Não nos perguntaram nada. E a Rússia aparece e diz que apoia a proposta do Brasil e China. Nós não somos tolos. Para que serve esse teatro?

Ou seja, falaram com a Rússia sobre uma iniciativa, apresentaram essa iniciativa e disseram: ´essa é nossa proposta´. Bem, definitivamente não se trata de justiça, não se trata de valores. É uma falta de respeito com a Ucrânia. Não somos tolos.”

Zelensky não é tolo. Nós também não somos tolos. Estamos vendo, todos os dias, que a diplomacia brasileira sob o governo Lula não tem sido neutra coisa nenhuma. Ela está tomando partido, ela está descambando descaradamente para um lado: o lado de Putin, de Xi Jinping, de Maduro, dos aiatolás do Irã, dos terroristas do Hamas e do Hezbollah. 

Em um momento geopolítico delicadíssimo, Lula está colocando o Brasil ao lado das autocracias antiocidentais. Ele não quer paz; quer subjugar o mundo livre e liderar, ao lado dos déspotas, uma nova ordem ditada pelo Sul global.