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Lulo-madurismo ou bolso-trumpismo: a encruzilhada do atraso

A polarização entre lulismo e bolsonarismo é uma praga que há tempos vem corroendo a política e apodrecendo o cérebro da sociedade brasileira, reduzindo o debate político-eleitoral ao nível fanatizado da lacração e do insulto.

É lugar comum da análise das ideologias a consideração de que a esquerda e a direita se unem em seus extremos. 

No caso em tela, temos que o extremo-esquerdismo lulopetista se une ao extremo-direitismo bolsonarista por modos que vão além da indigência do discurso; um desses modos é a adoção de ídolos.

No caso do lulopetismo a idolatria ideológica é vasta, destacando-se, porém, a paixão de que foi objeto o ditador cubano Fidel Castro. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no ditador venezuelano Nicolás Maduro.

No caso do bolsonarismo, a idolatria ideológica resgatou durante algum tempo a figura de Brilhante Ustra, comandante do (DOI-CODI) e um dos principais símbolos da repressão durante a ditadura militar brasileira. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no presidente norte-americano, Donald Trump.

Historicamente, obsessões ideológicas costumam desnortear os políticos e levá-los a decisões desastrosas. 

Considerando-se o tenso contexto da atual geopolítica, deixar o Brasil a mercê das idiossincrasias ideológicas do lulopetismo ou do bolsonarismo pode levar a desastres maiores do que aqueles que já foram por eles produzidos.

Lula, Maduro e o “exército de Stédile”

Após a escandalosa fraude na última eleição presidencial da Venezuela, Lula tinha controlado um pouco sua incontinência adulatória em relação ao ditador Maduro, mas terminou sendo arrastado pela incontrolável paixão do extremo petismo e está recompondo a velha amizade; isto no quadro nebuloso de uma composição fundiária e militar.

Paralelamente a um acordo de cooperação técnica em agricultura celebrado por Maduro e Lula, o ditador venezuelano cedeu 180 mil hectares de terra para ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o conhecido movimento invasor de terras liderado por João Pedro Stédile.

Que uma composição com o MST seja também militar é algo que emerge da própria fala do presidente Lula que, em 2015, no contexto de forte pressão política após denúncias, pela operação Lava Jato, do esquema de corrupção petista, exclamou, durante discurso: “também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o Exército dele nas ruas”.

No artigo “MST é a tropa de choque de Maduro”, Duda Teixeira denuncia, com razão, a doação de terras de Maduro para o MST como uma “caso clássico de ingerência externa, em que um ditador estrangeiro financia um grupo armado que gera instabilidade no Brasil, violando as leis brasileiras”.

O jornalista também nos lembra, em seu artigo, as vezes em que o MST já atuou como a tropa de choque de Maduro além das suas fronteiras, a exemplo do que ocorreu em 2019, quando o movimento ocupou a embaixada da Venezuela em Brasília para expulsar diplomatas do presidente interino Juan Guaidó.

Nesse contexto, deve-se atentar ainda para o – temporariamente suspenso – projeto de Maduro de invadir a Guiana. 

Estando agora parte do MST em terras cedidas pelo governo da Venezuela, se o ditador Maduro decidir fazer avançar o plano postergado, poderá certamente contar, mais uma vez, com o leal “exército de Stédile.”

I love you, Trump”

Consta no anedotário político brasileiro que, por ocasião da Assembleia Geral da ONU, em 2019, diplomatas presentes na sala que abrigava presidentes antes e depois dos discursos, presenciaram o momento em que o então presidente Jair Bolsonaro disparou para Donald Trump um “I love you” e recebeu um “nice to see you again”.

De lá pra cá a paixão só aumentou. A paixão, porém, quando invade a cena política, pode colocar os atores e a plateia em risco.

Desde o início do seu novo mandato na Casa Branca o objeto da paixão do ex-presidente brasileiro tem governado com imprevisibilidade e desrespeito ao próprio legado histórico-político dos Estados Unidos. 

Sob Trump, o outrora farol do mundo livre, traiu os melhores ideais da América, entrincheirando-se em um nacionalismo-populista tosco e boçal, deixando atônitos seus antigos aliados europeus.

A direita brasileira sabuja mostra-se, porém, incapaz de fazer uma crítica a Trump, mesmo diante da sequência estonteante de ditos e feitos deploráveis do presidente americano.

Da direita brasileira não vem nenhuma crítica à infame postura pró-Rússia, nenhuma crítica à cruel política de deportação de imigrantes, nenhuma crítica à insana guerra comercial contra a Europa, nenhuma crítica aos arroubos expansionistas que ameaçam a Groenlândia, o Panamá e o Canadá.

A reação do bolsonarismo a qualquer medida do governo dos EUA será sempre acrítica. Quaisquer que sejam elas, serão recebidas com entusiasmo, louvor e integral apoio.

Já era assim antes, ainda mais agora que Eduardo Bolsonaro se licenciou do cargo de deputado federal no Brasil para permanecer nos EUA prestando serviço em tempo integral à família Trump na esperança de angariar apoio para livrar o seu pai da cadeia.

Encruzilhada do atraso

A polarização entre lulistas e bolsonaristas dará novamente o tom na disputa eleitoral de 2026?

O lulopetismo tem ao mesmo tempo vantagem e desvantagem por estar no poder. A desvantagem vem do desgaste de um governo ruim; a vantagem vem do fato de o presidente Lula já ter contratado um marqueteiro a preço de ministério e não estar economizando nos gastos de campanha.

O bolsonarismo tem a desvantagem de, não estando no poder, não poder usar a máquina pública a seu favor, como fez em 2022, quando perdeu por pouco. Mas tem a vantagem de que o ex-presidente Bolsonaro, declarado inelegível pelo TSE, não pode ser candidato.

Se pudesse ser candidato em 2026, Bolsonaro perderia por muito, mas um seu substituto (ou substituta) pode ter melhor sorte.

Azar mesmo é o da população brasileira se continuar paralisada nessa encruzilhada do atraso.

Imagem gerada por inteligência artificial.

O crime do batom no país dos manés

Aqui, no país dos manés, onde a população sofre padecendo grandes necessidades, emendas parlamentares bilionárias seguem rotineiramente por caminhos desconhecidos indo, em muitos casos, para o bolso de corruptos.

Aqui, no país dos manés, os juízes, que, a começar pela Suprema Corte, deveriam garantir a Constituição e distribuir justiça para todos, tratam de distribuir para eles mesmos benesses e penduricalhos que elevam seus ganhos para muito além do teto constitucional.

Aqui, no país dos manés, os partidos políticos, cuja missão deveria ser mobilizar a sociedade para lutar contra tais abusos, mobilizam-se apenas para garantir para si uma boa fatia dos bilionários fundos partidário e eleitoral.

Aqui, no país dos manés, o crime organizado controla e estabelece suas leis em cidades e regiões inteiras.

É diante desse quadro desolador que a esquerda grita a expressão “Sem Anistia!” como principal bandeira de redenção nacional, preferindo punir e vingar-se de supostos inimigos a ocupar-se das inúmeras mazelas que oprimem o povo.

Instigado e validado pelo clamor dessa militância cega e raivosa, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido um rigor sem precedentes contra a “arraia miúda” que invadiu as sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023.

Muitos foram presos preventivamente e presos continuam; uns tantos já foram condenados a cumprir penas de até 17 anos de prisão.

Corre agora no Supremo o julgamento da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que usou batom para escrever a frase “perdeu mané” na estátua A Justiça (que fica em frente ao STF). O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, votou por uma condenação a 14 anos de prisão.

Muito se tem falado e escrito sobre isto; e é preciso que se continue a falar e escrever para que tais abusos de julgamento não prevaleçam.

É preciso enfrentar o estardalhaço da campanha Sem Anistia e perseverar na cobrança de que os possíveis delitos dos baderneiros do 8 de janeiro sejam julgados de forma individualizada em vez de serem entendidos todos como “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.”

O delito efetivo de Débora foi riscar uma estátua. Sua única “arma” era um batom. Por tal delito, uma daquelas penas alternativas de prestação de serviço público seria suficiente: um ano ajudando em serviços de limpeza estaria ótimo.

A pena de 14 anos para essa mãe de família, sem antecedentes criminais é um abuso, uma exorbitância, um descalabro jurídico, uma vingança política.

Quem reagiu politicamente a essa pena perversamente desproporcional foi o vigilante senador Alessandro Vieira, que apresentou um Projeto de Lei no sentido de corrigir distorções, não permitindo penas excessivas para quem cometeu atos “menos graves” durante as invasões do 8 de janeiro.

Do lado bolsonarista, porém, o que temos é a instrumentalização contínua do caso em favor do ex-presidente.

Misturam-se alhos com bugalhos como se Jair Bolsonaro e os que tramaram “virar a mesa” com ele estivessem na mesma condição de injustiçados quanto a cabeleireira com batom e outros presos pelo 8 de janeiro.

É preciso diferenciar entre massa de manobra e artífices reais da intentona bolsonarista. Punir devidamente os tubarões e soltar os peixes pequenos que foram arrastados a um ato impensado e irresponsável por quem efetivamente tramava um golpe.

Pena de 14 anos por pichar estátua é algo revoltante e comprova que Alexandre de Moraes tem se comportado mais como algoz do que como juiz.

Bolsonaro, porém, não é vítima. É preciso repudiar as penas excessivas sobre cidadãos comuns sem fazer o jogo vitimista e hipócrita daqueles que os colocaram nessa situação.

Censura à direita: a batalha política pela linguagem

Tão logo pensei na expressão “censura à direita” para servir de título a este artigo, dei-me conta da sua ambiguidade.

O duplo sentido decorre da estrutura sintática da frase. De fato, a preposição “a” na locução “à direita” pode indicar tanto a direita como sujeito agente da censura (apontando a censura promovida pela direita) quanto a direita como sujeito paciente da censura (apontando a censura promovida pela esquerda).

Sabendo que o leitor tenderá a interpretar a frase com base no seu conhecimento prévio, valores e expectativas, achei por bem manter a anfibologia do título como uma espécie de armadilha ou pegadinha com a qual espero ter fisgado leitores de ambos os espectros políticos.

De todo modo, acrescentei um subtítulo que dá ao leitor ansioso uma pista acerca do rumo que esse artigo tende a tomar: “a batalha política pela linguagem.”

Em artigo publicado no mês passado, intitulado “Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke” escrevi que a eleição de Donald Trump foi uma reação ao avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista, mas escrevi também que deveríamos estar atentos, pois o absurdo da cultura woke não deveria ser enfrentado por meios igualmente absurdos e autoritários.

Infelizmente, porém, as coisas estão tomando esse rumo e à “revolução do senso comum” tem faltado o mais elementar bom senso.

O governo Trump está eliminando, com sucesso, programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O problema é que, para conseguir isso, ele está também cerceando, em certos aspectos, a liberdade de expressão e apagando um pouco da história.

O jornal New York Times compilou uma lista extensa de termos que estão sendo evitados ou proibidos pela gestão do atual presidente americano.

A lista inclui termos já esperados como “LGBTQ”, “não binário”, “identidade de gênero”, “multicultural” “sexualidade”, mas também “defensores”, “ativismo”, “opressão”, “nativo americano”“mulheres”, “injustiça”, “imigrantes”, “vítimas”, “deficiência”, “prostitutas”, “socioeconômico” e por aí vai.

As centenas de palavras sob bandeira vermelha estão sendo apagadas de sites públicos e currículos escolares.

Em alguns casos, gerentes de agências federais foram apenas orientados a ter cautela no uso dos termos, em outros casos, porém, as palavras foram proibidas.

A presença das “palavras erradas” também pode sinalizar automaticamente a necessidade de revisão de propostas de subsídios e contratos.

Essa política não se limita à linguagem em documentos textuais. De acordo com a matéria veiculada no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ), o Pentágono está revisando seu acervo fotográfico para remover imagens que não se alinham com essa nova diretriz, tendo criado uma base de dados com milhares de fotos destinadas à remoção.

Entre as imagens em risco de remoção está a da aeronave “Enola Gay”, que lançou a primeira bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, embora o nome da aeronave remeta não à condição homossexual, mas ao nome da mãe do piloto.

Fotos dos “Tuskegee Airmen”, primeiros pilotos afro-americanos da Segunda Guerra, reconhecidos como heróis por sua contribuição para o fim da segregação militar nos Estados Unidos, além de fotos das primeiras mulheres em papéis ativos nas Forças Armadas também correm risco de ser removidas.

Apesar de o presidente Trump e seu fiel conselheiro, Elon Musk, se apresentarem como arautos da liberdade de expressão e serem assim aclamados pela direita brasileira, a identificação e supressão de vocabulário específico pode implicar uma séria e perigosa restrição do debate em relação a tópicos considerados indesejados pelo governo.

A situação é um tanto complexa quando consideramos que o extenso e extravagante vocabulário woke disseminado por décadas representa, de fato, a tentativa de controle da narrativa por parte da esquerda progressista. Mas a forma como o combate ao wokismo está evoluindo na guerra cultural dos EUA aponta para um estreitamento do debate genuíno.

A linguagem, que deveria ser instrumento de reflexão e libertação, é manipulada ora por um lado, ora pelo outro, sob diferentes pretextos ideológicos. Seja na gestão Biden, seja na gestão Trump, o que se percebe é a tentativa reiterada de controle linguístico.

O que podemos tirar de lição é que tanto a esquerda quanto a direita batalham para encaminhar a sociedade a um mundo autoritário – quiçá totalitário – no qual não há verdade e a linguagem é apenas o reflexo do poder.

Foto: Sebastian Kahnert/AP.

Islamização e Putinização

As eleições federais antecipadas na Alemanha, realizadas em 23 de fevereiro de 2025, comprovaram a percepção de uma significativa mudança de rumo na política do país.

Apesar de ter sido o partido mais votado, a coligação conservadora União Democrata-Cristã (CDU/CSU), de Friedrich Merz, passou longe do seu melhor desempenho histórico ao ficar com 28% dos votos (208 cadeiras).

O Partido Social-Democrata (SPD), do chanceler Olaf Scholz, caiu para a terceira posição, obtendo apenas 16,41 % dos votos (120 cadeiras).

Por outro lado, o partido de direita, Alternativa para a Alemanha (AfD), alcançou um resultado inédito, posicionando-se como a segunda maior força política no Bundestag, com 20,8% dos votos (152 cadeiras).

Para analisar o contexto de crescimento desse partido convém responder a duas perguntas. 

Para além dos rótulos que lhe são comumente atribuídos, o que realmente a AfD tem de problemático? 

Qual é o problema social que a AfD confronta seriamente? Ou, dito numa linguagem cafona de marketing, qual é a dor dos alemães que a AfD propõe curar?

Uma reflexão equilibrada sobre esses dois pontos lançará luz não apenas sobre o contexto político alemão, mas também sobre o atual drama político da Europa e sobre a atual tensão política mundial.

A história da AfD 

O partido Alternativa para a Alemanha (AfD) defende posições nacionalistas e revisionistas em relação à história alemã. 

Fundado em 2013 como um partido crítico à União Europeia, a AfD adota discursos que frequentemente se aproximam de ideias da extrema-direita histórica.

Apesar de não trazerem mensagens claramente nazistas — o que é proibido pela legislação alemã — seus integrantes costumam caminhar em uma zona perigosa.

É comum, por exemplo, que eles digam que os alemães não devem ficar se culpando pelos crimes do passado.

Foi seguindo nessa linha que Alexander Gauland, em 2017, afirmou que tinha orgulho pelo desempenho dos soldados alemãs nas duas guerras mundiais. 

Não é mais necessário nos repreender por esses doze anos (de regime nazista)“, disse Gauland. “Se os franceses, e com razão, têm orgulho de seus imperadores, e os britânicos, de Nelson e Churchill, então nós temos o direito de ter orgulho do desempenho de nossos soldados nas duas guerras mundiais.”

No mesmo ano, Bjorn Hocke criticou a existência do Memorial do Holocausto em Berlim.

Somos as únicas pessoas no mundo que colocaram um memorial da vergonha no coração de sua capital“, afirmou. 

A sigla rejeita políticas de inclusão e diversidade, argumentando contra direitos LGBTQ+ e políticas de igualdade racial. 

Discursos depreciativos contra minorias são comuns entre seus membros.

Todos esses pontos são relevantes e problemáticos, embora muitas vezes exagerados pela mídia.

Tendo em vista, porém, a complexa conjuntura geopolítica atual, o ponto mais problemático do partido parece-me ser a aberta simpatia que seus membros nutrem por Vladimir Putin.

AfD e Rússia

O programa da AfD traz como objetivo explícito estabelecer melhores relações com a Rússia.

A Guerra Fria acabou. Os EUA continuam sendo nossos parceiros. Deveria ser a Rússia. A AfD está, portanto, comprometida com o fim das sanções e com a melhoria das relações com a Rússia”, diz o documento.

A recente eleição alemã sofreu forte interferência externa, tanto americana — por intermédio de Elon Musk, que escreveu o polêmico artigo “Apenas a AfD pode salvar a Alemanha” e participou de uma live com Alice Weidel — quanto russa.

O filósofo, geopolítico e estrategista político russo conhecido por suas ideias ultranacionalistas e eurasianistas, Alexander Dugin, escreveu um panfleto em tom apocalíptico e delirante em apoio ao partido, que dizia:

O voto na AfD é a resposta ao ser ou não ser para a Alemanha. Sem a AfD, não haverá mais Alemanha. Se você, sendo alemão, vota em Merz, você vota na destruição nuclear acelerada da Alemanha, da Europa e talvez do mundo inteiro. Assuma a responsabilidade e esteja atento.

Se você gosta de Trump, Musk e Bannon, vote na AfD. Se você gosta de Putin (por que não?), vote na AfD. Se você gosta da Alemanha, vote na AfD. Se você gosta da Europa, vote na AfD. Se admira Meister Eckhart, Leibniz, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche, Heidegger, vote na AfD. Se você não gosta de nenhum deles, vote na AfD.

Vote na AfD se você é niilista, socialista, nacionalista, cristão, muçulmano, pagão, budista, agnóstico, ateu.

Vote na AfD e verá como a realidade pode ser maravilhosa. Alguns dizem que o Kali-Yuga acabou. Isso depende de nós. Vamos terminar. Agora. Ragnarök está marcado para amanhã.

Vote na AfD. Obrigado pelo lembrete: se você aprecia Bach, Mozart, Wagner, Mendelssohn e Tchaikovsky, ou Emerson, Lake e Palmer, vote na AfD.

Se você tem algum problema psicológico ou fisiológico, vote na AfD e encontrará alívio, mais do que isso, uma cura!

Pare de fingir, saia – AfD é você mesmo, seu inconsciente. Seja você mesmo; vote AfD!”

Sabemos o quão importante para o fim da Segunda Guerra Mundial foi o rompimento do pacto entre Hitler e Stálin. 

Agora, imaginem o cenário catastrófico se, daqui a quatro anos, uma Rússia fortalecida contar com o apoio de uma chanceler alemã para anexar a Ucrânia e seguir adiante, sob o olhar cúmplice dos Estados Unidos…

Tragicamente, esse é um cenário bastante provável.

Mas, uma vez elencados os pontos mais problemáticos da AfD e enfatizando a proximidade com a Rússia como o aspecto mais preocupante, devido ao contexto bélico atual, tentemos agora entender por que esse partido tornou-se a segunda maior força política na Alemanha, com grande potencial de crescimento para se tornar a força maior em 2029.

Imigrantes e refugiados

No livro The Strange Death of Europe: Immigration, Identity, Islam, David Murray, tenta explicar o processo que levou a Europa à beira do suicídio. 

Para tanto, o autor nos remete ao pós-guerra, quando o continente procurava restabelecer-se economicamente preenchendo a lacuna do mercado de trabalho.

Países como Alemanha, Holanda, Inglaterra e França promoveram a Europa enquanto destino de trabalho, recebendo milhares de migrantes. 

Mas o poder de atração da Europa, com o seu estado de bem-estar social, era muito grande e o que deveria ser uma política provisória de trabalho transformou-se numa crise migratória, um problema que foi negligenciado por décadas.

Em 2015, um incidente comovente teve o condão de abrir ainda mais as portas da Europa, dessa vez para um enorme contingente de refugiados: a morte de Aylan Kurdi.

A imagem do corpo do garotinho sírio de 3 anos, estendido em uma praia turca, percorreu o mundo, provavelmente sensibilizando também a chanceler alemã Angela Merkel que fez, então, um apelo à Europa para abrir as fronteiras.

Merkel é bastante criticada por pessoas do espectro político mais à direita por essa atitude, mas convenhamos que a líder de um partido norteado por princípios cristãos não poderia simplesmente fechar as fronteiras para os refugiados.

Uma coisa são os migrantes, outra coisa são os refugiados. 

Todo refugiado é um migrante, mas nem todo migrante é um refugiado. 

Enquanto o imigrante se desloca por vontade própria, o refugiado foge para salvar sua vida ou assegurar sua liberdade.

Convém lembrar que o deslocamento de milhares de refugiados em 2015 foi causado principalmente pela guerra civil na Síria, que começou em 2011. 

O conflito envolveu o governo do ditador Bashar Assad (apoiado pela Rússia), grupos rebeldes e organizações terroristas como o Estado Islâmico (EI).

O direito internacional prevê, especialmente pela Convenção de 1951 sobre Refugiados, o acolhimento, a garantia de proteção e o impedimento de deportação para as pessoas em tal condição.

Como a Europa poderia fazer jus aos seus melhores valores cristãos negando-se a executar algo tão básico quanto a proteção à vida humana já respaldada pelo direito internacional?

Mas o fato é que a coisa desandou, saiu dos trilhos. 

Ao abrir as portas para mais de 1 milhão de “refugiados”, a Alemanha deixou entrar não apenas aqueles que careciam efetivamente de acolhimento humanitário, mas também aqueles que, disfarçados de refugiados, vieram com a intenção de perpetrar o terror no seio da Europa, em nome da jihad islâmica.

A chegada em massa de muçulmanos na Europa, aliada à permissividade com que os governos europeus os receberam, em nome de uma falácia chamada multiculturalismo, elevou o problema migratório a um ápice de tensão, que hoje já não é apenas uma crise política localizada, mas algo muito mais abrangente.

Multiculturalismo e islamismo

Embora tenha permitido o relaxamento das fronteiras, em 2015, devido à crise de refugiados na Síria, Angela Merkel também deveria ser lembrada pelo discurso feito em 16 de outubro de 2010, durante um encontro da União Democrata-Cristã (CDU) com jovens da ala conservadora do partido, em Potsdam.

Na ocasião, Merkel declarou: “O multiculturalismo falhou completamente” (“Der Ansatz für Multikulti ist absolut gescheitert“).

Ela se referia à falência da ideia de que diferentes culturas poderiam viver lado a lado sem a necessidade de integração

Merkel argumentou que os imigrantes na Alemanha deveriam se esforçar mais para se integrar, aprender o idioma e compartilhar os valores do país.

Esse não foi, porém, o rumo que as coisas tomaram. 

Estupidificados por doutrinas antiocidentais como o decolonialismo, jovens ocidentais de esquerda passaram a odiar cada vez mais seus próprios valores e sua própria cultura.

Interessados em capitalizar politicamente os votos dessa juventude meio perdida, políticos de esquerda cederam ao politicamente correto, ao progressismo, tornando intocáveis aqueles que eram acolhidos em suas próprias terras.

O principal contingente acolhido, sabemos, foram os muçulmanos. E todo o aparato do Estado de bem-estar social europeu passou a beneficiá-los e protegê-los sem exigir nada em troca, sem esperar a integração.

Muito à vontade, os muçulmanos passaram a construir mesquitas, radicalizar pessoas, dominar bairros, impor regras e, vez ou outra, esfaquear, aos gritos de Allahu Akbar, transeuntes distraídos, padres em celebração, meninas em festas, crianças em passeios escolares ou judeus visitando o Museu do Holocausto.

Ultimamente, passaram a achar mais prático acelerar veículos contra pessoas que se aglomeram nas ruas, em feiras de Natal ou Carnaval.

Os cidadãos alemães temem, e têm motivos de sobra para isso, que um cidadão recém-naturalizado irá esfaqueá-lo e matá-lo após ser radicalizado. 

Mas os políticos juram que o Islã é uma religião de paz e que encontrar um exemplar do Alcorão na mochila junto à faca que cortou uma garganta é só mera coincidência.

Aqueles que dizem o óbvio e que tentam alertar para a incompatibilidade do islamismo com as democracias ocidentais são rotulados de extremistas, de preconceituosos, de xenófobos e dessa palavra mágica tirada da cartola para criminalizá-los: islamofóbicos.

Alternativa para a Alemanha

É aí que entra a AfD. Qual é o seu ponto forte? 

O partido se opõe à imigração, especialmente de países muçulmanos, promovendo a ideia de que a cultura alemã está sob ameaça frente à cultura islâmica.

Os líderes do partido defendem medidas como o fechamento de fronteiras, de mesquitas e deportações em massa e, com isso, respondem a um premente anseio da população.

É verdade que populistas de direita têm lucrado com o tema da imigração. Mas isso ocorre porque, principalmente na Europa, a imigração muçulmana é efetivamente um grande problema.

Dificilmente passa-se uma semana sem relatos de ataques islâmicos. O jihadismo não pode mais ser ignorado na Alemanha, nem em lugar nenhum da Europa.

No fim de janeiro, em Aschaffenburg, Baviera, um afegão que foi obrigado a deixar o país atacou um menino de 2 anos com uma faca de cozinha. 

Morreu o menino e o transeunte que tentou salvá-lo.

Pouco tempo depois, em Munique, um requerente de asilo afegão acelerou seu carro contra uma manifestação organizada pelo sindicato Verdi, matando uma jovem mãe e sua filha de dois anos e ferindo gravemente pelo menos outras 37 pessoas.

A Europa está diante de duas ameças sérias: Vladimir Putin e o jihadismo islâmico. 

A direita reacionária fala grosso com os muçulmanos, mas fala muito fino com Putin.

Se os alemães de modo específico, e os europeus, de modo geral, quiserem continuar altivos na defesa da Ucrânia e de seus próprios valores de democracia e liberdade precisam reconhecer o perigo representado pelo islamismo e expressar isso claramente, a fim de que a direita populista nacionalista e identitária não seja a única voz a ecoar essa realidade.

Foto: REUTERS/Shannon Stapleton.

Trump traiu a Ucrânia de modo vil

Temos testemunhado ultimamente, em diferentes contextos, a deterioração de valores e princípios que outrora fundamentaram a ordem mundial liberal.

É lamentável que os Estados Unidos, nação mais representativa da sociedade aberta, estejam agora, sob o governo de Trump, contribuindo para o fortalecimento de um regime expansionista antiliberal e antiocidental.

A postura do atual presidente americano nas negociações para o fim da guerra na Ucrânia expressa desprezo pela soberania e descaso pela segurança futura desse país que tem lutado bravamente pela sua própria existência.

Trump deixou claro que, na sua visão, os dólares investidos na defesa do povo ucraniano seriam apenas um desperdício colossal. 

Como homem de negócios que é, vê apenas cifras que se vão, restando míope quanto às responsabilidades dos Estados Unidos em manter a segurança e a ordem internacional.

Ao decidir negociar o fim da guerra com os agressores russos, excluindo a Ucrânia de um processo que definirá o seu próprio destino, Trump mostrou de que lado está: o lado do invasor, o lado da iniquidade, o lado da injustiça.

Donald Trump não se importa com uma paz justa, ele quer apenas uma paz de conveniência. Para obter essa suposta “paz”, a Ucrânia deve ceder seus territórios invadidos, não deve insistir em fazer parte da Otan e deve retirar Zelensky do poder, ou seja, deve capitular, render-se, deixar-se subjugar pela grande mãe Rússia, cujo furor expansionista não parará por aí.

Não é à toa que analogias históricas vêm à mente. No acordo de Munique, assinado em setembro de 1938, a Alemanha foi autorizada a anexar os sudetos, região localizada na fronteira norte da antiga Tchecoslováquia.

Trump tem sido comparado nas redes sociais ao primeiro-ministro do Reino Unido, Neville Chamberlain, que se vangloriou desse acordo, retornando de Munique com a famosa declaração “peace for our time” (“paz para o nosso tempo”).

A analogia é válida e plena de lições: não há política de apaziguamento que dê certo quando se está lidando com personalidades bélicas e psicopatas como Adolf Hitler ou Vladimir Putin.

Li algures, mas já não me recordo onde, o seguinte comentário: não é a Europa que está defendendo a Ucrânia, é a Ucrânia que está defendendo a Europa. É isso mesmo. A brava resistência Ucraniana tem sido um escudo para os delírios expansionistas de Putin.

Mas Trump não dá a mínima para a segurança da Europa, nem se incomoda com delírios expansionistas alheios, desde que não interfira nos seus, pois também os tem, como se pôde constatar por suas bizarras ameaças em relação a Groenlândia e ao canal do Panamá.

O fato é que, em termos de visão de mundo, Trump é mais semelhante a Putin do que aos líderes europeus que, até então, os Estados Unidos tinham por aliados.

A visão política e (i)moral de ambos é que os “grandes players” devem dividir o poder e dominar os os menores, os quais devem se recolher à sua insignificância sem se arrogarem o direito de sequer participarem das discussões que lhes dizem respeito.

Em essência, a abordagem de Trump não só legitima os métodos autoritários de Putin, como também corrobora um sistema global baseado na subordinação dos mais vulneráveis.

A ordem espontânea, a sociedade aberta, a ordem liberal é uma ordem baseada no direito. A ordem almejada por Trump e Putin é a ordem ditada por quem tem poder. É ordem sem princípios éticos e sem senso de justiça. Logo, não é ordem, é caos.

A Estrela Decadente

Parece contraditório, mas o Partido dos Trabalhadores (PT) chegou ao poder pela quinta vez depois de atravessar um longo período de declínio. 

Seu candidato a presidente foi vitorioso na eleição de 2022, não pela força do partido, mas porque o desastre do governo anterior possibilitou a formação de uma ampla frente de oposição.

Certamente, mesmo em declínio, a força político-eleitoral do PT era ainda significativa; e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo desgastado, não encontrava na oposição nenhum nome que com ele ombreasse em popularidade para enfrentar o então presidente Jair Messias Bolsonaro.

O PT e o presidente Lula não souberam, porém – passados já dois anos, metade do mandato –, aproveitar a reconquista da Presidência da República para recuperarem a força, simbolismo e prestígio que tiveram na aurora do partido. Pelo contrário, retornaram à rota de declínio. 

Todavia, se não é provável, também não é impossível que Lula seja reeleito em 2026; isto porque, se o governo Lula-PT é ruim, a oposição não deixa de ser também uma lástima. 

É tão desoladora a situação que, em lugar de um equilibrado centro-democrático, temos uma coisa chamada “centrão”, aglomerado fisiológico de parlamentares desvairados por dinheiro, o qual abocanham especialmente através de emendas secretas, semi secretas ou escandalosamente abertas.

A redemocratização

Há 45 anos – 1980 –, o Partido dos Trabalhadores nascia como uma estrela fulgurante para a esquerda brasileira, com grande força de atração e equivalente força de propulsão. 

O ambiente era propício para o surgimento de um novo partido de esquerda. A ditadura militar, ainda vigente, estava moribunda. 

Na verdade, não existia mais ditadura: a ‘Anistia Ampla, Geral e Irrestrita’ de 1979, promulgada pelo presidente General Figueiredo, tornara a redemocratização irreversível e as multidões ocupavam as ruas, sem enfrentar repressão, exigindo a realização de eleição para presidente da República, com a campanha das “Diretas já”

Se essa campanha não logrou vitória formal no Congresso Nacional, ao menos instituiu a democracia diretamente no espaço público: nas ruas, praças e botequins. Corria pelo Brasil uma verdadeira euforia democrática. 

Embora tenha derrubado a emenda das eleições diretas para presidente (emenda Dante de Oliveira), o Congresso Nacional viu-se forçado a caminhar para a eleição de um presidente da República civil, tendo o Colégio Eleitoral elegido, em janeiro de 1985, Tancredo Neves (que morreu antes da data da posse, o que levou à posse do vice-presidente eleito, José Sarney.

Lula e o PT

Gestado nesse contexto de lutas contra a ditadura militar brasileira e clima de redemocratização, o PT teve como suporte principal uma forte base sindical montada a partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, presidido pelo operário/torneiro mecânico (licenciado por acidente) Luiz Inácio da Silva (ainda sem o famoso apelido acrescido ao nome em cartório). 

A essa base vieram a se unir contingentes expressivos de diversos segmentos sociais contestatórios, com destaque para a esquerda remanescente das lutas estudantis de 1968 e guerrilheiros que sobreviveram aos “anos de chumbo”, assim como comunidades eclesiais de base da Igreja católica e o movimento estudantil, fortemente reativado por essa época.

Quando aconteceu a almejada eleição direta para presidente, em 1989, o PT já estava forte o suficiente para ir ao segundo turno. 

Leonel Brizola (PDT) era tido como favorito naquela eleição, mas cresciam o nome de Lula e de um jovem político de Alagoas, até pouco tempo nacionalmente desconhecido, chamado Fernando Collor de Mello.

Collor venceu, então, a primeira eleição presidencial pós-redemocratização, mas realizou um governo tão estúpido e desastroso que não demorou a ser afastado por impeachment. 

Como se sabe, a persistência petista levaria Lula a Presidência da República na eleição de 2002, quando derrotou José Serra (PSDB).

Petismo, lulismo e marxismo

Com a entrada trepidante de Lula no cenário nacional através da enorme repercussão das greves de fábricas no ABC paulista nos anos 1970, o fato de um operário ser alçado à condição de grande liderança fascinou a intelligentsia marxista brasileira. 

Ainda antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, um enxame desses intelectuais passou a cercar o futuro presidente do PT e doutriná-lo com o extrato do pensamento de Marx, Engels e Lênin. 

Pouco afeito à leitura, Luiz Inácio não teria como compreender muito bem a complicadíssima ciência do materialismo histórico e dialético, mas o componente do autoritarismo leninista (bolchevismo) foi bem assimilado. 

É certo que Lula desenvolveu forte simpatia, apego e estima por ditaduras de esquerda; como são os casos notórios da ditadura de Cuba (desde os tempos de Fidel Castro) e da ditadura da Venezuela (desde os tempos de Hugo Chaves), dentre outras. 

Lula não apenas nutriu simpatia por tais regimes, como também os financiou generosamente durante o exercício dos seus passados mandatos.

Fora essa paixão ideológica por ditaduras, Lula é tido e havido como um político pragmático, capaz mesmo de fazer alianças espúrias para se dar bem. 

O dono do PT

Nas pesquisas que andei fazendo para reconstituir o histórico do PT, conversei com alguns militantes dos primórdios do partido, que participaram ativamente da sua fundação em algumas cidades do Nordeste e que tiveram cargos de direção em alguns diretórios estaduais e municipais. 

Explicaram-me eles que, naqueles tempos, havia democracia interna; a democracia partidária era a tônica. 

Lula era, naturalmente, uma liderança respeitada, mas muito longe de ser o autocrata que, segundo alguns ex-petistas com quem conversei, passou a submeter o partido ao seu inteiro talante. 

Como se diz e é comum em outros partidos brasileiros: hoje o PT tem dono. 

Um dos motivos pelo qual o governo Lula vai mal é esse: ele não conta com um partido no qual possa pensar coletivamente, discutir, aprimorar projetos e ideias ou encontrar quem salutarmente o questione. A única instância de discussão de Lula parece ser ele mesmo; e agora Janja.

A corrupção petista

Nos primeiro e segundo mandatos de Lula, o governo petista atolou-se em corrupção. Nos dois mandatos de Dilma Rousseff, o governo petista atolou-se mesmo na incompetência. 

O desastre do segundo mandato de Dilma levou ao seu impeachment. E é preciso frisar bem: foi um legítimo processo de impeachment que afastou a presidente Dilma, não foi um “golpe”, como apregoa a narrativa dos inconformados petistas; do mesmo modo que não foi golpe o impeachment de Collor de Mello.

A corrupção desencadeada nos primeiros governos de Lula geraram processos que o levaram à cadeia após julgamentos referendados pelo Supremo Tribunal Federal (STF); o mesmo Supremo que viria a libertá-lo, mudando suas interpretações e permitindo sua candidatura em nova eleição.

Sem entrar na análise dessas decisões erráticas do STF, fato é que somente um líder com grande carisma e popularidade poderia voltar ao poder, pelo voto, após tamanhos descaminhos.

Todavia, parece-me que Lula e seu partido vão chegando ao fim da linha. Lula, pelos descaminhos políticos e também pela idade. E o PT porque, ao deixar-se submeter à autocracia de Lula e insistir nas ideias autoritárias de uma esquerda que fede a mofo, tende a morrer com ele.

Lula e o Centrão

Lula, hoje, enquanto lida com o seu próprio partido com menosprezo e rigor de autocrata, submete-se, no Congresso Nacional, às artimanhas e chantagens do Centrão.

Os lulistas mais devotos tentam justificar essa pusilanimidade do presidente da República diante dos abusos da ala parlamentar fisiológica com a desculpa de que, sem isso, a governabilidade perece. 

Creio que o PT de outrora, de antes do primeiro mandato corrompido de Lula, teria ocupado as ruas para sustentar seu programa de esquerda, em vez de ceder às chantagens dos congressistas oportunistas de plantão. 

A velha esquerda e a nova esquerda

De um modo geral, a forma mais destacada da política brasileira, nos últimos anos, tem sido a lacração na internet. E esse é mais um motivo do declínio de Lula e do PT: ambos são analógicos. 

Na verdade, a esquerda brasileira é, em sua maioria, velha, analógica e melancólica. Penso que, nessa condição, estão alguns dos esquerdistas mais respeitáveis (nessa categoria de respeitáveis não incluo Lula, que é só velho e analógico; penso aqui em outras personalidades). 

Simpatizo um pouco com a velha esquerda romântica, desiludida e nostálgica, que lutou contra a ditadura, mas antipatizo profundamente com a nova esquerda que hoje faz barulho nas redes sociais. 

A nova esquerda é essa turma woke, identitária, extremista, fanática, meio demente, nutrida por uma estúpida ideologia anti-ocidental.

Enfim, entendo que o PT acabou e que o lulopetismo é uma política em fase de extinção. O que não me entristece. Entristece-me, porém, não ver algo de animador no horizonte. Até o momento, não consigo ver luz no fim do túnel; nem à esquerda, nem à direita. 

Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke

O wokismo como cultura dominante progressista chegou ao fim com a contrarrevolução de Trump, é o que escreve Benedict Neff, analista político suíço, em seu artigo no Neue Zürcher Zeitung (NZZ).

Ao analisar a chamada “revolução do senso comum”, proclamada pelo presidente americano em seu discurso inaugural, o jornalista explica: “o que ele quer dizer com isso é que existem apenas dois gêneros e que as pessoas devem falar como quiserem — “liberdade de expressão“. Parece simples. E é. O senso comum não é muito exigente.

Por uma feliz coincidência, acabo de ler um divertido e interessante texto “entrevista com o senso comum”, escrito por Luiz Felipe Pondé.

Ao ser questionado por Pondé sobre o que considerava mais importante na sua vida, o senso comum respondeu: “minha família, que meus filhos não usem drogas e Deus”. Eis a chave do imbróglio político da atualidade e o motor que impulsiona a tal polarização.

Se a esquerda raiz já atacava a família – Marx e Engels a veem apenas como uma instituição burguesa voltada para a manutenção da propriedade privada – e Deus – A religião é ópio do povo – a nova esquerda pós-moderna e pós-marxista, conceitualmente nutrida por Marcuse, Foucault, Judith Butler, etc escancara essa guerra contra os valores morais de maneira chocante para o senso comum.

Um ponto importante, abordado também por Pondé em artigo anterior ao supracitado, é que essa esquerda nutella woke pretende “criar um novo senso comum”, o que é obviamente absurdo uma vez que “o senso comum não é algo que a engenharia social, paradigma da esquerda, consegue fazer acontecer”.

Esse anseio paradoxal e impossível de criar um novo senso comum explica parcialmente o alto grau de autoritarismo da militância woke.

Aceitar que um indivíduo adulto opte por tomar hormônios e fazer uma cirurgia para mudar de sexo sem se intrometer na sua vida nem condená-lo por viver assim não é mais suficiente. Você deve acreditar que esse indivíduo realmente mudou de sexo; pensar o contrário seria indicativo de intolerância e transfobia; expressar o que você pensa e acredita acerca disso pode lhe render processo e até cadeia.

Educar as crianças para esse novo mundo onde há mais gêneros do que cores do arco-íris é fundamental nesse processo de engenharia social; se você não acha que seus filhos devem ser educados nesse fantástico mundo de Bobby, prepare-se, seu reacionário homofóbico transfóbico de extrema direita, para ter problemas com o Estado e com seus amigos mais despertos (wokes).

Foi por se contrapor duramente a essa situação distópica que Trump assegurou, mais uma vez, a sua vitória, o que é um forte indicativo, segundo o jornalista suíço do NZZ, de que o Woke como cultura ocidental dominante chegou ao fim.

Benedict Neff lembra que “o antecessor de Trump, Joe Biden, assumiu o cargo em 2021 para formar o gabinete mais diverso da história americana e seu primeiro decreto foi sobre justiça social e equidade em relação às minorias. A ideia de que a sociedade deveria se tornar mais inclusiva, diversa e sensível parecia imparável no Ocidente. Isto foi considerado um progresso por excelência”.

Pesquisas mostravam, porém, que a maioria da população (o tal senso comum) ficava cada vez mais desconfortável com as proibições de pensar e falar que inevitavelmente acompanhavam o avanço das políticas afirmativas. Mesmo assim, os democratas continuaram enfiando goela abaixo da sociedade os valores DEI (diversidade, equidade e inclusão).

Um número cada vez maior de pessoas foi entendendo que essas políticas, que retoricamente afirmavam buscar a libertação das minorias, “na verdade as limitava à sua identidade, a categorias como origem, cor da pele e gênero”.

Donald Trump está acabando com as políticas DEI. É a revolução do senso comum. O problema é que a direita populista, nacionalista, iliberal, representada por Trump não é propriamente uma direita dotada de bom senso, mas uma direita que tende, também ela, a se contrapor a algo muito comum, genuíno e espontâneo: a compaixão, por exemplo.

Dentre as suas inúmeras medidas duríssimas contra imigrantes, destaca-se como particularmente desumana o ter encerrado o status de proteção temporária (TPS, na sigla em inglês), para mais de 300 mil venezuelanos nos Estados Unidos, que devem ser deportados para voltar a sofrer os horrores da ditadura de Maduro nos próximos meses.

Ao comprar a briga contra a cultura woke, Trump conseguiu votos e apoio daqueles que já estavam exasperados com o avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista. Sob esse aspecto, Trump parece ter sido um mal necessário para frear as pretensões de uma esquerda que levou seus erros longe demais.

Considerá-lo um mal necessário para o momento, porém, é diferente de fazer dele um ícone, um ídolo, um grande símbolo da liberdade, tal como o faz a direita brasileira, que o adora como novo mito.

Foi vexatória e patética a excursão de parlamentares brasileiros de direita para os Estados Unidos, primeiro no dia da eleição, depois no dia da posse.

Mas também foi e é vergonhosa, pelo motivo oposto, a cobertura da imprensa progressista sobre qualquer coisa que diga respeito a Trump. A imprensa não preciso idolatrá-lo nem demonizá-lo, mas acompanhar com atenção e senso crítico suas decisões.

Para voltar a citar o já referido artigo do NZZ, parece que “o momento está com Trump.”

Lembra Benedict Neff que, “Para Goethe, o zeitgeist era a predominância de um lado que assumia o controle da multidão e fazia o que tinha que fazer por um tempo, enquanto o outro lado tinha que se esconder. Mas em algum momento o zeitgeist muda novamente…”

A cultura woke tende a cair em ruína sob o peso do seu próprio absurdo. Resta saber que outro erro absurdo tomará o seu lugar a fim de resistirmos também a ele.

Direita e esquerda: os dois polos da estupidez

Direita e esquerda reduziram-se, no Brasil, a dois polos de estupidez. Isso chegou a um nível tal que não parece haver mais vida inteligente em nenhum dos lados dessa militância.

Cada um dos polos ideológicos, claro, vai se julgar superior; direitistas reacionários, principalmente aqueles que adquiriram seus conhecimentos políticos via Olavo de Carvalho e Brasil Paralelo medirão seu próprio conhecimento por contraposição à educação doutrinária e militante predominantemente de esquerda, a qual chamam depreciativamente (com uma dose de razão) de educação Paulo Freire.

Em ambos os lados, porém, há mero verniz intelectual encobrindo vasta ignorância. E aqui não faço apologia a um eruditismo vão e pedante. Pelo contrário, penso que faz falta nos dias de hoje a simplicidade da vida comum, o desprezo cético por teorias e discussões inócuas.

Temos vivenciado uma contínua subordinação das mais diversas esferas da vida às exigências políticas. Mas não há pensamento onde só há ideologia e, paradoxalmente, a politização de tudo equivale à própria destruição da política.

Isso tende a provocar nas pessoas mais sóbrias e ponderadas uma saturação, uma hostilidade e desprezo pela política e suas questões.

O debate público passa a padecer, com isso, de uma fuga de cérebros: aqueles que poderiam contribuir com alguma palavra sensata rendem-se ao cansaço e ao tédio, enquanto os exaltados, os fanáticos, os parvos e os mal-intencionados alçam a voz, preenchendo ruidosamente todos os espaços públicos, das redações de jornais aos púlpitos das igrejas, das tribunas às cátedras universitárias, das redes sociais aos quadros do funcionalismo público.

Essa extensão da visão político-partidária-ideológica para instâncias nas quais a importância política está justamente no caráter apolítico do exercício de tais funções é perigosa.

Há décadas, no importante ensaio “Verdade e Política”, a pensadora Hannah Arendt já alertava que determinadas instituições públicas, embora estabelecidas e apoiadas pelos poderes, precisam estar ciosamente protegidas da influência e da pressão política.

A politização, por exemplo, do judiciário e das instituições de ensino, algo tão gritante no Brasil, é inegavelmente prejudicial à cultura democrática, embora os que politizam tais setores o façam, na maioria das vezes, em nome da democracia.

Outro setor seriamente afetado pela estupidificação ideológica, pela má-fé e pelo servilismo dos que se curvam ao poder em detrimento de suas precípuas funções é a imprensa.

Em artigo recente, o jornalista Felipe Moura Brasil analisou o problema do ativismo no jornalismo mostrando os prejuízos da ausência de distinção entre informação e juízo de valor:

“No mercado da comunicação, além da eventual indistinção entre setores noticiosos, analíticos e opinativos, há profissionais e ´especialistas´ que buscam dar ares de informação a seus juízos de valor, enviesando o noticiário e turbinando um dos maiores problemas do nosso tempo: a perda da base comum de realidade objetiva, que finca as discussões públicas em alicerces factuais”, escreveu o diretor de Jornalismo desse portal O Antagonista e da revista Crusoé.

No já referido ensaio, Hannah Arendt analisa essa confusão entre fato e opinião, assim como a hostilidade à verdade factual quando esta se opõe ao lucro ou ao prazer de um determinado grupo. Esse aspecto também é abordado no artigo de Felipe Moura, que denuncia o ativismo político autoritário que busca deslegitimar com ofensas e distorções as poucas fontes idôneas de conhecimento factual.

Hannah Arendt foi uma filósofa judia, que fugiu do nazismo e se estabeleceu nos Estados Unidos, tornando-se uma pensadora mundialmente reconhecida por ocasião da publicação de As origens do totalitarismo (1951).

Sua obra analisa não apenas as entranhas de uma sociedade que se precipitou no abismo totalitário, mas expõe também os resquícios de tendências totalitárias que permanecem em germe nas sociedades atuais.

Não apenas na sociedade mundial, mas também aqui, na sociedade brasileira, há uma atmosfera autoritária perigosa, um ar difícil de respirar, politizado demais. Os sinais de que estamos no caminho da servidão voluntária são numerosos.

Esse caminho se alarga mais toda vez que o influente militante da direita aponta o dedo para toda a esquerda, amaldiçoando-a e o influente militante da esquerda aponta o dedo para toda a direita, defenestrando-a, como se apenas ali, no espectro político que não lhe diz respeito, estivesse todo o perigo e todo o mal.

A demonização do adversário político serve aos propósitos dos autoritários e o pendor autoritário é ambidestro.

O Brasil está mergulhado em um caos social. A raiva, o rancor, a decepção, a frustração dos brasileiros será mais uma vez manipulada, instrumentalizada se não rompermos a bolha da ignorância e do fanatismo.

Ainda somos uma democracia. Uma democracia disfuncional, agonizante. Cabe a nós, porém, revigorarmo-nos como nação livre, plural e tolerante ou deixarmos o nosso país se enterrar de vez ao som da trombeta apocalíptica de qualquer discurso político demagógico de ocasião.

Foto: Frederico Brasil/TheNews2/Estadão Conteúdo.

Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro

Tudo o que eu tenho escrito e dito de relativamente importante a propósito de filosofia política pode ser resumido em uma tentativa de mostrar a necessidade de nos recolocarmos no fluxo da evolução de uma tradição democrática, liberal e humanista que se iniciou na Grécia como um anelo, um anseio, um elã por justiça e por liberdade.

A configuração social, o regime político, o sistema de governo que mais se aproxima da concretização desse anseio é a democracia.

O ter que qualificar tal modelo ao qual me refiro como democracia liberal seria desnecessário se a palavra democracia não tivesse sido deturpada, manipulada e instrumentalizada para defender justamente o seu oposto, dando ares de legitimidade a ações que lhe defraudam os princípios.

Essa manipulação maquiavélica daquilo que, para além de um mero conceito, é também um valor, atingiu níveis estratosféricos de cinismo, no Brasil, na semana passada, marcada pela patética cerimônia lulista em lembrança dos dois anos do 8 de janeiro de 2023, pela presença de representantes brasileiros e dirigentes petistas na posse de um ditador e pela histeria censora em torno da decisão da Meta de descentralizar a checagem de postagens nas redes sociais.

Abraço de amante na democracia relativa

Como foi bem pontuado por alguns poucos editoriais e artigos de quem prefere exercer o senso crítico à bajulação, Lula se apropriou do 8 de janeiro para posar, mais uma vez, de grande defensor da democracia. Nada mais distante da verdade.

Em um discurso que deveria ser solene, o presidente largou essa pérola: não sou nem marido, eu sou um amante da democracia. Porque, a maioria das vezes, os amantes são mais apaixonados pelas amantes do que pelas mulheres.”

Ah, a linguagem! Essa dama que os mal-intencionados tentam manipular, acabando presos nas suas complexas redes de sentido. Ao tentar exagerar o seu suposto ardor amoroso pela democracia, Lula apenas entregou a baixeza do seu caráter como homem: um homem vulgar, para quem é normal ter amantes e amá-las mais que a própria esposa.

Depois da tosca improvisação do discurso, Lula deu continuidade ao cerimonial patético: partiu rumo ao evento “abraço à democracia” onde minguadas centenas de militantes de esquerda deram as mãos e simbolizaram um abraço em torno da palavra democracia, escrita com flores que estavam em vasos no chão da Praça dos Três Poderes.

Lula X Maria Corina Machado

Em 9 de janeiro, um dia depois da encenação novelesca do suposto amor lulista pela democracia, dava-se, no país vizinho, um ato de genuína coragem e zelo democrático: milhões de venezuelanos saíam mais uma vez às ruas para cobrar respeito à vontade popular, que elegeu o ex-diplomata Edmundo González Urrutia como presidente da República.

A intimorata líder Maria Corina Machado saiu da clandestinidade e foi ter com o povo. Antes disso, já havia declarado: “se alguma coisa acontecer comigo, a instrução é muito clara para a minha equipe, para os venezuelanos: ninguém vai negociar a liberdade da Venezuela por minha causa.”

Como brilha a virtude para quem tem olhos para discerni-la! Como a força e grandeza dessa mulher ofusca e apequena ainda mais certas figuras que desempenham o papel de liderança política! Lula, por exemplo, jamais citou o seu nome. Certa feita, comparou-se a ela sem citar seu nome e, em tom de deboche, asseverou não ter ficado chorando quando ele próprio foi impedido de se candidatar…

Ah, a inveja! Como sofre a alma que dela padece…como se contorce o indivíduo vaidoso e moralmente débil, fustigado no seu orgulho ao ser confrontado por um indivíduo valoroso, portador da honra de que ele carece. Sobra-lhe isso: o deboche.

Ao sair da grandiosa manifestação, Corina Machado teve a moto que a conduzia interceptada pela Guarda Nacional Bolivariana. Ela foi, então, forte e bruscamente arrancada do seu veículo e colocada em outra moto entre dois homens.

Graças às redes sociais (essa ferramenta de interação global que a esquerda lulista está fortemente empenhada em censurar), a notícia do seu sequestro se espalhou rapidamente e, em questão de minutos, autoridades de diversos países mandaram duros recados exigindo sua imediata liberação. O Brasil de Lula, claro, permaneceu em silêncio.

“Amante secreto de Maduro”

No dia seguinte, 10 de janeiro, como se nada tivesse ocorrido, Lula enviou à Venezuela uma embaixadora brasileira para, ao lado dos ditadores de Cuba e da Nicarágua, participar do teatro que consumou o autogolpe de Estado com o qual Nicolás Maduro pretende se perpetuar no poder e continuar matando seu povo de terror e de fome.

A proximidade dos dois eventos – o “abraço da democracia” na Praça dos três poderes, em 8 de janeiro, e o endosso do Brasil ao golpe do ditador vizinho, no dia 10 – explicitou ainda mais a incoerência, a hipocrisia, o cinismo e até a maldade de quem se vale do nome democracia para fazer avançar a tirania, que é o seu exato oposto.

Dentre os vários comentários e trocadilhos aos quais o discurso improvisado de Lula, em 8 de janeiro, deu ensejo, foi do senador Sergio Moro o mais certeiro. Lula não é amante da democracia; “Lula é o amante secreto de Maduro.”

A formação do Ocidente

Guerras no Oriente Médio, invasão da Ucrânia, a ameaça do fundamentalismo islâmico, o imperialismo russo e a estupidez woke/identitária.

Esses foram alguns temas que abordei nos artigos que escrevi ao longo de 2024.

Neste novo texto, gostaria de focar mais no significado do Ocidente, a fim de salientar o que está em jogo com tais ameaças.

Passo a expor, portanto, de forma resumida, o conteúdo do livro O que é o Ocidente, do filósofo político francês, Philippe Nemo.

A tese central desse livro é que, no Ocidente, “foram alcançadas certas figuras do universal cujo desaparecimento ou enfraquecimento afetaria a humanidade como um todo.”

Segundo o autor, a civilização ocidental pode se definir “pelo Estado de Direito, pela democracia, pelas liberdades intelectuais, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia de liberdade baseada na propriedade privada”.

Tais valores e instituições foram o fruto de uma longa luta de construção histórica e de determinados acontecimentos essenciais.

Grécia e Roma

O princípio do governo da lei e o princípio da liberdade individual, por exemplo, foram uma inovação grega, herdada pelos romanos e posteriormente reformulada pelos filósofos políticos ingleses na forma do rule of law, um governo de leis e não de homens, cerne do ideal liberal moderno.

Os gregos inventaram o governo de lei, mas foram os magistrados e jurisconsultos romanos que o aperfeiçoaram no período da República Romana.

Os filósofos estoicos já haviam elaborado a teoria do cosmopolitismo, estabelecendo que a humanidade constitui uma comunidade única partilhando uma natureza humana idêntica.

As relações sociais no seio da comunidade deveriam, portanto, ser regradas tendo por referência uma lei natural, racional, da qual as leis positivas de cada cidade seriam uma aproximação.

O arcabouço conceitual trabalhado pelo direito romano procurou definir a propriedade privada, delimitando juridicamente o “meu” e o “teu” nas diversas situações possíveis.

Ao definir assim o domínio próprio de cada um, assegurando os seus direitos, o conceito de indivíduo ganhou relevância.

O Direito Romano foi não apenas uma das colunas principais sobre as quais se estruturaram os sistemas jurídicos modernos, mas também uma das fontes do humanismo ocidental.

Junto ao civismo grego, o progresso feito por Roma no Direito imprimiu na cultura ocidental o valor do Eu, fornecendo as bases sobre as quais o cristianismo se apoiou para afirmar o valor absoluto da pessoas humana, livre, moralmente responsável, criada e amada por Deus, dotada de uma dignidade intrínseca a despeito de quaisquer fatores contingentes como raça, condição social, gênero, etc.

A moral cristã

Embora se apoie na tradição moral e jurídica herdada da antiguidade pagã, a moral evangélica a supera e transforma por meio do sublime sentimento da compaixão, da caridade.

À exigência de justiça já presente no profetismo judaico, Jesus junta a misericórdia e uma elevada exigência de ação em direção ao outro, ao sofredor, ao próximo.

Trata-se de uma ética da superabundância, que não se esgota no dar a cada um o que é devido, mas alarga-se como doação de si no dever do amor.

“Ama o teu próximo como a ti mesmo”, eis a máxima.

Porque Jesus realizou na Terra o supremo sacrifício, o apelo cristão tornou-se um móbil para a própria sociedade que, insuflada e impulsionada pelos imitadores do Cristo, progrediu gradativamente no caminho da fraternidade universal.

A César o que é de César

Embora tenha havido momentos de confusão entre o poder religioso e o poder temporal, é possível defender a tese de que a dessacralização do poder na Europa foi fruto da religião judaica e da religião cristã, sendo a noção de laicidade depreendida do próprio texto bíblico.

No judaísmo e no cristianismo, o poder espiritual não se curva ao poder temporal; a salvação depende da conversão interior dos homens, nas quais trabalhavam os profetas e os santos.

A missão do Estado, por sua vez, era garantir a ordem social. A frase de Jesus “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, sanciona essa separação de papéis.

Essa cisão ou irredutibilidade entre os dois mundos, que será uma das fontes de nascimento das democracias modernas, também se expressa quando, ao ser confrontado por Pilatos acerca da sua realeza (Tu és rei?), Jesus responde: “Meu reino não é deste mundo”.

A mensagem bíblica, portanto, é uma mensagem de dessacralização do Estado. O Ocidente acostumou-se com essa mensagem e por ela se deixou moldar.

Não obstante, houve diversas tentativas de “ressacralização do Estado, seja sob uma forma autoritária ou absolutista (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel…seja sob uma forma totalitária”.

À esquerda ou à direita, encontram-se inimigos da sociedade aberta, que é a sociedade de direito e de livre mercado, a sociedade que preza a ordem espontânea.

Democracias liberais

Segundo Philippe Nemo, “a democracia é o nome especial dado ao liberalismo político e ao pluralismo nos procedimentos de nomeação de governantes e da tomada de decisões políticas.”

Ela não se desenvolveu, porém, de modo contínuo, mas foi um ideal lançado que precisou contornar inúmeros obstáculos e desvios a fim de reencontrar seu elã inicial e continuar o processo de abertura da sociedade.

Apesar de ter se configurado no Ocidente, a sociedade aberta concerne direta ou indiretamente a toda a espécie humana. Houve um avanço real na organização social e abrir mão desse avanço é uma escolha clara pelo retrocesso.

Adversários externos e internos

Na medida em que o Islã é uma das religiões do livro, há algum aspecto de proximidade do mundo árabe-muçulmano com o Ocidente.

Mas o Islã transformou e descaracterizou profundamente a ética recebida do judaísmo e do cristianismo.

Além disso, o mundo islâmico não assimilou os princípios do civismo grego e do direito romano.

Durante séculos, a educação do Ocidente formou a juventude com seus valores, ideais e normas.

As escolas e universidade formaram mentalidades ocidentais que, por sua vez, asseguravam a perpetuação dessas mesmas instituições.

Esse movimento circular foi rompido.

Tal rompimento, porém, não configurou progresso, mas retrocesso.

A cultura de cada geração é, de modo geral, o resultado da forma como foi educada a geração anterior.

O que hoje se convencionou chamar “cultura woke” é a consequência de décadas de uma educação ocidental marcada pelo desprezo dos seus próprios valores.

Nesse contexto, a excêntrica e perigosa aliança entre a esquerda woke (identitária) e o islamismo faz com que a atual disputa política deixe de ser um debate interno saudável e legítimo dentro do contexto de uma democracia para se tornar uma clivagem civilizacional que ameaça o próprio Ocidente.