Todos os posts de Catarina Rochamonte

Direita bolsotrumpista contra o Brasil e esquerda lulista contra o Ocidente

As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos datam do início do século XIX, mais precisamente de 1824, quando os EUA se tornaram o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil, proclamada em 1822. Esse gesto foi importante e simbólico, marcando o início de uma longa relação bilateral.

De lá pra cá, com alguns percalços, os dois países seguiram por uma via de entendimento, mantendo relações cordiais e cooperativas de “amizade pragmática” ou “pragmatismo responsável.”

Pode-se afirmar que os Estados Unidos têm sido, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um dos parceiros mais importantes para o Brasil, especialmente nas áreas de segurança, investimento e cooperação estratégica – ainda que essa primazia tenha sido relativizada nas últimas décadas com a ascensão de novos parceiros, principalmente a China.

A parceria Brasil-EUA, construída ao longo de décadas, com base em interesses estratégicos, afinidades políticas e cooperação econômica, sofreu um desgaste acelerado em poucas semanas, devido às atitudes desastradas de líderes políticos de ambos os lados.

Demolir é sempre mais fácil do que edificar. Gestos imprudentes, declarações hostis e falta de senso diplomático têm corroído, em ritmo preocupante, uma longa e relevante relação bilateral.

A afrontosa investida de Trump contra o Brasil – com a tarifa de 50% sobre nossos produtos, a intromissão em questões da Justiça brasileira e a revogação de visto de vários ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – foi levada a cabo sob a justificativa de proteger o ex-presidente Jair Bolsonaro, denunciado pela PGR e investigado pela Polícia Federal (PF).

Essa justificativa ideológica teve o condão de animar, no Brasil, a massa “bolsotrumpista”, comandada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, que vem esticando a corda e trabalhando fervorosamente por um cenário de terra arrasada no seu país, do qual fugiu.

Apesar de Eduardo Bolsonaro se vangloriar de ter induzido Trump a tão contraproducente atitude, essa clara traição da Pátria não foi bem acolhida pela totalidade dos bolsonaristas.

Há entre eles mesmos uma percepção de que o tiro saiu pela culatra. Trump foi ao ponto de ameaçar o Pix e o comércio da Rua 25 de Março, duas paixões dos brasileiros; uma maluquice que claramente pode resultar em menos votos de patriotas para o time dos bolsonaros, em 2026.

Ruim para o bolsonarismo, bom para o lulopetismo. O governo Lula vinha mal e o presidente vinha com inclinação constantemente negativa nas pesquisas de opinião. O governo continua mal, porém, com a inesperada contribuição da estupidez bolsotrumpista, a popularidade do presidente melhorou.

Lula está se sentindo à vontade para radicalizar o mofado discurso “anti-imperialista” contra os EUA. 

Pouco importa os impactos da persistência nesse confronto desigual: o importante é capitalizar demagogicamente a questão. Cego aos interesses do povo brasileiro que diz defender, Lula mira tão somente a eleição, em outubro de 2026.

Em artigo anterior, escrevi que Jair Bolsonaro era apenas pretexto para os ataques de Trump ao Brasil, sendo a atuação de Lula no Brics o motivo de fundo.

No Brics, Lula fala muito, mas manda pouco; mesmo assim, açulado pelo seu séquito de fanáticos, vislumbra ser alçado a uma liderança compartilhada com Xi Jinping e Putin.

Do ponto de vista da democracia – construção civilizatória de origem ocidental, espalhada beneficamente por outros continentes – o Brics não é coisa boa. 

Para o Brasil, o clube dos autocratas antiocidentais prestou até agora apenas o desserviço de ensejar um confronto com o importante aliado de 200 anos.

Em editorial intitulado “Brasil paga a conta da imprudência de Lula”, o jornal O Estadão defendeu que o Brasil abandone o Brics; tendo, dentre outros severos alertas, afirmado o seguinte: “Sairá cara a decisão de Lula de alinhar o Brasil à China e à Rússia a pretexto de fortalecer o Brics contra os EUA de Trump”.

Lula está disposto a pagar o preço. Ou melhor, fazer o Brasil pagar. Sua decisão está tomada e ele há tempos atua como um agente das principais forças antiocidentais, antidemocráticas e anticivilizatórias da atualidade, a saber, Rússia, China e Irã. 

Em reunião no Chile, com mais quatro presidentes de esquerda, Lula afirmou que “A democracia liberal não foi capaz de responder aos anseios e necessidades contemporâneas”.

Feito o diagnóstico, ele insistiu na necessidade de “regulamentação das plataformas digitais”, “combate à desinformação” e uma governança digital global”. Isso, claro, para garantir a defesa daquilo que ele entende por democracia.

Ocorre que a mais perigosa ofensiva antidemocrática em curso no mundo hoje é a ofensiva militar e ideológica contra o Ocidente que, além das ações bélicas efetivas da Rússia na Ucrânia, contam com o apoio do palavrório pérfido e malicioso do presidente brasileiro.

Brics, “sul global” e a arenga ideológica entre Lula e Trump

A política externa do presidente norte-americano Donald Trump é estupidamente imprevisível; já a política externa do presidente brasileiro Lula da Silva é previsivelmente estúpida: a soma das duas diplomacias idiossincráticas deu no questionamento de Trump sobre a Justiça brasileira e na imposição de uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os EUA.

Tudo isso, aparentemente, foi para salvar o ex-presidente Jair Bolsonaro de iminente condenação no STF e rasgar uma brecha qualquer para seu retorno à Presidência da República do Brasil.

Entretanto, parece claro que Bolsonaro serviu apenas de pretexto, sendo o principal motivo, por trás dessa atitude, o incômodo de Donald Trump em relação ao Brics, ora sob a presidência temporária de Lula.

Não se previa um tão estabanado ataque jurídico-político-tarifário como esse deflagrado por Trump contra o Brasil. Todavia, era previsível que as constantes provocações de Lula contra os EUA não haveriam de terminar em coisa boa.

A maluquice tarifária de 50% contra o Brasil não tem razão econômica, sendo abertamente político-ideológica; e o que veio a acender o pavio curto de Trump foi a Cúpula do Brics 2025, realizada no Rio de Janeiro.

Brics 

Na sua conformação atual, o Brics tem 11 países membros plenos (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia, Indonésia, Irã) e 10 países em estado probatório para admissão plena, ditos “parceiros” (Belarus, Bolívia,Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbesquistão, Vietnã).

Tanto entre os membros plenos quanto entre os parceiros, a maioria é composta por países de regimes autoritários (alguns, ditaduras escancaradas, outros, ditaduras disfarçadas).

De todo modo, o grupo forma um conjunto desarmônico de países de condições sócio-econômica e política muito desiguais e com interesses díspares ou conflitantes. No desequilíbrio, dois países, pela força econômica e/ou poderio militar, dominam: China e Rússia.

O presidente brasileiro tem feito grande esforço para alcançar um patamar de liderança no Brics; e o aspecto mais destacado desse esforço tem sido as provocações aos EUA, especialmente aquela que mais irrita Trump, que é a campanha para rifar o dólar como moeda padrão internacional.

Além disso, Lula – no Brics e fora do Brics – tem sido muito ativo na vassalagem ao tirano russo Vladimir Putin e à teocracia islâmica fundamentalista e perversa do Irã.

Sul global

Em entrevista concedida ao jornal nacional, para falar sobre o tarifaço de Donald Trump, Lula disse com todas as letras: “O Brics trabalha pelo Sul Global. Nós cansamos de ser subordinados ao Norte.”

O termo Sul Global” vai muito além de uma classificação meramente geográfica: trata-se de uma categoria político-ideológica, gestada em um caldeirão de ressentimentos e atavismos antiocidentais, que contesta a ordem internacional democrática-liberal liderada por EUA e Europa.

As fontes teóricas e intelectuais que sustentam a ideologia do “Sul global” à qual o presidente brasileiro declaradamente aderiu são as teorias do pós-colonialismo e a teoria decolonial, que defende coisas tais como uma “crítica à hegemonia epistêmica ocidental”, “denúncia da colonialidade do poder, do saber e do ser” e outras esquisitices que visam subordinar o conhecimento à ideologia.

No que há de mais refinado, pode-se dizer que as críticas à democracia liberal ocidental inspiram-se indiretamente em Carl Schmitt, um jurista que defendeu o nazismo e cuja crítica ao universalismo liberal tem eco naqueles que afirmam valores que contrastam com o humanismo e o cosmopolitismo.

O conceito de Sul Global, portantoé, antes de tudo, uma categoria estratégica e simbólica que visa articular um bloco de poder alternativo, fundado na crítica ao liberalismo político e econômico e cujas raízes intelectuais são diversas, indo do pensamento pós-colonial à crítica conservadora do liberalismo, tendo por marca político-ideológica principal a resistência aos valores e instituições do Ocidente.

A ala radicalizada e autoritária da esquerda brasileira – formada, em parte, por intelectuais marxistas – entende realmente o Brics com ponta de lança do Sul Global e trabalha para que o presidente brasileiro assuma uma liderança compartilhada com China, Rússia e Irã.

O Irã é um caso especial do desvario ideológico sul-globalista, pois sendo protótipo de regime atrasado é indicado pela esquerda mais alucinada como farol de libertação para a humanidade.

Não surpreende que, no comunicado final da Cúpula do Brics, tenha sido destacado a “violação do direito internacional nos ataques ao Irã” e condenados “nos termos mais fortes” os “ataques contra pontes e ferrovias que visaram deliberadamente civis nas regiões russas de Bryansky, Kursk e Voronezh”.

Não foi dito que o Irã tem apoiado, financiado e armado grupos terroristas que atacam Israel; nem foi dito que a Rússia invadiu e bombardeia constantemente a Ucrânia. Tal imoralidade diplomática era previsível.

É tão previsível a política externa petista que, embora todos concordem que a desavença com os Estados Unidos seja muito ruim para o Brasil, lulistas não conseguem esconder a alegria com que vislumbram os gordos dividendos político-eleitorais que o confronto com Trump pode lhes render.

Lula e a parte extremista da esquerda afundaram-se, com Brics e tudo, em um buraco ideológico. Importa agora evitar que uma circunstância derivada de um surto de estupidez trumpista-bolsonarista permita que Lula e a esquerda radical continuem arrastando o Brasil para um buraco cada vez maior.

Como sonhar ainda não foi proibido pelo STF, podemos até sonhar que dessa bagunça toda resulte, nas eleições de 2026, um Brasil livre tanto do lulismo quanto do bolsonarismo.

Lula e a política tribal 

Para melhor analisar algumas atitudes políticas recentes, é preciso distinguir duas concepções fundamentais de política. A primeira delas advém da tradição clássica e se desenvolve por um viés democrático e liberal; a segunda advém da ruptura moderna perpetrada por Maquiavel e se desenvolve por um viés autoritário antiliberal. 

Na primeira concepção, a política está vinculada à ética, como busca do bem comum e do melhor regime, sendo um meio para a realização da justiça, tornada concretamente possível  dentro de humanos limites  pelo direito e pela moral, instâncias que circunscrevem o certo e o errado. 

Na segunda concepção, a política está desvinculada da ética e identificada ao exercício do poder, sendo o direito e a moral um meio para realização da razão do Estado, instância que circunscreve o certo e o errado. 

Saindo um pouco da argumentação puramente abstrata, a fim de não enfadar o leitor com excessos especulativos, analisemos os concretos gestos políticos aos quais me referi.

Cristina Kirchner

No começo deste mês, Lula foi à Argentina expressar apoio à ex-presidente Cristina Kirchner, que está presa em regime domiciliar, após ser condenada por corrupção. Lula se deixou fotografar com ela segurando um cartaz que dizia “Cristina libre”.

Com essa atitude, o presidente do Brasil intrometeu-se em um processo judicial da Argentina, em favor daquela por quem tem “uma amizade de muitos anos que vai muito além da relação institucional. Um carinho e afeto de amigos, companheiros de campo político”, conforme escreveu Lula em suas redes sociais. 

Poucos dias depois, o presidente dos Estados Unidos mostrou que ele também não vê problema nenhum em se meter em assuntos jurídicos internos de outros países para defender seu companheiro de campo político  no caso Jair Bolsonaro que, segundo ele, é apenas um “perseguido”. Para Trump, o ex-presidente do Brasil “não é culpado de nada, exceto de ter lutado pelo povo”

Qual a diferença entre o “Deixem Bolsonaro em Paz”, de Donald Trump, e o “Cristina libre” de Lula? Nenhuma. Ambos estão defendendo seus aliados políticos e se lixando para a justiça, para a verdade e para a soberania do país nos quais estão se intrometendo. 

Lula, entretanto, afetou grande indignação contra a postagem de Trump nas redes sociais e, com a hipocrisia que lhe é peculiar, escreveu:

A defesa da democracia no Brasil é um tema que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a liberdade e o estado de direito.” 

Contradição

Seria uma postagem legítima e até louvável, caso tivesse sido escrita por alguém cujas atitudes fossem coerentes com aquilo que escreveu. Obviamente não é o caso. Lula defendendo rule of law é quase uma contradição performativa, tanto pelo seu histórico pessoal, quanto pela prontidão com que tenta blindar da aplicação da lei seus amigos corruptos. 

Se ninguém está acima da lei, por que mandar buscar, de avião da FAB, a ex-primeira-dama do Peru Nadine Heredia, condenada por lavagem de dinheiro? Se aqueles que atentam contra a liberdade não estão acima da lei, por que apoiar, proteger e adular tiranos facínoras como Nicolás Maduro e Vladimir Putin? Se preza o Estado de direito por que se aliar à teocracia fundamentalista islâmica do Irã?

É que a concepção política de Lula e de seu entorno é aquela concepção maquiavélica, de viés autoritário à qual me referi no início deste texto. Lula age politicamente tendo por critério a distinção entre amigo e inimigo, ou seja, a definição exposta por Carl Schmitt na obra “O conceito do político”.

Amigo e inimigo

Para Schmitt, cada esfera da atividade humana tem seu critério específico: na moral, é o bem e o mal; na estética, é o belo e o feio, na economia, é o útil e o inútil (ou o lucro e o prejuízo), na política, é o amigo e o inimigo.

O ilustre Prof. Dr. Carl Schmitt, que escreveu, em 1934, no Deutsche Juristen-Zeitung que “o Führer protege o Direito”, defende a política como uma esfera autônoma, com suas próprias regras, que se impõe sobre normas morais ou jurídicas.

Ele é um dos grandes críticos do liberalismo político, uma vez que a tentativa liberal de mediar conflitos pela discussão racional e pelo consenso é entendida como uma neutralização ou moralização do político, que enfraquece o Estado. 

Identificar o inimigo é uma questão de sobrevivência. A política aqui é vista pelo prisma do antagonismo e não da harmonia. 

Populismo

Importa notar que o conceito de político de Carl Schmitt caracteriza políticas tanto de direita quanto de esquerda. É antes de tudo uma caracterização que orienta políticas de cunho autoritário e totalitário, de um lado ou do outro do espectro. 

Não apenas a esquerda petista e a esquerda identitária se movem segundo tal concepção, mas também a direita populista e reacionária. Daí a semelhança das atitude de Trump e Lula, que estão se lixando para a justiça e para o estado de direito, embora vez ou outra utilizem tais conceitos para fins meramente retóricos. 

O famoso “nós contra eles”, que está voltando com força total, é uma forma menos erudita de se referir a esse tipo de política tribal. Donald Trump, Viktor Orbán, Nicolás Maduro, Jair Bolsonaro, Lula — cada qual, à sua maneira, faz uso dessa lógica política schmittiana. 

Qual o contraponto a isso? Claramente é a tradição democrática-liberal à qual pertencem moderados, tanto de direita quanto de esquerda, ou aqueles que não se identificam nem com a esquerda nem com a direita, mas apenas com os princípios basilares da civilização.

A fragmentação da sociedade em grupos identitários fechados, que muitas vezes não se reconhecem mutuamente como legítimos, recria o tipo de antagonismo existencial que Schmitt descreveu. 

Contra isso talvez seja necessário resgatar um universalismo ético-político, de viés kantiano, baseado na razão, na dignidade humana e na possibilidade de uma ordem moral e jurídica universal.

Consenso moral mínimo

Para isso é necessário, porém, um consenso moral mínimo. Por exemplo, não legitimar como luta política a ação de um grupo de terroristas que sequestra e degola bebês em nome da causa palestina; não admitir aliança com o regime que financia esses mesmos terroristas, enforca homossexuais e espanca mulheres que ousam mostrar os cabelos; não fazer notinha diplomática na cúpula do Brics condenando um país invadido em vez de condenar o país invasor.

Vê-se, pois, que os valores que movem a política externa do atual governo Lula não são universalizáveis, o que é outra forma de dizer que Lula se move no âmbito de uma concepção amoral da política, que a sua concepção de política cavalga a moral ou, dito de forma mais rude, que Lula tem a moral de uma cavalgadura. 

Um confronto entre as teorias de Carl Schmitt e Immanuel Kant é, em certo sentido, um confronto entre dois paradigmas opostos de filosofia política. O primeiro rejeita qualquer forma de universalismo político ou jurídico, enquanto o segundo defende um cosmopolitismo racional baseado no direito. 

Para Schmitt, o direito depende da decisão política; para Kant, a decisão política subordina-se ao direito e à exigência da razão. De um lado, o avanço de nacionalismos, guerras e discursos contra os inimigos (à la Schmitt); de outro, a defesa de direitos humanos e do direito internacional (à la Kant). 

Lula age à la Schmitt, mas discursa à la Kant. Isso porque, embora pouco letrado, ele é diplomado em cinismo e astúcia pela escola Nicolau Maquiavel. 

The Economist pegou leve com Lula

Trabalhar com análise política é interessante, mas, às vezes, se torna um tanto fastidioso, tendo em vista a necessidade de repisar obviedades “ululantes”.

Tenho insistido especificamente na incoerência de Lula, que se autoproclama líder democrático ao mesmo tempo em que defende ditaduras amigas; que se proclama pacifista ao mesmo tempo em que se derrete de amores pelo belicista Putin.

Em janeiro de 2024, escrevi o artigo “Lula: cai a máscara democrática de um tirano”; em janeiro de 2025, escrevi “Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro”, dentre dezenas de outros textos nos quais repiso a hipocrisia do presidente brasileiro.

Foi, portanto, com interesse que li a matéria da revista britânica The Economist, que expõe a “política externa cada vez mais incoerente de Lula”. Antes tarde do que nunca, pensei eu. Já era tempo de o mundo livre abrir bem os olhos a respeito da hostilidade de Lula contra o Ocidente.

Embora a matéria tenha levado a uma furiosa retaliação verborrágica da mídia governista, a ponto de determinados portais chamarem a publicação de “preconceituosa, obtusa e reacionária”,trata-se de uma reportagem quase descritiva, com pouco juízo de valor.

A reportagem traz o seguinte título: “Presidente do Brasil perde influência no exterior e é impopular em casa”. É um fato, não uma interpretação.

O texto – que começa apontando a veemente condenação do governo brasileiro ao ataque americano às instalações nucleares do Irã – segue explicitando a incoerência e a obtusidade da atual política externa brasileira:

Lula corteja a China”, diz a revista, lembrando que ele se encontrou com Xi Jinping duas vezes no ano passado e que não fez nenhum esforço para estreitar laços com os Estados Unidos desde a eleição de Donald Trump.

Lula foi o único líder de uma grande democracia a comparecer às comemorações russas do fim da Segunda Guerra Mundial”, diz a matéria, acrescentado que Putin nem ninguém deu ouvidos ao seu interesse de mediar a guerra na Ucrânia.

Lula tampouco consegue assumir protagonismo e pragmatismo na América Latina, afirma ainda a revista:

“Quando assumiu o cargo pela terceira vez, em 2023, apoiou Nicolás Maduro, o autocrata da Venezuela”, denuncia The Economist, apontando também o distanciamento de Lula em relação ao presidente argentino Javier Milei por motivos meramente ideológicos e o esquecimento do Haiti, que “se afunda em um inferno governado por gângsteres”.

Por fim, a matéria conclui acerca da irrelevância do Brasil no contexto das guerras nas quais Lula insiste em se meter: “nas questões geopolíticas mais urgentes, como a guerra na Ucrânia ou o Oriente Médio, o Brasil simplesmente não é muito importante. Lula deveria parar de fingir que é e se concentrar em questões mais próximas”.

Tudo isso é coisa sabida, denunciada na referida reportagem de forma até comedida. Os gringos pegaram leve com Lula.

A revista apenas explicita o que qualquer um que não seja lulista fanático não tem mais dúvida: o presidente brasileiro tornou-se um ator irrelevante, quando não nocivo, no cenário internacional, que foi palco da sua maior ambição e de esforços inauditos de projeção.

A hostilidade de Lula ao mundo livre é proclamada por ele mesmo, ao alinhar-se ao chamado Sul Global; caminho no qual é insuflado pela extrema-esquerda brasileira que adotou o discurso decolonialista que demoniza a Civilização Ocidental. 

Já a simpatia de Lula pelo Irã avança para o apoio sempre que aparece oportunidade; e vem de longe, desde os primeiros mandatos.

A reação do Itamaraty

Mais do que a reportagem sem surpresas da revista The Economist, atraiu minha curiosidade a carta assinada pelo ministro ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira: uma coisa elaborada não pela prudência diplomática, mas por insidioso rancor; atitude incompatível com as tradições de apuro e competência da diplomacia brasileira desde os tempos do Barão do Rio Branco.

A carta do Itamaraty, respondendo à reportagem da revista The Economist sobre o presidente Lula, revela mais sobre este personagem do que as verdades ditas pela revista britânica. É bizarro que o Ministério das Relações Exteriores ocupe seu tempo respondendo reportagens adversas publicadas ao redor do mundo.

Ao primeiro olhar já podemos perceber que ao Itamaraty coube apenas alinhavar a narrativa do presidente contrariado e ressentido. 

Poucos líderes mundiais, como o Presidente Lula, podem dizer que sustentam com a mesma coerência os quatro pilares essenciais à humanidade e ao planeta: democracia, sustentabilidade, paz e multilateralismo”, diz a carta oficial.

Essa afirmação medeia entre a incoerência e a hipocrisia. O próprio Lula já declarou que a democracia, para ele, é uma mera questão de “narrativa”.

O presidente brasileiro foi – em alguns casos continua sendo – apoiador (às vezes financiador) de um extenso número de ditaduras e regimes autoritários: Cuba, Bolívia (ao tempo de Evo Morales), Venezuela, Rússia, Irã, etc.

Sob a liderança de Lula, o Brasil tornou-se um raro exemplo de solidez institucional e de defesa da democracia”, prossegue o documento assinado pelo ministro Mauro Vieira.

Pelo contrário, sob a liderança de Lula, o Brasil tornou-se um raro exemplo de país formalmente democrático que defende e apoia ditaduras e regimes autoritários ao redor do mundo.

Na gestão do Presidente Lula, o Brasil condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia, ao mesmo tempo em que apontou a necessidade de abrir caminhos para uma resolução diplomática do conflito, ainda em 2023”, continua o texto vexaminoso.

Todo mundo sabe que na gestão do presidente Lula, o Brasil adotou posição dúbia quanto à guerra da Ucrânia, com indisfarçável viés pró Rússia; chegando ao ponto de igualar o país invadido ao país invasor na responsabilidade pela guerra.

Para humanistas de todo o mundo, incluindo políticos, líderes empresariais, acadêmicos e defensores dos direitos humanos, o respeito à autoridade moral do presidente Lula é indiscutível.”

Esse trecho chega a ser risível. Certamente que a autoridade moral do presidente Lula é discutível; tanto que suas atitudes tíbias, incongruentes e suas narrativas mistificadoras costumam ser discutidas e refutadas no Brasil e mundo afora, a exemplo do que acaba de ser feito pela revista The Economist e pelo presente artigo.

Estranha democracia e estranho mundo seria esse no qual a “autoridade moral” de Lula seria indiscutível. Mas é para uma distopia como essa que o governo brasileiro tende, ao insistir nas suas mentiras e apostar na censura contra todos aqueles que ousam discordar das “verdades” oficiais. 

Essa carta miúda do Itamaraty é mais um episódio vergonhoso de uma diplomacia que se apequenou, submetida ao ego inflado de um presidente que se socorre dos naufrágios da sua incompetência no barco ligeiro das falácias, sofismas e narrativas de ocasião.

Em defesa de Israel contra a teocracia islâmica e o antissemitismo de esquerda

Protótipo de atraso e opressão, o regime teocrático do Irã, que apedreja, chicoteia e estupra mulheres rebeldes, além de enforcar homossexuais, vem sendo acolhido entusiasticamente por parte significativa da esquerda.

No Brasil, partidos políticos e intelectuais marxistas estendem-se em incontidos devaneios, quando chegam a proclamar a tenebrosa teocracia dos aiatolás como farol de uma revolução mundial libertadora e progressista.

Essa febre ideológica da esquerda pró-Irã abre-se na linha de uma regurgitação antissemita que se alastra no mundo desde o massacre brutal perpetrado pelos terroristas do Hamas em solo israelense, em 7 de outubro de 2023.

Desde então, a esquerda antissemita, animada pela ousadia cruel do Hamas, tem se fixado no objetivo da extinção do Estado de Israel; o que só pode acontecer através do extermínio de milhões de judeus; ou seja: um novo holocausto.

O Irã é a Pérsia. Os persas já foram aliados dos judeus, durante a Antiguidade, quando desempenharam um papel central na libertação do povo hebreu do exílio na Babilônia e apoiaram a reconstrução do templo em Jerusalém.

Na contemporaneidade, durante o reinado de Mohammad Reza Pahlavi, o último xá do Irã (1941–1979), a relação entre o Irã e Israel era estreita, cooperativa e estratégica, embora não oficialmente reconhecida.

O motivo principal do afastamento e hostilidade do Irã em relação a Israel é o fundamentalismo islâmico. Desde a Revolução Islâmica de 1979, os aiatolás do Irã expressam abertamente seu objetivo de destruir Israel.

O perverso desiderato não fica apenas no plano das ideias, mas busca efetivar-se através do armamento e financiamento de grupos terroristas localizados em outros países e que agem diretamente contra Israel; é o caso do Hamas em Gaza, do Hezbollah no Líbano e dos Houthis no Iêmen.

O Irã lidera hoje o eixo do terror para destruição de Israel. Nenhuma pessoa de razoável compreensão deixará de entender que o empenho extraordinário do Irã para ter uma bomba nuclear tem por objetivo usar tal artefato na consecução da sua estratégia político-militar maior: a destruição de Israel.

A luta de Israel contra o Irã é claramente uma luta pela sua própria sobrevivência. Sem exagero retórico, trata-se de uma guerra existencial para os judeus. Israel não pode, sob hipótese alguma, permitir que o Irã tenha uma bomba atômica.

Essa questão tem sido intensamente exposta e comentada. Repito aqui o que já se sabe por entender que seja imperioso, nesse momento, uma tomada de posição clara por parte de todos aqueles que têm voz no debate público.

Embora o governo brasileiro e todos os seus tentáculos de cooptação formem uma linha de frente dos partidários da tirania dos turbantes, cabe a nós outros que discordamos da diplomacia do mal levada a cabo por Lula, deixarmos claro nosso posicionamento.

Quando Hitler ascendeu ao poder e ameaçou o mundo, importava menos teorizar sobre sua personalidade doentia do que confrontar o nazismo e seus apoiadores.

Embora a ideologia nazista tenha brotado no interior do Ocidente, o restante da Europa e os Estados Unidos souberam, naquela época, confrontar o mal quando o mal se mostrou assim tão patente. Hoje em dia, porém, parte do Ocidente parece ter esquecido seus valores e estar desprovido de bússola moral.

Entre a tirania dos aiatolás que espalha o terror no mundo e mantém seu próprio povo sob o jugo das leis islâmicas fundamentalistas, abusivas e cruéis e um minúsculo país democrático que luta pela sua existência cercado terroristas por todos os lados, parte da população dos países livres e democráticos optou por apoiar e torcer pelo lado mais trevoso.

Talvez estejamos vivendo tempos ainda mais sombrios do que o período da segunda guerra mundial, justamente por essa obtusidade moral disfarçada de pensamento crítico que criou teia de aranha nos cérebros de colunistas, comentaristas e acadêmicos que acham que estão sendo muito inteligentes e progressistas quando questionam grandiloquentes por que, afinal, Israel pode ter uma bomba atômica e o Irã não.

Por mais que se tente dissociar uma coisa da outra esse ódio todo a Israel nada mais é que a expressão contemporânea de um antissemitismo milenar.

O covarde antissemitismo de esquerda, que tenta negar seu nome, usa como mote geral da sua perfídia a orgulhosa confissão de antissionismo, alegando que este seria um mal inquestionável.

Eis aí: o sionismo não é um mal; trata-se do movimento legítimo que permitiu aos judeus, secularmente dispersos, perseguidos e tantas vezes sacrificados, construir um lar, reconquistar uma pátria.

Anular e difamar preliminarmente o significado e valor histórico e simbólico do sionismo evidencia insopitável inclinação antissemita.

Essas pessoas que optaram por tomar o lado do islamo-fascismo contra Israel, fazem um jogo retórico no qual deixam momentaneamente de lado o fato de que se trata aí da nação judaica, ou seja, do braço forte, do poderoso escudo de um povo que já foi massacrado e que prometeu para si mesmo que a barbárie do holocausto jamais iria se repetir.

Na verdade, todo o Ocidente democrático e livre já bradou um “nunca mais”. Como bem escreveu Andreas Scheiner, em artigo no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ), é um desalento, uma desilusão constatar que o mundo “abandonou o Estado judeu após o maior massacre em massa contra judeus desde a Shoah. Em vez de combater a ideologia genocida do islamismo, acusações de genocídio são direcionadas contra Israel”.

No referido artigo, diz-se o óbvio: não se trata de retirar de ninguém o direito de criticar o atual governo de Israel ou a forma como está sendo conduzida, por exemplo, a guerra em Gaza contra o Hamas. Qualquer crítica nesse sentido seria legítima.

O que vemos rotineiramente na mídia, porém, é mais que isso: é uma manipulação grosseira dos fato, uma distorção das coisas em desfavor de Israel, um uso retórico e carregado de linguagem que resulta da sua demonização.

Enquanto frequentemente se fala da ´guerra agressiva de Putin´ contra a Ucrânia, fala-se do ´genocídio israelense´”, nota Scheiner e continua:

No New York Times, Israel foi associado ao termo “genocídio” nove vezes mais frequentemente do que Ruanda, seis vezes mais frequentemente do que Darfur. Entretanto, nas situações mencionadas, as intenções genocidas eram cristalinas. Pode-se apontar muitas críticas à condução da guerra israelense. Mas falar em genocídio enquanto Israel – mesmo que insuficientemente – envia ajuda humanitária para Gaza não faz sentido. Sem mencionar que a população palestina cresceu de quase dois milhões para cinco milhões e meio desde 1990”.

O mesmo artigo nos traz ainda uma reflexão importante: os israelenses não estão muito preocupados com o que o militante ocidental woke de esquerda pensa do seu país. Eles estão mais ocupados com a sua defesa real que com a sua defesa retórica:

A incapacidade de conter o ataque da Hamas lembrou dolorosamente ao país que não pode se dar ao luxo da fraqueza. […] No estado judeu pouco se importa com os julgamentos do mundo. A segurança própria tem prioridade”, escreve o articulista suíço.

Para desespero de ativistas anti-Israel como a sueca Greta Thunberg, a euro-deputada franco palestina Rima Hassan, o brasileiro Thiago Ávila e milhares de outros que pensam e militam como eles, os judeus não estão passivos ante a ameaça do Hamas, do Hezbollah, dos Houthis e do Irã. Eles têm um poderoso exército, um Instituto de Inteligência e Operações Especiais invejável e eles vão se defender.

Alguns se irritam bastante ao constatarem que os judeus só se ajoelharão para seu Deus, permanecendo impávidos diante dos inimigos que almejam a sua aniquilação.

As Forças de Defesa de Israel (IDF) e o Mossad revivem hoje um “judaísmo guerreiro e armado” que remete ao líder rebelde Simon Bar Kochba, o qual ousou a revolta judaica contra os romanos.

E assim tem que ser. Os israelenses não podem se dar ao luxo de contemporizar com inimigos que invadem suas terras, estupram suas mulheres, degolam seus bebês e metralham seus jovens.

A operação Rising Lion é um levante do povo judeu contra a teocracia perversa que o ameaça. Não é o primeiro; senão mais um dos muitos sem os quais Israel já teria deixado de existir.

Brasil: a ordem dos privilégios e o império do crime

O debate sobre a democracia é permanente, estando particularmente aceso no momento, quando são detectadas graves crises em alguns países e apontada a baixa qualidade crônica das democracias de outros. No Brasil, a qualidade democrática está péssima.

A igualdade é um princípio democrático, mas, enquanto os melhores regimes democráticos estruturam modelos que possibilitam um crescimento contínuo da igualdade ao mesmo tempo em que preservam a liberdade, de modo contrário, os regimes totalitários, a pretexto de construírem a igualdade absoluta, destroem a liberdade absolutamente.

O avanço contra a liberdade de expressão, venha de onde vier, nada mais é que a pavimentação para a construção de um regime totalitário. 

Deixaremos, porém, o complexo debate sobre os ataques à liberdade de expressão no Brasil para outra oportunidade e nos ateremos, por ora, na descrição da estranha democracia que os autoritários disfarçados de democratas se arrogam defender. 

Podendo ainda apenas formalmente ser considerada uma democracia, o Brasil constitui, na prática, um modelo disfuncional, uma espécie de “ordem dos privilégios”.

Dentro desta “ordem dos privilégios”, os três poderes da República Federativa do Brasil estão exemplarmente equilibrados.

É fato notório que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário arengam-se mutuamente, estranham-se, chamam nomes feios uns com os outros; mas tudo isso por coisas de somenos, sempre superadas em nome da causa maior dos privilégios.

Privilégios do Executivo

Dos vastos e muito conhecidos privilégios do Executivo, avanço apenas dois exemplos periféricos: o cartão corporativo e os jetons pagos a ministros de governo para atuarem em Conselhos de empresas estatais.

Pelo menos quatro ministros recebem jetons do Sistema S (como Sesc, Senac). Em 2024, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) somou R$ 257 mil em jetons por apenas duas reuniões e Camilo Santana (Educação) R$ 129 mil por sete encontros. Márcio Macêdo (Secretaria-Geral da Presidência), por sua vez, somou jetons de R$ 129 mil por sete reuniões em 2024; já Luiz Marinho (Trabalho e Emprego), também conselheiro no Sesc, tem recebimento previsto, mas sem valores divulgados no Portal da Transparência.

Quanto ao cartão corporativo, sabe-se que, entre janeiro de 2023 e dezembro de 2024, só em gastos sigilosos, a Presidência da República gastou um pouco mais de R$ 38 milhões, informação amplamente divulgada pela imprensa. Porém, não se deve perder a paciência, pois daqui a 100 anos o sigilo desses gastos será quebrado.

É bem verdade que as referidas gastanças estão dentro da legalidade. Mas nem tudo que é legal é moral. Um governo que se diz tão preocupado com as desigualdades sociais, que se diz em favor dos pobres, deveria ser o primeiro a cortar na carne os privilégios.

Em vez disso, aos já aberrantes privilégios, acrescenta-se rotineiramente a ostentação, como no caso das viagens internacionais do Presidente Lula e da Primeira-Dama, Janja, já popularmente conhecida como “Esbanja”, devido às suas notórias extravagâncias em viagens internacionais.

Privilégios do Legislativo

Dos privilégios do Legislativo, basta citar as já sobejamente conhecidas emendas parlamentares que, secretas ou não, são bilionárias.

Em tese, tais emendas deveriam servir ao atendimento de populações que só os parlamentares conheceriam suficientemente bem para lhes saber as necessidades. Seria razoável se os números fossem razoáveis.

Porém, R$ 52 bilhões, que foi o orçamento de 2024 para as emendas parlamentares, não é razoável; é um sequestro de dinheiro público para fins eleitoreiros (em alguns casos já comprovados ou em investigação, descambando para a corrupção pura e simples).

Na melhor das hipóteses, trata-se de um privilégio que visa garantir ao privilegiado a perpetuação da sua condição de casta superior.

Privilégios do Judiciário

Na plêiade de privilégios do Judiciário resplandecem penduricalhos que se elevam em forma de super-salários estelares.

O teto constitucional de salários para 2025 –que serve de limite máximo para a remuneração de servidores públicos federais – foi fixado em R$ 46.366,19 mensais, mas muito se engana quem pensa que os juízes cumprirão esse teto. Deveriam ser os mais ciosos em cumpri-lo, mas o desprezam majestaticamente.

Em 2024, em média, cada juiz recebeu aproximadamente R$ 270 mil extras. Entre novembro de 2023 e outubro de 2024, 125 magistrados receberam rendimentos líquidos superiores a R$ 500 mil em um único mês. A maior parte desses pagamentos ocorreu no Tribunal de Justiça de Rondônia, onde 114 juízes receberam até R$ 1,2 milhão líquidos em fevereiro de 2024.

Será ocioso dizer que todas essas enormidades estão revestidas de engenhosas camadas de legalidade.

Os valores elevados são atribuídos ao pagamento retroativo do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), também conhecido como quinquênio, benefício extinto em 2006, mas restabelecido em 2022 para juízes federais.

Essa decisão gerou um efeito cascata, levando tribunais estaduais a reimplantá-lo, resultando no pagamento de valores retroativos desde 2006.

Não se vê, infelizmente, nenhuma efetiva organização da sociedade civil para se contrapor a esse estado de coisas. No Brasil, o potencial de uma valorosa reação política está adormecido.

A massa mobiliza-se muito mais para defender políticos do que para confrontar tais disfuncionalidades e prefere eleger demagogos em detrimento dos poucos que efetivamente se contrapõem a essa espúria ordem de privilégios.

O crime se organiza

Paralelamente a isso, assistimos ao crescimento assustador da violência. Vê-se e amplamente se comenta que, em algumas regiões do país, o chamado “crime organizado” atua já como governo paralelo, às vezes mais organizado que os próprios poderes legais.

No Brasil, o crime organizado está altamente estruturado e em expansão. Antes mais restrito a pequenos espaços densamente povoados nas favelas do Rio de Janeiro, agora avança por todo o país; e até pelo continente sul-americano.

Matérias jornalísticas dão conta de que o PCC já utiliza um “censo do crime” e coordena presença estadual e nacional de forma estratégica.

Com força até aqui incontrolável, o crime organizado já domina vastas áreas da Amazônia. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que 260 dos 772 municípios da Amazônia Legal tinham atuação de facções em 2024 — um aumento de 46% em relação a 2023.

As maiores organizações — PCC, Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN) — disputam rotas de tráfico e controle territorial, muitas vezes em áreas estratégicas de mineração e fronteiras.

No Ceará, a facção Guardiões do Estado (GDE), responsável pelos grandes atentados de 2019, ampliou sua presença nos últimos anos.

Assim, enquanto os poderes legalmente constituídos ocupam-se de seus próprios interesses e de seus sempre crescentes privilégios, os poderes ilegais vão constituindo no Brasil o seu império do Crime.

Suicídio assistido: progresso ou regressão civilizatória?

A Assembleia Nacional Francesa aprovou, em 27 de maio de 2025, com 305 votos a favor e 199 contra, um projeto de lei sobre o direito à morte assistida.

Após a aprovação pela Assembleia Nacional, o projeto de lei seguirá para exame no Senado no final de setembro. A Ministra da Saúde, Catherine Vautrin, planeja a adoção final dos textos antes de 2027.

O referido projeto de lei estabelece como critérios de elegibilidade para a morte assistida ser maior de idade, cidadão francês, sofrer de doença grave e incurável em estágio avançado ou terminal, experimentar sofrimento físico ou psicológico constante e ser capaz de expressar sua vontade livremente.

A verificação da elegibilidade para o suicídio assistido passará por um procedimento burocrático que envolve um colegiado com, pelo menos, um especialista na patologia do paciente que decidiu se matar, um cuidador envolvido no tratamento e o próprio médico a quem foi solicitada a “ajuda”.

Via de regra, a administração da substância letal prescrita será feita pelo próprio doente, podendo, entretanto, ser feita por médico ou enfermeiro caso o doente não esteja em condições de fazê-lo.

Até aqui, a descrição objetiva de um projeto que avança na França, como já avançou e se tornou lei em outros países. A partir de agora, algumas reflexões que visam explicitar o absurdo que se disfarça de sensatez e o descaso que se fantasia de compaixão.

O esquecimento de Hipócrates e a perversão da medicina

O Juramento de Hipócrates, uma das tradições mais antigas da medicina, estabelece os fundamentos éticos que orientam a conduta dos médicos desde a Antiguidade. 

Embora reescrito em novas versões – que desvirtuam mais ou menos a força do texto original para fazê-lo palatável à lassidão moral pós-moderna – a essência permanece: o compromisso inabalável com a preservação da vida humana.

Em sua forma clássica, o juramento afirma: “A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte”.

A legalização da eutanásia, assim como a legalização do aborto, conduz, pois, à perversão da medicina, induzindo o médico a macular sua vida e sua arte.

O médico existe para cuidar da vida, aliviando o sofrimento sem jamais antecipar a morte como solução. Prescrever substância letal é inverter o princípio fundamental da medicina, transformando aquele que cura em agente de morte, o que contradiz diretamente o espírito do juramento que ele fez ao iniciar sua jornada.

Embora o projeto de lei que acaba de ser aprovado na Assembleia Francesa permita ao médico ou enfermeiro invocar uma “cláusula de consciência”, toda a comunidade médica se encontrará sob pressão, uma vez que o médico que se recusar à assistência terá por obrigação fornecer à pessoa que decidiu se matar os nomes dos profissionais dispostos a ajudá-la no infeliz intento.

Além disso, o texto do projeto prevê o crime de obstrução do acesso à morte assistida, punível com dois anos de prisão e uma multa de € 30.000, semelhante ao previsto para a obstrução à interrupção voluntária da gravidez (eufemismo usado pelos franceses para se referir ao aborto).

Lembremos de dois casos notórios no Reino Unido em que mulheres foram presas por rezar em silêncio em frente a clínicas de aborto:

Em 6 de dezembro de 2022, Isabel Vaughan-Spruce, diretora do grupo pró-vida March for Life UK, foi presa por rezar silenciosamente fora da clínica BPAS Robert, em Kings Norton, Birmingham. Em fevereiro de 2025, Rose Docherty, de 74 anos, foi presa por segurar um cartaz oferecendo conversa a mulheres em frente ao Queen Elizabeth University Hospital, em Glasgow.

Diante de tal contexto, não é inverossímil imaginar pessoas sendo presas por tentarem convencer doentes terminais a não se matarem.

Recusa coletiva em cuidar dos mais vulneráveis”

Em artigo publicado no jornal francês Le Figaro, o presidente da Ordem de Malta na França, Cédric Chalret du Rieu, argumenta que a aprovação da lei de ajuda para morrer é sintoma “não de progresso ético, mas de abandono, particularmente das pessoas mais isoladas e vulneráveis”.

O artigo denuncia que, em grande parte da França, os cuidados paliativos permanecem inacessíveis: “vinte departamentos carecem de unidades especializadas. O número de profissionais de saúde treinados para apoiar os cuidados paliativos é amplamente insuficiente. Muitos pacientes — e ainda mais aqueles que vivem na pobreza — morrem em condições indignas, sozinhos, com dor, sem apoio ou assistência”.

Diante desse quadro desolador ele coloca a questão: “como uma sociedade pode vir a considerar a morte um ato de compaixão quando não utilizou todos os meios possíveis para aliviar, apoiar e acompanhar”?

Sua crítica ao projeto de lei em vias de ser implementado na França sustenta-se também na constatação de que, em países como Canadá, Bélgica ou um estado como o Oregon, nos Estados Unidos, onde tais medidas já existem, “são os mais frágeis moral e materialmente que estão se autoexcluindo dessa forma radical e definitiva.”

Em um país em que o sistema de saúde não oferece adequado suporte para aqueles que carecem de cuidados paliativos, a possibilidade de morte assistida é muito mais uma política de Estado eugenista do que a opção consciente de um cidadão.

Segundo du Rieu, por mais que se negue, o argumento econômico está subjacente e “abrir um caminho legal para a morte em tal contexto é oferecer uma fuga sem saída para aqueles a quem alegamos não ter mais nada a oferecer. É substituir o dever de sustentar pela facilidade de derrubar”.

Sobre a questão econômica, cito um inquietante parágrafo do artigo “A forma europeia de morrer: sobre eutanásia e suicídio assistido”, de Michel Houellebecq:

“A ficção científica americana escrita durante os anos 1950 e 1960 explorou com um poder impressionante e visionário uma série de questões que agora fazem parte, ou começaram a fazer parte, do nosso cotidiano: a internet, o transumanismo, a busca pela imortalidade e a criação de robôs inteligentes. Para esses escritores, a ideia da eutanásia, concebida como uma solução para os problemas econômicos impostos pelo envelhecimento da população, era um assunto óbvio — quase óbvio demais…”

“Ladeira infinitamente perigosa”

Bispos da Ilha de França, em carta aos parlamentares da sua região, denunciaram a “ladeira infinitamente perigosa” que era a aprovação do projeto de lei sobre a morte assistida.

Segundo eles, os mais vulneráveis ou os mais pobres provavelmente serão “os primeiros a serem persuadidos de que são desnecessários assim que envelhecerem ou adoecerem.”

Com razoabilidade e clareza moral os bispos questionam: “Se o objetivo é proteger os mais fracos entre nós de um sofrimento terrível, por que não recorrer resolutamente, primeiro, aos cuidados paliativos?”

Os referidos religiosos denunciaram também a dificuldade de frear uma estratégia que tenderia, a cada ano, a ampliar gradualmente o escopo da lei e a abrangência da permissão para a eutanásia ou o suicídio assistido.

Várias outras instituições, ONGS e associações profissionais também criticaram o projeto de lei de “ajuda a morrer”. 

O Conselho Nacional Profissional de Psiquiatria da França, por exemplo, alertou que isso causaria um curto-circuito nos sistemas de atendimento a pessoas com transtornos mentais.

O paradoxo é evidente: muitos desses profissionais estão envolvidos há décadas em projetos de prevenção ao suicídio. Com a nova lei, pacientes que sofrem de doenças psiquiátricas graves e persistentes (depressão grave, esquizofrenia, transtornos de personalidade, etc.) poderiam alegar atender aos critérios estabelecidos no texto da lei.

Em carta aberta, os profissionais de psiquiatria argumentaram que um pedido de assistência para morrer, mesmo racionalizado, pode ser uma forma de expressar uma intenção suicida, tornando a morte assistida uma resposta prematura e irreversível a sofrimento que poderia ser tratado. Isso poderia confundir profissionais e entes queridos e dificultar a prevenção do suicídio

Progresso ou regressão?

Para os herdeiros mais radicais do iluminismo francês mais radical, a legalização da morte assistida é o ápice da República, uma liberdade concedida aos cidadãos libertos da religião.

Trata-se, claro, de uma grande falácia. O homem sempre foi capaz de pôr fim à sua vida pelo suicídio, o que demonstra que sempre foi livre para fazer suas próprias escolhas. 

Como escreve Houllebecque, “um suicídio assistido — no qual um médico prescreve um coquetel letal que o paciente autoadministra em circunstâncias de sua própria escolha — ainda é um suicídio”.

A suposta nova liberdade ou novo direito pelo qual os defensores da referida lei militam é apenas a transferência para o Estado do poder sobre o momento derradeiro da vida, momento esse de suma importância que passará a ser planejado e burocratizado pela entidade que, no coração dos ideólogos, ocupou o lugar de Deus.

O que a lei de ajuda a morrer ou qualquer outra lei que normalize a eutanásia ou o suicídio assistido faz é tentar transferir o controle do momento da agonia. Escreve Houellebecq no artigo já citado:

“Em quase todos os países, eras históricas, religiões, civilizações e culturas, a agonia tem sido considerada um aspecto crucial da nossa existência. Quer você acredite ou não na existência de um criador que o chamará à responsabilidade, este é o momento da despedida — uma última chance de rever certas pessoas, de lhes dizer o que talvez nunca tenha dito antes e de ouvir o que elas possam ter a lhe dizer. Interromper esses estertores da morte é ímpio (para aqueles que creem) e imoral (para qualquer pessoa). Este é o consenso das civilizações, religiões e culturas que nos precederam, e é isso que o chamado progressismo está se preparando para destruir”.

O “progresso” buscado por certos progressistas parece não ser outra coisa mais que distanciar a lei civil da lei moral, afastar-se do natural e negar qualquer coisa que aponte para a transcendência de sentido e para o divino.

Sem modelo ideal, sem valor absoluto para o qual tenda ou no qual encontre o seu limite, as leis humanas vão se tornando o laboratório ideal das ideias extravagantes que surgem nas mentes cheias de convicção dos fanáticos das religiões políticas, que encontram no Estado a força necessária para implementá-las.

O Estado que, assim como o médico, deveria ter por função precípua a proteção e a preservação da vida, atribui a si a função de matar, seja um feto indefeso, seja um idoso com um câncer terminal.

Fala-se em liberdade individual ao mesmo tempo em que se pede ao Estado licença para morrer, dando a esse novo Deus mais e mais poder sobre a vida e a morte, desde a fase fetal até o último suspiro.

No entanto, já profetizou Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. 

Se não há na vida humana nenhum sentido que a transcenda, nenhum valor absoluto que impeça a sua aniquilação deliberada por meio da legalização do aborto ou da legalização da eutanásia, não há nada que impeça o Estado de se tornar uma eficiente máquina de matar, levando adiante, sob diferentes pretextos, um projeto eugenista na forma de eutanásia generalizada e suicídio assistido em massa.

Um Leão, filho de Agostinho. As boas impressões causadas pelo novo papa

Quem acompanha a saga de Robert Francis Prevost desde que ele deixou de ser cardeal e assomou à janela da Basílica de São Pedro, no Vaticano, como o novo papa, percebe que ele vem causando crescente entusiasmo.

As primeiras falas e gestos de Leão XIV – que reagiu aos aplausos dos fiéis com lágrimas – foram já cativantes. Toda simplicidade contém espontaneidade; e foram comoventemente espontâneas aquelas furtivas lágrimas vertidas em vista da multidão de fiéis que o saudava.

Eis que, em meio a esse entusiasmo, ouço de um comentarista de televisão uma comparação depreciativa para o novo papa em relação ao anterior: Leão XIV não teria o carisma de Francisco I.

Vou deixar de lado a subjetiva depreciação para concordar na objetividade da forma: de fato, o novo papa não tem o carisma do seu antecessor nem de nenhum outro papa da história; isto porque Leão XIV tem o seu próprio carisma.

O carisma do papa Leão XIV

Na teologia cristã, especialmente na tradição paulina, “carisma” vem do grego charis (graça), e significa um dom gratuito concedido por Deus ao ser humano para o bem da comunidade. Esses dons espirituais são variados e incluem capacidades como ensinar, liderar com sabedoria, profetizar, etc.

O sociólogo Max Weber, porém, deu ao termo “carisma” um significado mais secular. Para ele, trata-se de uma qualidade extraordinária atribuída a uma pessoa, que a torna capaz de exercer liderança ou autoridade com base em um reconhecimento quase mágico pelos seguidores.

Considerando esse sentido sociológico, há sempre a triste possibilidade de um líder usar mal o seu carisma ou usá-lo deliberadamente para o mal.

Não parece, porém, ser o caso de Leão XIV, que até agora tem irradiado um carisma benévolo, ancorado em formidáveis características como a própria vocação para o apostolado, a simplicidade, o equilíbrio e a coragem.

De um líder religioso católico espera-se, claro, que tenha vocação pastoral: gostar de estar junto às pessoas, mantendo-as fortes na fé comum, ou trabalhando para que se convertam.

Segundo amplamente divulgado, com gravação de inúmeros depoimentos, quando bispo na cidade de Ciclayo, no Peru, Robert Prevost foi pródigo em demonstrações de desvelo para com a gente da sua paróquia, em geral pessoas muito humildes.

Seu equilíbrio já se mostrou ao tomar para si projetos de reforma ensaiados por seu antecessor sem avançar por proselitismo de nenhuma transformação temerária; fazendo, aliás, acenos ao tradicionalismo, quando, por exemplo, adotou as vestes papais que haviam sido abandonadas por Francisco I.

Quanto à coragem, podemos destacar que o novo papa já começou sua atuação abordando os principais conflitos mundiais, prontificando-se a atuar como ponte para a paz e intermediário confiável em um contexto de forte beligerância e rudes conflitos ideológicos.

Primeiros gestos no xadrez geopolítico

Cabe salientar que o papa, além de líder religioso, é também um estadista que – mesmo sem ter divisões de exército para intervir em guerras – tem autoridade e voz que ultrapassam fronteiras. Assim sendo, revestem-se de singular relevância seus primeiros movimentos no complexo tabuleiro da geopolítica.

Leão XIV enviou, sem rodeios, mensagem ao rabino romano Riccardo Di Segni expressando seu compromisso em fortalecer os laços entre a Igreja Católica e a comunidade judaica. Isso em um momento de aumento exponencial de antissemitismo no mundo.

Na carta, o pontífice afirmou a intenção de “continuar e fortalecer o diálogo e a cooperação da Igreja com o povo judeu no espírito da declaração ‘Nostra aetate’ do Concílio Vaticano II.

A declaração ‘Nostra aetate’, promulgada em 1965, marcou um ponto de virada nas relações entre a Igreja Católica e o judaísmo, rejeitando a ideia de culpa coletiva dos judeus pela morte de Jesus e promovendo o respeito mútuo e o diálogo inter-religioso.

A iniciativa de Leão XIV para renovar as pontes entre as comunidades de fé torna-se ainda mais significativa se considerarmos o contexto de tensões recentes entre o Vaticano e Israel, especialmente após declarações do papa Francisco sobre o conflito na Faixa de Gaza.

Outro movimento não menos importante foi o gesto amistoso em direção ao povo e ao governo da Ucrânia.

Poucos dias depois da declaração na qual afirmou trazer em seu coração “os sofrimentos do amado povo ucraniano”, o papa conversou por telefone com o presidente Ucrânia, Volodymyr Zelensky e recebeu o arcebispo-mor de Kiev, Sviatoslav Shevchuk, na biblioteca do Palácio Apostólico.

Coisas novas; novos desafios

O nome de Leão do novo Papa voltou naturalmente os olhares para o outro Leão merecedor da homenagem.

Famoso especialmente pela encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), publicada em 1891, Leão XIII, que pontificou de 1878 a 1903, deixou um legado propício a ser recuperado nos tempos hodiernos.

Rerum Novarum é um documento fundamental da Doutrina Social da Igreja, tendo marcado um ponto de virada na relação dessa instituição com as questões sociais e econômicas da era moderna, especialmente no contexto da Revolução Industrial.

Dentre as “coisas novas” de que trata a referida encíclica estavam as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os operários naquele período.

A famosa encíclica propugnou pelos direitos dos operários e alertou quanto à responsabilidade do Estado na proteção dos mais fracos, na promoção do bem comum e no combate às injustiças, sem, entretanto, desencaminhar os fiéis pelas perigosas trilhas ideológicas.

De fato, o documento confronta tanto o capitalismo quanto o socialismo. Legitimando o direito à propriedade privada, mas afirmando o trabalho como expressão da dignidade humana e não como mercadoria, o que se propõe ali é uma espécie de terceira via baseada na fraternidade cristã.

Ao justificar o nome escolhido para o seu papado, Robert Francis Prevost reafirmou a importância da Rerum Novarum e contextualizou o novo desafio: “hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra Revolução Industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.

Um filho de Agostinho”

“Sou um filho de Santo Agostinho”. Assim se declarou Robert Prevost em um discurso aos cardeais eleitores logo após ser eleito como novo Papa.

A ênfase da declaração indica não apenas o pertencimento à ordem agostiniana, mas também uma sólida comunhão com a visão daquele que foi um dos maiores nomes da filosofia cristã.

Sem descer aos pormenores da vasta e profunda obra do grande bispo de Hipona, pontuo aqui um aspecto da teologia agostiniana que me parece relevante no contexto desse artigo.

Para tanto, remeto o leitor à exortação apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), publicada em 2013, pelo papa Francisco, na qual, dentre outras coisas, o falecido papa convida à conversão pastoral e à superação do mundanismo espiritual.

Na discussão sobre o mundanismo, Francisco refere-se ao “neopelagianismo auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças.”

Ora, a contenda teológica entre Santo Agostinho e o pelagianismo foi um dos debates mais importantes da teologia cristã nos séculos IV e V, envolvendo temas centrais como pecado original, graça divina, livre-arbítrio e natureza humana.

Pelágio negava a existência do pecado original como herança universal e afirmava ter o ser humano plena capacidade, por sua própria vontade, de cumprir os mandamentos divinos e alcançar a salvação — sem necessidade da graça.

Agostinho, por sua vez, defendia que, devido ao pecado original, o ser humano está inclinado ao mal. A vontade humana, estando corrompida, precisa da intervenção de Deus para começar e consumar qualquer obra boa.

Agostinho via na doutrina de Pelágio uma especulação que retirava o papel central de Deus, colocando-o na periferia do processo salvífico. Para Agostinho, o pensamento de Pelágio teria também por consequência negar a cruz de Cristo, pois se o homem depende só dele para se salvar, Cristo teria morrido em vão.

Ao afirmar-se “filho de Agostinho”, o novo papa, dentre outras coisas, parece colocar-se em confronto com a ideia moderna e contemporânea de autossuficiência do homem.

Agostinho descentraliza o homem, mostra-o como escravo dos seus desejos, desnuda a vontade concupiscente e afirma a absoluta necessidade da intervenção divina para que o homem saia da sua miserável condição.

Diante disso, fica a pergunta: os fiéis católicos estão de fato preparados para um papa “filho de Agostinho”? Eles têm noção da alta exigência que essa filiação implica?

Lula e o “fogo” de Adolf Hitler e Vladimir Putin

O presidente brasileiro Lula da Silva viajou para Moscou com o objetivo de adular o ditador russo Vladimir Putin; a implicação lateral maior de tal adulação consistirá no reforço de propaganda para a criminosa guerra de invasão que a tirania russa promove contra a Ucrânia há mais de três anos.

Aproveitando-se de uma importante data histórica – Dia da Vitória / 80 º Ano da vitória da União Soviética sobre o nazismo na segunda guerra mundial – Putin convidou o presidente brasileiro e dirigentes de outros países para um teatro; uma encenação que visa colocar sob luz favorável suas pretensões pan-eslavistas.

As comemorações anuais do Dia da Vitória, em Moscou, têm ganhado proporções cada vez maiores desde que teve início a guerra na Ucrânia.

No momento em que estudantes se vestem como soldados, entoam canções patrióticas e lojas são decoradas em toda a cidade com a icônica imagem da “Mãe Pátria” com uma espada na mão chamando seus filhos para lutar contra o inimigo, Putin declara que a atual “operação militar especial” – que nada mais é que a invasão de um país democrático e soberano – é uma continuação da luta vitoriosa contra o nazismo.

Não é só contra a Ucrânia que a Rússia se vale do espantalho nazista. Na propaganda do Kremlin, o próprio serviço secreto russo elaborou um panfleto no qual utiliza o termo “eurofascismo”, referindo-se a todos os países europeus que manifestam apoio ao suposto “regime nazista” ucraniano.

Isolado do que se convencionou chamar “mundo livre” – países que, a despeito de suas mazelas e imperfeições regem a si mesmos por leis norteadas por princípios de justiça e igualdade, respeito à liberdade em todas as suas expressões, direitos humanos e separação de poderes – Putin tenta agregar em torno de si os líderes que estão se lixando para tais princípios.

Sob o pretexto mentiroso e absurdo de “desnazificar” a Ucrânia, Putin tem levado morte e destruição a esse país que ainda resiste heroicamente, apesar de toda a covardia dos que o atacam e dos que se acumpliciam com Putin – ele sim o Hitler do século XXI.

Putin – o Hitler do século XXI

A Segunda Guerra Mundial teve início como reação de nações democráticas a uma guerra de invasão promovida pela Alemanha nazista contra o Leste Europeu que começou pela Polônia. Ora, invadir o Leste Europeu é hoje a clara intenção de Putin, que pretende usar a Ucrânia como porta de entrada.

A específica guerra da Rússia (então União Soviética/URSS) contra as forças do Eixo ocorreu devido à invasão de tropas da Alemanha, que, rompendo com o Pacto Nazi-Soviético (também conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop), vigente desde agosto de 1939, deu início à Operação Barbarossa, em junho de 1941, avançando sobre vasta extensão do território soviético.

Que o tirano Putin use a celebração de uma vitória sobre invasores para fortalecer a narrativa/justificativa da sua própria guerra de invasão é algo sórdido; mas compreensível, porque os tiranos sempre são sórdidos.

Agora, que o presidente de um país democrático (ainda que de uma democracia cada vez mais capenga) se preste a convalidar tamanha sordidez é uma baixeza difícil de entender. Neste teatro de Putin o ator coadjuvante Lula faz um papel feio.

O que Lula admira em um homem?

Os militantes da mídia chapa-branca estão redobrando esforços para criar justificativas para o gesto adulatório de Lula, mas nenhuma delas se sustenta. 

Não há nenhuma ganho pragmático com isso e, do ponto de vista diplomático, a visita a um país responsável por uma guerra de invasão ainda em curso é inoportuna, inconveniente e imoral.

Assim sendo, parece-me que a explicação para a visita de Lula ao companheiro Putin é mais psicológica do que política.

Uma pista para entender as suas motivações está na famosa entrevista concedida à Playboy, edição nº 48, em julho de 1979.

Durante a conversa, ao ser questionado sobre figuras que o inspiravam, Lula mencionou diversos nomes, incluindo Adolf Hitler. Segue a transcrição do trecho:

Playboy: Alguém mais que você admira?

Lula: [Pausa, olhando as paredes] O Mao Tse-Tung também lutou por aquilo que achava certo, lutou para transformar alguma coisa.

Playboy: Diga mais…

Lula: Por exemplo… O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer.

Playboy: Quer dizer que você admira o Adolfo?

Lula: [Enfático] Não, não. O que eu admiro é a disposição, a força, a dedicação. É diferente de admirar as ideias dele, a ideologia dele.

Qualquer bom conhecedor da natureza humana capaz de entender as entrelinhas de uma fala comprometedora, perceberá o quanto essa entrevista traz da face real de Lula, que se remexe inquieta em carantonhas por trás da máscara de democrata que vive caindo da sua cara.

Antes de mais nada, ele admira tiranos. Independentemente de ideologias, o que o encanta é a personalidade psicopática e megalomaníaca.

O que ele admira é a “disposição, a força, a dedicação”, pouco importando o fato de que tais atributos tenham sido usados para exterminar 6 milhões de judeus. Esse ponto é de somenos importância para Lula; é um mero detalhe.

Quem negará que exista também em Vladimir Putin esse “fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer” que Lula tanto admira?

Que o saldo desse “fogo” seja cerca de 43.000 soldados ucranianos mortos, 370.000 soldados ucranianos feridos, 12.500 civis ucranianos mortos e 28.400 ucranianos feridos é um detalhe sem importância.

Que o resultado da “disposição, força e dedicação” de Putin para fazer renascer um império seja 20.000 crianças ucranianas deportadas à força para a Rússia ou para territórios ocupados por forças russas também não é o que importa para Lula e para Janja, a mais nova influencer do Kremlin.

Um jantar para tiranos

Segundo o monitoramento de Direitos Humanos da ONU, os russos mataram 209 ucranianos e feriram 1.146 civis apenas no mês passado. Dezenove crianças morreram e 78 crianças ficaram feridas nos ataques aéreos russos desses últimos dias. Enquanto isso, Lula é recebido por Putin em um pomposo jantar, em Moscou.

Por algum motivo, lembrei-me do ditado alemão sobre responsabilidade e conivência com o extremismo, que costuma ser formulada da seguinte maneira:

“Se há dez pessoas numa mesa, um nazista se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas”.

Vou reformular o ditado pra ilustrar o contexto deste artigo: “se há dez ditadores numa mesa, um suposto democrata se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem 11 ditadores”.

Lula está sentado à mesa do anfitrião, Putin com o ditador da China, Xi Jinping, o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, o ditador de Belarus, Alexander Lukashenko, o ditador cubano Miguel Diaz-Canel e ditadores de mais algumas dezenas de nações não democráticas como Azerbaijão, Bósnia, Burkina Fasso, Congo, etc.

Seria o presidente brasileiro um mero observador democrático infiltrado? Ou é mais sensato admitir que Lula está confabulando entre os seus?

“Adolescência”, uma tragédia contemporânea

Adolescência, a minissérie de quatro episódios, da Netflix, está fazendo sucesso. O motivo da grande repercussão pode ser o fato de que a produção toca em várias feridas abertas do mundo contemporâneo, vários pontos delicados, várias fissuras no tecido social com as quais aparentemente não estamos sabendo ainda como lidar.

Como, hoje em dia, quase nada passa incólume pelo estúpido processador dos cérebros ideológicos e militantes que costumam deturpar qualquer obra até transformá-las em teses favoráveis a seus limitados pontos de vistas, com Adolescência não foi diferente.

Inicialmente percebi, nas redes, o movimento de rejeição da série dentro da bolha da direita mais reacionária.

Nesse caso, a tentativa de cancelamento vinha acompanhada de pouca argumentação e uma fake news: a mesma Netflix, que costuma mudar a cor da pele de personagens icônicos, como fez com a branca de neve, por exemplo, teria retratado, dessa vez, o criminoso real negro (Hassan Sentamu, de 17 anos, que esfaqueou Elianne Andam, de quinze anos) como um menino branco de classe média e conservador.

Essa tentativa de desqualificar a série foi compartilhada por inúmeros perfis de direita, em vários países, inclusive no Brasil. A série, porém, não é um documentário sobre nenhum caso real específico, mas uma ficção que obviamente se inspira nos inúmeros casos reais de crimes violentos envolvendo adolescentes que aconteceram nos últimos anos no Reino Unido e no resto do mundo.

No outro extremo, temos a militância progressista, explorando exaustivamente a série como se se tratasse ali apenas da corroboração da ideia de uma “masculinidade tóxica”: o menino que esfaqueou a menina não é “mau”, é o resultado da sociedade estruturalmente machista, do pai bruto, brutalmente educado e da permissividade das redes sociais.

A série, porém, é maior do que o debate ideológico que se criou em torno dela. Li e assisti algumas das várias análises disponíveis por aí. Eis uma interpretação com a qual concordo: a série Adolescência, da Netflix, é uma tragédia contemporânea.

A tragédia, gênero literário clássico, que surgiu na Grécia, era profundamente marcada pela fatalidade, pelo confronto entre a vontade dos homens e a vontade dos deuses; esses últimos simbolizavam as forças desconhecidas, que estavam acima da compreensão humana, que não se deixavam racionalizar. Os conflitos entre razão e paixão, ética e desejo eram expostos em toda a sua crueza, induzindo à catarse do público, mas os dilemas morais apresentados não apresentavam uma solução clara.

Assim me parece que o enredo de Adolescência é trabalhado. Ou, pelo menos, foi assim que ele ressoou em mim. Um menino de 13 anos, Jamie, esfaqueou e matou uma sua colega de mesma idade. Durante todo o filme, nós, os espectadores, tentamos digerir, acomodar internamente esse fato.

Assim como Eddie, o pai do menino, passamos o começo do filme negando a realidade, acreditando nas palavras do garoto: “eu não fiz nada errado. Eu sou inocente”. Diante das provas cabais, passamos, então, a esperar uma explicação razoável, algo que justifique o ocorrido.

Muitos contextos são levantados: o bullying sofrido, a radicalização online, o ambiente escolar caótico e desrespeitoso, o machismo, o universo dos incels, a falta de vigilância, a agressividade latente do pai…todos esses contextos têm algum potencial explicativo, mas a conta não fecha. Parece faltar alguma peça nessa quebra-cabeça. De quem é afinal a culpa? Eis a questão.

Todos têm um pouco de culpa. A culpa é de todos. E se é de todos, não é de ninguém. Isso gera no espectador um profundo mal-estar. E por falar em mal-estar…Freud continua, em muitos aspectos, incontornável.

A civilização é um verniz, uma superfície. Nas suas entranhas, no psiquismo dos indivíduos que formam a coletividade, estão reprimidos instintos sexuais e agressivos profundos. Em “O mal-estar da civilização”, Freud trabalha o conceito de Thanatos, a pulsão de morte, o impulso destrutivo presente no ser humano.

A série deixa transparecer, principalmente na caracterização do ambiente escolar, uma sociedade fragilizada e neurótica. Jovens entrando em contato com seu universo interior em erupção sem encontrar nos adultos modelos, freios, valores claros, diretrizes morais firmes.

Mas esse caos é menos uma descrição do que vivenciamos do que a explicação que buscamos. Um jovem de treze anos, inteligente, de classe média e família normal esfaqueia a sua colega. Esperamos entender o porquê. Mas o mal é absurdo e o absurdo não tem explicação.

O primeiro passo para combater o mal é admitir que ele existe. Santo Agostinho negou a existência ontológica do mal, mas admitiu a existência do mal moral ou pecado. Ele é resultado da má escolha da vontade humana; é a privação do bem causada pelo uso incorreto da vontade pelo ser humano.

Todos nós somos livres, imperfeitos e por isso vulneráveis ao mal. Os adolescentes são mais vulneráveis ainda. Eles precisam de nós para lhes apontar o certo e o errado, o bem e o mal, para ajudá-los a solidificar valores, lidar com frustrações, entender o mundo, moldar seu caráter, formarem-se a si mesmos.

Entendo a importância de se discutir, a partir da série, o problema da misoginia, do bullying, das redes sociais, da radicalização, do hiato que existe entre essa geração totalmente digital e nós que nos formamos em um mundo ainda analógico. 

O problema é que, no fundo, ninguém sabe muito bem como fazer isso e, normalmente, os especialistas que oferecem alguma panaceia para tantos problemas contemporâneos não são as pessoas mais confiáveis.

Não sei se há mérito ou demérito nisso, mas eu costumo optar por expor minha incipiência e limitação quando estou diante de algo que não consigo abarcar. Como mãe de adolescente, sinto-me, muitas vezes, perplexa e insegura diante da responsabilidade que essa função requer.

Abraço o meu filho muitas vezes, oriento, cuido, educo, brigo, beijo, vigio, alerto, mas sei que há muitas coisas que fogem ao meu controle. Preciso confiar nele, na sua força interior, na luz que ele traz em si e na luz que ele recebe do alto.

Apesar de todos os cuidados no ambiente doméstico, o futuro se abre diante de nós como um misto de ameaça e esperança. 

Somos constantemente tensionados pela expectativa em torno da felicidade de nossos filhos. Esses filhos, porém, são indivíduos. Maduros ou não, estão no mundo. Caberá a eles trabalharem em si suas potencialidades e suas limitações.

O aspecto social reflete os indivíduos que somos e somos o que fazemos de nós mesmos. Nossos pais fizeram o possível; nós também estamos fazendo o nosso melhor. Será suficiente? Não sabemos.

Estamos todos como Eddie, o pai de Jamie, na cena final da série: desesperadamente agarrados aos ursinhos dos nossos filhos adolescentes, tentando reter um pouco mais a infância, a ingenuidade, a inocência, a pureza que se esvai. 

Apertamos o ursinho contra o peito, querendo proteger com nosso corpo, com nossa própria vida aquele que agora precisaremos proteger à distância.

Para além da nossa presença física, a nossa proteção se dará doravante como eco das nossas palavras corretas em suas consciências, em um momento de dilema ético; como lembrança das nossas demonstrações inequívocas de afeto, em um momento de aguda angústia moral.

Eles sabem das nossas fragilidades e das nossas limitações. Eles perdoarão os nossos deslizes e nós deveríamos nos perdoar também. O nosso amor os acompanhará para sempre. Essa é a única proteção possível que estará sempre ao nosso alcance.