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Esquerdogata: um retrato da militância hipócrita

Aline Bardy Dutra é a “esquerdogata”, uma influenciadora digital brasileira cujo perfil, no Instagram (esquerdogata_79), possui 825 mil seguidores.

Ela se posiciona como ativista política, focada em críticas ao que considera “fascismo”, na defesa de pautas progressistas e na militância contra o conservadorismo. Apresenta-se como comunicadora popular, professora e apaixonada por política e história.

Ela também gerencia um “clube de política” para discussões temáticas e produz conteúdo sobre não-monogamia, militância LGBTQ+, feminismo, gatos e desabafos. 

A Esquerdogata também possui uma loja de produtos com roupas e “copos revolucionários” com imagens de Che Guevara, Fidel Castro, Lenin, etc.

Embora não utilize o X desde 2022, sua conta na plataforma traz uma foto de presidente Lula, e seu perfil é descrito na bio como um “espaço dedicado a destruir ideias fasc1st4as”.

Em 26 de outubro de 2025, a esquerdogata em questão foi presa por injúria racial. O caso ocorreu durante uma blitz de trânsito, em Ribeirão Preto (SP).

A influenciadora, que estava em um bar, e visivelmente embriagada, avistou PMs concluindo uma ação de fiscalização e se aproximou deles dizendo: “Um preto querendo foder outro preto”.

Após ser informada que seria detida, Aline Bardy continuou a ofender e desacatar os PMs, com inúmeras frases desairosas e preconceituosas sobre salário e cultura. Os PMs gravaram os insultos da influenciadora com seus celulares. Eis as falas da esquerdogata:

Contexto inicial (Intervenção na abordagem e injúria racial)

“Um preto querendo foder outro preto.” (Referindo-se ao policial negro abordando um homem negro, o que foi classificado como injúria racial.) 

“Nazistinha… fascistinha… preto bosta.” (Dirigido a um dos PMs ao questionar a abordagem.) 

Durante a detenção e resistência (desacato e ofensas)

Vai tomar no meio do seu cu. Você tem noção de quem é você e quem sou eu? […] Você não tem dinheiro nem para falar com meu advogado.” 

“Eu tenho 1 milhão de seguidores”.

Ai que delícia, gente! Sabe como uma militante ser presa? Isso vai me fazer deputada federal, vocês sabem disso, né? Vou mandar em vocês tanto.” 

Você é um policialzinho, ganha sei lá… tem licença-prêmio? Tem o quê? O que cê tem aqui?” 

Cês acham que tem cacife pra me mandar pra algum lugar. Sério! De verdade, olha pra mim! Olha pra vocês! Minha sandália vale o carro de vocês!” 

“Você já foi à Europa, meu amor? Vai pra Itália pra ver como são os policiais. Cês terão vergonha lá pra Londres. Já foi pra Londres? Tower Bridge. Já foi pra Londres? Nunca né, você não tem dinheiro pra isso. Ganham R$ 3 mil”

Polícia miliciana… bostas.

“Meu advogado?! Você não tem dinheiro nem pra falar com ele

***

O caso foi registrado como desacato, resistência e injúria racial, e ela foi liberada após pagar fiança.

Embora Aline Bardy Dutra tenha dito que trabalha como assessora na Secretaria de Comunicação do governo federal e tenha se identificado como “funcionária pública federal”, a Secom negou que ela integrasse o seu quadro de servidores.

O portal Metrópoles informou que Aline, na verdade, é professora de Educação Básica 1, na Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto, interior paulista, da qual está de licença não remunerada, de três anos, desde 22 de julho do ano passado.

Segundo o mesmo portal de notícias, ela conseguiu nove afastamentos remunerados, por faltas, motivos de saúde e licença-prêmio, informação que consta em edições do Diário Oficial do município.

Espero que continue de licença. As crianças da Educação Básica de Riberão Preto estarão mais seguras longe da influência de tal professora.

Derrubar Maduro é justo e necessário. Não há soberania sem legitimidade

O tema da queda de Nicolás Maduro voltou ao noticiário após dois recentes episódios: o prêmio Nobel da Paz concedido à venezuelana opositora Maria Corina Machado e a autorização formal, dada por Donald Trump, à CIA (Agência Central de Inteligência) para executar operações secretas e potencialmente letais dentro da Venezuela, visando a deposição do ditador.

Sobre as insinuações americanas, o deputado Guilherme Boulos (Psol) escreveu o seguinte: “A ameaça de Donald Trump de atacar a Venezuela é o maior ataque à soberania de países da América Latina desde o fim da Guerra Fria. Deve ser respondida com firmeza. Quem é latino-americano e compactua com isso ou é canalha ou submisso aos interesses dos EUA”.

O Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, escreveu em nota oficial que “as declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em que autoriza operações secretas da CIA no território da Venezuela, são uma afronta à soberania do país sul-americano e uma violação do Direito Internacional.”

Em resposta à postagem de Boulos, cumpre retorquir que canalha mesmo é quem defende o regime de Nicolás Maduro. Quem defende que o poder na Venezuela seja entregue a Edmundo González Urrutia – que foi quem, de fato, venceu as últimas eleições – não é submisso a interesses dos Estados Unidos coisa nenhuma, apenas defende a libertação de um povo das garras de um maldito tirano.

É importante destacar esse ponto. Em entrevista recente à BBC, quando questionada se, em última instância, apoiaria uma “invasão” na Venezuela, Maria Corina Machado respondeu: “Quem está falando aqui sobre invasão? A invasão já existe. O que precisamos é de uma libertação”,respondeu a vencedora do Nobel da paz.

Em entrevista também recente à Folha de São Paulo, Corina explicou que o governo de Nicolás Maduro é um “regime criminoso de narcoterroristas” e que o país vinha sendo invadido desde os tempos de Hugo Chaves por agentes “inimigos do Ocidente” (Cuba, Rússia, Irã, Hamas…). Isso ela já tinha dito à BBC, mas acrescenta novidades, entre as quais uma recomendação para o presidente do Brasil:

Seria muito útil que o presidente Lula, assim como os demais chefes de Estado do continente, enviassem uma mensagem clara a Maduro: chegou a hora de ir embora. Acabou. Vá, para o seu próprio bem Maduro. Aceite isso”.

Lula, sabemos, não vai dizer nada disso para Maduro. Pelo contrário, tentará dissuadir Trump de ajudar o povo da Venezuela a se livrar do tirano.

Pelo menos é o que se depreende de matéria da Folha, assinada por Patrícia Campos Mello e Ricardo Della Coletta, onde se lê que Lula “pretende argumentar, em uma eventual reunião presencial com o americano Donald Trump, que ações militares dos EUA na Venezuela levariam à desestabilização de governos de diversos países e teriam consequências graves para toda a região”.

A referida matéria nos informa ainda que “embora a oposicionista venezuelana Maria Corina Machado tenha saído fortalecida ao ser laureada com o Prêmio Nobel da Paz, o governo brasileiro acredita que ela não tem representatividade no país. Na percepção do Brasil, não existe movimento político na Venezuela forte o suficiente para substituir o chavismo-madurismo”.

Tal percepção do governo brasileiro sobre a Venezuela seria incompreensivelmente distorcida se não soubéssemos que, na verdade, ele é ideológica e cínica. 

O Governo do Brasil obviamente sabe que, em outubro de 2023, Maria Corina foi vencedora absoluta da eleição realizada pela Comissão Nacional de Primárias para selecionar um candidato unitário para as eleições presidenciais de 2024.

Na ocasião, Corina recebeu aproximadamente 93% dos votos válidos, o que representou mais de 2,2 milhões de votos a seu favor. A participação total superou os 2,4 milhões de eleitores, tanto na Venezuela quanto no exterior, superando as expectativas e ocorrendo em meio a enormes desafios.

Esse resultado foi notável, com eleitores enfrentando longas filas sob condições climáticas adversas em bairros tradicionalmente pró-governo, demonstrando um desejo amplo por mudança. 

A vitória de Machado foi descrita como “esmagadora” e unificadora para a oposição, e, por isso mesmo, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), subserviente a Maduro, suspendeu os resultados dias depois, alegando fraude, e ratificado uma inabilitação política contra ela, impedindo sua candidatura oficial.

Sua liderança e popularidade são tais que, mesmo em meio a toda sorte de repressão, ardil, ameaça e perseguição do regime, Edmundo González Urrutia, o candidato por ela apoiado, obteve 7.443.584 votos nas eleições presidenciais de 28 de Julho de 2024, sendo ele, portanto, o verdadeiro e legítimo presidente da Venezuela com 67% dos votos válidos.

É, portanto, uma gritante hipocrisia e uma vil covardia para com os nossos irmãos venezuelanos que líderes de esquerda fiquem repetindo a ladainha de “soberania” para impedir que Maduro seja merecidamente deposto do lugar que ele simplesmente usurpou e que de modo algum é seu por direito.

Não há soberania se não há legitimidade

A esquerda autoritária – admiradora de tiranias e bajuladora de autocratas – tem sempre na manga a carta da “defesa da soberania” ou da “política de não intervenção” quando se trata de garantir que os companheiros ditadores se perpetuem no poder.

A soberania nacional é frequentemente citada como princípio que impede intervenções estrangeiras em assuntos internos de um país. Essa noção é, de fato, uma das bases do sistema internacional contemporâneo, segundo o qual o Estado possui o direito exclusivo de governar seu território sem ingerência externa. No entanto, esse direito é verdadeiramente ilimitado?

Quando o Estado se torna uma máquina de opressão, subjugando seu próprio povo e traindo o contrato social que justifica sua existência, sua soberania perde fundamento moral e político.

Na tradição contratualista (em especial John Locke), a legitimidade do Estado repousa na proteção dos direitos dos governados. Quando o poder se torna tirânico — isto é, quando é exercido além do direito e passa a perseguir ou subjugar o povo — o Estado viola a obrigação fundamental do contrato e perde sua legitimidade.

Dessa perspectiva, a invocação da soberania do tirano como proteção contra intervenção externa é incoerente: um poder que não cumpre as funções essenciais não pode reclamar soberania plena.

Em termos mais contemporâneos, pode-se afirmar que agentes externos — Estados e instituições — têm deveres morais de não permitir ou de corrigir grandes violações de direitos humanos, especialmente quando existe capacidade de agir sem prejudicar terceiros inocentes. 

A responsabilidade moral não termina na fronteira; há deveres positivos de evitar danos massivos a pessoas. Isso sustenta a obrigação moral de intervir em casos extremos de opressão.

Se um regime oprime sua população a ponto de negar liberdades fundamentais, a obrigação de justiça pode justificar ações externas destinadas a restabelecer direitos fundamentais — sobretudo quando outras vias (sanções, apoio à resistência civil, boicotes) falharam.

A teoria política moderna defende, portanto, que a soberania não é um direito absoluto, mas condicional à legitimidade do governo.

O governo de Nicolás Maduro não tem nenhuma legitimidade. Trata-se de um regime repressor, torturador e assassino que recentemente tentou enganar o mundo com uma gigantesca fraude eleitoral, e que, ao ser desmascarado, promoveu mais um autogolpe.

Politicamente criminoso, tal regime é também um desastre econômico de tal monta que tem levado milhões de venezuelanos, forçados pela pobreza extrema, pela fome, pela perseguição política, pelo desespero, a deixarem seu país.

A grande objeção contra apelos simplistas à intervenção é o risco de arbitrariedade, imperialismo, interesses ocultos e danos colaterais. Para mitigar isso, a literatura moral/política costuma exigir condições estritas — semelhantes às clássicas da teoria da guerra justa — que justificam uma intervenção legítima.

Para que uma intervenção seja legítima é preciso causa justa, intenção correta, último recurso, proporcionalidade, perspectivas razoáveis de sucesso e responsabilidade pós-intervenção. Esses critérios trabalham como salvaguardas filosóficas: se aprovados, transformam a ideia de intervenção num instrumento regulado por princípios morais, não num pretexto para agressão.

Não defendo, portanto, que Donald Trump, sozinho, autorize uma invasão à Venezuela. Não se trata disso, absolutamente. Mas a ajuda da CIA ou de qualquer agente estrangeiro para depor Maduro do poder e entregar a presidência a quem a detém por direito só pode ser bem-vinda. Buscar tal ajuda, como o faz Maria Corina Machado, não é trair seu povo. É lutar para libertá-lo.

O valor e a humildade de Maria Corina Machado

Pela primeira vez, fiquei emocionada após a divulgação de um prêmio Nobel da paz. A honraria, algo sempre tão distante, pareceu-me, dessa vez, ter sido concedida a alguém que me era próximo. Não estranhei minha reação. Sou mesmo emotiva; meus olhos marejam facilmente.

A razão logo acorreu, justificando-me: claro que se tratava de alguém próximo. A pessoa laureada era alguém cuja luta observo há mais de uma década, alguém cuja coragem me inspira e com cujos ideais me identifico. Ademais, é uma mulher. E é latina. Chama-se Maria, esse nome simples e familiar.

Maria Corina Machado receceu o Prêmio Nobel da Paz, 2025, “por seu trabalho incansável na promoção dos direitos democráticos do povo da Venezuela e por sua luta para alcançar uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”, conforme as palavras do Comitê Nobel norueguês.

Ela “é um dos mais extraordinários exemplos de coragem civil na América Latina nos últimos tempos”, acrescentou o comitê.

Assisti ao vídeo em que o diretor do Instituto Nobel Norueguês, Kristian Berg Harpviken, compartilhou com Corina, por ligação telefônica, a notícia de sua premiação, antes que fosse anunciada ao mundo. Foi bem tocante. Não apenas ela, mas o próprio representante do Instituto estavam emocionados.

Ah! A emoção genuína e nobre! Não a emoção confusa, patética e febril advinda de impulsos irracionais e primitivos, mas a emoção suave, espécie de abalo sutil e desabafo da alma que se sente movida por e impulsada para valores altos, universais e eternos.

Ambos, Corina e Harpviken se emocionaram, naquele momento, porque estavam provavelmente envolvidos pelo mesmo sentimento moral.

Segundo o filósofo Max Scheler (1874-1928), há um universo de valores hierarquicamente organizados, que são percebidos pela visão emocional ou intuição sentimental. 

Há basicamente quatro níveis nessa hierarquia. No terceiro nível, abaixo apenas dos valores religiosos (sagrado-profano), estão os valores culturais ou espirituais, dentre os quais os valores ético-jurídicos (justo-injusto).

Nem todos são capazes de perceber a manifestação no mundo dos valores espirituais. Isso porque estão ainda embotados, ora seduzidos por valores hierarquicamente inferiores, ora emocionalmente conturbados por ideologias.

Para aqueles, porém, dotados de certa sensibilidade, a premiação de Maria Corina foi um tributo à coragem, à liberdade e à justiça, valores objetivos que a sua luta política representa. 

O prêmio emociona porque, ao reconhecer valores morais onde eles realmente existem, o mundo se mostra um pouco menos doente.

Foi feliz o editorial do Estadão ao escrever que, ao premiar Corina, “o Comitê Norueguês do Nobel lembrou a todos que a luta pelo regime das liberdades ainda exige firmeza de caráter e sacrifício pessoal

Sim! Sacrifício. Isso se dá porque a percepção dos valores espirituais leva à clara evidência de que os valores inferiores devem ser sacrificados perante eles. 

O colega Duda Teixeira foi igualmente feliz quando destacou, no programa Papo Antagonista, transmitido no mesmo dia da divulgação do prêmio Nobel, que, de forma alguma, Corina é movida por um projeto pessoal de poder:

Ela está realmente se doando para a causa da democracia na Venezuela. E, de fato, a vida dela toda, está em função disso. A Maria Corina tem três filhos e um marido. Os filhos estão em diferentes países por questão de segurança. O marido também já não vive com ela, pois ela vive praticamente na clandestinidade devido a ameaças constantes e reais da ditadura. Então, essa é uma mulher que não tem momento de ócio, de lazer com a família, de descontração. A vida dela é vinte e quatro horas por dia fugir da ditadura e lutar por democracia”.

Olhando por esse ângulo, enfatizado por Duda Teixeira, a concessão do Nobel da Paz a Maria Corina torna-se ainda mais importante. Ele dá a quem enfrentou e enfrenta, de peito aberto, uma brutal ditadura, um enorme respaldo internacional que lhe servirá também como forma de proteção. 

A inveja de Lula e Trump

A inesperada premiação de Maria Corina recebeu, naturalmente, atenção internacional. As reações foram de fortes elogios a críticas histéricas. Tanto se fala sobre esse assunto que o silêncio de quem cala se torna eloquente.

Tem quem faça pior e não fale nem silencie, mas apenas enrole; foi o caso do governo brasileiro, que se escondeu na omissão, mas mandou o secretário Celso Amorim falar qualquer coisa.

Amorim, contumaz adulador do ditador Nicolás Maduro, tentou desmerecer Maria Corina dizendo que, em detrimento da paz, o Prêmio Nobel havia priorizado a política. Ele estava apenas repetindo o que a Casa Branca – revelando a mágoa do presidente Donald Trump por não ter sido o premiado – havia exposto horas antes.

Ora, o Prêmio Nobel da Paz é geralmente considerado a mais importante honraria política do mundo; isto porque um dos principais instrumentos para a construção da paz é justamente a política. Mas o prêmio costuma honrar a boa política, aquela que a baixa envergadura moral do atual governo brasileiro não permite reconhecer.

María Corina e Donald Trump, no entanto, logo se acertaram. Pessoas humildes não têm muita dificuldade em lidar com pessoas vaidosas, pois não disputam com elas. Sabem do próprio valor e não precisam ostentá-lo, mas tentam até diminuí-lo para que outros brilhem em seu lugar.

A líder venezuelana dedicou seu prêmio primeiramente ao povo venezuelano, mas também ao vaidoso presidente norte-americano, a fim de mitigar-lhe a mágoa de ter sido preterido. Em seguida, conversaram por telefone. Trump referiu-se à conversa nos seguintes termos:

A pessoa que recebeu o Prêmio Nobel hoje me ligou e me disse: ‘Estou aceitando isso em sua homenagem, porque realmente você merecia’. Foi algo muito amável da parte dela. Eu não disse ‘então me dê’, embora eu ache que ela poderia ter feito isso. Ela foi muito legal“, disse o presidente americano.

Chega a ser cômico o contraste entre um perfil e outro. Corina é comunicada do prêmio e afirma, emocionada ao diretor do Instituto Nobel: “Esta é uma conquista de toda uma sociedade. Eu sou apenas, sabe, uma pessoa. Eu certamente não mereço isso”. Trump, por sua vez, clama aos quatro ventos que o merece.

É como diz canção de Vinícius: “O homem que diz sou (não é); porque quem é mesmo é (não sou)”. 

A verdadeira virtude é silenciosa, não se afirma; é descoberta, revelada. E, algumas vezes, merecidamente premiada.

Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

O assassinato de Charlie Kirk e a intolerância sádica da extrema esquerda identitária

Escrevi um artigo sobre o assassinato do ativista conservador americano, Charles Kirk, logo após o ocorrido; antes, portanto, de constatar a extensão do esgoto moral no qual habita a alma de uma parcela barulhenta da militância radicalizada de extrema esquerda, aqui mesmo, no Brasil.

Há algum tempo uso a expressão “extrema esquerda” em meus textos. Utilizo-a para me referir a esquerdistas que apoiam terroristas e ditadores e que relativizam a vida humana em defesa da sua causa.

Refiro-me a pessoas como Mauro Iase que, em 2015, discursou para centenas de pessoas defendendo o fuzilamento de adversários políticos; pessoas como Marcos Dantas Loureiro que, mais recentemente, sugeriu guilhotina para a família de Roberto Justos porque sua filhinha ostentava uma bolsa de grife; pessoas como meu ex-professor de filosofia da Universidade Estadual do Ceará, Emiliano Aquino, cujo passatempo favorito é fazer postagens descaradamente antissemitas e de apologia ao Hamas, em seu perfil do Instagram.

O que têm em comum esses três indivíduos além de serem fanáticos extremistas? São professores universitários, têm certa influência e estão profundamente empenhados em doutrinar seus jovens alunos com uma visão distorcida e imoral de mundo que justifica e glorifica a violência mais extremada sob pretexto de corrigir alguma injustiça social.

E eis que, após o cruel assassinato de Charles Kirk, outros vários indivíduos desse tipo saíram dos bueiros para disseminar sua torpeza moral comemorando o ocorrido, com um riso de deboche satânico, qual um coringa ensandecido.

Foi o caso do jornalista, escritor, e youtuber Eduardo Bueno, cujo vídeo, em que zomba do ocorrido, foi amplamente difundido na internet, gerando repúdio em todos aqueles, à esquerda e à direita, cujo sentimento moral não fora ainda totalmente embotado pela ideologia.

Houve também o caso de um neurocirurgião que chegou a ter seu visto para os EUA cancelado após as autoridades americanas tomarem conhecimento da postagem na qual o médico elogia o assassino de Kirk pela sua “pontaria impecável”, que teve “precisão cirúrgica na coluna cervical”.

Não se pode perder de vista o fato de que não estamos falando apenas de maníacos anônimos, que escrevem qualquer coisa nas redes. Estamos falando de profissionais qualificados: professores, médicos, jornalistas, etc. Pessoas consideradas normais, que têm importante papel social a cumprir e que influenciam inúmeras pessoas ao ser redor com suas opiniões e ações.

Isso é grave. Sabemos que o mal existe, que a criminalidade e o terror estão espalhados na sociedade, mas é sintomático constatar que pessoas ditas civilizadas, que não estão à margem, mas totalmente inseridas dentro do quadro social, justifiquem crimes bárbaros por conta de ideologias políticas.

A cisão social na qual estamos todos imersos é profunda, suas causas são complexas, donde a impossibilidade de investigar as variadas nuances nesse reduzido espaço de reflexão. Gostaria, mesmo assim, de avançar algumas considerações.

Uma mente perturbada pela ideologia

Um relatório preliminar afirmou que as cápsulas de bala recuperadas da arma do assassino de Charlie Kirk continham declarações “transgênero e antifascista”, o que já foi parcialmente confirmado.

No cartucho usado estava gravada a frase “notices bulges OwO what´s this” (literalmente, algo como “percebe um volume aí? O que é isso?). Trata-se de uma gíria usada para provocar pessoas na internet. 

No outro cartucho não utilizado havia a inscrição “Hey, fascist, cath!” (ei, fascista, pega!). Havia ainda três setas apontando para baixo, símbolo relacionado ao movimento “antifascista”. Um segundo cartucho tinha gravada a letra da música Bella Ciao, canção que homenageia a resistência italiana que combateu o fascismo e o nazismo durante a segunda guerra. 

Um outro cartulho trazia ainda a frase “if you read this, you are gay Imao” (“se você leu isso, você é gay kkk”), um tipo de humor de trollagem típico de internet.

Inegável, pois, que além de uma mente perturbada, trata-se de uma mente ideológica, ou ideologicamente perturbada. 

E tudo indica que a ideologia que perturba a mente do rapaz é aquela que tem sido aceita quase como uma nova religião. Uma religião secular, mas tão dogmática e fundamentalista quanto o foram as grandes religiões em suas épocas mais trevosas. 

Sim, estou falando do identitarismo, do wokismo, do transgenerismo, dessa visão de mundo radical, antiocidental, intolerante e anti-iluminista que exige ao mundo que se curve diante de seus dogmas.

Percebo que há entre pessoas públicas de bom senso certa autocensura que lhes impede tratar desses temas, mais especificamente do tema transgênero, pois há o receio de ser considerado intolerante, de se ver tachado de “fascista”, de “extremista de direita”.

Ao abrirmos mão de problematizar o tema, porém, deixamos os políticos e a militância mais radicalizada fazer da questão sua bandeira política, levando o pêndulo da intolerância para o lado oposto. Precisamos falar sobre a intolerância identitária a fim de buscar o mínimo de equilíbrio social.

Considero ruim a decisão do STF de criminalizar a homofobia e a transfobia por analogia com o crime de racismo. 

Digo isso, obviamente, não porque tenha preconceito contra homossexuais ou transgêneros, mas por saber que essa lei acabaria sendo politicamente instrumentalizada para criminalizar qualquer pessoa publicamente contrária à visão de mundo trans, que impõe nada menos que aceitemos bovinamente negar com eles a realidade e fazer tábula rasa da natureza e da biologia para satisfazer as suas ilusões de gênero.

Charlie Kirk era acusado de transfóbico e sua morte foi amplamente comemorada nas comunidades trans da internet. Kirk incitou violência contra trans? Não. Ofendeu algum indivíduo trans pelo fato de ser trans? Não. Ele apenas expôs sua visão de mundo, que é incompatível com a ideologia de gênero.

E, por ironia do destino, era justamente sobre violência trans que Charlie Kirk estava debatendo quando foi abatido pela bala do “antifascista”.

Claro, ele não estava falando sobre a violência contra pessoas trans, mas sobre a violência cometida por pessoas trans. O que é um sacrilégio, uma blasfêmia, um pecado que merece condenação eterna, segundo a seita trans.

Para preservar-me e poupar trabalho aos meu advogado – pois sempre que escrevo um texto mais duro e realista, aparece alguém para me acusar do crime de transfobia – passo a tratar o tema apoiada em citações retiradas do artigo mais recente do editor-chefe de política da revista britânica Spiked, Brendan O’Neill, autor do excelente livro “After the pogrom. 7 october, Israel and the crisis of civilisation”, traduzido, no Brasil, por Andrea Kogan, pela editora contexto.

Segundo O´Neill, “o espectro trans projeta sua sombra sobre quase todos os elementos desse assassinato bárbaro, e devemos ter liberdade para falar sobre isso sem medo de cancelamento ou retaliação”.

Charlie Kirk e o narcisismo apocalíptico dos transgêneros

No artigo intitulado “Charlie Kirk e o narcisismo apocalíptico dos transgêneros”, O’Neill lembra a “ironia sombria” na qual o se deu o fatídico evento:

Kirk estava discutindo a violência trans nos segundos que antecederam sua morte. Ele estava reagindo a um de seus alunos interlocutores que parecia minimizar o fenômeno dos tiroteios em massa realizados por pessoas trans. O aluno insistiu para que Kirk dissesse quantos tiroteios desse tipo já ocorreram. ´Demais´, respondeu Kirk. Segundos depois, sua artéria carótida foi rompida e ele estava morto”.

Ocorre que Kirk estava certo ao denunciar o considerável aumento da violência trans, explica o autor do artigo:

Nos EUA, houve pelo menos cinco tiroteios em massa perpetrados por agitadores trans indignados. Houve o massacre na Escola Católica Annunciation, em Minneapolis, no mês passado, quando um sujeito trans atirou em crianças pequenas que oravam, matando duas e ferindo muitas outras. A provocação grosseira, ´Onde está seu Deus?´, estava escrita em uma de suas armas. Houve também o massacre em uma escola cristã em Nashville, em 2023, no qual seis pessoas foram massacradas. E o tiroteio em uma escola em Denver, em 2019. E um massacre em um armazém em Maryland, em 2018”.

Como explicar esse incremento de violência? A resposta é meio filosófica, meio psicanalítica. Tem a ver com pós-verdade e narcisismo:

A seita trans parece cada vez mais consumida por uma animosidade brutal contra qualquer um que discorde de suas ortodoxias pós-verdade; contra aqueles fóbicos, vadias e hereges que ousam negar sua validação a homens que se dizem mulheres ou jovens que se dizem não binários”, afirma Brenda O´Neill, valendo-se também do livro The Culture of narcissism, de Christopher Lash para esclarecer o fenômeno:

A questão é a seguinte: a pressão violenta sobre a identidade trans não é acidental. Não é um complemento infeliz a uma causa tipicamente ´progressista´. Não, essa militância implacável e sexista é uma função direta do narcisismo apocalíptico que sustenta a identidade trans em particular e as políticas identitárias de forma mais ampla”.

E continua:

O problema com o delírio trans é que ele se desfaz na ausência de consentimento público. No minuto em que alguém diz ´Isso não é real´, toda a farsa estremece. […] O narcisista exige validação constante e acrítica, o que significa que até mesmo uma expressão de dúvida é suficiente para fazê-lo se sentir encurralado, minado, em perigo. E sabemos como homens egocêntricos tendem a responder em tais situações: com ameaças, até mesmo violência”.

[…] No culto ao narcisismo, seu concidadão é reduzido a seu mero objeto de desejo moral, sendo seu dever principal massagear sua identidade, por mais irreal que seja. […] A autoimagem do indivíduo não tem qualquer fundamento na realidade – é inventada do nada – o que o torna ainda mais dependente da disposição do público em suspender todas as suas faculdades críticas e dizer obsequiosamente: ´Sim, você é uma mulher´.

Se não o fizerem, se ousarem quebrar o espelho que esses homens arrogantemente esperam que o mundo seja, então a história ilusória que esses homens contam a si mesmos começa a ruir. Eles se sentem existencialmente ameaçados e atacam”.

Faço aqui um adendo a fim de esclarecer ainda melhor a firme exposição do analista político britânico. Não se trata de negar que haja no mundo e no Brasil o flagelo moral da violência contra pessoas trans.

É preciso condenar, combater, confrontar e punir pessoas que perpetram tais atos vis. O que não se pode é ter permissividade com a violência perpetrada por indivíduos de determinados grupos minoritários por pertencerem a um grupo de pessoas supostamente vitimadas e oprimidas pela sociedade.

Essa narrativa de que os indivíduos de grupos identitários são sempre os oprimidos se choca constantemente com a realidade. 

O vídeo da jovem refugiada ucraniana, Iryna Zarutska, sendo brutalmente esfaqueada em um metrô em Charlotte, Carolina do Norte, por um homem negro despedaça a narrativa identitária de que brancos são sempre opressores e negros são sempre oprimidos.

O que se pretende aqui é apenas lançar luz sobre o autoritarismo e a violência crescente dos que se julgam oprimidos ou que, pondo-se ao lado da causa dos que consideram oprimidos, passam a justificar a violência mais bárbara como se se tratasse de ação moral e legítima.

Vocês achavam que a revolução virá magicamente sem derramamento de sangue”, pergunta um conhecido ativista trans logo após o assassinato de Charlie Kirk, nas rede social Bluesky, frequentadas majoritariamente por pessoas de esquerda. A comemoração pelo assassinato foi intensa ali. Brenda O´Neill compilou uma enorme variedade desses comentários.

Destacou-se com novo alvo, nas comunidades trans, a autora de Harry Potter, J.K Rowling, conhecida pelas suas duras críticas à ideologia trans e cuja morte é febrilmente fantasiada.

“ ´Podemos ter J.K. Rowling em seguida?´, perguntou um canalha do Bluesky. Seria para ´o bem maior das pessoas trans´. Esta não é a primeira vez que um ato de violência deixa as pessoas salivando com a perspectiva de um destino semelhante para Rowling. Quando ela expressou horror à tentativa de assassinato de Salman Rushdie em 2022, um usuário do X respondeu: ´Não se preocupe, você é a próxima´.”

A conclusão do artigo de Brendan O´Neill, cuja leitura completa recomendo é a seguinte:

A violência, ou a ameaça implícita dela, gira em torno da ideologia trans. […] Você a vê em sua fantasia pervertida de livrar a Terra de J.K. Rowling para que os caras gordos de biquíni nunca mais tenham que ver um de seus tuítes concisos e provocativos. E você a vê na dança sobre o túmulo de Charlie Kirk antes mesmo que ele esteja nele”.

Precisamos falar sobre essa cultura de ameaça que permeia todos os aspectos da identidade trans. Seus processos de pensamento, suas bandeiras, suas ambições – tudo está impregnado da fantasia selvagemente antissocial de apagar ou pelo menos silenciar mulheres e homens, mas principalmente mulheres, que têm a audácia de se esquivar da insanidade ideológica da “mudança de sexo”.

Pergunto eu agora: levaremos adiante esse debate, ou nos calaremos com medo de processos, de cancelamentos e de tiros?

Pergunto ainda: conseguiremos debater esse tema nas universidades, uma vez que a intolerante militância trans, de modo particular, e identitária, de modo geral, está fortemente empoderada em tais instituições? 

Aceitaremos sem sequer problematizar o avanço cada vez maior de cotas para pessoas trans em concursos para universidades e órgãos públicos, sem que se vislumbre qualquer motivo plausível para que alguém ganhe uma vaga porque acredita que mudou de sexo?

Acovardarmo-nos agora não parece uma boa alternativa. A voz de Charlie Kirk foi precocemente calada. Não calemos a nossa por covardia.

Assassinato de Charlie Kirk: o poder da bala contra o poder do logos

O jovem ativista conservador Charlie Kirk foi covardemente assassinado com um tiro no pescoço enquanto palestrava calmamente, sentado em uma tenda armada na Universidade de Utah, Estados Unidos.

Assisti ao vídeo por um ângulo tal que me causou forte impressão. O rapaz conclui sua fala, leva o microfone um pouco abaixo da boca para uma pequena pausa, ao mesmo tempo em que respira levemente, retomando fôlego para usar a “arma” que Deus lhe deu e que o seu esforço desenvolveu: o talento retórico, a eloquência, a rapidez de raciocínio necessária para uma argumentação eficaz.

Subitamente, ouve-se um disparo, seu corpo oscila, o sangue esguicha do seu pescoço, ele faz um gesto quase imperceptível de tentar levar a mão ao local atingido. Não consegue. Seu corpo tomba. Uma bala silenciou sua voz. O poder do projétil contra o poder do logos.

Eu não o acompanhava nas redes. Para ser sincera, sequer o conhecia. E, se me restringisse a apenas alguns veículos de imprensa, seria apresentada não a um ser humano concreto, pai de uma menininha de 3 anos e um bebezinho de 1 ano e quatro meses; não a um esposo amoroso e um jovem talentoso de 31 anos, tão aberto ao diálogo que costumava sentar com um microfone à mão e outro à sua frente para quem quisesse debater até provar que ele estava errado; não o saberia um homem de fé que escreveu em suas redes sociais, poucos dias antes de morrer, que “Jesus derrotou a morte para que você possa viver”.

Se eu me informasse apenas por meia dúzia de jornais e portais progressistas não saberia nada disso. Saberia apenas que morreu um “influenciador de extrema de direita”, apoiador de Trump, que defendia tais e tais posições supostamente homofóbicas, islamofóbicas ou racistas e que defendia o porte de armas.

A ênfase dada às posições políticas de Kirk julgadas mais controversas, muitas vezes distorcendo-as ou descrevendo-as com uma maledicência indisfarçável, justamente ao noticiar o seu assassinato ou ao apresentá-lo após o trágico atentado, soa quase como uma justificativa. É uma atitude vil e imoral essa da imprensa, que precisaria urgentemente rever seus preconceitos, seu jornalismo parcial, ideologicamente enviesado.

Embora a Folha de S.Paulo tenha reproduzido um editorial do New York Times que afirma ser o assassinato de Charlie Kirk uma tragédia, o título do editorial veio imediatamente acompanhado, na home do portal, por links que levam a artigos deploráveis cujos títulos são: “Aliado de Trump, Charlie Kirk construiu carreira com ataques a LGBTs e negros” e “Charlie Kirk, influenciador morto nos EUA, já defendeu ‘custo de algumas mortes’ pelo direito de ter armas”.

O artigo, assinado por um tal de Gabriel Barnabé, é não apenas tosco, mas moralmente reprovável porque discorre em tom crítico e maledicente sobre uma série de posicionamentos políticos de Charlie Kirk, pintando-o como um extremista, no dia seguinte ao seu assassinato sem fazer uma única crítica ao ato monstruoso que lhe tirou a vida. 

Pelo contexto e pelo conteúdo, o artigo pode ser interpretado como uma justificativa do assassinato, que o jornalista provavelmente considera um um ato heroico de resistência.

O desconhecido jornalista, formado pela Faap, a quem a Folha achou por bem deixar a incumbência de apresentar o perfil de Chalie Kirk enquanto seu corpo ainda está sendo velado, descreveu-o como “influenciador de extrema direita” que propagava “discursos extremistas contra o que afirmava ser marxismo e ideologia de gênero”.

Segundo ele “críticos de Kirk apontaram repetidamente um caráter homofóbico e racista em suas falas públicas”, mas o repórter sequer se deu ao trabalho de apontar quais seriam essas falas, contentando-se com a acusação vaga, acrescentando ainda que “Kirk atacou abertamente o que afirmava ser uma agenda LGBTQ” e destacando que, nos últimos anos ele adotou uma “visão cristã ultraconservadora.

Se cito o jovem desconhecido jornalista da Folha e seu artigo, não é por questão pessoal, pois sequer o conheço. É porque o seu perfil de jornalista ativista é uma espécie de “tipo”, de “arquétipo” que ilustra muito bem o problema geral do jornalismo transformado em militância. 

É preciso denunciar a falácia que é chamar de “extremista de direita” todo indivíduo cujas posições políticas são marcadamente conservadoras.

Em seu pronunciamento sobre o caso, Donald Trump criticou a “demonização da dissidência”. Ele tem razão em criticar, mas não tem moral para fazê-lo, porque também costuma fazer o mesmo quando se refere ao campo político adversário.

De todo modo, é importante notar que se, por um lado, há na direita populista uma retórica violenta, na esquerda mais radical a violência é filosoficamente justificada, ela é aceita como método político e se torna praxis.

Pudemos ver até onde vai a delinquência dessa visão de mundo quando vimos pessoas comemorem o massacre perpetrado pelos terroristas do Hamas contra mulheres, idosos, jovens e bebês israelenses como um ato de resistência pela causa palestina. E também agora, quando o brutal assassinato de Charlie Kirk foi comemorado porque, afinal, ele era um “extremista de direita.”

De um lado e do outro do espectro político os ânimos se exaltam, as posições recrudescem, as pessoas se fanatizam, e, em vez de troca de ideias, vemos troca de ameaças. 

Isso deve acabar. A razão humana precisa honrar a si mesma e voltar a reconhecer sua dignidade, sua capacidade de resolver divergências por meio do diálogo, da ponderação, do debate respeitoso, da tolerância e do bom senso.

O ser humano já caminhou muito além da barbárie, mas parece querer voltar pra ela, esquecendo da necessidade inadiável de nos reconciliarmos conosco mesmo e com a criação, reconhecendo o outro como nosso próximo, como nosso irmão.

Um irmão dotado do direito sagrado e inalienável de viver e de expressar seu modo particular de ver as coisas e de compreender o mundo, mesmo que suas ideias não nos pareçam as melhores.

A política deveria ser justamente o uso da razão para resolução dos conflitos sem o uso da força. Todas as ideias devem poder ser proferidas. Sem liberdade de expressão, não há luz para o entendimento, só as trevas do fanatismo e da ignorância.

Como disse Charlie Kirk, o jovem conservador americano brutalmente silenciado enquanto fazia o uso público da razão – e a quem honro com esse artigo não necessariamente pelas suas ideias, mas pela coragem em proclamá-las – “Quando as pessoas param de falar é que a violência acontece”.

O tribunal que descondenou Lula tem moral para condenar Bolsonaro?

A Justiça, enquanto valor, não se confunde com a legalidade. O cumprimento das normas jurídicas é apenas um dos aspectos da experiência do justo, mas não esgota sua essência, podendo mesmo contrariá-la. Embora idealmente o objetivo da lei seja a concretização da justiça, sabe-se que, no mundo real, leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos.

É nesse sentido que a crise política brasileira atual se mostra especialmente complexa. O Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário, é chamado a julgar o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, ao mesmo tempo em que carrega sobre si o peso de decisões que fragilizaram sua autoridade moral perante parte expressiva da população.

Não há dúvida de que houve, no fim do mandato de Bolsonaro, uma tentativa de golpe de Estado a fim de mantê-lo no poder. Sendo ele uma das principais partes envolvidas em todo o processo, assim como o principal beneficiado caso a tentativa lograsse êxito, é justo que vá a julgamento. Isso é diferente de afirmar que todo o processo foi conduzido de modo justo.

Já escrevi, mais de uma vez, que considero escandalosamente desproporcionais, logo injustas, as penas aplicadas às pessoas que foram instrumentalizadas para a invasão e depredação dos Três Poderes, no 8 de janeiro de 2023. Tais penas foram aplicadas, para além da exigência técnico-jurídica, com ânimo político e viés de vingança.

Não é de hoje, porém, que decisões do STF se dão sob pressão de interesses políticos e de outros interesses ainda mais escusos.

Em 2018, o atual presidente Lula da Silva foi preso após condenação em segunda instância. A sentença inicial, proferida pelo Juiz Sergio Moro, em 2017 condenara Lula a 9 anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O presidente petista fora acusado de receber um apartamento triplex como propina da construtora OAS em troca de favorecimentos em contratos com a Petrobrás. A sentença foi confirmada pelo STJ e ajustada para 8 anos e 10 meses.

Acionado pela defesa de Lula, o STF manteve a prisão; primeiro em uma decisão da segunda turma e, em seguida, em decisão do plenário. Em novembro de 2019, porém, mudou sua jurisprudência e mandou libertar Lula.

Ao livramento de Lula, seguiram-se outras escandalosas decisões do STF – monocráticas ou colegiadas – com perdão de réus confessos que, inclusive, haviam já devolvido aos cofres públicos quantias vultosas antes denunciadas como oriundas de práticas de corrupção.

Os desastres do governo Bolsonaro, seu esgarçamento autoritário, com tentativas de controlar a PF e de evitar o avanço de investigações contra seu filho, mas principalmente sua estúpida condução da crise sanitária durante a pandemia, possibilitaram rápida recuperação do prestígio do ex-presidente Lula da Silva, que começou a despontar nas pesquisas como capaz de derrotar Bolsonaro.

Para travar esse embate previsto para outubro de 2022, Lula precisaria estar livre e elegível; providência que o STF tratou de agilizar. 

Em 2021, o ministro Edson Fachin anulou as condenações de Lula relacionadas à Lava Jato (triplex, sítio de Atibaia e Instituto Lula) por tecnicismo vão e a segunda turma do STF declarou parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos, reforçando a nulidade das condenações.

Livre e elegível, Lula concorreu a um terceiro mandato e derrotou o então presidente Bolsonaro, candidato à reeleição. Entretanto, a vitória de Lula ocorreu por margem muito estreita de votos; permanecendo o derrotado com potencial eleitoral ameaçador. Logo, porém, o TSE trataria de eliminar tal ameaça, tornando Jair Bolsonaro inelegível.

Aqui, todavia, convém notar: se é possível observar o viés de animosidade política do TSE, é também verdade que a decisão da Corte Eleitoral lastreou-se em uma atitude totalmente descabida de Bolsonaro que, em julho de 2022, resolveu chamar uma reunião com embaixadores de vários países para fazer denúncias sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro.

O fato é que as inúmeras decisões polêmicas e parciais dos tribunais superiores tiveram como efeito a corrosão da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Esse desgaste não é apenas uma questão de percepção subjetiva. A própria rebelião do 8 de janeiro de 2023 pode ser compreendida, em parte, como resultado desse processo. Foi nessa lacuna de confiança que a narrativa populista de direita radical encontrou terreno fértil, transformando o ressentimento de parte da população em ação política.

Brasileiros sem uma formação cívica consistente para valorizar in abstracto instituições que in concreto se mostram falhas e corrompidas, lançaram-se indignados contra os poderes que, a seus olhos, haviam se tornado cúmplices da impunidade que levou um sujeito condenado e preso por corrupção de volta à presidência da República.

Diante desse quadro mais amplo, percebe-se que o julgamento de Lula e o julgamento de Bolsonaro são duas faces de uma mesma moeda cunhada na forja das vaidades e dos caprichos dos ministros do supremo.

O STF, embora juridicamente habilitado para conduzir o julgamento da chamada, “trama golpista”, enfrenta um déficit de legitimidade moral. Sua responsabilidade na atual crise institucional não pode ser ignorada: ao relativizar a punição de corruptos e ao se colocar como ator político, o tribunal contribuiu para a erosão do tecido democrático.

É no mínimo irônico que a mesma corte que ajudou a minar a confiança dos brasileiros na justiça se autoproclame agora a defensora maior da ordem democrática.

O paradoxo só é minimamente aceitável porque os populistas reacionários de direita aproveitaram-se efetivamente do contexto delicado para tentarem se manter no poder por meio da ruptura da ordem institucional. 

Muito se tem falado sobre isso, ou seja, sobre a tentativa de golpe. Mas pouco se tem falado sobre a responsabilidade do STF e do PT pela revolta social que o tornou plausível.

Esse impasse nos convida à reflexão: uma instituição legalmente válida, mas moralmente desacreditada, é capaz de cumprir o papel de restaurar a ordem e assegurar a democracia? O STF tem legitimidade ética para o julgamento em curso ou seus desvios já fazem dele apenas o espetáculo de um exercício de poder formal, incapaz de reconciliar a sociedade com seus próprios fundamentos?

O relatório apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes no início do julgamento de Bolsonaro e mais sete réus do “núcleo crucial” da denunciada “trama golpista” foi antecedido por um discurso político no qual os ataques feitos ao Brasil pelo presidente norte-americano Donald Trump foram usados para ecoar o nacional-populismo que se tornou o novo farol da narrativa ideológica do presidente Lula e de seus aliados.

Constata-se, portanto, que, para além das suas obrigações jurídico-constitucionais, o STF tem agido objetivamente como aliado do governo Lula.

A quase unanimidade de leigos e especialistas dá como favas contadas a condenação de Jair Bolsonaro a uma dura pena de reclusão. Essas favas contadas contra Bolsonaro são, diga-se, em parte jurídicas e em parte políticas.

Julgando às vezes com erro e às vezes com acerto questões graves da vida brasileira, o STF tem gerado contínuos prejuízos ao país por maximizar a politização das suas decisões, que têm gerado muito mais convulsões perturbadoras do que soluções apaziguadoras; sendo que agora o próprio termo “apaziguamento” foi depreciado pelo ministro Alexandre de Moraes, que, na exposição do seu referido relatório, rebaixou tal termo ao significado de “covardia”.

Mesmo antes da conclusão do julgamento de Bolsonaro, o Congresso Nacional já está convulsionado, com a Câmara Federal tentando armar contra a sua previsível condenação uma anistia que seus defensores chamam espertamente de “ampla, geral e irrestrita”, mas que na verdade é ampla, geral e irrestritamente bolsonarista.

Minha irrestrita solidariedade, a anistia que defendo, é para a gente humilde e anônima que foi condenada e está pagando penas medonhas pelas invasões no 8 de janeiro. 

A “anistia alternativa” com a qual o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tem acenado parece caminhar nessa direção; se for esse o caso, a proposta conta com a minha simpatia e o modesto incentivo desse despretensioso artigo.

Eduardo Bolsonaro, porém, que segue tentando obter o que quer por meio de chantagem covarde, reagiu raivosamente à possibilidade de anistiar os brasileiros comuns e escreveu no X:

Qualquer anistia que não seja ampla e irrestrita não será aceita. Já irei conversar com a base parlamentar do PL sobre isso. A anistia será ampla ou irrestrita ou não contará com o apoio da direita e não terá efeito de diminuir sanções internacionais”

Traduzindo: os presos comuns pelos atos do 8 de janeiro só interessam aos Bolsonaro como arma retórica. A única coisa que realmente lhes interessa é que Jair Bolsonaro saia impune e elegível, que não arque minimamente pelas consequências de suas más ações.

Nosso senso moral costuma chamar de herói o indivíduo que sacrifica a si mesmo ou aos seus próprios interesses pelo bem das outras pessoas. Que nome damos a quem sacrifica centenas, milhares de pessoas, o próprio país, pelos seus interesses mesquinhos?

Pois é. Não há heróis nessa história. O enredo da política brasileira tem sido protagonizada por gente mesquinha, ambiciosa, corrupta e canalha. 

A democracia brasileira sempre esteve em risco, mas desconfie, desconfie de tudo e de todos: tanto de quem ataca a democracia frontalmente, quanto de quem se propõe salvá-la.

A “salvação da democracia”: Lula, STF e o novo contrato social do Brasil

Recentemente participei de um evento com a função de comentar um dado artigo acadêmico que tratava das diferenças entre liberalismo e conservadorismo. 

O artigo, de muito rigor metodológico, sugere que a divergência mais relevante entre as referidas vertentes políticas está na forma como definem, hierarquizam e justificam as noções de ordem e liberdade, sendo consequentemente simplistas as tentativas de estabelecer diferenças tomando por critério apenas agendas políticas e outros elementos contingentes.

Meu papel na conferência foi defender que ambas as tendências se inserem no fluxo natural de desenvolvimento saudável da tradição política ocidental da qual são vetores resultantes que se reequilibram mutuamente quando uma das duas tende a sair do campo mais abrangente de valores que lhes sãos comuns.

O liberalismo foi fundamental na reinterpretação moderna da noção de soberania. No final do século XVI, tal noção aparecia ligada à plenitude do poder estatal; com a teoria da separação dos poderes, desenvolvida no século XVIII, em pleno iluminismo, freios jurídicos lhe são impostos.

A ideia é antiga. Se, por um lado, seria um óbvio anacronismo referir-se, por exemplo, a Aristóteles como o primeiro liberal, não é sem relevância notar que há, em sua reflexão política, uma valorização do equilíbrio de poder, uma tipologia de governos, uma noção de lei como expressão da razão, além de uma defesa da propriedade: sementes de preocupações que podem ser lidas como tipicamente liberais. Além disso, alguns autores medievais e renascentistas também teorizaram acerca de tais questões.

O filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704), constantemente referido como “pai do liberalismo”, retoma, portanto, uma tradição, embora reformule-a dentro de um paradigma moderno de ruptura com a cosmovisão clássica e medieval.

Diferentemente de Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã, para quem o poder soberano não conhece limite jurídico nem limite ético, para Locke os direitos naturais do homem (vida, liberdade, propriedade) são o limite diante do qual a interferência do poder estatal haverá sempre de recuar. A razão de ser do próprio Estado é assegurar a não-violação de tais direitos. O direito inglês, na verdade, era centrado na common law e qualquer lei do parlamento que com ela contrastasse deveria ser considerada nula e sem efeito.

Os franceses Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1778), dois grandes expoentes do iluminismo, foram ambos admiradores do sistema político britânico e, após estadia na ilha, confrontaram as liberdades ingleses ao absolutismo monárquico vivido na França.

Em suas Lettres philosophiques (também conhecida como cartas inglesas), Voltaire descreve e elogia os costumes e as instituições inglesas, destacando a limitação da soberania real pelo parlamento, assim como a liberdade de imprensa, de comércio e a tolerância religiosa como alicerces de um governo justo e eficaz.

Montesquieu expõe igualmente elevada opinião acerca das estruturas políticas da Inglaterra, cuja excelência estaria na divisão de poderes do Estado. Sua visão acerca disso ficou imortalizada na célebre obra O espírito das leis, na qual a divisão do poder é apresentada como condição da fruição da liberdade.

Montesquieu expõe a necessidade da moderação, da limitação do poder, da sua descentralização e distribuição institucional em diferentes órgãos. Tal disposição das coisas faz-se necessária “para que não se possa abusar do poder”, para que “o poder pare o poder.

Tal teoria, sabemos, é o cerne do Estado de direito e da democracia, se por democracia entendermos a exigência de distribuição de poder, modernamente realizada como democracia representativa e cuja ênfase recai menos no ideal da igualdade e mais no conjunto das regras que precisam ser obedecidas para que o poder político seja distribuído.

Essa concepção formal de democracia, como bem explica Norberto Bobbio, na obra “Liberalismo e Democracia”, é a que está historicamente ligada à formação do Estado liberal. 

Existe outro significado de democracia também historicamente legítimo: aquele que apela para uma democracia substancial e que está sempre buscando aprofundá-la.

Esse outro significado, porém, dificilmente é compatível com a tradição política que acabamos de descrever porque pressupõe a ruptura com valores essenciais que liberais e conservadores – modulando-se e corrigindo-se mutuamente – lutam para preservar.

O contrato social de Rousseau e a democracia totalitária

Qual seria, então, a referência teórica moderna dos “democratas” iliberais? Arrisco-me a dizer que a maioria dos que se arvoram defensores da democracia, no Brasil atual, são, consciente ou inconscientemente, herdeiros das ideias mais radicais de Jean-Jacques Rousseau, o genial, controverso, ambíguo e paradoxal genebrino, a quem o poeta Heinrich Heine referiu-se como sendo “a cabeça revolucionária da qual Robespierre não foi senão a mão executora.

Para uns, um iluminista, para outros, um anti-iluminista – a depender do que se entenda pelas luzes – Rousseau provocou uma inflexão na forma como a filosofia política ocidental vinha se desenvolvendo.

Em seu Discurso sobre a desigualdade, ele apresenta impactante e poética crítica à propriedade. Eis a célebre passagem, consagrada e reverenciada por todos que se identificam com tal visão de mundo:

“O primeiro que, após ter cercado um terreno, pensou dizer ´isto é meu´, e encontrou muito outros ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, conflitos, homicídios, quantas desgraças e quantos horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os marcos ou ultrapassando o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes: ´cuidado para não dar ouvidos a esse impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos e a terra não é de ninguém´”

A sociedade civil, a civilização, portanto, é uma desgraça. Com o pessimismo de Rousseau, a ótica interpretativa da história se inverte; o progresso festejado pelos iluministas é uma ilusão. A situação é de tal modo grave que não há possibilidade de curar a doença da sociedade apenas com reformas. É preciso um novo pacto social, fundado em novos pressupostos.

Se, na modernidade, Locke cultiva brotos nascidos das sementes liberais d´A Política de Aristóteles, Rousseau, rega, por sua vez, as sementes coletivistas d´A República de Platão.

A radical inflexão rousseauniana é decisiva para afastar a França da saudável influência de um iluminismo jurídico reformador e prudente, inspirado no modelo inglês, e encaminhar a nação para um iluminismo jurídico revolucionário que apregoa a necessidade de um novo contrato e de um novo homem.

Rousseau leva ao extremo a problemática identificação entre política e moral, fazendo do Estado um lugar de salvação individual e coletiva e propugnando a religião civil, em detrimento do cristianismo o qual, segundo ele, é totalmente contrário ao espírito social.

Por ser “uma religião totalmente espiritual que separa os homens da terra”, o cristianismo, segundo Rousseau, afasta os homens da vida cívica e enfraquece a República. Por não ter qualquer relação especial com o corpo político, “deixa às leis somente a força que tiram de si mesmas, sem acrescentarem nenhuma”.

A religião civil, por outro lado, teria por dogma a santidade do contrato e das leis, sustentando a coesão moral da República. Sob o pretexto da defesa do bem comum, o cidadão deve se deixar absorver no todo do corpo social, sacrificando sua individualidade no altar da “Vontade geral”

Estamos lidando aqui com uma concepção religiosa de política ou com uma das etapas da virada antiliberal que colocou a política no lugar da religião, exigindo que o cidadão deposite no Estado a mesma fé que um cristão deposita em Deus.

Não é incorreto dizer que o contrato social postulado por Rousseau dá origem a um estado democrático, na medida em que postula que o poder soberano deve estar nas mãos não de um príncipe ou de uma aristocracia, mas da coletividade. 

Por outro lado, ao eliminar as mediações institucionais que limitariam tal poder, o contrato enseja a tirania da maioria ou a democracia totalitária, tão temida por conservadores e liberais.

Revolução francesa e conservadorimo moderno

Solicitado pelo rei da Polônia, Estanislau II, a ajudá-lo a refletir sobre como salvar e reformar a Polônia, Rousseau chegou a escrever: “jamais se viu um povo corrompido voltar à virtude […]. Não há mais remédio, a não ser o de uma grande revolução quase tão terrível quanto o mal que poderia curar, e que é reprovável desejar e impossível prever”.

A revolução terrível em nome da virtude não aconteceu na Polônia, mas ocorreu na França, quando o “incorruptível” Robespierre, conduzindo com mãos de ferro o Comitê de Salvação Pública, endurecendo a revolução liberal até o terror, fez descer a guilhotina sobre todas as cabeças que supostamente conspiravam contra a República.

Antes mesmo de Robespierre adquirir poder relevante, quando a revolução estava ainda em seus primeiros estágios, após a queda da Bastilha, o irlandês Edmund Burke (1729-1797) publicou Reflections on the Revolution in France, obra considerada marco do conservadorismo moderno, na qual explica que a destruição das instituições históricas, iniciada pela revolução francesa, ameaçava o próprio tecido da civilização europeia.

A ambiguidade disso está no fato de que Burke era membro do partido Whig, ou seja, o partido liberal da Inglaterra do século XVIII, que defendia a limitação do poder real, a constituição e eram herdeiros da revolução gloriosa, em contraposição aos Tories, que compunham uma visão de mundo mais reacionária.

O conservadorismo moderno nasce, portanto, não de um reacionarismo anti-iluminista, mas de uma reflexão sobre os descaminhos que o ímpeto radical, transgressor e revolucionário poderia tomar. Não de uma defesa do absolutismo, mas sim de uma crítica à ruptura revolucionária.

E o Lula? E o STF?

A essa altura já deve estar impaciente o desprevenido leitor que, seduzido pelo título, deitou os olhos nesse artigo esperando considerações acerca da politicalha ordinária do Brasil atual.

Não julgue que ajo com má-fé ao sugerir reflexões e evitar, nesse quesito, verdades acabadas. A digressão político-filosófica aliada ao título sugestivo do artigo já dá por si só o que pensar. Mas sigamos juntos um pouco mais.

O que entendem por democracia aqueles que por aqui se arrogam seus defensores? Que tipo de democracia desejam? uma democracia liberal ou uma democracia totalitária? Lula já deixou claro, inúmeras vezes, seu desapreço pela democracia liberal.

“A democracia liberal demonstrou-se insuficiente e frustrou as expectativas de milhões”, discursou o presidente do Brasil, ano passado, no evento “Em defesa da democracia: lutando contra o extremismo”, organizado por ele e pelo presidente espanhol, o socialista Pedro Sanchez.

A democracia liberal não foi capaz de responder aos anseios e necessidades contemporâneas”, insistiu Lula em julho deste ano, no evento “Democracia sempre”, reunião realizada no Palácio de La Moneda, Chile, ao lado dos presidentes Boric, Pedro Sanchez, Petro e Yamandu.

Outro ponto que merece reflexão é a pública e notória defesa que o ministro Luís Roberto Barroso faz da função de “vanguarda iluminista” do STF. 

Ele próprio declara ser dever do tribunal “empurrar a história” para frente. Mas que tipo de iluminismo defendem os ministros do Supremo que se julgam iluminados? O iluminismo comedido de um Montesquieu, que pregava a divisão e harmonia dos três poderes, ou o iluminismo fanático de um Robespierre?

Robespierre também se considerava um iluminista e também esteve à frente de um Tribunal. No caso, o Tribunal Révoluttionaire, que julgava de forma rápida e sumária, condenando à morte os acusados de conspirar contra a República. 

Inspirado em Rousseau, Robespierre “iluminava” a sociedade de forma coercitiva, tomando medidas extremas para criar uma república virtuosa.

Claro, não temos mais guilhotinas. Está fora de moda. Mas temos leis. Leis pervertidas, como já prenunciava F. Bastiat (1801-1850), em seu opúsculo Le Loi. Não leis que servem à justiça ao protegerem a vida, a liberdade e a propriedade, mas leis distanciadas de sua própria finalidade, leis voltadas para a consecução de um objetivo inteiramente oposto: “A lei transformada em instrumento de qualquer tipo de ambição, em vez de ser usada como freio para reprimi-la! A lei servindo à iniquidade, em vez de, como deveria ser sua função, puni-la!

Dentre os ilustres togados, Barroso não é dos piores. Seu exemplo apenas veio a calhar devido à sua arrogante pretensão iluminista. Alexandre de Moraes, cuja retórica está centrada na “defesa da democracia”, tem sido mais eficaz em descaracterizá-la, minando seus alicerces ao combater seus mais atabalhoados adversários.

Em matéria de ataque à liberdade de expressão, Dias Toffoli disputa com Moraes o troféu de censor da República, mas, em matéria de perverter a lei, de transformá-la em “instrumento de qualquer tipo de ambição”, o criador do Fórum Jurídico de Lisboa é hors conscours. Mas não falemos dele. Bolsonaro não deixa. “Esqueça qualquer crítica ao Gilmar”, escreveu o ex-presidente em mensagem ao seu filho, divulgada no relatório da Polícia Federal.

Eis a situação caótica do Brasil: o Supremo Tribunal Federal que, revisando sua própria jurisprudência, possibilitou a saída do presidente Lula da prisão, vê-se hoje na iminência de condenar um ex-presidente que tentou dar um golpe de Estado.

Golpe que precisa de militar, que escancara o desejo de instaurar uma ditadura e é planejado por pessoas broncas, pouco ilustradas, abertamente reacionárias é coisa antiga e ineficaz. Mas serviu muito bem de pretexto para algo mais sutil: justificar o pacto entre Lula e o STF e o novo “contrato social” por meio do qual eles salvarão a “democracia” no Brasil.

“A verdadeira direita do Brasil”?

Minas Gerais, Romeu Zema, como pré-candidato à eleição presidencial de 2026. O convite, postado no WhatsApp pelo Instituto Libertas, ressaltava a seguinte mensagem: “Vamos unir a verdadeira direita do Brasil”.

A frase é ambígua. Pode significar uma avaliação crítica ao bolsonarismo, que há alguns anos se impôs no Brasil como principal referência da direita, mas pode também ser um apelo para unir essa direita bolsonarista em torno da candidatura do Novo, ambas sendo tomadas pela “verdadeira direita” em contraposição a uma “falsa direita” e a toda a esquerda, tomada aqui por um bloco homogêneo excluído de antemão.

De uma forma ou de outra, há na referida frase uma irrefletida valoração positiva da “direita”, além de perigoso purismo, ausência de distinção, eliminação de nuance e reivindicação de hegemonia.

Parece-me problemático que um partido dito liberal tome a ideologia ou categoria política “direita” por um valor positivo absoluto em torno do qual se busca uma união em detrimento do restante do espectro político.

O liberalismo, no decurso dos eventos históricos que protagonizou enquanto ideologia moderna, aproximou-se tanto da esquerda quanto da direita. Liberais e socialistas já se uniram contra estruturas conservadoras; liberais e conservadores já se uniram contra abruptas rupturas revolucionárias.

Se o malfamado “neoliberalismo” da segunda metade do século XX identifica-se mais com o espectro da direita, o liberalismo social do século XIX e início do século XX encontra mais pontos de contato com a esquerda social-democrata.

Parece-me, pois, contraproducente – até do ponto de vista eleitoral – que o partido Novo, por ocasião do lançamento de uma candidatura presidencial, opte por um chamado de união à “verdadeira direita” excluindo de antemão o eleitorado do centro ou da esquerda moderada com a qual poderia vir a compor.

A refutação clara do radicalismo de direita e o aceno aos moderados de ambos os espectros políticos parece-me um caminho mais correto, mais saudável e mais coerente para um partido em cujos princípios estão citados o império da lei e a democracia.

O partido Novo, na figura de Romeu Zema, se apresenta para a disputa em um momento muito difícil para a política brasileira e de descaminho do próprio partido. 

Tal descaminho tem sido a excessiva proximidade com o bolsonarismo que, com sua ignorância boçal e seu autoritarismo escancarado, já se tornou um espantalho. Um espantalho que espanta votos, embora não tenha esgotado todo seu capital político.

Entendo que haja um pragmatismo que visa herdar o espólio do bolsonarismo agonizante, mas contra esse pensamento utilitário reclamo uma ética mais kantiana que afirma ser necessário defender o certo e condenar o errado, a despeito das consequências.

Não é certo fazer de conta que as ações de Jair Bolsonaro, de seus filhos e de seu entorno não foram erradas.

Se o Novo for capaz de se descolar da direita radical, do populismo reacionário que o bolsonarismo representa, o partido pode vir a ser um representante legítimo não da “verdadeira direita” – expressão infeliz, de tom autoritário – mas de uma direita plural, de boa inspiração liberal-conservadora, democrática e humanista.

É preciso fugir dos extremos e tomar cuidado com a retórica belicosa e simplista que apaga as nuances dos espectros políticos.

No livro intitulado “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política“, Norberto Bobbio reconhece que direita e esquerda não são blocos monolíticos e que existem nuances dentro de cada campo, podendo as posições inclusive serem deslocadas.

Contra aqueles que insistem em afirmar que ou se é de esquerda ou se é de direita, ele reivindica a importância de uma zona cinza que se nutre de elementos de ambos os espectros.

Embora a igualdade seja o critério primário para a distinção entre as duas vertentes políticas, Bobbio também discute a liberdade e a autoridade como critérios secundários que, em certas circunstâncias, podem se sobrepor ou complementar a questão da igualdade.

A posição de direita ou esquerda em relação à liberdade e autoridade não é fixa, podendo variar. A partir dos critérios de igualdade e liberdade, ele sugere então o seguinte espectro das doutrinas e movimentos políticos:

1) Extrema esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e autoritários

2) Centro esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e libertários

3) Centro direita: movimentos simultaneamente libertários e inigualitários

4) Extrema direita: movimentos simultaneamente antiliberais e anti-igualitários.

Enquanto o moderantismo (à esquerda ou à direita) tende a ser gradualista, evolucionista e a considerar como guia para ação a noção de desenvolvimento, o extremismo (à esquerda ou à direita) tende a ser catastrófico e a interpretar a história como se ela desse saltos.

Outro ponto importante destacado por Bobbio é que extremistas de esquerda e extremistas de direita têm em comum, do ponto de vista político, a aversão pela democracia como conjunto de valores e como método e, do ponto de vista histórico-filosófico, o anti-iluminismo.

Se trago para um artigo jornalístico essas sutilizas conceituais – mesmo sem ter espaço para explicá-las pormenorizadamente – é apenas para alertar o perigo que há na propagação de um discurso no qual um partido se apresenta como “a verdadeira direita” ou como “o único partido 100% de direita.”

Um partido 100% à direita é um partido de extrema direita. Um regime de extrema direita é um regime sem liberdade, sem igualdade, onde Estado subjuga e esmaga o indivíduo. É um Estado totalitário. Certamente não é isso que o partido Novo defende, mas a ausência de cultura política pode levar a exortações irrefletidas.

Sendo assim, seria bom para o partido rever seus slogans, revisitar seus fundamentos e reajustar sua retórica a fim de se apresentar como uma opção viável não apenas para a “verdadeira direita”, mas para a maioria dos brasileiros que almeja um país livre não apenas do PT, mas dos Bolsonaro também.

O “isentão” é, antes de tudo, um forte

Cursei jornalismo por uns dois anos. Foi minha primeira faculdade, mas abandonei-a, dentre outros motivos, por não conseguir me adaptar à urgência da notícia. 

Sou paradoxalmente ansiosa e contemplativa, apressada e reflexiva. Minha natureza, por assim dizer, “ruminante”, para usar uma expressão de Nietzsche, empurrou-me para a Filosofia. Por ironia do destino, porém, mesmo não sendo jornalista, cá estou, atuando nesse meio.

Em 2015, comecei a sair um pouco da bolha universitária. Há dez anos dou a cara a bater no debate público, expondo minhas opiniões e análises políticas em diversos think tanks, portais e jornais. O que prejudicou, inclusive, minha carreira acadêmica, que estou tentando retomar.

Fui a primeira mulher nordestina a assinar, toda segunda feira, a página A2 da Folha de S.Paulo. Consegui romper a barreira regional e de gênero sem apadrinhamento, sem ceder um milímetro nas minhas convicções e princípios, sem precisar de qualquer tipo de cota.

Acabei abrindo mão desse espaço por ingenuidade. Em um desvio de rota, achei que fazia algum sentido para mim a política partidária. Não fazia. Minha relação com a política é uma relação externa, de análise. 

Não sou militante política, não sou jornalista militante. Sou simplesmente alguém inclinada a tentar compreender o mundo em que vivo, tanto em seu aspecto metafísico/ontológico quanto em seu aspecto social/político.

A incursão frustrada na política partidária deu-me, porém, algo de inestimável valor: a experiência da desilusão. 

Perder as ilusões em relação à política é um rito de passagem fundamental para começar a refletir bem sobre esse campo do saber. Quando me tornei colunista aqui, no portal O Antagonista, eu já havia passado por esse rito.

Isso não significa que eu não tenha ideais. Tenho-os sim, mas não deposito em nenhum político ou agrupamento político a esperança de realizá-los. 

O ideal existe para mim como ponto de referência, de parâmetro para a apreciação das formas sociais efetivas, não como crença passível de manipulação por demagogos astuciosos e cínicos como o são quase todos os profissionais da política.

Não é razoável, portanto, que eu ou qualquer outro colunista minimamente isento em suas análises seja objeto não apenas de crítica, mas de ódio, xingamentos e difamação justamente pelo quesito da isenção.

“Qual é o problema de ser isentão?”, perguntou o colega Eduardo Affonso, em sua crônica no jornal O Globo. 

O aumentativo pode conotar admiração ou desprezo, mas ´isento´ quer dizer liberto, desembaraçado, imune. Limpo, justo, desapaixonado. Imparcial. Sensato. Neutro”, escreve Affonso, desnudando também, em seu texto, a irracionalidade e a intolerância dos leitores que exigem que colunistas façam eco às suas paixões políticas sob pena de serem defenestrados.

Alguém poderá retorquir fazendo notar que, por trás da pretendida isenção, há inevitavelmente uma tomada de posição.

De certa forma sim. Não diria, porém, uma posição política propriamente dita, mas certa tendência ou inclinação, que, de resto, está explícita naquilo mesmo que se defende e se escreve. Isso é diferente de tomar partido, de se colocar a serviço de um partido ou de servir aos próprios interesses servindo a interesses escusos.

No meu caso específico, difícil não perceber, por tudo que já escrevi, que me insiro ideologicamente em um espectro que oscila do campo liberal-conservador à esquerda social-democrata, ou seja, tenho por campo político mais familiar a centro-direita, mas aceno favorável e complacentemente à centro- esquerda.

Uma legítima “isentona”, sentenciarão alguns. Que seja. No Brasil de hoje, o “isentão” é antes de tudo um forte.

O “isentão” digno desse nome é tarimbado na lida com a pressão dos extremos alucinados da política hodierna, já declinou vantagens pessoais que poderiam advir do adesismo descarado a um dos polos ideológicos em contenda e é dotado de uma sobriedade forjada no ato de resistir à gritaria histérica dos que exigem o sacrifício da razão no altar do fanatismo.

O “isentão” é a resistência do indivíduo autônomo, do sujeito pensante e do espírito livre, em meio à rebelião das massas.

Entendo que nosso país vive momento delicadíssimo, de muita tensão e turbulência. Estou consciente de que o discurso de defesa da democracia tem servido de fachada para o avanço das práticas mais autoritárias. 

Como, porém, tomar um lado nessa briga se aqueles que acusam as práticas autoritárias de uns são os mesmos que apoiam as práticas autoritárias de outros? Se não há lado certo, por que se juntar a um dos lados errados em vez de apontar o erro de ambos?

Tenho recebido ataques e xingamentos de alguns seguidores nas redes sociais por supostamente estar ao lado do STF, visto que não estou berrando por aí com os bolsonaristas pelo impeachment de Alexandre de Moraes. Não consigo, porém, defender ardorosamente uma bandeira política quando percebo claramente a sua instrumentalização por pessoas torpes mal-intencionadas.

Denunciar os abusos do ministro Moraes é importante e eu mesma não me furtei a isso; mas o problema do Brasil não é apenas Alexandre de Moraes. 

Por que bolsonaristas esbravejam apenas contra ele e fazem vista grossa para os atos abusivos e pouco republicanos de outros ministros como Gilmar Mendes ou Dias Toffoli?

Ora, retrucarão alguns, os bolsonaristas querem o fim do STF como um todo. Para isso invadiram a Praça dos Três Poderes e um bolsonarista até se explodiu em frente ao prédio do Supremo Tribunal. 

Aí é que está o problema. Não querem reformar a instituição por meios legítimos, querem destruí-la. Não se incomodam com o poder centralizado, incomodam-se com o poder centralizado nas mãos daqueles que julgam ser seus inimigos.

O problema do Brasil não é apenas o autoritarismo de Moraes, mas a falta de legitimidade de todo o sistema político; é a crise de legitimidade que existe em cada um dos três poderes porque aqueles que lá estão não honram suas funções, não atuam com lisura, não têm probidade, não são íntegros.

Ocorre que, nessa democracia disfuncional em que vivemos, ainda não estamos sob uma ditadura escancarada. O povo vota, escolhe seus representantes e o brasileiro tem insistido em escolher mal, muito mal.

A massa esquerdista que gritava Lula livre na porta da cadeia e os parlamentares lulistas que protestaram durante sessões do Congresso por ocasião da sua prisão atrasam tanto o Brasil quanto a massa direitista que invadiu a praça dos três poderes e os parlamentares que ocuparam recentemente as casas legislativas com o objetivo de livrar Bolsonaro da prisão.

O brasileiro comum politizou a sua vida privada permitindo que suas relações pessoais fossem envenenadas pelo fanatismo político enquanto aqueles por quem deterioram os seus sagrados laços de família sequer partilham dos seus ideais; são meros profissionais da política cujo ofício é alardear retoricamente como sendo de interesse nacional ou comum aquilo que é interesse pessoal ou grupal.

O Brasil precisa romper o ciclo nefasto da corrupção, do patrimonialismo e do populismo. Para tanto, precisamos exigir dos nossos representantes lisura, seriedade, coerência. Se continuarmos servindo apenas de massa de manobra conduzida ao bel prazer dos demagogos de ocasião ou dos sofistas inveterados, retroalimentaremos a mesma política que já sabemos perniciosa.

Ao cidadão cabe sempre o ceticismo quanto àqueles que exercem o poder ou detêm carisma capaz de atrair multidões. Em relação aos políticos, nossa atitude deveria ser sempre a fiscalização constante, a cobrança séria e não a bajulação que tapa os olhos para os erros em nome de uma suposta ideologia comum.

O fanatismo político nos trouxe até aqui. A prudência e a escolha criteriosa do eleitor “isentão” em 2026 pode ser o primeiro passo para nos retirar dessa lama.