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“Liberalismo e democracia” de Norberto Bobbio

Apesar da existência atual de regimes denominados democracias liberais, o problema da relação entre liberalismo e democracia, explica Norberto Bobbio, é muito complexo. Tais termos se referem às “duas exigências fundamentais das quais nasceram os Estados contemporâneos nos países econômica e socialmente mais desenvolvidos: a exigência, de um lado, de limitar o poder e, de outro, de distribuí-lo[1]”.

Enquanto o liberalismo é uma “concepção na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado social”, a democracia é uma forma de governo na qual o poder “não está nas mãos de um só ou de poucos, mas da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia[2].”

O pressuposto do liberalismo, o que fundamenta a sua exigência de limitação do poder do Estado, é a doutrina dos direitos do homem, elaborada pela escola do direito natural (jusnaturalismo)[3], segundo a qual existem leis naturais que independem da vontade humana e que precedem à formação do grupo social. Essa doutrina está na base das Declarações dos Direitos proclamadas tanto na Revolução Americana (1776) quanto na Revolução Francesa (1789). O Estado de direito, corolário do liberalismo, busca regular os poderes públicos com base na constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, “a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, verdadeiros direitos positivos.[4]

O utilitarismo de Jeremy Bentham, no entanto, pôs o liberalismo sobre um fundamento diferente. Ao invés de fundar a restrição do poder público sobre a existência de direitos naturais, como o fizera a secular tradição do jusnaturalismo, o “princípio de utilidade” de Bentham estabelece que os limites do poder dos governantes derivam “da consideração objetiva de que os homens desejam o prazer e rejeitam a dor e que a melhor sociedade é aquela que consegue obter o máximo de felicidade para o maior número de seus componentes.[5]” Segundo Bobbio, “essa passagem do jusnaturalismo para o utilitarismo assinala, para o pensamento liberal, uma verdadeira crise de fundamentos[6].” John Stuart Mill, que foi liberal e utilitarista, levou adiante essa perspectiva de Bentham.

Mill foi ao mesmo tempo liberal e democrata e considerava o governo representativo como o “desenvolvimento natural e consequente dos princípios liberais”. Um aspecto peculiar do seu pensamento democrático foi a defesa do voto plural, por meio do qual os mais instruídos teriam voto com um peso maior. Sua ideia era que o ensino universal deveria preceder o sufrágio universal, o que diminuiria os riscos de degradação da democracia pelo populismo.

É importante notar que, embora existam as democracias liberais, um Estado liberal não é necessariamente democrático nem um governo democrático implica necessariamente um estado liberal.[7] As democracias liberais são, na verdade, o resultado da combinação gradual dos ideias liberais com o método democrático. Essa combinação é salutar pois, segundo Bobbio, existem boas razões para crer que “o método democrático seja necessário para salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que estão na base do Estado liberal” e que “a salvaguarda desses direitos seja necessária para o correto funcionamento do método democrático[8].” Bobbio constata ainda que “hoje, apenas os Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os estados autoritários do mundo são, ao mesmo tempo, antiliberais e antidemocráticos[9]”.

Mas a democracia só pode ser considerada um complemento natural do estado liberal no seu aspecto político, que concerne ao sufrágio universal e às regras do jogo do poder. De fato, o sufrágio universal não é linha de princípio contrária ao liberalismo, mas sim complementar, uma vez que “os direitos políticos são um complemento natural dos direitos de liberdade e dos direitos civis[10]” e “o melhor remédio contra o abuso de poder de qualquer forma é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis.[11]” Com respeito, porém, “aos vários significados possíveis de igualdade, liberalismo e democracia estão destinados a não se encontrar.”[12]

O tipo ou o significado de democracia que está historicamente ligado à formação do estado liberal é a chamada democracia formal ou procedimental e não a democracia substancial, uma vez que aquela “põe maior evidência no conjunto das regras cuja observância é necessária para que o poder político seja efetivamente distribuído entre a maior parte dos cidadãos[13]” e esta põe ênfase no ideal de igualdade.

Ambos os significados de democracia, explica Norberto Bobbio, são historicamente legítimos, devendo-se salientar que, caso se opte por assumir a concepção substancial, que põe ênfase no ideal de igualdade, o problema das relações entre liberalismo e democracia torna-se muito complexo, pois, quando se estendem à esfera econômica, “liberdade e igualdade são valores antitéticos, no sentido de que não se pode realizar plenamente um sem limitar fortemente o outro.[14]” A incompatibilidade está também no fato de que:

“Libertarismo e igualitarismo fundam suas raízes em concepções do homem e da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista a liberal; totalizante, harmônica e monista a igualitária. Para o liberal, o fim principal é a expansão da personalidade individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da personalidade mais pobre e menos dotada; para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade dos singulares.” [15]

Há, porém, um tipo de igualdade que, segundo Bobbio, é não apenas compatível com o liberalismo, mas por ele solicitada, “é a igualdade na liberdade: o que significa que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros.” Trata-se, na verdade, da fórmula clássica da liberdade sob o império da lei. O estado liberal, portanto, é o Estado de direito, ou seja, aquele no qual os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais), refletindo “a velha doutrina – associada aos clássicos e transmitida através das doutrinas políticas medievais – da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens[16].”

Se, do ponto de vista da limitação dos poderes, o Estado liberal é um Estado de direito, do ponto de vista de suas funções o Estado liberal se pretende um Estado mínimo, cabendo notar, porém, que “pode ocorrer um Estado de direito que não seja mínimo (por exemplo, o Estado social contemporâneo) e pode-se também conceber um Estado mínimo que não seja um estado de direito.[17]

De todo modo, na perspectiva liberal, o Estado é concebido como um mal necessário e, enquanto mal, deve se intrometer o menos possível na esfera de ação dos indivíduos, sendo os mecanismos constitucionais o obstáculo erguido contra o exercício arbitrário e ilegítimo do poder. Dentre esses mecanismos, Bobbio cita como mais importantes 1) o controle do poder executivo pelo poder legislativo (ou seja, do governo pelo parlamento); 2) eventual controle do parlamento no exercício do poder legislativo por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político[18].

O processo de formação do Estado liberal confunde-se ainda com a progressiva emancipação da sociedade civil em relação ao Estado e o progressivo alargamento da esfera de liberdade do indivíduo, principalmente na esfera religiosa e econômica. O que marca mais profundamente a concepção liberal do Estado é a contraposição às várias formas de paternalismo. Bobbio chama atenção para o fato de que, embora muitos foquem na crítica exclusivamente econômica…

“O primeiro liberalismo nasce com uma forte carga ética, com a crítica ao paternalismo, tendo a sua principal razão de ser na defesa da autonomia da pessoa humana. Sob este aspecto, Humboldt vincula-se a Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith, que de resto antes de ser um economista foi um moralista, a liberdade tem um valor moral.” [19]

Kant, na sua obra Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784), expressa a ideia de que o antagonismo é fecundo e induz ao progresso. A natural e contrastante variedade dos caracteres e das disposições, o antagonismo e a concorrência que essa heterogeneidade provoca, seria um meio utilizado pela natureza para realizar o desenvolvimento de todas as suas tendências. A intervenção do Estado para além das tarefas básicas que lhe são cabíveis sufoca esse florescimento social, dificultando o progresso técnico e moral da humanidade.

Embora liberais costumem enfatizar mais o valor do indivíduo do que os democratas, Bobbio explica que “ambos repousam sobre uma concepção individualista de sociedade[20]” no sentido de se contraporem a uma concepção organicista (holista) que “considera o Estado como um grande corpo composto por partes que concorrem para a vida do todo e, portanto, não atribui autonomia aos indivíduos uti singuli”. A diferença estaria, porém, no fato de que o interesse individual que o liberalismo se propõe a defender não é o mesmo daquele que é protegido pela democracia ou, dito de outra forma, as relações do indivíduo com a sociedade são vistas de modo distinto pelo liberalismo e pela democracia, sendo as principais diferenças as seguintes:

O liberalismo extrai o singular do corpo orgânico da sociedade e o faz viver nos perigos da luta pela sobrevivência, enquanto a democracia reúne o indivíduo aos seus semelhantes para que a sociedade seja recomposta não como um todo orgânico, mas como uma associação de indivíduos livres; o liberalismo reivindica a liberdade individual contra o Estado tanto na esfera espiritual quanto na esfera econômica e faz do singular o protagonista de toda a atividade que se desenrola fora do Estado, enquanto a democracia faz do singular o protagonista de uma forma diversa de Estado na qual as decisões coletivas são tomadas pelos cidadãos e seus representantes; o liberalismo evidencia a capacidade do indivíduo de se autoformar e vê nele um microcosmo ou uma totalidade completa em si mesma, enquanto a democracia reconcilia o indivíduo com a sociedade e exalta a sua capacidade de superar o isolamento; o liberalismo tem por efeito a redução ao mínimo do poder público, enquanto a democracia busca expedientes capazes de permitir a instituição de um poder comum não tirânico, reconstituindo assim o poder público como soma de poderes particulares[21].

Convém notar que, a despeito das diferenças, “a relação entre liberalismo e democracia nunca foi de antítese radical[22]”, mas a relação entre liberalismo e socialismo sim. O “pomo da discórdia” entre ambos, explica Bobbio, é a liberdade econômica, “que pressupõe a defesa ilimitada da propriedade privada[23]”, vista pelos socialistas como fonte principal da desigualdade entre homens, conforme apregoado por Rousseau.

A necessidade de se contrapor ao avanço do socialismo e seu programa de economia planificada e coletivização dos meios de produção fez com que a doutrina liberal se concentrasse cada vez mais na pauta econômica, em defesa da economia de mercado e da livre iniciativa. Esse fenômeno fez com que o liberalismo se identificasse cada vez mais como uma doutrina meramente econômica, o que costuma ser chamado de liberismo[24].

Por outro lado, foi justamente o aparecimento, no século XX, dos Estados totalitários, que possibilitou uma gradual convergência entre a tradição liberal e a democrática. Os regimes nem liberais nem democráticos tornaram histórica e politicamente irrelevantes as diferenças originárias, possibilitando a sedimentação da tradição democrática liberal.

Ciente dos contrastes entre liberalismo e democracia, Norberto Bobbio defende “soluções de compromisso” para o que julga um “contraste benéfico” entre duas concepções de liberdade: a dos liberais (a liberdade negativa, que exige de um Estado que governe o mínimo possível) e a dos democratas (a liberdade positiva, que almeja um estado no qual o governo esteja o máximo possível nas mãos dos cidadãos).

Se os liberais, pondera o filósofo, aceitarem a “democracia como método ou como conjunto das regras do jogo” e os democratas atentarem para o “estabelecimento permanente dos limites em que podem ser usadas aquelas regras”, liberalismo e democracia poderão passar “de irmãos inimigos a aliados[25].”

[1] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 200 p.8

[2] P.8

[3] p.11

[4] p.18

[5] p.63

[6] p.64

[7] p.7

[8] p.43

[9] p. 44

[10]p.44

[11]p.45

[12] P.42

[13] P.37

[14] p.39

[15] P.39

[16] p.18

[17] P.17

[18] p.19

[19] p.27

[20] P.45

[21] P.47-48

[22] P.79

[23] P.80

[24] P.86

[25] P.97

Taiwan, a China Democrática

A democracia é o valor principal que garante nossa liberdade. Esta é uma máxima que nossa civilização aprendeu do modo mais difícil. O valor supremo da vontade do povo é essencial para criação de nações vitoriosas, prósperas e livres. A maioria dos chineses infelizmente não consegue viver com democracia e tampouco com liberdade, presos em um sistema autoritário que suprime qualquer chance de prosperidade que respeite os direitos básicos e fundamentais de qualquer cidadão.

Porém, existe uma China onde a liberdade existe e a democracia é de fato inegável. Este local se chama República da China ou Taiwan, 21ª economia do mundo, onde a indústria de tecnologia desempenha um papel-chave na economia global. Considerado um dos quatro “tigres asiáticos”, Taiwan, é classificada como desenvolvida em termos de liberdade de imprensa, saúde, educação pública, liberdade econômica, entre outros indicadores sócio-econômicos.

Depois de perder o controle do território continental em 1949 e a presença nos fóruns internacionais em 1971 para os comunistas, que fundaram a República Popular da China, o governo original, a República da China ou Taiwan, continua tendo relações de facto com muitos países, inclusive os Estados Unidos, que ao longo dos anos, assim como outras nações, tem exercido uma política internacional de ambiguidade estratégica com a ilha, ou seja, reconhece a China como único representante do povo chinês, porém mantém relações políticas e militares com Taiwan.

Entretanto, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia, passou a especular-se sobre a possibilidade da República Popular da China avançar sobre Taiwan, com o objetivo de acabar definitivamente com a República da China, invadindo a ilha e anexando-a ao governo de Pequim. Xi Jinping, líder comunista mais poderoso desde Mao Tse Tung, ameaçou um avanço quando declarou que o “status de Taiwan não pode ficar pendente e ainda precisa ser resolvida nesta geração”.

As palavras de Xi Jinping acenderam um sinal de alerta. Um movimento que mudou o eixo de posicionamento internacional sobre Taiwan, colocando de lado a política de ambiguidade estratégica, passando a avaliar a possibilidade de adotar-se uma política de clareza estratégica, que consiste em reconhecer a China como representante do povo chinês, porém, sem abandonar a defesa indireta (e possivelmente direta) da ilha. Assim, a comunidade internacional poderia agir na defesa de Taiwan em caso de ataque chinês contra sua soberania.

Defender Taiwan é uma obrigação de toda democracia, que enxerga na ilha uma resistência histórica contra os horrores do comunismo e a opressão sofrida pelos chineses no território continental controlado por Pequim. Ao contrário, Taipei representa uma china livre, próspera e democrática, um país admirável que merece reconhecimento internacional, relações externas que devem ir além da relação de facto exercida por muitos países.

Fato é que estamos diante de uma China democrática e uma China autoritária. A comunidade internacional tem razões de sobra para ir além de uma ambiguidade estratégica e assumir uma clareza estratégica em favor da democracia, liberdade e prosperidade representada pelo governo de Taipei.

Taiwan esquenta a ‘nova guerra fria’ China/Estados Unidos

I.

Apenas 12 dias depois da visita da Presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia) a Taiwan, quando os protestos diplomáticos de Pequim e os disparos, com munição real, dos projéteis do Exército de Libertação Popular no Estreito de Taiwan ainda reverberavam mundo afora, mais uma delegação do Congresso norte-americano aterrissou em visita à ilha rebelde.

Pelosi desembarcou, na primeira terça-feira de agosto, em Taipé, coroando um giro pela Ásia do Pacífico que incluiu Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e Japão. Essa foi a mais importante visita de uma autoridade norte-americana desde 1997, quando o também presidente da Câmara, Newt Gingrich (Republicano da Geórgia) encabeçara missão à República da China, nome oficial de Taiwan. Ela chegou praticamente ‘de surpresa’, pois não havia antecipado publicamente essa última escala em sua viagem. Pelosi encontrou-se com a presidente da república Tsai Ing-wen, com o vice-presidente do Yuan Legislativo (parlamento) Tsai Chi-chang e com grupos de defesa dos direitos humanos; levou a todos eles a mensagem de que os Estados Unidos persistem em sua determinação de preservar a democracia taiwanesa.

Quase ao mesmo tempo, o regime da República Popular da China deu início a uma gigantesca manobra envolvendo o disparo de meia dúzia de mísseis e a mobilização de cerca de 100 aviões, além de submarinos, porta-aviões, destróieres e navios de apoio – enfim, nada comparável ao ‘treinamento’ que teve lugar no estreito de Taiwan entre 1995 e 1996, quando o ELP ainda era uma força mal-treinada com equipamento obsoleto.

Naquele tempo, bastou que os Estados Unidos mobilizassem dois grupos-tarefa capitaneados por porta-aviões a pouco mais de 320 quilômetros da ilha para dissuadir os chineses de continuarem com suas manobras. Agora, a RPC comanda o terceiro maior arsenal nuclear do planeta, e suas forças aérea, terrestre e naval são equipadas com tecnologia comparável à do arsenal do Pentágono. É óbvio que Pequim aguardava um gesto qualquer de Washington, pretexto que veio sob a forma da visita de Pelosi, para dar essa demonstração de força, reafirmando a inabalável intenção do regime comunista de integrar Taiwan, efetiva e definitivamente, ao espaço de sua soberania. Afinal, manobras desse porte não podem ser improvisadas de uma hora para a outra, já que exigem uma complexa integração entre as três forças e um minucioso planejamento logístico. No front diplomático, o chanceler chinês, Wang Yi, considerou a visita uma “provocação política declarada”, em grave violação do “princípio de uma única China” (mais sobre isso na próxima seção deste artigo), o que “fere a soberania chinesa”.

Para Wang, os “Estados Unidos devem parar de tentar obstruir a grande reunificação da China”, pois “Taiwan é parte inalienável do território chinês”. Mal Pelosi embarcou de volta para o seu país, o governo chinês divulgou um “livro branco” (white paper), acusando os Estados Unidos de “solaparem o desenvolvimento e o progresso da China” e afastando o compromisso inicial chinês de não tomar Taiwan pela força, o primeiro documento oficial sobre o assunto – intitulado “A Questão de Taiwan e a Reunificação da China em uma Nova Era – desde a ascensão simultânea de Xi-Jinping à secretaria-geral do Partido. Comunista e à presidência da RPC (a edição anterior era de 2000). Paralelamente, a China também respondeu com sanções econômicas, suspendendo o abastecimento de areia a Taiwan e proibindo a importação de numerosas mercadorias da ilha, principalmente frutas e pescado.

Naturalmente, o governo taiwanês aproveitou o ensejo para também reagir com declarações firmes e manobras militares adrede planejadas. O chanceler Joseph Wu defendeu a soberania de facto da ilha de 23 milhões de habitantes, alertou que Pequim estaria preparando uma invasão e que as ambições geopolíticas chinesas ameaçam outros países da região. De modo a dar consequência concreta a esse posicionamento, as forças armadas de Taiwan dispararam mais de 100 projéteis carregados com munição real no sul da ilha, na proximidade dos exercícios do ELP. Taiwan está separada da província chinesa de Fujian, no continente, por uma distância máxima de 180 quilômetros de mar. Desde o início da Guerra Fria, uma “linha mediana” foi traçada no Estreito de Taiwan com o objetivo de reduzir o risco de conflito armado. Agora, essa linha imaginária foi cruzada várias vezes por 10 navios de cada lado – os chineses tentando cruzá-la e os taiwaneses tentando bloquear esse acesso.

Num calculado jogo de cena e com base nos conselhos dos seus assessores militares, o presidente Joe Biden sinalizou contrariedade com a missão Pelosi, muito embora ele mesmo, em três oportunidades diferentes, já tenha declarado à imprensa que nunca recuará do tradicional compromisso americano com a defesa de Taiwan. Se Biden realmente se opusesse à missão, Nancy Pelosi jamais teria chegado a Taipé a bordo de um jato oficial do governo com escolta da força aérea dos Estado Unidos, providências que requerem expressa autorização da Casa Branca.

A delegação congressual americana mais recente, liderada pelo veterano senador Democrata de Massachusetts Ed Markey, também cumpriu o roteiro de encontros com a chefe de Estado Tsai, com o ministro das relações exteriores Wu e membros do Yuan Legislativo e deve provocar mais uma bateria de exercícios do ELP e indignadas declarações da chancelaria da China.

II.

Três são os documentos diplomáticos que servem de base à One-China policy dos Estados Unidos. O primeiro deles é o “Comunicado de Xangai”, de fevereiro de 1972, anunciado ao fim da histórica visita do presidente Richard Nixon à China. Ele reconhece a existência de uma única nação chinesa, e que Taiwan faz parte dela. Também confirma o interesse dos Estados Unidos em uma solução pacífica da questão de Taiwan pelos próprios chineses, com a promessa norte-americana de, num futuro indefinido, retirar todas as suas instalações militares da ilha.

O segundo documento é o comunicado sobre o estabelecimento de relações diplomáticas Estados Unidos/RPC (janeiro de 1979). Nele, as partes se comprometem a rejeitar a busca por hegemonia na região da Ásia do Pacífico, assim como em qualquer outra região do mundo. O governo norte-americano reitera o compromisso de acatar a noção de que existe somente uma China, o que inclui Taiwan.

O terceiro comunicado, de agosto de 1982, teve sua íntegra desclassificada somente em 2019. O governo Ronald Reagan concordou em não exceder, quantitativa ou qualitativamente, o nível de transferência de armamentos americanos a Taiwan, com o compromisso adicional de reduzir gradualmente suas vendas desses equipamentos e munições. (Essa foi uma resposta positiva ao gesto do regime chinês que, em 1981, declarara sua intenção de buscar uma reintegração pacífica de Taiwan à RPC.)

Ao mesmo tempo que os Estados Unidos reconheciam o regime comunista como único representante ‘oficial’ da China, o Congresso norte-americano votou, e o presidente Democrata Jimmy Carter sancionou, a Lei de Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act), renovando os compromissos de apoiar uma solução pacífica no Estreito de Taiwan, fornecer a Taiwan armamentos necessários à sua autodefesa e resistir a qualquer ameaça à integridade da segurança e do sistema socioeconômico do povo taiwanês.

III.

Qual teria sido a motivação pessoal da visita de Nancy Pelosi a Taiwan? Ao longo de sua carreira política, ela sempre fez questão de apoiar abertamente a luta de regimes democráticos sob ameaça de inimigos ditatoriais. Em 1991, por exemplo, dois anos depois do massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, Pelosi, integrando delegação de congressistas dos Estados Unidos, esteve no local e desfraldou estandarte em apoio ao movimento chinês pró-democracia. Mais recentemente, a presidente da Câmara dos Representantes encabeçou comitiva do Congresso em visita a Kiev, capital da Ucrânia, já durante a invasão russa ao país.

Esses gestos compreendem o ‘legado’ com que a veterana congressista da Califórnia deseja coroar sua trajetória, já próxima da aposentadoria.

IV.

A escalada de tensões China/Taiwan preocupa o mundo inteiro. Por ali transita boa parte do comércio marítimo internacional. Taiwan é líder mundial na fabricação de semicondutores (chips), ingrediente indispensável da economia digital, e o agravamento do conflito deve abalar ainda mais as cadeias globais de suprimento, que não se recuperaram do choque da pandemia e também sofrem com a guerra russo-ucraniana. Muito embora, os analistas militares minimizem a probabilidade de uma invasão da ilha a curto prazo, aumentam os temores de que esses exercícios com munição real se multipliquem, tornando-se o ‘novo normal’ na região, o que, cada vez mais, vai dificultar a distinção entre manobras simuladas e um ataque para valer…

Todos os políticos em Washington, a começar por Biden e Pelosi, continuam a reafirmar a adesão dos Estados Unidos à política da China única. Durante recente visita a Phnom Penh, capital do Camboja, a convite da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), o secretário de Estado Anthony Blinken criticou as manobras do ELP em torno de Taiwan e conclamou Pequim a desescalar suas provocações militares.Reiterou, ainda, que a visita de Pelosi foi pacífica e não representou mudança alguma na política dos Estados Unidos vis-à-vis Taiwan. (Seja como for, no mesmo período daquela polêmica viagem, o porta-aviões USS “Ronald Reagan”, que fica baseado no Japão e transporta helicópteros e caças a jato F/A-18, além de sofisticados sistema de inteligência e vigilância, concluiu visita portuária a Cingapura, e deslocou-se pela região na companhia do cruzador USS “Antietam” e do destróier USS “Higgins”.)

Mas, o que os aliados da China e dos Estados Unidos acham disso tudo? Solidário à China, que se recusa a condenar a invasão russa à Ucrânia, o chanceler Sergey Lavrov ironizou a “estranha lógica” das declarações de Washington sobre a manutenção da política da China única, enquanto a terceira mais alta autoridade dos Estados Unidos visitou Taiwan, em total desconsideração aos interesses de Pequim. A China cancelou encontro de chanceleres com o Japão em protesto contra declaração conjunta do G-7 de que as manobras militares no Estreito de Taiwan eram injustificadas. E, no referido evento da Asean, em Phnom Penh, os chanceleres Lavrov e Wang Yi se retiraram juntos da sala de reunião tão logo o ministro japonês das Relações Exteriores, Hayashi Yoshimasa, começou a discursar.

Em Canberra, a chanceler australiana, Penny Wong, pediu um desanuviamento das tensões, no interesse da “estabilidade” da região. O alto grau de integração da economia mundial faz com que os parceiros dos Estados Unidos e da China torçam por uma desescalada. Enquanto isso, o que mais preocupa o PC chinês, às vésperas do seu 20º Congresso (provavelmente em novembro), que conduzirá Xi Jinping a um inédito terceiro mandato, é o potencial da inquietação social causada pela visível desaceleração da economia. Isso leva o regime a apelar para a exacerbação dos sentimentos nacionalistas e o endurecimento do controle sobre os meios de comunicação tradicionais e as redes sociais, com redobrada repressão a todo tipo de oposição política (advogados dos direitos humanos, ativistas LGBT+ etc).

Rússia X Ucrânia: a qualidade do comando faz a diferença

SIR LAWRENCE FREEDMAN É O DECANO BRITÂNICO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, professor emérito do King’s College (Londres), e autor de obras já consideradas clássicas como The Evolution of Nuclear Strategy (4ª edição, 2019, em coautoria com Jeffrey Michaels) e Strategy: a History (2013). Freedman se prepara agora para lançar Command: the Politics of Military Operations from Korea to Ukraine. Na edição de julho/agosto de 2022 de Foreign Affairs, ele nos brinda com uma ‘degustação’ do novo livro, com foco no conflito russo-ucraniano. O que segue é um ‘apanhado’ dos pontos que considero mais importantes naquele artigo.

I

Nos regimes autocráticos – caso da Rússia de ontem, hoje e talvez sempre –, os governantes, muitas vezes, tomam decisões militares com base em informações incompletas e, não raro, simplesmente falsas, porque a tendência desses déspotas é valorizar a ‘lealdade’ sobre a competência na escolha dos seus generais, cercando-se de yes men temerosos de discordar dos seus superiores ou retransmitir-lhes notícias ‘desagradáveis’ vindas do front. Em grande medida, daí derivam as dificuldades que as forças militares russas vivenciam hoje na Ucrânia, um impasse material e psicologicamente desgastante, enfrentando uma forte e inesperada resistência de um adversário muito menor, porém decidido a criar todas as dificuldades possíveis aos invasores, valendo-se de ampla assistência financeira e militar dos Estados Unidos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Como a Rússia se meteu nessa enrascada sangrenta?

Em setembro de 1999, Vladimir Putin se tornou premiê de um física e politicamente enfraquecido presidente Boris Yeltsin. Naquele momento, o exército russo lambia as feridas do seu amor próprio, humilhado em uma longa e desastrosa campanha contra os rebeldes islâmicos da Chechênia (1994/1996). Naquele mesmo setembro, os cidadãos de Moscou e de todo o país foram abalados por explosões em prédios residenciais da capital russa. O governo imediatamente culpou o terrorismo checheno, embora até hoje muita gente desconfie que os ataques foram planejados e executados por ex-colegas de Putin no FSB, substituto da KGB. soviética, a fim de fabricar pretexto para uma nova guerra. Dessa vez, o governo russo desencadeou uma campanha maciça e impiedosa, e a capital da Chechênia, Grozny, acabou conquistada. Na primavera seguinte, Putin venceu com folga a sua primeira eleição presidencial, seu recente sucesso militar sinalizando a determinação do governo a restabelecer a autoridade centralizada do Estado. Nos anos seguintes, o boom mundial das commodities catapultou as exportações russas de petróleo e gás. Essas receitas ajudaram a financiar a modernização do estabelecimento militar. Ao mesmo tempo, as relações com o Ocidente começaram a azedar.

Em 2004/2005, a Ucrânia foi varrida pelos ventos pró-ocidentais da chamada Revolução Laranja. Em 2008, durante a conferência de cúpula da Otan em Bucareste, Romênia, o governo de Kiev ventilou a sua aspiração a se unir ao bloco. Em 2013, com o chamado Movimento Maidan, o povo ucraniano derrubou o presidente pró-Rússia que havia voltado atrás na promessa de adesão à União Europeia.. No ano seguinte, o Kremlin retaliou com a anexação da Crimeia. Para justificar esse gesto hostil, Putin alegou que a população local de origem russa estaria sendo perseguida pelo governo central e armou grupos paramilitares de oposição. O Ocidente aceitou aquela agressão com a mesma passividade com que já tinha recebido o massacre da Chechênia e a tomada pelos russos de uma parte do território da Geórgia (2008) como ‘castigo’ pela ousadia cometida pelo governo daquela ex-república soviética do Cáucaso ao anunciar seu desejo de fazer parte da Otan. Moscou continuou armando os rebeldes da região do Donbas, e nem a precária paz estabelecida graças ao acordo de Minsk (Belarus) fez cessar os choques armados, assim como também não cessaram ações russas ‘por procuração’ via ciberataques e operações psicológicas com a finalidade de enfraquecer o governo ucraniano e a infraestrutura econômica do país. Sem alternativa, Kiev foi se aproximando cada vez mais do Ocidente.

Em meados de 2021, o Kremlin divulgou manifesto de Putin declarando que a Ucrânia constituía parte inalienável da pátria-grande russa. Entre o final daquele ano e o começo deste, o governo russo passou a concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia. Em Moscou, os comandantes militares asseguraram ao presidente que a invasão seria um ‘passeio’ e que as tropas russas rapidamente tomariam Kiev, decapitariam o governo do presidente Volodymyr Zelensky e o substituiriam por uma junta fantoche. Mas, como registrei há pouco, havia alguns anos que Kiev modernizava as suas forças armadas com treinamento e equipamentos transferidos pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan. Como a hipótese que orientou o exército russo era que a invasão seria curta e rápida, seus comandantes não se prepararam para um conflito mais prolongado tomando os devidos cuidados logísticos; com isso, suprimentos de rações alimentares, combustíveis e armas/munições começaram a escassear. No plano tático-operacional, o erro da invasão foi dispersar unidades de elite entre várias frentes de batalha, dificultando a coordenação e agravando o desafio logístico.

De sua parte, os ucranianos utilizam modernas armas antiaéreas e antitanque, ao mesmo tempo que se beneficiam da proximidade das fontes de suprimento. Já nos primeiros dias da invasão, o exército da Ucrânia impôs sérios danos às colunas de blindados inimigos e às pistas de pouso de que os russos dependem para renovar se reabastecer. Acima de tudo, é o entusiasmo dos soldados ucranianos, devotados à defesa da sua terra, que oferece o mais vivo contraste com o desânimo e a desorientação do inimigo russo. Fez bem o presidente Zelensky ao se recusar a pedir asilo no Ocidente. A legitimidade da sua liderança não só inflama o ânimo dos compatriotas como também acabou convencendo os aliados de que a Ucrânia é, sim, capaz de repelir com sucesso a invasão perpetrada por vizinho muito maior. Em menos de seis meses de luta, 20% das forças terrestres russas foram destruídas, e sua reconstrução se mostra cada vez mais difícil dadas as sanções que sufocam sua base industrial de defesa. Já as pesadas violações de direitos humanos cometidas pelos invasores – tortura, estupros, bombardeio de instalaçoes civis, como hospitais e centros comerciais – só fazem reforçar a determinação ucraniana de resisti e, com ela, a disposição ocidental de apoiá-los mediante amplas doses de assitência financeira, a exemplo do pacote de 40 bilhões de dólares aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos.

Entrementes, o expansionismo agressivo da Rússia deu novo e inédito alento à aliança transatlântica. Suécia e Finlândia, duas potências até outro dia orgulhosas de sua longa tradição de neutralidade, já receberam sinal verde de todos os membros da Otan para engrossar o pacto.O novo “conceito estratégico” da Otan, há pouco divulgado em substituição à versão de 2010, identifica a Federação Russa como “ameaça” imediata e “significativa”, designando a República Popular da China, hoje a maior aliada da Rússia, como um desafio “à segurança e aos valores” ocidentais. (Mais sobre isso ao final deste artigo.) Desde a invasão da Ucrânia, o Pentágono já enviou 10 mil militares americanos à Polônia; 2,5 mil à Romênia; e 2 mil aos três países bálticos. Na Alemanha, os Estados Unidos mantêm o seu maior efetivo (40 mil militares).

Em 25 de março, um mês depois do início daquilo que o governo russo classifica, orwellianamente, como “operação militar especial”, Putin acabou desistindo, ao menos por enquanto, do objetivo inicial de tomar todo o todo o território ucraniano e o redimensionou na perspectiva mais modesta de limitar a ocupação ao sul e ao sudeste do país. Começava a “2ª fase” da campanha: “libertação’ do Donbass, onde se localizam as províncias ‘rebeldes’ de Donetsk e Luhansk. Mesmo assim, nem as conquistas russas das cidades de Mariupol e Lysychansk foram suficientes para dissuadir os ucranianos de prosseguir em sua tática de desgastar a retaguarda inimiga com ataques balísticos de precisão contra bases logísticas e linhas de suprimento.

II

O ímpeto da resistência ucraniana que tanto surpreendeu a maioria dos analistas ocidentais se explica, em grande medida, por dois fatores. Além da capacidade do governo Zelensky para manter elevado o moral das tropas e da população civil, Freedman aponta como variável crucial a flexibilidade da cadeia de comando. Os níveis hierárquicos inferiores sabem tomar decisões adequadas à instável realidade do campo de batalha, sabendo-se apoiados pela confiança dos seus superiores. O contraste com a rigidez hierárquica do comando russo não poderia ser mais dramático.

E Freedman, baseado no acúmulo sistemático de observações históricas que se estendem desde a Guerra da Coreia (1950/1953) até a corrente invasão da Ucrânia pela Rússia, assim resume as quatro condições fundamentais para o sucesso dos comandantes de sucesso:

( 1 ) confiança mútua entre escalões hierárquicos superiores e inferiores;
( 2 ) rápido acesso a equipamentos e suprimentos adequados (no caso da Ucrânia, drones, armas antitanques e antiaéreas que têm provocado um ‘estrago assimétrico’ à máquina de guerra russa);
( 3 ) qualidade da liderança em todos os níveis (contribuição relevante da assistência militar ocidental aos ucranianos); e
( 4 ) compromisso com a missão e compreensão do seu propósitopolítico (em comparação com os soldados ucranianos, os invasores russos chegaram iludidos de que a população local os receberia com vivas e flores, como ‘libertadores’. Repetindo: os ucranianos sempre souberam exatamente por que estão lutando.)

III

Quais as perspectivas do conflito Rússia X Ucrânia, quanto tempo ele irá durar?

Até onde a vista alcança, o atual impasse deve se arrastar pelo menos até o próximo inverno no hemisfério norte, quando poderemos avaliar com clareza qual o tamanho da dependência europeia em face do gás russo. O presidente Jair Bolsonaro tem razão quando observa que as sanções econômicas ocidentais estão criando dificuldades, mas não no grau e com a rapidez com que contavam os adversários da Rússia. Esta projeta para o corrente ano receitas de exportação de petróleo e gás no valor de 267 bilhões de euros, contra os 221 bilhões apurados em 2021, conforme estimativa da Bloomberg,

De outra parte, se o fracasso da invasão vier a precipitar a queda de Putin, não será a primeira vez que erros de cálculo militar terão acarretado mudanças de regime na Rússia. Basta lembrar que a derrota ante ingleses e franceses na Guerra da Crimeia (1853/1856) ensejou um ciclo de reformas sob o czar Alexandre II, inclusive com a libertação dos servos (1861). Em 1905, a vitória do Japão contra a Rússia levou a uma (tímida) liberalização da autocracia imperial. O colapso dos exércitos russos na Primeira Guerra Mundial abriu caminho à Revolução Bolchevique (1917). Por último, mas não em último, a impossibilidade de vitória no Afeganistão (1979/1989) acelerou a implosão da União Soviética.

O conflito na Ucrânia será, em grande medida, decidido longe do campo de batalha. À China de Xi Jinping interessa evitar um fiasco militar russo, pois a Rússia é considerada por Pequim uma preciosa ‘retaguarda logística’ na hipótese, cada vez mais provável, de um acirramento da rivalidade com os Estados Unidos e as democracias avançadas a eles aliadas. Tanto Xi quanto Putin aspiram a construir vastas esferas de influência na Eurásia no quadro de uma nova arquitetura geopolítica à imagem e semelhança de suas visões autocráticas, o que pressupõe uma substancial debilitação da ordem mundial liberal apoiada no colosso norte-americano. Mas, a elite comunista chinesa também receia que o prolongamento/agravamento da guerra na Ucrânia produza um reforço das alianças militares lideradas pelos Estados Unidos na Europa, no Oriente Médio e na região Indo-Pacífico e teme alienar seus parceiros econômicos e comerciais europeus. Assim, para os chineses, em se tratando de China X Ucrânia, se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.

Esse panorama sombrio pode ainda piorar na hipótese de um Putin, inconformado com a perspectiva de derrota humilhante, recorrer à chantagem nuclear, o que, certamente, elevará o risco de uma corrida armamentista Leste/Oeste a um superior e mais perigoso patamar.

Mas, essa é uma outra história, que fica para uma outra vez.

Conheça a “democracia popular de processo integral”, a democracia falsificada pela China

No início do mês, o jornalista Augusto de Franco, defensor apaixonado da democracia, fez uma provocação irresistível em seu site, Dagobah. Disse que seria interessante fazer uma análise aprofundada do que considera “a maior tentativa da história de falsificar a democracia”. Aqui estamos.

Ele postou a versão em inglês de um documento público divulgado pela agência oficial Xinhua News por ocasião da comemoração do centenário do Partido Comunista Chinês e não teve a devida atenção internacional.

É algo que precisa ser dissecado e analisado cuidadosamente por pessoas com visões diferentes. Não é fácil compreender a estrutura por trás do documento e como desfazer a narrativa. O título já mostra o poder de destruição. China: a democracia que funciona. Seria apenas uma desfaçatez se fosse algo produzido pelos blogueiros conduzidos pela coleira por políticos ocidentais. É perigoso exatamente por ser muito bem executado.

Em 23 páginas, o documento recorre à história política de 5 mil anos da China para legitimar o Partido Comunista como fiador da democracia. O exercício retórico é sofisticado. Na introdução, se diz que o Partido Comunista Chinês tentou todas as formas de democracia utilizadas atualmente no ocidente e elas falharam. A releitura histórica se funde com a releitura do conceito de democracia em si.

Há uma mistura perversa entre o conceito de governo do povo com a possibilidade de ascensão social mediada por um partido que é o único garantidor da “vontade popular”. O partido assume o papel que no ocidente geralmente é depositado no colo de grandes ídolos políticos populistas. Os conceitos de liberdade e direitos humanos também são pervertidos.

Todo o documento tem um foco muito mais voltado à leitura moral das situações do que à descrição da realidade. Um exemplo é a deturpação do conceito de direitos humanos, que parte de uma mentira para uma justificativa moral. Na China, os direitos humanos são plenamente respeitados e protegidos. Viver uma vida de contentamento é o direito
humano supremo.

É a execução perfeita da novilíngua de George Orwell. Não basta apenas renomear o que desagrada, é preciso criar teorias morais que degradem algo valorizado na democracia. Os direitos humanos estão elencados de forma objetiva numa declaração internacional. Eles são sistematicamente atropelados pelo governo chinês, acusado diuturnamente dos mais diversos tipos de violações.

A moralização é a afirmação aparentemente feita pensando no bem comum. Não existe um “direito humano supremo” e nem se fala de “vida de contentamento” na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É uma forma sub-reptícia de justificar as violações sistemáticas deliberdades individuais apelando ao conceito abstrato de felicidade ou contentamento. Se a pessoa está contente, então não se pode dizer que a violação de direitos humanos é isso, afinal estar contente é o centro da questão. Não existe melhor gaiola do que a ilusão de liberdade. O documento é a sistematização de um discurso para criar ilusão de liberdade ao mesmo tempo em que justifica as violações das liberdades.

O que seria então o tal do contentamento? É a sensação de progresso econômico e de ter as necessidades de subsistência atendidas. A economia da China manteve um crescimento de longo prazo, estável e rápido, e a vida das pessoas melhorou significativamente. A China estabeleceu o maior sistema de seguridade social do mundo. O número de pessoas cobertas pelo seguro médico básico ultrapassou 1,3 bilhão, e o número de pessoas cobertas pelo seguro básico de velhice já ultrapassou 1 bilhão.  A China completou a construção de uma  sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos. Todo o país se livrou da pobreza absoluta e embarcou no caminho da prosperidade comum. As pessoas ganharam uma sensação mais forte de realização, felicidade e segurança.

A linguagem parece bem intencionada e, por isso, funciona como narrativa para os mais desavisados. Este parágrafo remonta a um dos episódios mais trágicos da história da China, que só começou a ser desvendado pelo ocidente recentemente. Um livro de Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong, publicado em 2008 trouxe à tona uma realidade ainda mais devastadora do que se pensava. “A grande fome de Mao – A história da catástrofe mais devastadora da China” traz a primeira pesquisa em arquivos do próprio governo sobre o ocorrido entre 1958 e 1962. As estimativas eram de 30 milhões de mortos pela fome. As novas pesquisas demonstraram que foram pelo menos 45 milhões de mortos.

O professor teve acesso em primeira mão a arquivos contando de forma detalhada o impacto da política chamada de “O Grande Salto para Frente” de Mao Tsé-Tung. Era um plano de expansão econômica aparentemente muito bem feito. A teoria, na prática, era outra. Hoje, o Partido Comunista Chinês chama o evento de “O Difícil Período de 3 anos”, que seria de 1959 a 1961. A falta de comida para as pessoas teria, segundo a versão oficial, sido decorrência de problemas nas condições ambientais. A contagem oficial é de 15 milhões de mortos.

O ponto mais trágico é que ninguém morreu de fome por falta de comida, mas por uma política que regulava o acesso a alimentos para consolidar poder. O novo documento relaciona a subsistência à democracia. Durante “A Grande Fome de Mao”, a comida era usada como instrumento para garantir que as pessoas cumprissem as tarefas determinadas pelo Partido Comunista Chinês. As famílias já haviam começado a ser esfaceladas e as pessoas obrigadas a trabalhar em grandes colônias agrícolas.

Toda a produção precisava ser entregue ao Estado até o ponto em que foi proibido até mesmo cozinhar dentro das casas. O acesso à cantina coletiva era facilitado aos que cumpriam as tarefas. Os que não cumpriam, estavam doentes, dormiam no serviço ou estavam fracos perdiam esse acesso. Muitos acabaram morrendo. Nessa época, a propaganda oficial vendia a imagem de uma economia próspera com um povo feliz. Mas os novos documentos mostram uma realidade absolutamente chocante.

O desespero chegou a um ponto em que havia muitos casos de camponeses que desenterravam parentes para comer, era comum o consumo de roedores, terra e cascas de árvore para matar a fome. Praticamente toda família tem um sobrevivente desse horror. Vender a situação atual como prosperidade e democracia é menos difícil diante dessa memória. Por isso a ideia de relacionar democracia a subsistência é especialmente perversa.

O Partido Comunista Chinês tem o poder de controlar a economia com mão forte a ponto de privar cada um dos cidadãos de toda a dignidade. Já fez isso. Agora utiliza essa memória para dizer que a privação de liberdades individuais é democracia,  já que as pessoas podem comer e estão contentes. Os conceitos de contentamento e felicidade são altamente subjetivos e fáceis de manipular no discurso político. A ideia da “democracia que funciona” é calcada exclusivamente na subjetividade.

As instituições democráticas passam por um período de descrédito no mundo todo. Questionar é natural do processo democrático. Mas a abertura de qualquer tipo de dissenso é vista pela China como oportunidade para advogar pelo conceito de “democracia de consenso”, aquela em que o consenso pode ser democraticamente forçado.

Se o povo é despertado apenas para votar, mas depois fica adormecido, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe grandes esperanças durante a campanha eleitoral, mas não tem voz depois, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe promessas exageradas durante a campanha eleitoral, mas fica de mãos vazias depois, isso não é uma verdadeira democracia.

Com isso obviamente a maioria de nós vai concordar. A crise institucional da democracia ocorre justamente porque as pessoas não se sentem participantes das decisões nem representadas pelas instituições. O documento sobre a democracia chinesa fala com empolgação sobre a inexistência de partidos de oposição. Não é um regime de partido único, mas todos os outros sabem que estão lá para colaborar com o Partido Comunista Chinês, não para questionar nem se opor.

Um bom modelo de democracia deve construir consenso em vez de criar divisões e conflitos sociais, salvaguardar a equidade e a justiça social em vez de aumentar as disparidades sociais em favor de interesses estabelecidos, manter a ordem e a estabilidade sociais em vez de causar caos e turbulência, e inspirar positividade e valorização do bom e do belo em vez de instigar a negatividade e promover o falso e o mal.

O Partido Comunista Chinês tem uma lógica conhecida de forçar o consenso a qualquer preço e atropelando liberdades e diferenças individuais. É quase delirante a forma como este princípio é distorcido até se encaixar em uma definição moral da “boa democracia”. Martin Luther King dizia que a paz não é ausência de conflito, é presença de justiça. Este conceito é completamente subvertido no pacifismo movido pela mão forte da ditadura.

A democracia é um direito do povo em todos os países, e não uma prerrogativa de algumas nações. Se um país é democrático, isso deve ser julgado por seu povo, não ditado por um punhado de forasteiros. Se um país é democrático deve ser reconhecido pela comunidade internacional, não arbitrariamente decidido por alguns juízes auto nomeados. Não existe um modelo fixo de democracia; ela se manifesta de muitas formas. Avaliar a miríade de sistemas políticos no mundo com um único critério e examinar diversas estruturas políticas com regras monocráticas são, em si, atitudes antidemocráticas.

No mundo ricamente diversificado, a democracia vem em muitas formas. A democracia da China está prosperando ao lado de outros países no jardim das civilizações. A China está pronta para contribuir com sua experiência e força para o progresso político global por meio da cooperação e do aprendizado mútuo. A ideia é que você pode chamar de democracia se conseguir convencer as pessoas de que é democracia. E isso pode ser feito num regime de partido único, cada vez mais fechado ao mundo exterior, com inúmeros mecanismos de controle social de última geração.

O mais ousado é a proposta de ajudar outros países a consolidar seus regimes e dar um jeito de também chamar de democracia. Além dos efeitos práticos, é uma narrativa que pega e pode contaminar inclusive o mundo democrático. Se cada um criar sua versão de democracia e contestar a legitimidade de todas as instituições democráticas, tudo passa a poder ser chamado de democracia. Se nada é suficientemente democrático, tudo também pode ser democrático em alguma medida, sempre buscando melhorar.

Ainda há muito a se analisar sobre este documento, mas parece uma tese que tem tudo para se espalhar, sobretudo diante das crises institucionais nas grandes democracias mundiais. O assustador é que estamos tão consumidos pelas crises que criamos onde existe democracia que nem atentamos para as tentativas de demolir cada suspiro democrático.

China, Estados Unidos e Taiwan: entre a ambiguidade e a clareza

QUANTAS GAFES presidenciais são necessárias para efetivar uma inflexão estratégica? Por três vezes desde que se tornou inquilino da Casa Branca, Joe Biden insinuou publicamente o abandono da “ambiguidade estratégica” nas relações da América com Taiwan em face da política anexacionista da República Popular da China. Em todas essas oportunidades, seus assessores correram para retificar, ou ao menos atenuar, as declarações do chefe. Mas, como lembra Marc A. Thiessen, colunista do Washington Post, o povo não elege assessores presidenciais….

Em 1979, sete anos depois da histórica visita de Richard Nixon à China, os Estados Unidos reconheceram diplomaticamente a RPC e, ao mesmo tempo, ‘desreconheceram’ a República da China (Taiwan). Mesmo assim, sucessivas administrações em Washington, D.C., mantiveram laços políticos, econômicos e, sobretudo, militares com Taipé, com base do Taiwan Relations Act, aprovado pelo Congresso e sancionado por Jimmy Carter naquele mesmo 1979. De modo a não afrontar o novo parceiro comunista na missão de conter a hoje extinta, mas então ameaçadora, União Soviética, os Estados Unidos adotaram uma posição deliberadamente ambígua ante a hipótese de a RPC vir a recorrer à força para anexar Taiwan, que Pequim considera uma ilha rebelde e parte inalienável do território chinês, reservando-se a prerrogativa de retomà-la na eventualidade de os taiwanenses proclamarem unilateralmente a sua independência. Em outras palavras, Washington não declara se vai ou não vai intervir militarmente para proteger Taiwan. Paralelamente, as maciças transferências de armamentos norte-americanos ao pequeno aliado ‘oficioso’ jamais cessaram. Na verdade, o governo Biden acaba de marcar um recorde histórico de vendas de material bélico a Taiwan (18 bilhões de dólares em quatro anos: caças F-16, tanques Abrams, mísseis antiaéreos Stinger, misseis antinavios, torpedos, drones da classe Reaper, entre outros itens).

Em agosto do ano passado, a propósito dos desdobramentos de um ainda hipotético ataque russo à Ucrânia, Biden, em resposta a um repórter da rede ABC, salientou que “[A]ssumimos um compromisso sagrado com o artigo quinto [da Carta da Organização do Tratado do Atlântico Norte] de que, se, de fato, alguém invadir ou atacar os nossos aliados da Otan, nós responderemos. O mesmo [vale] para o Japão, para a Coreia do Sul, para Taiwan”. Dois meses depois, agora diante das câmeras da CNN, indagado se os Estados Unidos entrariam em guerra para defender Taiwan de um ataque militar chinês, o presidente foi igualmente claro: “Sim, temos o compromisso de fazê-lo”. E, em maio último, durante entrevista coletiva por ocasião de sua visita a Tóquio, Biden foi perguntado: “O sr. não quer se envolver militarmente no conflito ucraniano por razões óbvias [mas] [e]staria disposto a se envolver militarmente em defesa de Taiwan [. . .]?” Resposta presidencial curta e grossa: “Sim”. O repórter insistiu: “O sr, está [disposto]?” Resposta mais detalhada: “É o compromisso que assumimos [. . .] A ideia de que [Taiwan] pode ser tomada a força simplesmente não é apropriada”.

Toda estratégia bem-sucedida depende do equilíbrio entre aspirações e capacidades – os objetivos e os meios disponíveis para alcançá-los. Ora, vários jogos de guerra e simulações conduzidos pelo Pentágono demonstram que a opção dos Estados Unidos pela “clareza estratégica” em relação à defesa de Taiwan está fadada ao fracasso. Como esclarece Oriana Skylar Mastro, expert em assuntos militares chineses, nos últimos 20 anos, a China aproveitou sua bem-sucedida decolagem econômica para modernizar seus arsenais. Hoje, os mísseis da marinha do Exército de Libertação Popular (ELP) são capazes de neutralizar os porta-aviões da armada americana.

A força aérea de Tio Sam conta a penas com duas bases, no Japão, para se deslocar até o Estreito de Taiwan sem necessidade de reabastecimento. já a China possui 39 bases aéreas a apenas 500 milhas de Taipé. Um ataque preventivo dos chineses, no caso de a liderança comunista estar convicta de que os americanos reagirão em defesa de Taiwan, frustará essa reação aeronaval. No front cibernético, a doutora Mastro adverte que o ELP está em condições de abater satélites militares americanos, comprometendo seus sistemas de comunicações, inteligência, comando e controle.

Em contraste, os chineses, operando do seu próprio território, dispõem de cabos de fibra ótica, o que lhes assegura um fluxo estável e confiável de dados e informações. É possível que, de modo a evitar uma represália em larga escala, o ELP venha a concentrar seus ataques em Taiwan, evitando engajamento direto com as forças armadas dos Estados Unidos. Por outro lado, é igualmente possível – sustenta Oriana Mastro – que, temendo envolver-se numa escalada do conflito, os aliados da América na região relutem em facilitar-lhe o acesso a portos, aeródromos etc.

Para afastar esse perigo, não basta que os Estados Unidos dobrem a aposta na diplomacia da “ambiguidade estratégica”, que, honra seja feita, até hoje foi capaz de manter a paz no Estreito de Taiwan, Mas, na etapa histórica que se inicia, de bipolaridade emergente opondo potências liberal-democráticas e patrimonialismos agressivamente iliberais, como China, Rússia e Irã), isso é insuficiente. Volta e meia citado nesta coluna, o analista Hal Brands, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais), vinculada à Universidade Johns Hopkins, e colunista da Bloomberg, afirma que a causa-raiz da crescente instabilidade nas relações entre Pequim e Washington, não reside no compromisso do segundo com a democracia taiwanesa, mas, sim, no desequilíbrio militar cada vez mais favorável à RPC.

O livro que Brands acaba de publicar em co-autoria com o cientista político Michael Beckley, docente da Universidade Tufts e pesquisador do think tank conservador American Enterprise Institute – The Danger Zone: the Coming Conflict with China – aconselha, entre outras as seguintes medidas: o reforço e a simultânea dispersão das bases militares dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico, de modo a reduzir a atual vulnerabilidade a um ataque chinês; a expansão dos arsenais do Pentágono, principalmente mísseis de longo alcance e outras munições teleguiadas de precisão capazes de romper qualquer bloqueio aeronaval a Taiwan e, ao mesmo tempo, absorver o impacto dos primeiros dias de conflito sem perda de capacidade de resposta; e a intensificação das relações militares com Taiwan, com a realização de exercícios militares multilaterais.

O supracitado Marc Thiessen faz coro a Brands e Beckley quando reconhece que a melhor maneira de manter a paz na região consiste em dissuadir o regime chinês de anexar Taiwan à força – e não esperar passivamente por um ataque como aquele que o exército de Vladimir Putin desferiu contra a Ucrânia há mais de cem dias.

Karl Popper: racionalismo crítico e democracia

Embora Karl Popper (1902-1994) tenha se notabilizado mais como filósofo da ciência do que como pensador político, a contundência das suas críticas contra os teóricos que considerou inimigos da sociedade aberta (dentre os quais Platão, Hegel e Marx), bem como sua defesa dos valores democráticos, liberais e humanitários, fazem dele um autor incontornável para os que defendem uma sociedade livre e plural.

Suas principais contribuições à teoria política encontram-se nas obras A sociedade aberta e seus inimigos e A miséria do historicismo, mas convém notar que sua percepção metodológica das ciências sociais relaciona-se com sua concepção geral de método científico, de modo que as referidas obras “não são um desvio do seu itinerário intelectual, porque é dos princípios de sua epistemologia que ele deduz os argumentos em favor da democracia liberal[1].” Sendo assim, pelo menos as teses principais do seu racionalismo crítico precisarão ser consideradas para uma compreensão adequada da sua visão política.

Para Popper, o conhecimento científico é hipotético e conjectural, ou seja, não se baseia na indução, mas na formulação de hipóteses que devem poder ser falsas para poderem ser tomadas momentaneamente por verdadeiras. Não se trata aqui de mero jogo de palavras, mas de uma sucinta apresentação do seu famoso critério de falsificabilidade, segundo o qual, das hipóteses aventadas como tentativas de soluções para determinados problemas, devem poder ser extraídas consequências passíveis de serem refutadas (falsificadas) pelos fatos; caso contrário, não se trataria de teoria científica.

A verdade é incerta e está em contínuo processo de descoberta ou apreensão; ela não se cristaliza em certezas ideológicas e dogmáticas. Se o critério científico de uma teoria depende da sua possibilidade de ser refutada, ou seja, da capacidade de se sustentar em meio a argumentos, observações e experiências contrárias, parece claro que esse critério só terá sentido em um contexto social no qual as teorias possam ser livremente criticadas. Não foi à toa, portanto, que a filosofia/a ciência surgiram na Grécia ao mesmo tempo que a democracia: “se os gregos inventaram simultaneamente a ciência e a democracia, não foi, para Popper, um acaso, mas o fruto de uma única e mesma evolução decisiva para o espírito, de uma mesma libertação em relação aos modos de pensamento mágico-arcaico e unanimistas das sociedades tribais anteriores[2]”.

Embora não seja o escopo deste artigo detalhar as sutilezas inerentes à sua epistemologia, é importante atentar para a concepção de racionalidade e verdade sobre a qual ela repousa. Para Popper, o acesso à verdade é essencialmente negativo e a razão humana é concebida como inapta a qualquer tipo de conhecimento absoluto e totalizante: “A abordagem do racionalismo crítico permite aceder a um corpus sempre mais vasto e profundo de conhecimento científico verdadeiro, porém acessível sob o modo de uma incerteza congênita[3]”. Nosso maior problema não são os limites da razão, mas, pelo contrário, seu uso dogmático. No âmbito social e político, Popper denunciará as formas de organização ligadas ao dogmatismo, ao mesmo tempo em que defenderá aquelas ligadas ao pluralismo e à liberdade.

A tese fundamental desenvolvida por Popper no ensaio “A miséria do historicismo” é, conforme suas próprias palavras: “a de que a crença no destino histórico é pura superstição e de que não há como prever, com os recursos do método científico ou de qualquer outro método racional, o caminho da história humana[4].” Para refutar o historicismo, Popper argumenta basicamente que “o curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento humano”, mas que “não é possível predizer, através de recurso a métodos racionais ou científicos, a expansão futura de nosso conhecimento científico[5]”, portanto “não é possível prever o futuro curso da história humana[6]”, o que significa que “não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico a servir de base para a predição histórica[7].” Sua argumentação refuta, portanto, a “possibilidade de predizer desenvolvimentos históricos na medida em que possam estes ver-se influenciados pela expansão do conhecimento humano[8].”

Seria um erro metodológico a pretensão de uma compreensão total, abrangente e definitiva das coisas, uma vez que as teorias só captam aspectos seletivos da realidade, além de serem infinitas em número e sempre passíveis de refutação. Contrária a essa constatação é a concepção denominada por Popper de holismo, segundo a qual “seria possível captar intelectualmente a totalidade de um objeto, de um acontecimento, de um grupo político ou de uma sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, ou melhor, político, transformar a sociedade[9].”

Historicismo e holismo seriam, pois, segundo Popper, suportes teóricos das ideologias totalitárias. Tanto a filosofia histórica do racismo ou do fascismo (à direita) quanto a filosofia histórica marxista (à esquerda) seriam versões modernas do historicismo denunciado por ele. Segundo Popper, cada um desses movimentos “retornam diretamente à filosofia de Hegel[10]” que, por sua vez, segue certos filósofos antigos. Se lembrarmos que Hegel, como expoente maior do idealismo alemão, representa a culminância de uma filosofia dogmática centrada na noção de absoluto e de racionalidade do real, compreenderemos melhor a relação entre epistemologia e política e como uma concepção mais prudente quanto às possibilidades da razão e mais cética quanto ao conhecimento humano vincula-se a uma perspectiva política mais liberal, sendo, portanto, um dos pressupostos teóricos necessários para a defesa das sociedades abertas.

Um dos aspectos mais controversos da abordagem de Popper é a vinculação de Platão ao totalitarismo feita a partir de uma exegese com viés mais sociológico e metodológico do que metafísico e centrada principalmente na obra A República. Embora advirta o leitor de A sociedade aberta e seus inimigos de que “não espere uma exposição de toda a filosofia platônica ou o que pode ser chamado um completo e justo tratamento do platonismo[11]”, não deixam de ser surpreendentes, para não dizer chocante, algumas de suas afirmações peremptórias como: “o programa político de Platão é puramente totalitário[12]” ou “minha tese de que suas exigências políticas (de Platão) são puramente totalitárias e anti-humanitárias precisa ser defendida[13].”

Além de vincular a filosofia platônica ao historicismo, Popper também classifica Platão como um dos criadores da teoria orgânica do estado[14]relacionando ainda o holismo de sua doutrina (do grego holos, todo. Ênfase sobre a unicidade e totalidade do Estado) à nostalgia do coletivismo tribal das sociedades fechadas[15]. Popper afirma que Platão, na República, “usou a palavra justo como sinônimo daquilo que é do interesse do estado melhor.[16]” Segundo sua interpretação, “a ele (Platão) só importa o coletivo como um todo e a justiça, para ele, nada mais é do que a saúde, unidade e estabilidade desse todo coletivo[17]”, o que o leva, por conseguinte, a afirmar que “a exigência platônica de justiça deixa seu programa no mesmo nível do totalitarismo.[18]

Ora, a noção de justiça que Popper pretende defender e que acusa Platão de ter desprezado ou mesmo odiado é a noção de isonomia, de igualdade diante da lei, que Popper também chama de teoria igualitária. Resta evidente, embora não seja supérfluo salientar, que esse igualitarismo louvado por Popper deve ser entendido dentro da perspectiva liberal clássica de ausência de privilégios e da tradição que remete à Péricles, Eurípedes, Hípias, Heródoto, Antístenes e Licofronte[19], nada tendo a ver com o igualitarismo radical de viés socialista, sendo antes a “exigência de que o nascimento, as ligações de família ou a riqueza não influenciem aqueles que administram a lei para os cidadãos[20]”.

Contra essa tradição erigia-se, segundo Popper, o princípio de justiça de Platão a requerer “privilégios naturais para líderes naturais[21]”, princípio esse que seria incompatível e hostil em relação ao individualismo[22], tido por Popper como “a grande revolução espiritual que conduziria à queda do tribalismo e à ascensão da democracia.[23]” Para estupefação do leitor, Popper chega a afirmar, em relação a Platão, que “nunca houve homem mais empenhado em sua hostilidade para com o indivíduo[24]” e que, “no campo da política, o indivíduo é, para Platão, o mal em pessoa.[25]

Uma das acusações lançadas por Popper contra Platão é a de identificar “todo altruísmo com o coletivismo e todo individualismo com o egoísmo.[26]” Contra isso, Popper faz notar a pertinência do uso do termo “individualismo” apenas como oposto a coletivismo, uma vez que seria plenamente possível um individualista (isto é, um anti-coletivista) ser altruísta, ou seja, alguém capaz de “fazer sacrifícios a fim de ajudar outros indivíduos.[27]” Individualismo, portanto, segundo Popper, não é necessariamente sinônimo de egoísmo, mas Platão os teria identificado a fim de ter nessa identificação uma “poderosa arma para defender o coletivismo, assim como para atacar o individualismo[28]”.

Embora não estejamos cem por cento de acordo com a interpretação de Popper segundo a qual Platão veria no individualismo um inimigo odioso a ser combatido, concordamos plenamente com a sua consideração acerca da relevância do individualismo e do altruísmo para a formação da civilização ocidental e para o desenvolvimento moral do homem.

Segundo Popper, a hostilidade de Platão em relação ao individualismo é anti-humanitária e anti-cristã[29], sua teoria sobre o estado é totalitária[30] e seu código moral é “estritamente utilitário.[31]” Desconsiderando o fato de que raros são os platonistas dispostos a endossar semelhante exegese, cumpre notar que as característica atribuídas por Popper ao pensamento de Platão descrevem justamente a sociedade fechada em contraposição à qual depreendem-se as características da sociedade aberta.

O código moral utilitário ou a razão de estado que Popper atribui a Platão é uma característica fundamental das sociedades fechadas ou dos regimes totalitários: “o totalitarismo não é simplesmente amoral. É a moralidade da sociedade fechada, do grupo, da tribo; não é o egoísmo individual, é o egoísmo coletivo[32]”. Na sociedade aberta, em contrapartida, deve prevalecer a teoria humanitária da justiça, que exige tanto o princípio igualitário (enquanto proposta de eliminação dos privilégios naturais) quanto o estabelecimento da proteção da liberdade dos cidadãos como tarefa e objetivo do estado.[33]

Outra abordagem de Popper que possibilita, por contraposição, a apreensão de aspectos importantes da sociedade aberta, plural e democrática que ele defende é a sua crítica à ênfase dada por Platão ao problema de “quem deve governar”, o que desviaria o problema das instituições para as questões pessoais. Tal ênfase tomaria como o mais urgente dos problemas a escolha dos líderes naturais e de como adestrá-los para a liderança[34], corrompendo, com isso, a prática educacional[35]. Talvez haja também nessa crítica de Popper a Platão um laivo de anacronismo, uma vez que a distinção entre o elemento pessoal e o institucional é uma conquista moderna. De todo modo, a exigência de tal distinção é legítima no âmbito da defesa de uma sociedade aberta e a argumentação de Popper a esse respeito é bastante sensata.

A relevância que Popper dá às instituições mostra que sua concepção de democracia é a mais compatível possível com a perspectiva liberal. A questão liberal é menos acerca de quem governa e mais acerca de como governa; é menos acerca do caráter do governante e mais acerca da qualidade das instituições, embora deva-se atentar para a impossibilidade de um institucionalismo puro. Assim sendo, Popper acatará, em parte, a crítica de Platão à democracia quando o filósofo grego sugere a fragilidade desse regime para evitar o surgimento do tirano, mas o faz sobretudo para se distanciar do entendimento reducionista e perigoso de democracia como sendo simplesmente o governo da maioria.

O princípio democrático não é, segundo Popper, o de que a maioria deve governar, mas é o princípio “de que diversos métodos igualitários para o controle democrático, tais como o sufrágio universal e o governo representativo, devem ser considerados como simplesmente salvaguardas institucionais, de eficácia comprovada pela experiência, contra a tirania[36].”Ao definir democracia – em contraposição à tirania ou ditadura – como “governos dos quais podemos nos livrar sem derramamento de sangue[37]”, Popper refuga o paradoxo democrático do tirano desejado pela maioria.

A defesa das instituições liga-se, em Popper, ao seu reformismo, à compreensão de que a democracia é imperfeita, mas perfectível. Não convém condená-la pelos seus defeitos, mas sim aperfeiçoá-la gradativamente, reconhecendo nela a virtude de um regime que “fornece o arcabouço institucional para a reforma das instituições políticas[38]” e que “torna possível a reforma das instituições sem usar de violência e, portanto, o uso da razão na formulação de novas instituições e no reajustamento das antigas.[39]

Esse modo de compreender a evolução política da sociedade e de agir em benefício dela é chamado por Popper de mecânica gradual, em oposição à perspectiva nefasta intitulada por ele de mecânica utópica.[40] A perspectiva utópica determina um “alvo político definitivo ou o estado ideal, antes de empreender qualquer ação prática.”[41] Para realizar seu estado ideal, o político utópico lança mão de “um projeto de sociedade como um todo; e isso exige o forte regime centralizado de uns poucos, o qual, portanto, é possível de conduzir a uma ditadura[42].”

A mecânica gradual “adotará o método de pesquisar e combater os maiores e mais prementes males da sociedade, em vez de buscar seu maior bem definitivo e combater por ele[43].” Trata-se, para Popper, de uma perspectiva “metodologicamente sadia[44]” ou, ainda, do “único método de aperfeiçoar as coisas que até agora obteve êxito em qualquer tempo e em qualquer lugar[45].”

Entre a mecânica gradual e a mecânica utópica tem-se “a diferença entre um método razoável de aperfeiçoar o quinhão do homem e um método que, se realmente experimentado, pode facilmente levar a um intolerável acréscimo de sofrimento humano”[46]. A crítica popperiana em relação àquilo que chamou de mecânica utópica não deve, porém, como alerta o próprio filósofo, ser compreendida como simples crítica ao estabelecimento de um ideal; trata-se, antes, da crítica à tentativa de engenharia social.

Popper chama atenção nesse contexto para a peculiaridade do pensamento de Karl Marx, que critica o utopismo, denunciando “a fé num planejamento racional das instituições sociais como inteiramente antirrealista[47]”, mas o faz por adotar uma visão radicalmente historicista, segundo a qual “a sociedade deve crescer de acordo com as leis da história e não de acordo com os nossos planos racionais[48]”, asseverando que tudo o que podemos fazer é “diminuir as dores do parto desse processo histórico[49].”

Apesar de Marx se opor a toda mecânica social, inclusive a utópica, Popper afirma que há algo no utopismo a que Marx não se opõe: “sua tentativa de lidar com a sociedade como um todo, não deixando pedra por virar. É a convicção de que se tem que ir até a própria raiz do mal social, de que nada menos do que a completa erradicação do sistema social prejudicial bastará[50]”.

A esse radicalismo que sonha com uma “revolução apocalíptica[51]”, Popper atribui uma certa dose de entusiasmo estético: o que se busca não é construir um mundo “um pouco melhor e mais racional que o nosso[52]”, mas um mundo que seja livre de toda a feiúra do mundo anterior: “não um estofo maluco, um velho traje mal remendado, mas uma veste inteiramente nova, um mundo realmente belo[53].”

Mais uma vez, não se trata de condenar a busca de um ideal de um mundo belo, mas de apontar para a necessidade de refrear esse idealismo “pela razão, por um sentimento de responsabilidade, por um impulso humanitário de prestar ajuda. De outro modo, será um entusiasmo perigoso, possível de se desenvolver em alguma forma de neurose ou histeria”[54]. Aos utopistas que exigem sempre medidas de amplo alcance, Popper contrapõe simplesmente a razoabilidade, o bom senso: “não é razoável admitir que uma reconstrução completa de nosso mundo social conduzirá imediatamente a um sistema capaz de funcionar[55].”

[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques aux temps modernes et contemporains. Paris : Quadrige/PUF, 2002. p.1311

[2] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques aux temps modernes et contemporains. p.1313

[3] Idem p.1312

[4] POPPER, K. A miséria do historicismo. São Paulo: EDUSP, 1980. p.4

[5] Idem p.5

[6] Idem p.5

[7] Idem p.5

[8] Idem p.5

[9] REALE, Giovani. História da Filosofia VII p.150

[10] Idem. p.24

[11] POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Volume 1 p.48

[12] Idem p.184

[13] Idem p.103

[14] Idem p.95

[15] Idem p.94

[16] Idem p.103

[17] Idem p.121

[18] Idem p.104

[19] Idem p.110

[20] Idem p.109

[21] Idem p.110

[22] Idem p.120

[23] Idem p.116

[24] Idem p.118

[25] Idem p.118

[26] Idem p.116

[27] Idem p.115

[28] Idem p.116

[29] Idem p.119

[30] Idem p.121

[31] Idem p.122

[32] Idem p.123

[33] Idem p.109

[34] Idem p.141

[35] Idem p.143

[36] Idem p.141

[37] Idem p.140

[38] Idem p.142

[39] Idem p.142

[40] Idem p. 172

[41] Idem p.173

[42] Idem p.175

[43] Idem p.174

[44] Idem p.173

[45] Idem p.174

[46] Idem p.174

[47] Idem p. 179

[48] Idem p. 180

[49] Idem p. 180

[50] Idem p. 180

[51] Idem p. 180

[52] Idem p. 180

[53] Idem p. 180

[54] Idem p. 180

[55] Idem P.183

Direito à identidade é o menos protegido no universo digital, mostra levantamento da Neurorights Foundation

Quando se fala em direitos e algoritmos, no que imediatamente a gente pensa? Nos preconceitos embutidos nos algoritmos. Eu também penso nisso, influenciada pela literatura que consumo e pelos documentários que vejo.

Hoje, algoritmos decidem muitas coisas práticas na vida das pessoas. Como a gente imagina que eles não erram, decisões injustas acabam não sendo corrigidas. O caso mais conhecido é o que virou documentário na Netflix sobre reconhecimento facial.

Os sistemas aprendem com o banco de dados que é fornecido a eles. A maioria dos programadores é de homens brancos, portanto a precisão nesse segmento da população é maior. Há erros em mulheres, negros e maior ainda em mulheres negras. Isso prejudica atos corriqueiros da vida de muita gente.

Outro caso famoso é o apontado pelo fundador da Apple, Steve Wozniak. Ele e a mulher são casados em comunhão de bens e têm o mesmo patrimônio. Ambos abriram conta em um banco de bilionários. Os cartões e o limite dela vieram menores sem nenhuma justificativa.

Eles pesquisaram e verificaram que o mesmo acontecia com várias mulheres. Era um vício do algoritmo. Na vida de uma bilionária talvez não faça tanta diferença. Na vida de uma mulher que depende daquele dinheiro para fechar o mês pode ser algo bastante grave.

Ninguém determinou que o algoritmo desse menos crédito a mulheres. A forma como o preconceito se expressa é muito mais complexa. O algoritmo aplicado nesse tipo de política precisa expressar a sociedade que queremos mas acaba espelhando a sociedade que somos.

Trocando em miúdos, o computador recebe os exemplos do tipo de cliente que tem determinado volume de crédito. É realidade que o sexo masculino hoje em dia tem essa predominância. Se não houver uma ressalva na programação, o computador pode entender que o sexo é um critério para definir o crédito. 

Ocorre que este é um dos direitos neurais mais bem protegidos hoje em dia. Parece assustador, mas não é. Se passamos a enxergar o problema e damos a ele a atenção que merece, as soluções começam a aparecer. 

A Neurorights Foundation acaba de lançar um relatório de acompanhamento de respeito aos Direitos Neurais em todo o mundo, principalmente no nível das legislações internacionais. Sabe qual é o direito menos protegido? À identidade. Talvez ele nos pareça tão seguro que ainda não nos demos conta do risco.

Há alguns meses, fiz um longo artigo para o Instituto Montese falando detalhadamente sobre o que são e quais são os cinco Direitos Neurais:

  1. Direito à identidade, a habilidade de controlar a própria integridade física e mental.
  2. Direito de ação, ou a liberdade de pensamento e vontade para escolher as próprias ações.
  3. Direito à privacidade mental, a habilidade de manter seus pensamentos protegidos contra a revelação a quem quer que seja.
  4. Direito a acesso justo a reforço mental, garantia de que o acesso aos benefícios das melhorias da capacidade mental e sensorial por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de maneira justa entre a população.
  5. Direito à proteção de vieses dos algoritmos, a habilidade para garantir que as tecnologias não implementem preconceitos no cérebro de quem as utiliza.

A questão do Direito à Identidade na era digital faz parte da ficção científica dos anos 1990. Na época, fiquei profundamente marcada pelo filme “A Rede”, estrelado por Sandra Bullock.

Ela interpretava uma programadora que recebia um disquete via correio, enviado por um amigo antes de morrer. O material revelava uma grande conspiração para apagar a identidade de pessoas. Se a pessoa não existisse mais no universo virtual, não poderia mais provar que estava viva.

Naquela época, era algo completamente fora de cogitação. Mas hoje não é. Imagine que sumissem todos os dados digitais do mundo, o que sobraria dos seus documentos? Nossos arquivos profissionais, pessoais, contas, comprovantes de pagamentos, declarações de impostos, propriedade, assinaturas e até processos judiciais estão armazenados de forma digital.

E se os documentos não sumissem, mas a autoria fosse trocada? Seria uma confusão sem precedentes. Mas, se acontecesse com todo mundo ao mesmo tempo, o prejuízo seria menor individualmente. Sim, acredite.

Com todos passando pelo mesmo problema, haveria mais compreensão sobre o evento. Mas imagine que somente uns poucos indivíduos passassem por isso. Quem iria acreditar? Eles estariam sujeitos a realmente perder suas identidades e não teriam como provar.

Esse é o drama do filme, que há quase duas décadas me faz imprimir uma papelada que parece inútil. Continuarei imprimindo enquanto esse filme permanecer na minha cabeça. E, evidentemente, não conto como a protagonista solucionou o drama.

A grande questão é como nós solucionaremos este problema e a primeira ideia é a definição de protocolos digitais. Justamente aí é que reside o erro. Como assim? Explico.

Por que os vieses surgidos com algoritmos são problemas que a humanidade consegue enfrentar com mais facilidade do que ameaças à identidade? Porque eles surgem só com a realidade digital.

Quando a solução para um problema digital está na área digital, ela é mais simples porque mexemos em algo mais novo e mais óbvio. 

Algoritmos que são aplicados em políticas públicas ou privadas são relativamente recentes. Se corrigir a programação conserta essas políticas, problema resolvido. Com a violação ao direito à identidade não é tão simples, infelizmente.

Antes da realidade digital, não havia tantos riscos com relação à identidade. O que poderia apagar a identidade de uma pessoa? Eram hipóteses absolutamente remotas, fantasiosas ou muitíssimo trabalhosas, feitas para casos específicos. 

Isso levou a uma realidade em que não foi necessário definir legalmente com precisão o que é identidade. É por isso que esse direito fica fragilizado na era digital. Como não existe uma definição precisa para ele, entra num limbo.

Vamos a alguns exemplos dados pela Neurorights Foundation. Um dos principais Direitos Neurais é o direito à consciência. Para nós parece algo bem claro. Tente definir objetivamente. Não é tão fácil.

Ocorre que isso jamais foi feito. Nos protocolos internacionais que falam de direitos individuais e individualidade não temos nada que defina objetivamente o que é a consciência. Quando não havia instrumentos que manipulassem a consciência humana, não parecia necessário. Agora há.

O que é a sua identidade? Não é o seu RG nem os seus outros documentos, é algo bem mais complexo e profundo. E todos nós temos direito a tudo isso, que nada seja violado e que tenhamos nosso sigilo de consciência protegido.

Como fazer isso num mundo em que há ferramentas de violação de sigilo de identidade e consciência mas não há definições legais do que são identidade e consciência?

Passemos a algo ainda mais delicado, as crianças, que são seres humanos em formação e dotados de dignidade e consciência. O que seria a identidade e a formação da identidade protegidas legalmente? Precisamos definir, a tecnologia não para.

Em países como Rússia e China as definições já estão feitas pelos governos. Os dados pertencem ao Estado, não aos indivíduos. Você pode concordar com a decisão ou discordar dela, mas foi tomada.

Nas grandes democracias ocidentais há um vácuo perigoso. Em tese, os dados pertencem aos cidadãos. Não há, no entanto, nenhuma garantia de posse desses dados e nenhuma penalidade para a tomada deles.

Verdade seja dita, o problema é que não existe sequer a definição do que são exatamente esses dados. Isso complica demais o cenário.

Parece razoável imaginar o que seja a sua identidade e o que significa invadir a sua identidade. Ocorre que não existe essa definição, então as brechas são infinitas.

Uma das principais preocupações da Neurorights Foundation já se converteu em um processo gigantesco contra o Google no Reino Unido sobre dados de saúde. Quanto dos dados que você coloca em aplicativos de saúde são sigilosos e quanto daquilo pode, por exemplo, ser vendido para o seu seguro de saúde?

Imagine que você baixe um aplicativo que mede quantos passos você dá por dia. Ou até mesmo um aplicativo que controle sua pressão arterial. Não há regras claras sobre o que pode ser compartilhado ou não. 

Você aceita termos de uso do aplicativo. São aquelas letras pequenas em que a gente sempre digita sim sem ler. De repente, o aplicativo some, você não acha mais, esquece do assunto, vida que segue.

Um dia você vai fazer um seguro e aquela empresa comprou todos os dados do aplicativo. Por causa daqueles dados você tem uma recusa ou terá de pagar um preço muito superior ao que seria o preço padrão para você. Isso é justo ou é uma violação?

Em tese é uma violação. Na prática, ainda não sabemos. Muitas pessoas já enfrentam esse problema na vida real e cada uma tem de lutar por si, não há soluções prontas.

A tecnologia já avançou. O mundo que imaginamos ser da ficção científica já chegou, mas a regulamentação não acompanhou essa velocidade.

A tentativa de acompanhar foi falha. Ainda tentamos regular os novos dispositivos, novas tecnologias digitais e novas invenções. É um erro monumental.

Definir com mais precisão os direitos e valores humanos que precisamos proteger nunca foi tão urgente. A Neurorights Foundation advoga que a ONU tome a dianteira no processo. 

Muitas empresas de tecnologia têm feito sua parte adotando princípios éticos, mas eles são descentralizados e voltados para os negócios de cada uma delas, não para princípios universais.

“Em última análise, os tratados internacionais de direitos humanos existentes estão atualmente despreparados para proteger Direitos Neurais. No entanto, conforme descrito em detalhes em nossos achados, os rápidos avanços na neurotecnologia não são mais ficção científica – são ciência. É urgente que a ONU desempenhe um papel de liderança globalmente para abraçar essas inovações emocionantes, protegendo os direitos humanos e garantindo a ética no desenvolvimento da neurotecnologia”, prega a Neurorights Foundation.

O mundo todo vive, enquanto isso, uma política polarizada de forma tóxica, inclusive porque os governos são incapazes de proteger os Direitos Neurais. Vamos conseguir acordar a tempo? Espero que sim.

A gestão pública não é para amadores

O estado e seu funcionamento sempre foram objeto de muitas discussões técnicas, políticas, de gestão e até filosóficas durante a história da humanidade, em muitos países. Com o passar dos tempos e do desenvolvimento da civilização e da tecnologia, a complexidade do funcionamento do estado, também chamada Gestão Pública, necessita da implementação de técnicas e ferramentas mais sofisticadas e adequadas neste “novo normal” que estamos vivendo. A Gestão Pública passa a ser um tema para profissionais e cada vez menos, de amadores.

O nível de qualidade e efetividade da profissionalização da gestão pública e o exercício da competência em um contexto de maior complexidade se caracteriza pelo equilíbrio de três elementos fundamentais: (1) relação da demanda dos cidadãos com os recursos e estrutura do estado para atendê-la; (2) o nível de competência disponível e possível de aplicar na gestão pública, e; (3) a necessidade de um estado forte, mas não inchado ou grande demais. No Brasil, estes elementos são resultado da influência política que o estado, em suas esferas federal, estadual e municipal recebem da sociedade, cidadãos, grupos de interesse e de pressão, e das autoridades eleitas ou nomeadas, que demandam gestão pública na aplicação das políticas públicas definidas na legislação e regulamentação e/ou nos planos dos poderes executivo e legislativo.

É importante entender que a Gestão Pública, técnica e politicamente, se estrutura a partir da concepção de transparência quanto às atividades desenvolvidas pelo governo. Para tanto, os gestores públicos contribuem para que as prestações de serviços e políticas públicas efetuadas possam suprir, de forma eficiente e eficaz, as necessidades coletivas.

No novo mundo pós pandemia, cada vez mais, a gestão pública precisa ser executada pelos seguintes princípios: necessidade de melhorar a eficácia dos gastos públicos; busca de políticas públicas efetivas; atender reivindicações feitas por cidadãos; desenvolvimento e utilização da tecnologia; mudança dos valores da sociedade; crescente pressão de grupos de interesse da sociedade e empresariais e gestão por resultados.

Como exemplo positivo de melhoria na gestão pública, vale citar o processo digitalização do governo federal brasileiro, que de acordo com ranking de avaliação de maturidade em governo e transformação digital do serviço público, realizado em 2020 pelo Banco Mundial, obteve o 7º lugar, de um total de 198 economias no mundo. Outro exemplo histórico é a criação da EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, em 1973, que tem como objetivo o fomento da agricultura e pecuária nacional, com o desenvolvimento, criação e aplicação de novas tecnologias, que facilitem o trabalho e atuação dos produtores nacionais, colocando a agropecuária brasileira entre as melhores do planeta.

No âmbito social, os programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação criados no período de 1994 a 2002, integrados e rebatizados de Bolsa Família e agora de Auxílio Brasil, recebeu melhorias contínuas na sua gestão, gerando resultados positivos na redução da porcentagem de famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica e na geração de impostos para realimentar o programa.

As técnicas e ferramentas aplicadas na gestão pública, também podem ser provenientes de abordagens empresariais e de gestão do setor privado, possibilitando a melhoria da prestação de serviços no setor público. A gestão pública deve ter o objetivo, real e sistematicamente medido, de otimizar e qualificar a eficiência e eficácia dentro do setor público, para que o atendimento ao cidadão, como “cliente”, seja melhor. Aspectos como planejamento e estabelecimento de políticas subjacentes são de suma importância nesse contexto de boa gestão e prestação de serviços públicos.

Na perspectiva do desenvolvimento de competências em gestão, necessárias para uma boa gestão pública, uma das principais funções do gestor público é de ser um solucionador de problemas para os desafios e oportunidades que os governos federal, estaduais e municipais podem prover para os cidadãos e o respectivo desenvolvimento local. As soluções vêm de políticas públicas customizadas às necessidades de cada região e dos potenciais riscos inerentes àquele território. O processo de planejamento e implementação de ações nas esferas municipal, estadual e federal, necessitam de uma correlação com as demandas reais e não com um conjunto de interesses difusos ou dissonantes do contexto local.

Para que organizações públicas alcancem uma boa gestão pública, o gestor público deve estar atento à postura da organização, realizar ações de planejamento e ter disciplina. Adicionalmente, o gestor público deve desenvolver competências como: gerenciar equipes, elaborar políticas públicas que atendam às necessidades sociais, controlar e organizar o orçamento, desenvolver estratégias, promover a transparência e acompanhar o desempenho, com medição dos resultados em atividades anteriores, para implementar um processo de melhoria continua nas próximas ações e projetos.

As competências na gestão pública são cruciais para que exista mais transparência, eficiência, justiça, meritocracia e manutenção de talentos no serviço público. As competências são fundamentais para que sejam alcançados os principais desafios da Gestão Pública como: digitalização em grande escala das atividades e processos públicos; monitoramento dos resultados das atividades; utilização de mídias e ferramentas digitais; mudança de foco no processo para foco no resultado, sem perder a transparência, a lisura e a melhoria na relação de custos/benefícios, e; o equilíbrio entre as necessidades e a capacidade de entrega dos servidores e gestores.

Quando a liberdade depende da capacidade de reação a um ataque ramsomware

Desde que eu soube da existência do ramsomware, esse tipo de crime dominou minha atenção. Não estamos apenas diante de mais um desdobramento da criatividade criminal. Aqui falamos da possibilidade do mundo criminal realmente desequilibrar os poderes estabelecidos e da sociedade civil.

Ramsomware é o sequestro de dados e impedimento do funcionamento de um sistema feito por hackers. Ano passado, fiz um artigo para o Instituto Montese explorando como o equilíbrio entre grandes potências é afetado por essa modalidade criminosa.

Neste artigo, enumero diversos casos ocorridos no mundo, inclusive vários aqui no Brasil. O resgate é pedido em criptomoedas e, no começo, obviamente ninguém quer pagar.

O que garante que o sistema não foi completamente destruído e os hackers vão sumir com o dinheiro? Desde que o primeiro resolveu pagar, temos visto um padrão. Os hackers realmente devolvem o acesso completo a todos os dados. 

Eles poderiam ter muito poder e fazer muito dinheiro retendo os dados e vendendo pouco a pouco, por meio de chantagem. Por alguma razão, não foi essa a escolha. Acabaram montando uma forma de empreendimento criminoso que movimenta bilhões anualmente.

Diversas empresas brasileiras listadas na B3 já tiveram de ficar fora das operações de mercado devido a ataques ramsomware. Está mais perto do que imaginamos. Um número incrível de pequenas e médias empresas relata ter sido vítima dos hackers. Mas elas pagam e o problema some.

O FBI montou uma força especial contra sequestro de dados. Até agora, só se conseguiu recuperar dinheiro de uma das operações, foram milhões de uma empresa privada. Criminosos envolvidos em um punhado de operações foram presos pelo mundo.

O problema é que a criminalidade e a tecnologia têm evoluído muito mais rápido que a capacidade institucional de conter os ataques. 

Isso acontece justamente no momento em que a realidade da tecnologia está mudando o jogo do poder entre os países. O mundo interligado pela internet tem uma dinâmica global, atravessa fronteiras sem apresentar passaporte. Nossas regulamentações são feitas na lógica da soberania nacional. Ainda não encontramos uma equação para regrar o que está na internet.

A tecnologia também muda o equilíbrio de poder entre os países. Você provavelmente lembra da briga do Telegram com o Judiciário do Brasil. Ela é um caso interessantíssimo da nova dinâmica de poder na era da internet.

O Brasil é um país de dimensões continentais com mais de 200 milhões de habitantes e recursos naturais invejáveis. O Telegram vem da Rússia, também um país continental com recursos naturais essenciais para o funcionamento da indústria na Europa. Temos visto isso muito claramente agora com o drama do gás natural durante a invasão da Ucrânia.

Países com grandes territórios, reservas naturais importantes e população significativa sempre tiveram prevalência de poder. Isso até a era da internet.

Vladimir Putin exigiu do Telegram entrega de dados confidenciais dos usuários, tudo dentro das leis russas. Ocorre que isso seria prejudicial à competitividade mundial da empresa. O dono resolveu não ceder os dados.

Numa dinâmica analógica, a empresa estaria sem saída. Desobedecer uma grande potência significaria ficar fora do mercado. Mas a era digital vem com uma nova dinâmica, muito familiar para quem é fã de teoria dos jogos.

Agora, quem tem o poder de criar regras pode se equiparar a quem conquista o poder por tamanho de território, população e recursos. Basta garantir que os recursos privados fornecidos mundialmente não sejam afetados por regulações incômodas para a empresa.

O Telegram resolveu mudar sua sede para o minúsculo e poderoso universo dos Emirados Árabes Unidos. A sede foi colocada ali. O governo local garantiu as operações legalizadas da forma mais conveniente para o empreendedor.

Potências gigantescas como Rússia, China e Irã reagiram. O Telegram foi proibido nos três territórios, todos controlados por fortes ditaduras. 

Espere que já chegaremos ao ramsomware e liberdades individuais. Vamos prosseguir aqui pelos empreendimentos, legais ou legalizados em pequenos territórios.

Com a regra garantida e válida pelos Emirados Árabes Unidos, o Telegram continuou operando com o mesmo público de antes. Os serviços de inteligência do Irã já admitiram que a maioria da população usa o Telegram, mesmo que ele seja proibido.

A Rússia de Putin resolveu legalizar o Telegram de novo. Não era uma opção proibir, as pessoas efetivamente usavam o serviço. Melhor legalizar e não perder poder. O Partido Comunista Chinês já diz oficialmente que o Telegram é proibido, mas se for por VPN, então pode usar.

Obviamente pensamos no Telegram como algo legalizado, um serviço que não tem nada de criminoso. Mas, pelos olhos dos governos da Rússia, China e Irã, ele era criminoso.

Abrigado pelas regras do minúsculo território dos Emirados Árabes Unidos, ele passa a se impor e forçar uma legalização mesmo dentro de grandes potências ditatoriais. 

Imagine um serviço que, para a nossa lei e nossa moralidade, seja visto como criminoso. Sim, o ramsomware desfruta da mesma prerrogativa que o Telegram.

Se um único e minúsculo país permitir em seu marco legal que os sequestradores de dados possam operar legalmente, eles podem agir no mundo todo. 

Agora vamos a um passo além, um caso real que foi acompanhado de perto pelo site Giro Latino: quando criminosos inviabilizam um governo soberano de um país. Acaba de acontecer na Costa Rica.

No último dia 18 de abril, o país anunciou o sequestro de uma gigantesca base de dados do sistema tributário e do sistema aduaneiro. Foi como uma derrubada de peças de dominó. 

Em seguida, vários outros sistemas saíram do ar. Eram questões importantes, como a administração da previdência da Costa Rica e o Instituto Meteorológico Nacional. Todos os sistemas centrais para o funcionamento do governo central simplesmente sumiram.

O momento político não poderia ser mais crítico. O governo havia mudado de mãos justamente naquele momento. Carlos Alvarado, político de esquerda, perdeu as eleições para o direitista Rodrigo Chaves. Não houve grandes atritos entre os dois.

Alvarado logo reconheceu a vitória popular de Chaves e decidiu instaurar um governo de transição. Foi então que os dados simplesmente desapareceram e não havia o que fazer na tal da transição.

O sumiço dos dados foi atribuído ao grupo Conti, famoso conglomerado russo de ramsomware. A Rússia tem abrigado quadrilhas bilionárias que operam em diversos países. Eles não atacam alvos russos e, por outro lado, não enfrentam risco de extradição.

A chantagem com a Costa Rica extrapolou todos os níveis de deboche das gangues de ramsomware. Os criminosos ofereceram 35% de desconto no resgate se ele fosse pago até dia 23 de abril. 

Além disso, fizeram uma ameaça velada ao setor privado do país. “Prometemos não tocar no setor privado da Costa Rica, tratamos com respeito o empresário desse país e pedimos que convençam o Governo a nos pagar”, disse o grupo criminoso nas redes sociais.

A pequena Costa Rica ficou refém da crise mundial. O grupo de ramsomware que sequestrou os dados do país em plena transição democrática também anunciava apoio total a Vladimir Putin na invasão da Ucrânia.

Como reagir a uma situação dessas? Não há parâmetro diplomático que dê conta de tantas variáveis e tantas ameaças. 

Fosse um país com o tecido social esgarçado, os criminosos teriam mais poder que as autoridades estabelecidas, tanto a que sai quanto a que chega. 

A Costa Rica decidiu que não vai pagar. Agora os criminosos ameaçam revelar publicamente todos os dados sigilosos que estavam nos sistemas do governo. 

Além disso, invadiram os sistemas de inteligência de um país próximo, o Peru. Estamos definitivamente num novo patamar da atuação dos grupos criminosos de ramsomware.

Chegou um momento em que miraram pequenas nações e ameaçaram usurpar o poder político e institucional. Tentaram colocar o empresariado contra as instituições de seus países. 

A Costa Rica é o tipo de país pequeno que poderia ganhar poder usando sua soberania para garantir a operação global de grupos econômicos. Na prática, ela virou refém de um grupo que se ancora em uma grande potência para atacar o poder institucional de pequenas nações.

Não prosperou a aposta no divisionismo interno. Rodrigo Chaves será empossado no próximo dia 8 de maio, diante de uma das crises mais desafiadoras do governo da Costa Rica. Pelo menos não está refém de um grupo criminoso.

Ataques do tipo ramsomware não são feitiçaria, são tecnologia. Podem ser muito potentes, mas saber como reagir diante dos primeiros sintomas também é eficiente para proteger as vítimas. E é justamente neste ponto que está o problema. Impedir esses ataques não parece ser prioridade em muitos países e em muitas empresas.

Uma pesquisa feita nos Estados Unidos com médias e pequenas empresas mostra que 75% delas teriam de fechar caso sofressem um ataque ramsomware. Não estão preparadas para reagir e nem mesmo para estancar.

O mais preocupante é que 30% dessas empresas sequer têm alguma intenção de planejamento para blindagem contra esse tipo de ataque.

Cada vez mais nossas liberdades são garantidas por sistemas digitais. Toda nossa identificação e prestação de contas com as autoridades já estão na internet.

Há um filme de 1995, A Rede, que me marcou muito. É uma programadora representada por Sandra Bullock cuja identidade simplesmente some do sistema.

Se todas as identidades sumissem do sistema de computadores seria o caos. Mas todos nós estaríamos vivendo o mesmo drama e compreendendo as dificuldades de todos. Imagine se só a sua identidade sumisse em um sistema que funciona bem para todos. Ninguém nem iria acreditar na sua história.

Hoje é possível que um grupo criminoso tire um país do ar enquanto todos os outros funcionam normalmente. Quais seriam as consequências caso os demais países desconhecessem ou desacreditassem essa possibilidade?

Reagir a ataques ramsomware passa a ser um requisito básico para a manutenção das liberdades na era digital. Dados são o petróleo do século XXI, ouvimos dizer com frequência. Resta saber se estamos dispostos a proteger os dados tanto quanto brigamos pelo petróleo.