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Luladay ou #Bolsonaroday? Na política brasileira, todo dia é primeiro de abril

O Brasil caminha a passos largos para oficializar o primeiro de abril como feriado político nacional. A cada dia, a mentira é tratada como narrativa legítima. A verdade, como afronta. E o mais assustador é o quanto isso se naturalizou. Tornou-se regra. Tornou-se método. Quem diz a verdade é perseguido. Quem inventa versões convenientes, aplaudido.

Essa inversão começa com a figura mais nociva da política recente: o fã de político. Uma legião de aduladores que decidiu tratar Lula e Bolsonaro como santos modernos. Acordam e dormem defendendo seus líderes, sem jamais questionar. E se alguém ousa criticar qualquer um dos dois, recebe na hora o rótulo. Gado, traidor, isentão, fascista. Não importa o conteúdo do que foi dito. Importa apenas se favorece ou não o político promovido a santo.

Houve um tempo em que criticar governo era esporte nacional. E nem estamos falando de democracia consolidada. Na ditadura militar, falar mal do governo em casa era hábito de gente de todos os matizes políticos. Hoje, basta discordar de um político para ser tratado como ameaça. A crítica virou heresia. E quem critica é punido com difamação.

A apoteose da imbecilidade também criou a ideia de que quem votou em alguém não pode reclamar da pessoa. Também não pode se arrepender. Como se mudar de opinião fosse falha de caráter. Como se errar em uma eleição obrigasse o sujeito a manter o erro pra sempre, só pra não dar o braço a torcer. O resultado disso é uma população que prefere perder, mas ter razão. Que não quer melhorar o país, só confirmar que estava certa. Se ninguém mudar de opinião, não precisa mais de eleição, o resultado sempre será o mesmo.

Enquanto isso, políticos mentem. E mentem com tranquilidade. Sabem que têm uma base fiel que vai repetir qualquer coisa. Mentiras são justificadas. Verdades, editadas. E, se nada funcionar, inventa-se um ataque contra o crítico, só pra desviar o assunto. Funciona. Sempre funcionou.

O que muda agora é que essa dinâmica virou padrão. Todo mundo entrou no jogo. Quem não aceita esse teatro é tratado como alienado. Ou vendido. Ou “isentão”, o novo xingamento favorito dos fanáticos. Como se não querer ser trouxa fosse motivo de vergonha. Como se o cidadão que rejeita ser manipulado por político fosse o problema.

A verdade é simples: o brasileiro não ficou mais politizado. Ficou mais histérico. O debate político virou fofoca de novela. É baseado em print, vídeo editado, conversa de grupo e xingamento. E é nessa lama que os políticos prosperam. Porque quanto menos gente pensa, mais fácil é mentir. Enquanto houver torcida organizada de político, todo dia será primeiro de abril.

Tirania da verdade X desaforo tirânico: a batalha das fake news

Em seu discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesta segunda-feira, 3 de junho, a ministra Cármen Lúcia prometeu atuar firmemente contra as Fake News nas eleições municipais de 2024: “A mentira continuará a ser duramente combatida”, discursou a ministra. E continuou:

A mentira espalhada pelo poderoso ecossistema digital das plataformas é um desaforo tirânico contra a integridade das democracias. É um instrumento de covardes e egoístas. Se não rompermos o cativeiro digital, chegará o dia em que as próprias mentiras nos matarão.

Longe de mim negar que a disseminação em massa de mentiras através das redes sociais seja um problema na democracia. De fato, o é. Parece-me, porém, que mais problemático para a democracia é a disseminação em massa de “verdades oficiais” dentro de um contexto persecutório no qual o contraponto da versão oficial dos fatos pode ser facilmente censurado e criminalizado.

China

A China, por exemplo, foi bastante exitosa em combater as “fake news”. Lá o governo tem leis rigorosas para assegurar o controle social da internet. Utilizando tecnologia sofisticada, o Estado controla todo o tráfego digital que entra e sai do país, bloqueia o acesso a websites “problemáticos” como Facebook, Twitter, Google, YouTube e Wikipedia, e filtra palavras-chave relacionadas com questões controversas. Será esse o modelo de regulação que estamos buscando?

O que mais dificulta o avanço seguro no Brasil do processo talvez necessário de regulação das redes sociais é a escancarada parcialidade daqueles que militam no combate às fake news. No fundo, quase ninguém está interessado na verdade, mas sim no controle da verdade, no poder de dizer o que é ou não é verdade. É uma questão de poder, não de defesa da verdade por princípio.

O veto das “fake news”

O advento das redes sociais trouxe, de fato, novos desafios à sustentação das democracias. Se aceitarmos que democracia é o poder do povo e que, em uma democracia, a palavra também é poder, deveríamos concluir que as redes sociais, dando mais voz a um maior número de pessoas, ampliou a democracia.

A qualidade de uma democracia, porém, não depende apenas dessa difusão do poder da palavra; depende também da qualidade dessa palavra amplamente difundida. A difusão, por exemplo, de “comunicação enganosa em massa” em tempos de eleição pode, em tese, ser desfavorável à democracia. Mas o combate a essa suposta “comunicação enganosa em massa” pode ser igualmente prejudicial. 

Uso essa expressão propositadamente, porque é a expressão que aparece no artigo de um projeto de lei que seria inserido no código civil em 2021, caso não tivesse sido vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro. Recentemente o Congresso analisou esse veto. O governo Lula orientou pela sua derrubada, mas o veto se manteve em uma votação com placar de 317 votos a favor da manutenção e 139 votos pela derrubada. Foi uma grande derrota do governo.

Estrondoso sinal da extrema direita? 

Logo vieram as análises simplórias de uma mídia cada vez mais enviesada: “Trezentos votos a favor das fake news é um estrondo. Portanto tem aí um sinal claro. Não é só a extrema direita nessa agenda, é a centro-direita também, é o que a gente chama de centrão, que está de braço auxiliar da extrema direita”, disse uma conhecida jornalista, ao comentar na televisão a manutenção do veto pelo Congresso.

Para a referida jornalista “quem está votando contra uma medida que inibe a fake news está votando a favor”. Ela falava como se a sua frase fosse uma obviedade; mas a frase nada mais é do que uma construção retórica que inviabiliza a problematização adequada de uma delicada questão.

O artigo cujo veto foi mantido pelo Congresso tipificava “fake news” durante as eleições como crime que poderia ser punido com um a cinco anos de reclusão e multa. Em um país que avança cada dia um pouco mais contra os direitos fundamentais dos cidadãos sob pretextos vagos como “defesa da democracia” ou “defesa da honra das instituições”, é preciso uma boa pitada de má-fé para chamar de extrema direita ou aliados da extrema-direita aqueles que votaram pela manutenção do veto.

O inquérito aberto de ofício pelo STF para apurar o que ele entende sobre Fake News é um saco de gato no qual já foi colocado reportagem que trazia verdades inconvenientes aos donos do poder; o TSE já usou o termo para impedir o uso de determinados adjetivos pouco lisonjeiros contra alguns candidatos e, no contexto das enchentes do Rio Grande do Sul, o então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, denunciou à Polícia Federal uma lista de publicações nas redes sociais na qual misturou sob o rótulo nada rigoroso de “fake news”, informações descontextualizadas, teorias conspiratórias, calúnias, e mera opinião.

É evidente que, diante desse quadro, existe um enorme risco de que o combate às fake news seja usado como um pretexto para a criminalização da opinião. Em certa medida, isso já está acontecendo.

Não se tratava, portanto, na análise do referido veto, de ser ou não ser contrário às fake news, como se tentou fazer crer, mas de ser ou não ser favorável ao aumento do poder do Estado para combatê-la, de ser ou não ser favorável a uma lei de poderia ampliar um autoritarismo já crescente e cercear ainda mais a liberdade de opinião no Brasil.

É perigoso dar ao Estado o poder de decidir o que é ou não verdade. Nossas autoridades já deram provas cabais de que não são imparciais na hora de definir o que é fake news ou discurso de ódio. Parece-me, pois, que a solução ou a falta de solução para o problema das fake news passa pelo próprio indivíduo e pelo seu bom senso.

À esquerda e à direita sempre houve e sempre haverá tentativa de manipulação das massas através da difusão de mentiras. Fake news é só o nome da moda para isso. O Estado aponta para a tutela paternalista do discurso como solução; o indivíduo livre olha para essa tentativa de tutela como o maior dos problemas.