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Em Defesa dos Conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Casas da Democracia

I – O projeto

As Casas da Democracia são uma nova oportunidade de conexão e interação para quem se sintoniza com as ideias de que não existe democracia sem democratas, de que há um déficit acentuado de democratas na sociedade atual e de que é possível multiplicar o número desses democratas, ou seja, de agentes capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática, mesmo sem conformar maiorias (fermento não é massa).

As Casas da Democracia não são para todos, para a maioria ou para muitos, nem para poucos ou para um grupo seleto (previamente selecionado) de pessoas. São abertas a qualquer um. Não são a luz de um poderoso holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Uma rede de comunidades políticas locais, articulada de baixo para cima, em todas as localidades onde existam pessoas que desejem encontrar outras pessoas que se sintonizem com elas.

As Casas da Democracia não são uma organização centralizada e sim uma rede (mais distribuída do que centralizada). Regem-se pela lógica da abundância e não da escassez. São uma iniciativa Apache, não Asteca. Estão mais para Alcoólicos Anônimos do que para Microsoft.

As Casas da Democracia não têm chefe. Ninguém (nem mesmo os promotores iniciais da proposta) fala pelas Casas da Democracia em geral porque não existe essa organização nacional (abstrata): os que se articulam em uma casa, falam pela sua própria casa.

Cada Casa da Democracia é autônoma para adotar a sua forma de organização (desde que seja em rede), seu modo de funcionamento (desde que seja democrático) e decidir sobre suas atividades (desde que sejam compatíveis com os princípios da iniciativa). Cada Casa da Democracia deverá conseguir os meios e captar os recursos necessários para o seu funcionamento.

Qualquer pessoa descontente com a organização, o modo de funcionamento ou as atividades de uma Casa da Democracia pode sair e, se quiser, fundar sua própria casa.

Para fundar uma Casa da Democracia basta articular um conjunto de pessoas (no mínimo três: o átomo, ou melhor, a molécula inicial de uma rede) dispostas a fazer isso, que concordem com os princípios da iniciativa.

Ainda que seja desejável, não é necessário ter uma estrutura física para fundar uma Casa da Democracia. Mas é preciso ter uma rede de pessoas dispostas a interagir regularmente. As Casas da Democracia são sempre locais: podem ser organizadas em municípios, regiões de um município ou bairros. Mas também podem se reunir virtualmente.

As Casas da Democracia são apartidárias. Podem delas participar pessoas que pertençam a quaisquer partidos ou sem partido, desde que tomem a democracia como valor universal e como principal valor da vida pública, rejeitem os populismos e estejam dispostas a experimentar a democracia não apenas como modo de influir no Estado e sim também como modo de vida na sociedade.

II – Os princípios

Casas da Democracia é o nome de uma nova iniciativa política, organizada em rede distribuída, que procura conectar democratas brasileiros, reuni-los e multiplicá-los a partir de suas cidades.

Essa iniciativa pretende configurar, de baixo para cima, em localidades de todo o país, ambientes de livre-aprendizagem da democracia: as chamadas Casas da Democracia. E também procura experimentar novas formas de democracia local, não apenas como modo de administração política do Estado e sim também como modo de vida ou de convivência social, democratizando, onde for possível, diversas formas de sociabilidade existentes (dentre outras, as famílias, as escolas, as igrejas, as organizações civis, as empresas e os órgãos estatais, além dos grupos de amigos, as comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem e de projeto).

A estrutura e o funcionamento das Casas da Democracia são independentes de qualquer partido. Pessoas sem filiação partidária ou filiadas a quaisquer partidos podem participar das atividades das Casas da Democracia, desde que concordem com seus princípios e observem seu modo de funcionamento.

O movimento das Casas da Democracia é liberal no sentido político originário (democrático) do termo, quer dizer, dos que acham que a liberdade (e não a ordem) é o sentido da política e, vice-versa, dos que acham que ninguém pode ser livre sozinho: uma pessoa só é livre plenamente enquanto pode interagir na comunidade política. Um movimento, portanto, que defende o liberalismo político e não apenas o liberalismo-econômico. Nesse sentido, é um movimento de recusa aos populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita) que são i-liberais e majoritaristas.

As Casas da Democracia são um movimento de pessoas dispostas a interagir politicamente para defender a democracia que temos sem deixar de buscar novas formas de democracia que queremos, atuando sempre a partir de suas localidades.

É um movimento que procura conservar o que deve ser conservado (as instituições do Estado democrático de direito), reformar o que precisa ser reformado (a começar pela reforma da política) e inovar para dar continuidade ao processo de democratização do Estado e da sociedade.

Sim, trata-se – fundamentalmente – de um movimento de inovação democrática, que quer colocar na pauta temas contemporâneos que ainda não compareceram no debate político, como, por exemplo, a crise e os limites da democracia representativa e a experimentação de novas formas mais interativas de democracia numa emergente sociedade-em-rede, um novo federalismo diante da crise do Estado-nação, a superação da contraposição localismo não-cosmopolita x globalismo e a realidade emergente da glocalização, a superação da contraposição estiolante monoculturalismo x multiculturalismo: rumo à inevitável (e desejável) miscigenação cultural, a superação da inadequada classificação e da divisão das forças políticas em esquerda x direita e a superação da velha divisão entre visões mercadocêntricas e estadocêntricas do mundo: a sociedade como forma autônoma (subsistente por si mesma) de agenciamento, ao lado (e além) do mercado e do Estado.

O movimento das Casas da Democracia também quer discutir e ensaiar novas experiências de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas (sem abolirem a representação), com mandatos revogáveis, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais).

A ideia das Casas da Democracia partiu das seguintes constatações:

 Não existe democracia sem democratas.

 Os democratas sempre foram minoria. Seu papel precípuo não é arrebanhar maiorias e sim agir como agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática. Fermento não é massa. O importante não é que os democratas sejam maioria numérica e sim que consigam ensejar a formação de uma opinião pública democrática.

 Democratas não são liberais apenas no sentido econômico do termo e sim liberais-políticos (que tomam a liberdade como sentido da política e a democracia como valor universal e principal valor da vida pública).

 Mas uma minoria tão ínfima de liberais-políticos (como a que temos) não é capaz de cumprir o papel de defender a democracia (que temos), impedindo que ela se torne menos liberal e mais majoritarista (como querem os populistas) e, simultaneamente, avançar na direção das democracias mais interativas que queremos (mais conformes à morfologia e a dinâmica da sociedade contemporânea).

Esta é a razão principal pela qual virou um imperativo democrático da hora, numa época como a que vivemos, de recessão e desconsolidação democráticas, configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia voltados para a inovação política e social.

Em suma, liberais-políticos não se formam espontaneamente em volume desejável porque a cultura predominante não é liberal e porque estão em curso uma recessão e uma desconsolidação democráticas. Vivemos atualmente sob uma terceira onda de autocratização. Assim, é necessário proporcionar processos de aprendizagem teóricos e práticos da democracia que sejam permanentes. Este é o objetivo das Casas da Democracia.

As Casas da Democracia conformam uma grande rede, mais distribuída do que centralizada, de democratas que assumem como sua função precípua promover a aprendizagem democrática permanente, por meio do estudo, da reflexão e da experimentação.

É um empreendimento apache, não asteca, que objetiva acender muitos pontos de luz, no maior número possível de localidades, entendendo que a democracia não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas.

É um programa que estimula o espírito do voluntariado (como um hábito do coração) e incentiva a livre iniciativa e não a obediência, regido mais pela lógica da abundância do que da escassez (ou seja, em que a maioria nunca obriga a minoria a seguir suas decisões).

É um projeto que busca se reger por uma dinâmica cooperativa, não adversarial, configurando ambientes aprazíveis de convivência e não de constante luta interna.

É um chamado às “andorinhas” que estão dispersas para que possam se encontrar, se comprazer na sua convivência e se reproduzir.

Qualquer pessoa que concorde com os princípios e a forma de organização das Casas da Democracia pode se conectar a uma de suas casas.

As Casas da Democracia são sempre organizadas por cidade (ou, no caso de grandes cidades, por regiões distritais ou bairros). Elas são autogeridas por seus participantes. Não há uma administração central.

As Casas da Democracia são novos ambientes interativos capazes de ensejar a conexão e a multiplicação de agentes democráticos. Ninguém muda de opinião se não mudar de rede. Ninguém se converte à democracia porque ouviu discursos democráticos ou porque leu textos teóricos de democracia. É necessário interagir em novos ambientes democráticos.

Os links locais regulam o mundo. As Casas da Democracia são novas redes locais onde cada um pode reconhecer os seus pares e ser reconhecidos por eles. São espécies de “polis paralelas”, formadas por sintonia, oferecendo novos nichos antropológicos de reconhecimento mútuo que possibilitem a obtenção de sinergias para a proposição e a realização de projetos democráticos inovadores.

III – A visão

Não temos hoje, no Brasil, um número suficiente de pessoas que saibam explicar por que acham que a democracia é um valor universal e o principal valor da vida pública, que consigam distinguir uma posição liberal (em termos políticos) de uma posição i-liberal, que possam mostrar por que democracia não é a mesma coisa que majoritarismo e que estejam capazes de criticar os populismos contemporâneos mostrando por que eles são os principais adversários da democracia.

Claro que as pessoas que concordam com a democracia (a preferem à autocracia ou, pelo menos, a aceitam ou toleram) são – felizmente – muito mais numerosas. A maioria da nossa população (ou quase) tende a concordar com a democracia, conquanto o número dos que não a valorizam venha aumentando assustadoramente, no Brasil e no mundo.

Larry Diamond (2015) traçou um quadro da recessão democrática (na qual entramos em meados da primeira década deste século). Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017) detectaram a desconexão e a desconsolidação democráticas dos últimos anos. O mesmo Mounk e Jordan Kyle (2018) avaliaram empiricamente o estrago que o populismo faz na democracia. Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), juntamente com o pessoal do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), têm analisado a terceira onda de autocratização em que estamos imersos. Mas quantos entendem tudo isso? E quantos estão interessados nisso?

Não. Não é uma coisa para especialistas. Se não tivermos alguma noção dessas coisas como vamos poder cumprir o papel de agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública no mundo atual? Ou como vamos conseguir ser protagonistas de uma nova alternativa democrática na atualidade?

Em uma época onde vicejam pulsões autoritárias dos que negam ou se aproveitam das catástrofes para degenerar a democracia – seja, para nós, os democratas, uma espécie de Idade Média. Hora de fermentação, hora do grão morrer para germinar, hora de crescer escondido na escuridão geral e de usar nossos mil pontos de luz locais para fazer isso…

Sim, estamos em um daqueles momentos de virada em que as saídas tradicionais não adiantam.

A ideia pode até parecer heterodoxa, mas não deixa de ser fascinante. Não é possível enfrentar esta terceira onda de autocratização que nos assola manobrando nossos minúsculos barcos na superfície do mar revolto. Para atravessar a tormenta vamos ter de fazer acampamentos como aqueles imaginados por Ray Bradbury (1953), em Farenheit 451, onde pessoas-livro não deixavam o fio se interromper. Ou como, no relato de Thomas Cahill (1995), os monges irlandeses salvaram a (dita) civilização.

Václav Havel (1978), em O Poder dos Sem-Poder, usando uma ideia seminal de Václav Benda, aventou a hipótese da “polis paralela” como modo orgânico de resistência à dominação autoritária (que ele chamava de “pós-totalitária”). Não uma fuga, dizia ele:

“A polis paralela aponta para além de si mesma e faz sentido apenas como um ato de aprofundar a responsabilidade de um e para o todo, como uma maneira de descobrir o local mais apropriado para essa responsabilidade, não como uma fuga a ela”.

É disso que estamos falando.

Deu para visualizar?

Se tivermos algumas pessoas interagindo de modo distribuído em vários clusters, em cidades de todas as regiões, usando seus pequenos pontos de luz para trabalhar na escuridão (promovendo ambientes de aprendizagem da democracia, escrevendo nos jornais locais, pontificando nas TVs e rádios, com canais no Youtube e nas mídias sociais, se candidatando a cargos executivos e legislativos por velhas e novas agremiações, atuando em instituições do Estado e da sociedade), uma grande rede democrática pode ir se articulando sob a tormenta.

Sim, a democracia, como foi dito, não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Sempre foi assim, aliás. Quantos democratas convictos – que tomavam o sentido da política como a liberdade (e não a ordem) e atuavam condizentemente com isso – existiam em Atenas nos séculos 5 e 4 a. C., ou no parlamento inglês dos Bill of Rights no século 17? Muito poucos. Mas sem esses poucos, a democracia não teria chegado até nós.

Podemos ser poucos, mas não tão poucos que não sejamos capazes de fermentar o processo de formação da opinião pública. Sim, é para isso que existem os democratas, não para virarem maioria (quem aposta nisso – no majoritarismo – são os populistas, ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita, hoje os principais adversários da democracia no mundo e no Brasil).

Para Péricles – segundo o relato de Tucídides – Atenas era a escola da Grécia. Antes de tudo uma escola de democracia. A rigor uma não-escola, como burocracia do ensinamento, posto que a polis não estava murada, não exigia nada de ninguém. Não era como a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles. As ruas e praças da cidade eram os ambientes de aprendizagem em que se exercitavam os democratas, sobretudo os sofistas. O projeto antipolítico platônico era um projeto de ensino. O de Péricles, ao contrário, era um projeto verdadeiramente político, de aprender na livre interação entre os cidadãos mediada pelos fluxos da cidade – e a polis, como percebeu o último Hillman (1993), no brilhante discurso Psicologia, Self e Comunidade, era isso:

“Como nós imaginamos nossas cidades, como nós visualizamos seus objetivos e valores e realçamos sua beleza define o Self de cada pessoa desta cidade, pois a cidade é a exibição sólida da alma comum. Isto significa que você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis — fluxo e muitos. Para melhorar a você mesmo, você melhora a sua cidade. Esta ideia é tão intolerável ao Self individualizado que ele prefere a decepção do isolamento tranquilo e do retiro meditativo como o caminho para o Self. Eu estou sugerindo o contrário. Self é o verdadeiro caminho, as ruas da cidade”.

Eis aí o desafio. Não é uma ideia fascinante?

IV – A ação

Você quer uma nova política? Então pare de chamá-la de nova. Na civilização patriarcal a maior novidade nesse campo já aconteceu: ela se chama democracia. Para construir uma política democrática, entretanto, é necessário recomeçar de baixo – experimentando a democracia como modo-de-vida: em cada cidade, em cada bairro, em cada organização.

O projeto Casas da Democracia é simples. Há um déficit acentuado de democratas na sociedade brasileira. Isso significa que é preciso multiplicar o número de democratas estimulando a aprendizagem da democracia. Mas a aprendizagem da democracia tem as características de uma conversão: uma conversão não-religiosa, mas uma conversão. Essa conversão implica uma mudança do emocionar e do pensar. Ora, ninguém pode experimentar tal mudança se não mudar de rede (não adianta tentar convencer as pessoas com discursos). E, ademais, é preciso mudar as redes nas quais as pessoas conversam recorrentemente, no dia-a-dia – interagindo entre si e agindo juntas (pois são os links locais que regulam o mundo). Então cada Casa da Democracia é uma nova rede local (e por isso elas são constituídas de baixo para cima: por proximidade, com base sócio-territorial municipal ou distrital), um novo ambiente configurado para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem (ao se sintonizarem) e para fazer coisas juntas (ao se sinergizarem). Trata-se de conectar por desejos congruentes. É a única saída para não arregimentar por interesses. Se arregimentar por interesses, dá mais do mesmo. Cada Casa da Democracia é um novo nicho de “pegajosidade antropológica” capaz de ensejar que as pessoas fiquem próximas o suficiente para possibilitar as mudanças implicadas na conversão à democracia.

Eis algumas sugestões, que devem ser tomadas apenas como inspiração, não como uma pauta obrigatória de ações que devam ser realizadas pelas Casas da Democracia:

1) Envolver mais pessoas da sua localidade em processos de aprendizagem da democracia

2) Fazer palestras sobre democracia nas instituições de ensino e em outras organizações locais do Estado, da sociedade ou do mercado

3) Experimentar mudanças democráticas na gestão de organizações da localidade (do Estado, da sociedade ou do mercado); por exemplo, substituindo a lógica da escassez pela lógica da abundância

4) Experimentar substituir votações por sorteio, sempre que possível, nos procedimentos internos de organizações da localidade

5) Estimular a construção de equipamentos urbanos que facilitem a convivência (praças, bancos, sombras, calçadas, calçadões etc.) e publicizar as praças existentes configurando ambientes comuns (geração social de commons)

6) Organizar assembleias populares nas regiões administrativas ou nos bairros para discutir os problemas da localidade e para apresentar soluções

7) Realizar as próprias reuniões das Casas da Democracia em ambiente público e aberto, sempre que possível

8) Organizar sessões de cinema em praças, com conversação ao final

9) Criar ambientes comunitários de livre-aprendizagem sem restrições de entrada (etárias, de escolaridade etc.)

10) Instalar sessões de cocriação de soluções (tipo festivais de ideias e projetos) para os problemas da cidade, do bairro e das organizações locais e promover o desenvolvimento local

11) Participar regularmente de programas de rádio e TV com audiência significativa na cidade ou na localidade

12) Preparar candidatos comprometidos com a democracia para as próximas eleições

13) Capacitar legisladores e governantes eleitos para exercerem democraticamente seus mandatos

14) Fundar um jornal local (digital ou em papel) com análises do que está acontecendo, na localidade, na região, no país e no mundo, de um ponto de vista democrático

15) Fundar uma rádio comunitária

16) Estimular os representantes eleitos que usem aplicativos de comunicação com seus eleitores e criar novos mecanismos de interação democrática dos cidadãos na esfera pública

17) Propor mandatos coletivos ou co-vereanças

18) Criar (e testar) novos indicadores locais de democracia

19) Fazer um levantamento dos sinais de avanço do autoritarismo ou de desconsolidação da democracia na localidade (por exemplo, monitorar a porcentagem de pessoas que aderem à alternativas populistas)

20) Fazer um levantamento dos ativos democráticos da localidade.

Visite o site das Casas da Democracia.