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Foto: Reuters/Elizabeth Frantz/File Photo

Trump e o deficit de agentes democráticos nos Estados Unidos

Estamos mergulhados numa terceira onda de autocratização, muito mais tenebrosa do que poderíamos prever ou imaginar. Com Trump alinhando os EUA ao eixo autocrático, a situação se agrava rapidamente e uma escuridão espessa vai se abatendo sobre o mundo.

Como escreveu ontem Francis Fukuyama, no Persuasion (20/02/2025):

“Os Estados Unidos sob Donald Trump não estão recuando para o isolacionismo. Eles estão ativamente aderindo ao campo autoritário, apoiando autocratas de direita em todo o mundo, de Vladimir Putin a Viktor Orbán, Nayib Bukele e Narendra Modi”.

Como Trump, o MAGA e o partido Republicano puderam fazer isso, rompendo uma tradição secular de defesa da democracia dos EUA?

Podemos aventar algumas hipóteses para explicar o fenômeno. A ascensão de Trump (um líder de espírito totalitário) revela que, do ponto de vista da democracia, havia algumas coisas muito erradas com o Estado e a sociedade americanos:

1 – Cultura política discriminatória (e depois antipluralista) dos colonos brancos.

2 – Medo injustificado da ‘tirania da maioria’ (que levou os “pais fundadores” a adotarem um modelo de regime mais inspirado pela república oligáquica romana do que pela experiência democrática ateniense).

3 – Dilapidação acelerada do capital social acumulado nas experiências do ‘network da Filadélfia’ (pró-Independência) e de “governo civil” (tocquevilliano) no século 19 (sobretudo na Nova Inglaterra):

a) centralização excessiva em Washington,

b) recorrência exagerada aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva,

c) ereção do complexo científico-industrial-militar, e

d) muitas guerras.

Sejam quais forem as razões históricas que possamos aventar para explicar as mudanças que permitiram essa guinada, uma coisa é certa: isso só aconteceu por defict de agentes democráticos na sociedade americana. Deficit de agentes democráticos dentro do próprio partido Democrata e nas instituições do Estado e da sociedade (universidades, imprensa, organizações civis, corporações etc.). Em outras palavras, o número de pessoas capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática e resistir aos autoritarismos (e a qualquer populismo) mostrou-se insuficiente. Ora, não há democracia (liberal) sem um número mínimo, crítico, ativo, de agentes democráticos.

Steven Levitsky, em entrevista recente à BBC News Brasil (19/01/2025), respondeu que a eleição de Trump ocorreu porque

“Os políticos foram irresponsáveis, em particular os políticos republicanos, ao nomear um candidato que eles sabiam que era uma ameaça à democracia e deixar essa decisão para os eleitores… Mais uma vez, os eleitores não são cientistas políticos. Cabe aos cientistas políticos determinar se algo é uma ameaça à democracia ou não. Cabe às elites políticas defender a democracia. Não é função dos eleitores”.

Mas não se trata bem disso. Não são apenas os “cientistas” e as “elites”, são as pessoas, embora sempre em minoria, porém ativas, que devem valorizar e defender a democracia. Como escrevi em meu livro mais recente (2023), Como as democracias nascem:

“Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – no Brasil e em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos. Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.”

Tenho dedicado minha vida, nos últimos vinte anos, à expandir a aprendizagem da democracia, compreendendo que aqui também, no Brasil, o número de agentes democráticos está abaixo do nível crítico capaz de cumprir as funções mencionadas no parágrafo anterior. Por isso, entre outras razões, nosso regime eleitoral continua parasitado por populismos de esquerda e de direita que se revezam no poder e investem na polarização e na divisão da sociedade brasileira.

A impressão que tenho é que não vamos sair dessa situação, nem facilmente e nem no curto prazo. Será preciso – nos EUA, no Brasil e na maioria dos países – começar de novo, investindo na aprendizagem da democracia, em termos teóricos e práticos, para multiplicar o número de agentes democráticos. Começar de novo, mais um vez: a maldição de Sísifo que paira sobre os democratas de todas as épocas.

A ameaça da China à democracia global

Michael Beckley & Hal Brands, Journal of Democracy, Janeiro 2023

Abstract

 Um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas a prevenção da democracia está muito no centro da estratégia chinesa hoje.

Desde os tempos antigos, as disputas entre grandes potências frequentemente envolvem disputas de ideias. A Guerra do Peloponeso não foi simplesmente um choque entre uma Esparta reinante e uma Atenas em ascensão, mas também colocou uma protodemocracia liberal e marítima que se via como a “escola da Hélade” contra um estado escravocrata militarizado e agrário. A ameaça ideológica que a França revolucionária representava para a ordem europeia era tão séria quanto a militar. Na preparação para a Segunda Guerra Mundial, potências fascistas e democracias se enfrentaram; durante a Guerra Fria, as superpotências dividiram grande parte do mundo ao longo de linhas ideológicas.

O entrelaçamento de ideologia e geopolítica não deveria ser surpreendente: no fundo, a política externa é como um país busca tornar o mundo seguro para seu próprio modo de vida. Muitos analistas aceitam que a política externa dos EUA é movida por impulsos ideológicos. Até mesmo os “realistas” radicais das relações internacionais admitem a importância da ideologia quando lamentam o domínio que as paixões liberais têm sobre a política de Washington. Curiosamente, porém, tem havido mais resistência à ideia de que pode haver um componente ideológico na grande estratégia do principal rival dos Estados Unidos — a República Popular da China (RPC). Pequim não está fazendo nenhum “grande esforço estratégico para minar a democracia e espalhar a autocracia”, escreve um importante sinólogo. Sua política externa é baseada em “decisões pragmáticas sobre os interesses chineses”. 1  Os realistas dizem que a China pratica  a Realpolitik  enquanto os Estados Unidos ignoram o conselho de John Quincy Adams de 1821 de “não ir para o exterior em busca de monstros para destruir”. Outros analistas sugerem que é uma distração ou mesmo uma “ilusão” enfatizar os aspectos ideológicos da rivalidade sino-americana em detrimento do desafio militar e económico de Pequim. 2

Na verdade, o inverso é verdadeiro: para entender o desafio chinês, precisamos entender suas dimensões ideológicas. Se Woodrow Wilson e seus seguidores queriam tornar o mundo seguro para a democracia, os governantes da RPC querem fazer o mesmo pela autocracia. Para eles, a autocracia não é simplesmente um meio de controle político ou um bilhete para o autoenriquecimento, mas um conjunto de ideias profundamente arraigadas sobre o relacionamento adequado entre governantes e as massas. Em seu discurso principal de outubro de 2022 no Vigésimo Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) — durante o qual ele próprio foi empossado para um terceiro mandato como líder máximo, enquanto no último dia teve seu antecessor Hu Jintao escoltado sem cerimônia para fora da sala — Xi Jinping insistiu que “escrever constantemente um novo capítulo na Sinicização do Marxismo é a solene responsabilidade histórica dos comunistas chineses contemporâneos” e deixou claro que “a autoridade do Comitê Central do Partido” continuará a estar “no cerne da liderança no controle da situação geral”. Tudo no discurso depende do PCC permanecer como o único responsável por “desenvolver o socialismo com características chinesas”. 3

Essa crença na superioridade de um modelo chinês autocrático coexiste com uma profunda insegurança: a RPC é um regime brutalmente iliberal em um mundo liderado por um hegemon liberal, uma circunstância da qual o PCC extrai uma sensação de perigo generalizado e um forte desejo de remodelar a ordem mundial para que a forma particular de governo da RPC não seja apenas protegida, mas privilegiada. É por isso que um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas o que o acadêmico Jason Brownlee chama de “prevenção da democracia” está muito no cerne da estratégia chinesa hoje.

As fontes da conduta chinesa

De certa forma, a tentativa da China de primazia na Ásia e no mundo é um novo capítulo na história mais antiga da história: à medida que os países se tornam mais poderosos, eles se interessam mais em remodelar o mundo. Estados em ascensão buscam influência, respeito e poder; eles descobrem interesses vitais em lugares que estavam simplesmente além de seu alcance antes. Durante o final do século XIX e início do século XX, uma Alemanha em ascensão exigiu seu “lugar ao sol”; após a Guerra Civil, os Estados Unidos da América reunificados e economicamente ascendentes expulsaram seus rivais do Hemisfério Ocidental e começaram a exercer seu peso globalmente. Como escreveu o grande estudioso realista Nicholas Spykman, “o número de casos em que um estado dinâmico forte parou de se expandir… ou estabeleceu limites modestos para seus objetivos de poder foi muito pequeno, de fato”. 4  Dada a rapidez com que o poder da China aumentou nas últimas quatro décadas, seria muito estranho se Pequim  não  estivesse se afirmando no exterior.

No entanto, a China é movida por mais do que a lógica fria da geopolítica. Ela também está buscando a glória como uma questão de destino histórico. Os líderes chineses se veem como herdeiros de um estado chinês que foi uma superpotência durante a maior parte da história registrada. Uma série de impérios chineses reivindicaram “tudo sob o céu” como seu mandato e comandaram a deferência de estados menores ao longo da periferia imperial. Na visão de Pequim, um mundo liderado pelos EUA no qual a China é uma potência de segunda linha não é a norma histórica, mas uma exceção profundamente irritante. Essa ordem foi criada após a Segunda Guerra Mundial, no final de um “século de humilhação” durante o qual potências estrangeiras vorazes saquearam uma China dividida. O mandato do PCC é consertar a história, retornando a China ao topo da pilha.

E então há o imperativo ideológico. Uma China forte e orgulhosa ainda pode representar problemas para Washington, mesmo que um governo liberal-democrático tenha poder em Pequim. O fato de a China ser governada por autocratas comprometidos em suprimir implacavelmente o liberalismo em casa turbina o revisionismo chinês globalmente. Um estado profundamente autoritário nunca pode se sentir seguro em seu próprio governo porque não desfruta do consentimento livremente dado pelos governados; nunca pode se sentir seguro em um mundo dominado por democracias porque as normas internacionais liberais desafiam as práticas domésticas não liberais. “Autocracias”, escreve o estudioso da China Minxin Pei, “simplesmente são incapazes de praticar o liberalismo no exterior enquanto mantêm o autoritarismo em casa”. 5

Isto não é exagero. O infame Documento Número 9, uma diretiva política emitida há quase uma década no início da presidência de Xi, mostra que o PCC vê uma ordem mundial liberal como inerentemente ameaçadora. 6  “Como a China e os Estados Unidos têm conflitos de longa data sobre suas diferentes ideologias, sistemas sociais e políticas externas”, um documento militar chinês declarou na década de 1990, “será impossível melhorar fundamentalmente as relações sino-americanas”.  Por décadas, de fato, autoridades chinesas alegaram que Washington vem travando uma campanha deliberada e bem orquestrada — uma “Terceira Guerra Mundial sem fumaça”, nas palavras de Deng Xiaoping — para enfraquecer e subverter fatalmente o PCC. 7  Deng culpou os Estados Unidos por estarem por trás dos “chamados democratas” que ousaram protestar na Praça da Paz Celestial em 1989. 8

Mesmo quando os Estados Unidos se envolveram com a China, os líderes desta última detectaram uma conspiração para derrubar seu regime. Em 1998, o sucessor de Deng, Jiang Zemin, alertou seus colegas de que, independentemente de os Estados Unidos estarem tomando uma posição de “contenção” ou “engajamento” em relação à RPC, o verdadeiro objetivo de Washington era promover uma “conspiração política” para “dividir nosso país” e “mudar o sistema socialista de nosso país”. 9  Depois de Jiang, veio Hu Jintao, que falou ao seu Ministério das Relações Exteriores em 2003 sobre a “séria realidade de que as forças hostis ocidentais ainda estão implementando a ocidentalização e os projetos políticos divisionistas na China”. 10

Os líderes chineses estão errados se pensam que os Estados Unidos estão ativamente buscando derrubar o regime do PCC. Eles não estão errados, no entanto, ao pensar que um mundo enraizado em valores liberais é aquele em que seu próprio governo deve ser perpetuamente precário. Em um sistema internacional construído com base no respeito aos direitos humanos e na preferência pela democracia, governos que assassinam seus próprios cidadãos correm o risco de censura, ostracismo e punição — como aconteceu com Pequim após a Praça da Paz Celestial em 1989 e está acontecendo novamente hoje em resposta à brutalização da minoria uigur. Um sistema internacional em que as democracias são fortes, vibrantes e globalmente engajadas é aquele em que tendências subversivas tentarão continuamente estados governados por tiranos: em 1989, os manifestantes da Praça da Paz Celestial ergueram uma réplica da Estátua da Liberdade, enquanto aqueles em Hong Kong trinta anos depois agitaram publicamente bandeiras americanas e cantaram “The Star-Spangled Banner”. No que é e no que faz, uma democracia hegemônica ameaça o regime chinês.

A insegurança resultante tem implicações poderosas para a arte de governar de Pequim. Os líderes chineses sentem uma compulsão para tornar as normas e instituições internacionais mais amigáveis ​​ao governo iliberal. Eles buscam afastar influências liberais perigosas das fronteiras da RPC: na mente de Pequim, escreve Timothy Heath, uma “Ásia harmoniosa” apresentaria uma “ordem política moldada pelos princípios políticos chineses”. Os governantes em Pequim sentem que devem arrancar a autoridade internacional de uma superpotência democrática com uma longa história de levar autocracias à ruína. E à medida que uma China autoritária se torna poderosa, ela inevitavelmente busca fortalecer as forças do iliberalismo — e enfraquecer as da democracia — como uma forma de aumentar sua influência e reforçar seu próprio modelo. 11  A China está fazendo isso, além disso, em um momento em que o mundo, e sua distribuição predominante de poder ideológico, apresenta ao PCC tanto ansiedades agudas quanto oportunidades tentadoras.

Ansiedade e Oportunidade

No momento mais sombrio da Segunda Guerra Mundial, havia talvez uma dúzia de democracias no mundo. Ainda em 1989, havia o dobro de governos autocráticos do que democracias. Vinte anos depois, no entanto, as democracias superavam as autocracias em 100 para 78, e a parcela da população mundial vivendo sob autocracia havia caído pela metade. Da perspectiva dos EUA, o avanço global da democracia foi um dos desenvolvimentos mais esperançosos da era pós-1945. Da perspectiva dos líderes da China, no entanto, foi um sinal claro de que a ordem mundial liberal estava manipulada contra sua forma de governo e precisava ser mudada antes que destruísse seu regime.

De acordo com a narrativa de Pequim, o problema começou no início do período pós-guerra, quando os Estados Unidos exploraram seu domínio para injetar ideias liberais radicais em instituições internacionais. Por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 da ONU foi modelada na Declaração de Direitos dos EUA. A DUDH afirma que todos os humanos nascem livres e têm o direito de derrubar governos que não respeitam essa liberdade. Nas décadas seguintes, Pequim assistiu com horror enquanto dezenas de nações, incluindo Coreia do Sul e Taiwan, evoluíram para democracias prósperas. O grupo global em expansão de democracias posteriormente usou força militar, sanções econômicas e uma série de organizações de mídia e direitos humanos para minar dezenas de regimes autocráticos — não apenas os de ditadores de lata, mas também a União Soviética e quase a própria RPC em 1989.

Embora os líderes da RPC tenham se irritado por muito tempo com essa pressão ideológica, ela era suportável enquanto a China desfrutava de uma economia em expansão e uma periferia estável. Quando o Produto Interno Bruto estava crescendo três vezes mais rápido do que a média democrática durante as décadas de 1990 e 2000, foi fácil para Pequim persuadir as pessoas em casa e no exterior de que o autoritarismo era melhor para a China, se não para outros países.

Mas agora, a economia da China está desacelerando, e o regime está sofrendo maior pressão interna — testemunhe os protestos em larga escala que eclodiram contra a política de zero covid de Xi em várias cidades e em dezenas de campi universitários no final de 2022. Pequim está enfrentando crescentes críticas e resistência internacionais em outras frentes também. Em todo o mundo, as visões negativas da China atingiram níveis nunca vistos desde o Massacre da Praça da Paz Celestial de 1989. Os taiwaneses estão mais determinados do que nunca a manter sua soberania de fato. O Japão está dobrando seus gastos com defesa e se preparando explicitamente para a guerra contra a China nesta década. Sob um novo governo democraticamente eleito, as Filipinas estão reforçando seus laços de defesa com os Estados Unidos. A Índia está concentrando forças na fronteira ocidental da China. A União Europeia recentemente rotulou a China como um “rival sistêmico” e suspendeu seu tratado de investimento com Pequim. Até mesmo a ONU, na qual a China ocupa vários cargos de liderança, divulgou recentemente um relatório declarando que Pequim pode ter cometido “crimes contra a humanidade” em Xinjiang. Abalroada por ventos contrários crescentes, a autocracia não é mais uma venda fácil para o PCC. Os cidadãos chineses estavam dispostos a abrir mão de direitos políticos quando suas carteiras e o status internacional de seu país estavam inchando, mas é uma questão em aberto se eles continuarão a fazê-lo sob condições mais duras. Essa questão é especialmente urgente no que diz respeito aos millennials da China, nascidos nas décadas de 1980 e 1990, que não conheceram nada além de ascensão econômica e mobilidade internacional.

Os governantes da China também entenderam há muito tempo o que os cientistas políticos provaram empiricamente: as autocracias geralmente caem em ondas, à medida que a atividade revolucionária em um país inspira revoltas populares em outros. 12  Um efeito dominó democrático derrubou regimes comunistas na Europa Central e Oriental em 1989. A autoimolação de um vendedor de frutas tunisiano no final de 2010 incendiou grande parte do mundo árabe. A lição é que uma revolução em qualquer lugar é uma ameaça à autocracia em todos os lugares. Xi Jinping sabe disso: não muito depois da Primavera Árabe, ele se preocupou em particular com o presidente Barack Obama e o vice-presidente Joe Biden que a China era um alvo de “revoluções coloridas” e vulnerável ao tipo de revolta que engolfava o Oriente Médio. 13

O PCC respondeu com repressão intensificada na última década — prendendo dissidentes, mobilizando forças de segurança, censurando informações e prevenindo a agitação popular. No entanto, a China agora é forte o suficiente para fazer mais do que apenas se agachar diante da pressão estrangeira. Xi acredita que o poder doméstico do PCC será aprimorado se o autoritarismo prevalecer e as democracias forem disfuncionais — colegas déspotas não punirão a China por abusos de direitos, e o povo chinês não desejará imitar o caos dos sistemas liberais. Ele acha que impedir revoltas contra o autoritarismo em outros países diminuirá as chances de tal revolta irromper na China. E ele acredita que silenciar os críticos no exterior limitará os desafios que o PCC enfrenta na China. Xi vê a reversão da democracia no exterior como parte de seu plano para proteger seu regime em casa.

Prevenção da Democracia

A RPC escreveu sua primeira estratégia formal de segurança nacional sob Xi, em 2014. 14  Enquanto a segurança do regime costumava ser uma das muitas prioridades do governo (embora a mais importante), agora é  a  prioridade. 15  Todas as outras questões — comércio, diplomacia, modernização militar — são complementos para manter o PCC no poder. Como resultado, cada questão é uma questão de segurança do regime. Uma guerra comercial com democracias ricas não é mais apenas um desacordo econômico; é um ataque ao estado chinês e um possível prelúdio para uma guerra armada.

Enquanto as administrações chinesas anteriores defendiam a “manutenção da estabilidade”, o foco sob Xi está na prevenção de ameaças. Documentos chineses comparam explosões populares a tumores cancerígenos que precisam ser extirpados rapidamente antes que se espalhem para órgãos vitais do estado. Ideologias que podem rivalizar com o comunismo, incluindo o liberalismo e o islamismo, são vistas como doenças infecciosas contra as quais a população da China deve ser imunizada. Como Sheena Chestnut Greitens demonstrou, essas metáforas médicas justificam mirar e “tratar” pessoas muito antes que elas apresentem sintomas ameaçadores. 16  A ilustração mais clara está em Xinjiang, onde a China prendeu extrajudicialmente mais de um milhão de uigures. 17  Mas a China está aplicando essa lógica preventiva além de suas fronteiras também.

Pequim gasta bilhões de dólares anualmente em um “kit de ferramentas antidemocrático” de organizações não governamentais, veículos de mídia, diplomatas, conselheiros, hackers e subornos, todos projetados para sustentar autocratas e semear discórdia nas democracias. 18  O PCC fornece armas, dinheiro e proteção contra a censura da ONU para outras autocracias, enquanto aplica sanções a defensores estrangeiros dos direitos humanos. Autoridades chinesas oferecem a seus irmãos autoritários equipamentos de controle de distúrbios e conselhos sobre como construir um estado de vigilância; o comércio, o investimento e os empréstimos da RPC permitem que esses ditadores evitem a condicionalidade ocidental em relação à anticorrupção ou à boa governança.

Pequim usa seus órgãos de mídia que abrangem o globo para apregoar as realizações do governo iliberal enquanto destaca as falhas e hipocrisias dos governos democráticos. A China trabalha com regimes autoritários companheiros, como o de Vladimir Putin na Rússia, para empurrar normas favoráveis ​​aos autocratas de gerenciamento da internet em instituições internacionais e órgãos de definição de padrões. Pequim também ajuda outros regimes iliberais próximos ou na Ásia Central a perseguir e reprimir exilados e dissidentes. Não menos importante, a China está travando uma campanha de coerção política e militar para desestabilizar Taiwan, uma nação florescente cuja própria existência refuta as alegações do PCC de que a cultura chinesa é incompatível com a democracia. O problema fundamental que Taiwan representa para a China, escrevem Andrew Nathan e Andrew Scobell, “vem de Taiwan simplesmente ser o que é — uma sociedade chinesa moderna que é economicamente próspera e politicamente democrática”. 19

Pode ser tentador descartar os esforços de prevenção da democracia da China como “política mundial como sempre”. Afinal, os autocratas têm conspirado para manter o liberalismo sob controle desde que os monarcas da Áustria, Prússia e Rússia se uniram para lutar contra a França Revolucionária há mais de dois séculos. Mas o ataque ideológico da China é especialmente ameaçador, por três razões.

Primeiro, o alcance global da China é mais penetrante do que o de qualquer potência iliberal anterior. Sua economia massiva e 1,4 bilhão de consumidores a armam com cenouras e porretes poderosos para silenciar a liberdade de expressão muito além de suas fronteiras. Austrália, Canadá, República Tcheca, Japão, Lituânia, Noruega, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Estados Unidos — além de dezenas de empresas privadas e indivíduos de nações democráticas — experimentaram recentemente a ira econômica da China. Em muitos casos, a punição foi amplamente desproporcional ao suposto crime. Por exemplo, a China aplicou tarifas altas em quase todas as principais exportações da Austrália depois que Canberra solicitou uma investigação internacional sobre as origens da covid-19.

Além de armas econômicas, a China ocupa cargos de liderança na ONU e em outras grandes instituições internacionais que dão a Pequim chances de dobrar a governança global em uma direção antiliberal. Por exemplo, quando Belarus violou normas internacionais ao forçar a queda de um avião que transportava um dissidente procurado em 2021, a China exerceu sua autoridade como chefe da Organização Internacional de Aviação Civil da ONU para proteger o regime brutal de Alyaksandr Lukashenka da censura. 20  E se a diplomacia e os incentivos econômicos falharem, Pequim pode usar sua marinha, agora a maior do mundo, e força de mísseis convencionais para coagir países a obedecer ou até mesmo para varrer democracias do mapa, como a China está ameaçando fazer com Taiwan.

Em segundo lugar, a campanha antiliberal da China capitaliza uma tendência global perturbadora: como relata a Freedom House, o autoritarismo se espalhou durante todos os anos desde 2006, enquanto a democracia recuou. Essa “recessão democrática” deu à China uma janela de oportunidade ideológica para promover uma visão de uma sociedade hierárquica e harmoniosa e uma crítica de um Ocidente desordenado e decadente. Em todo o mundo, a fé pública nas instituições democráticas caiu para níveis nunca vistos desde a década de 1930. O solo político amadureceu para o autoritarismo criar raízes, e a China, a Rússia e outros estados autoritários estão fertilizando essa planta antidemocrática com desinformação digital que seus propagandistas injetam nos feeds de mídia social de bilhões em todo o mundo. 21

O terceiro e mais importante fator que impulsiona os esforços da China é a revolução digital em andamento. 22  O PCC possui poder de coleta de dados e mensagens para rivalizar com o da Apple, Amazon, Facebook, Google e Twitter. 23  Ao combinar inteligência artificial (IA) e “big data” com tecnologias cibernéticas, biométricas e de reconhecimento facial e de fala, Pequim está sendo pioneira em um sistema que permitirá que ditadores saibam tudo sobre seus súditos — o que as pessoas estão dizendo e assistindo, com quem andam, do que gostam e não gostam e onde estão localizados em um determinado momento — e disciplinar cidadãos instantaneamente restringindo seu acesso a crédito, educação, emprego, assistência médica, telecomunicações e viagens, se não para caçá-los para formas mais medievais de punição.

Esta revolução tecnológica ameaça perturbar o equilíbrio global entre democracia e autoritarismo ao tornar a repressão mais acessível e eficaz do que nunca. 24  Em vez de depender de exércitos caros e potencialmente rebeldes para brutalizar uma população ressentida, um autocrata agora terá meios de controle mais insidiosos. Milhões de espiões podem ser substituídos por centenas de milhões de câmeras sem piscar. Tecnologias de reconhecimento facial podem classificar rapidamente feeds de vídeo e identificar encrenqueiros. Bots podem entregar propaganda personalizada para grupos específicos. Malware pode ser instalado em computadores por meio de aplicativos ou links aparentemente inócuos, e então hackers do governo podem invadir as redes de computadores de dissidentes ou coletar informações sobre suas operações. Essas informações, por sua vez, podem ser usadas para cooptar movimentos de resistência subornando seus líderes ou atendendo suas demandas mais inócuas. Alternativamente, as autoridades podem imprimir uma lista montada por IA de supostos ativistas e matar todos nela.

O gênio maligno desse “autoritarismo digital” é que a maioria das pessoas será aparentemente livre para cuidar de suas vidas cotidianas. Na verdade, porém, o estado estará constantemente censurando tudo o que veem e rastreando tudo o que fazem. Com o autoritarismo da velha escola, pelo menos se sabia de onde vinha a opressão. Mas agora as pessoas podem ser cutucadas e persuadidas por algoritmos invisíveis que entregam conteúdo personalizado para seus telefones. Em eras passadas, os autocratas tinham que fazer escolhas difíceis entre financiar esquadrões da morte ou desenvolvimento econômico. Hoje, no entanto, a repressão não é apenas acessível, mas também lucrativa, porque as tecnologias de “cidade inteligente” que permitem um controle social rígido também podem ser usadas para combater o crime, diagnosticar doenças e fazer os trens circularem no horário.

Essas tecnologias são o sonho de um tirano. Reconhecendo essa demanda, as empresas chinesas já estavam vendendo e operando sistemas de vigilância em mais de oitenta países em 2020. 25  À medida que o PCC se sente cada vez mais ameaçado em casa e no exterior, há todos os motivos para esperar que Pequim exporte o autoritarismo digital para mais longe e mais amplamente. Muitos países já o querem, e a China tem ferramentas poderosas para obrigar aqueles que não o querem. Quer acesso ao vasto mercado da RPC? Deixe a Huawei instalar os principais componentes da sua rede 5G. Quer um empréstimo chinês? Aceite a tecnologia de vigilância da RPC na sua capital.

À medida que mais governos fizerem parcerias com Pequim, o alcance do estado de vigilância da China aumentará. 26  As autocracias existentes se tornarão mais totalitárias, e algumas democracias irão migrar para o campo autoritário. Os conflitos internacionais provavelmente proliferarão — não apenas os de ideias, mas os de armas, pois, como ilustra a invasão da Ucrânia por Putin, a ditadura frequentemente se transforma em nacionalismo de sangue e solo e revanchismo violento. A crença liberal de que a democracia e a paz estão destinadas a se espalhar pelo mundo será derrubada. O mesmo acontecerá com o mito reconfortante de que a humanidade evoluiu além do ponto de atrocidades em massa, porque o autoritarismo digital não desloca gulags e genocídios; ele os possibilita. Quando as ditaduras aumentam a repressão digital, elas também se envolvem em mais torturas e assassinatos. 27  Computadores e câmeras que lidam com a vigilância cotidiana liberam os soldados rasos do regime para tarefas como limpeza étnica e espancamento de dissidentes até a submissão. Xinjiang, com suas cidades inteligentes e campos de concentração, oferece um vislumbre desse futuro terrível. 28

Proteção da Democracia

A ofensiva ideológica da China está, portanto, no cerne de seu esforço para remodelar a ordem global. Uma parte crucial da estratégia da China no mundo democrático, portanto, deve envolver a proteção de instituições democráticas contra ataques autoritários. Se  a promoção da democracia  tem má fama,  a proteção  da democracia está se tornando indispensável.

Esta campanha ideológica não implica buscar uma mudança de regime na China. A democracia pode eventualmente se consolidar naquele país, mas há pouca perspectiva disso em breve, e esforços ativos para desestabilizar o PCC podem ser contraproducentes e perigosos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos nunca tentaram realmente derrubar o governo soviético. Isso foi por preocupação de que isso pudesse desencadear a guerra quente que Washington esperava evitar. O mesmo princípio de cautela deve ser aplicado hoje. A proteção da democracia é uma estratégia essencialmente defensiva, embora em alguns casos exija táticas mais assertivas do que aquelas que os Estados Unidos e seus aliados têm estado dispostos a empregar até o momento.

Em sua essência, a proteção da democracia requer o que os planejadores militares chamam de “defender para a frente” — salvaguardar os sistemas democráticos enfraquecendo ativamente a capacidade de um oponente de danificá-los. 29  Os Estados Unidos devem fazer o que puderem para reforçar a democracia em casa e no exterior, mas a prioridade imediata deve ser abrir buracos na cortina de ferro digital que Pequim está desenhando em grandes áreas do globo. Se o mundo está de fato em um “ponto de inflexão” na luta entre democracia e autocracia, como Biden e Xi parecem pensar que está, uma América que permaneça na defensiva não fará a balança pender. Colocar “a casa democrática da América em ordem” é uma ideia maravilhosa, mas levará anos, se não décadas, e daria apenas ajuda indireta para deter a disseminação da autocracia no exterior. Formar uma aliança gigante de democracias é um objetivo digno, mas pode gerar debates intermináveis ​​em vez de ações decisivas. Em 2000, o governo Bill Clinton criou a “Comunidade das Democracias”, que, no final, incluía 106 países. Após anos de reuniões, sua única realização foi uma declaração insípida criticando o golpe militar de 2021 na Birmânia.

Em vez de construir mais uma organização em expansão ou remendar humildemente buracos nas defesas democráticas, os Estados Unidos deveriam levar a luta ao inimigo e mobilizar “gangues” rudes e prontas de aliados para degradar e deter as iniciativas de guerra política da China. O primeiro passo seria hackear sistemas autoritários digitais. Uma qualidade redentora dos estados policiais digitais é que eles têm uma miríade de pontos de falha. Qualquer computador ou capanga do governo é um ponto de entrada potencial para malware. Os hackers podem furtivamente alimentar “entradas adversárias” em sistemas de vigilância alterando alguns pixels em certas imagens, inserindo pontos de dados falsos ou inserindo código malicioso nos patches que os técnicos autoritários usam para consertar sistemas defeituosos. Os hacks podem permitir que notícias proibidas se tornem virais, enganar os sistemas de vigilância para ignorar a atividade dissidente e classificar erroneamente os leais ao regime como inimigos do estado.

Governos democráticos nem precisam atacar estados autoritários diretamente; democracias podem postar paródias online e deixar dissidentes ao redor do mundo usá-las como armas. E defensores da democracia não precisam interromper todos os regimes autoritários digitais — alguns erros de alto perfil podem ser o suficiente para diminuir a demanda pelos produtos de Pequim. Pense nisso como uma imposição de custo ideológica: o tempo, energia e dinheiro que a China terá que dedicar para consertar seu estado de vigilância doméstica serão tempo, energia e dinheiro que Pequim não pode gastar manipulando políticas democráticas no exterior.

Uma segunda tarefa vital é desacelerar a disseminação da tecnologia que permite a repressão. Em parte, isso significará produzir alternativas acessíveis aos produtos chineses de telecomunicações e cidades inteligentes. Essas alternativas podem incluir satélites de órbita baixa da Terra (como os mais de 3.000 satélites pequenos que compõem a rede Starlink) para fornecer banda larga global. Mais importante, isso também significará impedir que empresas dos EUA e aliadas transfiram certas tecnologias — como aquelas para reconhecimento avançado de fala e facial, visão computacional e processamento de linguagem natural — para regimes autoritários, bem como impedir que empresas estrangeiras envolvidas em repressão autoritária levantem capital nos mercados financeiros das democracias. 30  Durante a Guerra Fria, os governos ocidentais mantiveram o Comitê Coordenador para Controles Multilaterais de Exportação (Co-Com) para impedir que tecnologia avançada fosse vendida ao bloco soviético. Algo como a abordagem do Co-Com é adequado no que diz respeito à China. Washington e os aliados dos EUA já restringiram o acesso da RPC a semicondutores avançados, principalmente até agora por meio de novas regulamentações agressivas que o Departamento de Comércio dos EUA implementou em outubro de 2022. Embargos semelhantes serão necessários para prejudicar o estado de vigilância em expansão de Pequim. 31

Isso se relaciona a um terceiro imperativo — frustrar os esforços da China para expandir o alcance de sua internet autoritária. Uma maneira de fazer isso seria os Estados Unidos e seus aliados dividirem preventivamente a internet global criando um bloco digital no qual dados e produtos fluam livremente, excluindo a China e outros países que se recusam a respeitar a liberdade de expressão ou direitos de privacidade. Isso pode parecer drástico, mas pode ser necessário para combater o PCC, que atualmente desfruta do melhor dos dois mundos: ele administra uma rede fechada em casa (impedindo que cidadãos da RPC acessem sites estrangeiros e limitando o acesso digital de empresas ocidentais) enquanto também acessa seletivamente a internet globalmente para roubar propriedade intelectual, interferir em eleições democráticas, espalhar propaganda e hackear infraestrutura crítica. Esta é uma versão da era digital da infame Doutrina Brezhnev da União Soviética: o que é meu é meu, e o que é seu está em disputa.

Para combater essa exploração, Richard Clarke e Rob Knake propuseram formar uma “Internet Freedom League”, uma iniciativa que é melhor vista menos como uma aliança multilateral em expansão do que como uma espécie de união alfandegária digital. 32  Sob esse sistema, os países que aderirem à visão de uma internet livre e aberta permaneceriam conectados uns aos outros, enquanto os países que se opuserem a essa visão enfrentariam acesso restrito ou seriam excluídos. Todo o tráfego da web de não membros não seria bloqueado, apenas o tráfego de empresas e organizações que auxiliam e incentivam o autoritarismo digital ou o crime cibernético. Claro, o governo da RPC é um desses maus atores, então ele e as entidades que fazem suas licitações — sejam instituições governamentais ou empresas nominalmente privadas que estão profundamente ligadas ao estado chinês — seriam cortadas.

Quarto, uma maior cooperação entre democracias — econômicas e outras — diminuirá a capacidade da China de assustá-las e fazê-las silenciar punindo uma delas. A recente campanha da China contra a Austrália enfatizou isso. Em abril de 2020, Canberra pediu uma investigação internacional independente sobre as origens da pandemia de covid. Uma Pequim enfurecida aplicou tarifas altas sobre carvão, carne bovina, trigo, vinho e outros produtos australianos, ao mesmo tempo em que exigia que o governo australiano abafasse vozes domésticas “hostis” à RPC.

Para seu crédito, Canberra se recusou a ceder e lentamente encontrou mercados alternativos, em parte lançando uma campanha de relações públicas “combata o comunismo, compre vinho australiano”. O governo Biden informou às autoridades da RPC que as tensões bilaterais não diminuiriam se o PCC estivesse atacando os aliados dos EUA, e Washington prometeu fornecer à Austrália tecnologia nuclear para alimentar submarinos de ataque de ponta. A economia da Austrália sofreu um golpe, no entanto — e, desajeitadamente, empresas de outras democracias abocanharam parte da fatia de mercado resultante. Laços econômicos mais densos entre democracias e não democracias amigáveis ​​que temem a coerção chinesa, como Vietnã e Cingapura, podem cortar os custos de resistência futura. Ainda melhor seria se democracias ricas concordassem em infligir dor recíproca a Pequim por meio de contra-sanções. A China ainda poderia tentar censurar o discurso democrático em países estrangeiros, mas apenas ao custo de seu próprio crescimento econômico.

A China certamente se irritaria com essas medidas, mas até certo ponto isso é uma coisa boa, porque fornece oportunidades para incitar Pequim a erros estratégicos. Lembre-se do que aconteceu em março de 2021, quando os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá sancionaram quatro autoridades chinesas por abusos de direitos humanos em Xinjiang. As sanções foram tapas no pulso, mas desencadearam uma explosão autodestrutiva de “guerreiro-lobo”: Pequim desencadeou uma fuzilaria diplomática e sancionou autoridades e think tanks da UE; a UE respondeu congelando o pendente Acordo Abrangente sobre Investimento China-UE. Os Estados Unidos e seus aliados podem incitar a China de maneiras sutis que não correm o risco de guerra, mas provocam reações exageradas e tempestuosas por meio das quais Pequim se isola.

Estratégias de isca e sangramento, no entanto, exigem resiliência. Quando a mídia estatal chinesa ameaçou, em março de 2020, mergulhar a América em “um poderoso mar de coronavírus” negando-lhe produtos farmacêuticos, ela ressaltou a capacidade de Pequim de retaliar feio contra democracias que se recusam a seguir sua linha. 33  Um quinto requisito dessa estratégia, então, será desenvolver rapidamente redes de produção de mundo livre para recursos críticos que a China atualmente domina, incluindo minerais de terras raras e suprimentos médicos de emergência. A alternativa ao desenvolvimento proativo dessas redes é desenvolvê-las reativa e a um custo muito maior durante uma crise — como a Europa descobriu com sua transição forçada do fornecimento de energia russo devido à guerra na Ucrânia.

Um sexto aspecto da defesa avançada envolve lutar mais ativamente na guerra da informação. A estratégia da China envolve promover incansavelmente os supostos benefícios de seu próprio modelo, enquanto atiça as chamas da discórdia política em sociedades democráticas. Expor grupos falsos da sociedade civil ou veículos de mídia que são ferramentas de influência chinesa é obviamente vital. Igualmente importante, porém, é ser mais agressivo em virar o jogo contra Pequim, espalhando a notícia de seus abusos de direitos, crescentes problemas econômicos e sociais, corrupção desenfreada, práticas predatórias de empréstimos no exterior e outros crimes e deficiências do PCC. Os Estados Unidos acumularam muita experiência com tais esforços durante a Guerra Fria, quando instituições como a extinta Agência de Informação dos EUA disseram a verdade sobre o bloco soviético enquanto contestavam mentiras comunistas sobre o mundo livre. 34  Hoje, mensagens semelhantes podem não ressoar com líderes estrangeiros cleptocráticos que são financiados por Pequim — mas tais comunicações ajudarão a tornar o ambiente global de informações menos favorável à propaganda do PCC.

Sétimo, os Estados Unidos e seus aliados devem contestar mais efetivamente o terreno institucional, porque aqueles que governam os organismos internacionais do mundo escrevem as regras do mundo. Transformar organizações internacionais em ferramentas de entrincheiramento doméstico e influência global para regimes autoritários é uma estratégia de longa data do PCC. Pequim compra regularmente votos de estados-membros nessas organizações, que então elegem candidatos favorecidos pela RPC para liderá-los. Para deter a marcha da China em direção ao domínio institucional, os Estados Unidos devem aprender a reunir coalizões mutáveis ​​de países democráticos por trás de candidatos que defenderão os valores básicos do mundo livre. Isso aconteceu em setembro de 2022, quando Doreen Bogdan-Martin foi eleita secretária-geral da União Internacional de Telecomunicações da ONU.

Finalmente, os Estados Unidos precisam ajudar a proteger democracias que fazem fronteira com agressores autoritários. Defender nações vulneráveis ​​importa, principalmente porque a coerção autoritária bem-sucedida em um lugar pode encorajar ações perigosas em outro lugar. O principal campo de batalha hoje é a Ucrânia, com Taiwan em segundo lugar. Ao reforçar Taiwan com proteção militar e linhas de vida econômicas, Washington pode preservar uma alternativa ideológica potente ao PCC — e fortalecer uma coalizão de mundo livre que pode manter o mundo seguro para a democracia nas próximas décadas.

Este ensaio é uma adaptação do livro dos autores, Danger Zone: The Coming Conflict with China  (2022).

NOTAS

1. Jessica Chen Weiss, “Um mundo seguro para a autocracia? A ascensão da China e o futuro da política global”,  Foreign Affairs  98 (julho–agosto de 2019): 93–94.

2. Elbridge Colby e Robert D. Kaplan, “A ilusão ideológica: a competição da América com a China não é sobre doutrina”, Foreign Affairs,  4 de setembro de 2020.

3. “The Long and Short of the CCP Congress,” China Media Project, 16 de outubro de 2022,  https://chinamediaproject.org/2022/10/16/the-long-and-short-of-xis-political-report .  As palavras citadas são da versão curta do discurso de Xi, que pode ser baixada em chinês de um link nesta página e, em seguida, executada por um programa de tradução.

4. Nicholas Spykman,  Estratégia da América na Política Mundial: Os Estados Unidos e o Equilíbrio de Poder (Nova York: Harcourt and Brace, 1942), 20–22.

5. Minxin Pei, “Pragmatismo assertivo: ascensão econômica da China e seu impacto na política externa chinesa”, Departamento de Estudos de Segurança do IFRI, outono de 2006,  https://www.ifri.org/sites/default/files/atoms/files/Prolif_Paper_Minxin_Pei.pdf .

6. Suisheng Zhao, “O renascimento maoísta de Xi Jinping”,  Journal of Democracy 27 (julho de 2016): 85, www.journalofdemocracy.org/wp-content/uploads/2016/07/Zhao-27-3.pdf .

7. Citações de Christopher A. Ford,  China Looks at the West: Identity, Global Ambitions, and the Future of Sino-American Relations (A China olha para o Ocidente: identidade, ambições globais e o futuro das relações sino-americanas) (Lexington: University Press of Kentucky, 2015), 186; Samuel Kim, “Human Rights in China’s International Relations”, em Edward Friedman e Barrett L. McCormick, eds.,  What If China Doesn’t Democratize? Implications for War and Peace (E se a China não se democratizar? Implicações para a guerra e a paz) (Nova York: ME Sharpe, 2000), 130–31.

8. Citado em Rush Doshi,  The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order (Nova York: Oxford University Press, 2021), 52.

9. Doshi,  Jogo Longo, 54–55.

10. Doshi,  Jogo Longo, 56.

11. Timothy R. Heath, “O que a China quer? Discernindo a estratégia nacional da RPC”,  Asian Security 8 (março de 2012): 54–72.

12. Samuel P. Huntington,  The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century  (Norman: University of Oklahoma Press, 1993). Para dados, veja o Mass Mobilization Project,  https://massmobilization.github.io .

13. Chris Buckley e Steven Lee Myers, “Em tempos turbulentos, Xi constrói uma fortaleza de segurança para a China e para si mesmo”,  New York Times,  6 de agosto de 2022.

14. “O Comitê Central do PCC – Proposta Formulada para o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Metas de Longo Prazo para 2035”,  www. xinhuanet.com/2020-10/29/c_1126674147.htm .

15. Jude Blanchette, “Segurança ideológica como segurança nacional”, CSIS, 2 de dezembro de 2020,  www.csis.org/analysis/ideological-security-national-security .

16. Sheena Chestnut Greitens, “Repressão preventiva: segurança interna e grande estratégia na China sob Xi Jinping”, ms. não publicado, 2021.

17. Sheena Chestnut Greitens, Myunghee Lee e Emir Yazici, “Contraterrorismo e repressão preventiva: a mudança de estratégia da China em Xinjiang”,  International Security  44 (inverno de 2019–20): 9–47.

18. Christopher Walker e Jessica Ludwig, “The Long Arm of the Strongman: How China and Russia Use Sharp Power to Threaten Democracies”,  Foreign Affairs,  12 de maio de 2021; Elizabeth. C. Economy, “Exporting the China Model”, Testemunho perante a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 13 de março de 2020,  www.uscc.gov/sites/default/files/testimonies/USCCTestimony3-13-20%20(Elizabeth%20Economy)_justified.pdf .

19. Andrew J. Nathan e Andrew Scobell,  A busca da China por segurança (Nova York: Columbia University Press, 2012), 213.

20. Yaroslav Trofimov, Drew Henshaw e Kate O’Keeffe, “Como a China está assumindo o controle de organizações internacionais, um voto de cada vez”,  Wall Street Journal,  29 de setembro de 2020.

21. Michael J. Mazarr et al.,  Manipulação social hostil: realidades atuais e tendências emergentes  (Santa Monica: RAND Corporation, 2019); Jeff Kao, “Como a China construiu uma máquina de propaganda no Twitter e depois a soltou no coronavírus”,  ProPublica,  26 de março de 2020,  https://www.propublica.org/article/how-china-built-a-twitter-propaganda-machine-then-let-it-loose-on-coronavirus .

22. Veja os artigos na edição de janeiro de 2019 do  Journal of Democracy intitulados coletivamente “The Road to Digital Unfreedom”; veja também Richard Fontaine e Kara Frederick, “The Autocrat’s New Toolkit”,  Wall Street Journal,  15 de março de 2019.

23. Larry Diamond, “O caminho para a falta de liberdade digital: a ameaça do totalitarismo pós-moderno”,  Journal of Democracy  30 (janeiro de 2019): 22.

24. Tiberiu Dragu e Yonatan Lupu, “Autoritarismo digital e o futuro dos direitos humanos”,  Organização Internacional  75 (outono de 2021): 991–1017.

25. Sheena Chestnut Greitens, “Lidando com a demanda por exportações de vigilância global da China”,  Global China, abril de 2020,  www.brookings.edu/research/dealing-with-demand-for-chinas-global-surveillance-exports .

26. Alina Polyakova e Chris Meserole, “Exportando autoritarismo digital: os modelos russo e chinês”, Brookings Institution Policy Brief, agosto de 2019,  www.brookings.edu/wp-content/uploads/2019/08/FP_20190827_digital_authoritarianism_polyakova_meserole.pdf .

27. Andrea Kendall-Taylor, Erica Frantz e Joseph Wright, “Os ditadores digitais: como a tecnologia fortalece a autocracia”,  Foreign Affairs  99 (março–abril de 2020).

28. Ross Andersen, “O Panóptico Já Está Aqui”,  Atlantic,  setembro de 2020.

29. O Comando Cibernético dos Estados Unidos, por exemplo, adotou essa abordagem para proteger redes dos EUA. Veja Erica D. Lonergan, “Operationalizing Defend Forward: How the Concept Works to Change Adversary Behavior,”  Lawfare,  12 de março de 2020,  lawfareblog.com/operationalizing-defend-forward-how-concept-works-change-adversary-behavior .

30. Derek Scissors, “Limits Are Overdue in the US-China Technology Relationship”, Declaração ao Comitê Judiciário do Senado dos EUA, Subcomitê sobre Crime e Terrorismo, 4 de março de 2020.

31. Para uma lista de tecnologias críticas, veja Emma Rafaelof, “Unfinished Business: Export Control and Foreign Investment Reforms,” US-China Economic and Security Review Commission, Issue Brief, 1 de junho de 2021.

32. Richard A. Clarke e Rob Knake, “A Liga da Liberdade da Internet: Como reagir contra o ataque autoritário à Web”,  Foreign Affairs  98 (setembro–outubro de 2019).

33. Barnini Chakraborty, “China sugere negar medicamentos que salvam vidas para os Estados Unidos contra o coronavírus”, Fox News, 13 de março de 2020.

34. Hal Brands,  A luta crepuscular: o que a Guerra Fria nos ensina sobre a rivalidade entre grandes potências hoje  (New Haven: Yale University Press, 2022), 186–89

Michael Beckley is associate professor of political science at Tufts University and nonresident senior fellow at the American Enterprise Institute.

Hal Brands is the Henry Kissinger Distinguished Professor at the Johns Hopkins School of Advanced International Studies and senior fellow at the American Enterprise Institute. 

Não há dois lados

Os “progressistas” contra os fascistas

As narrativas de dois lados em eterno confronto fabricam guerras. Foi assim que se constituiu a ideia de esquerda e, simetricamente, de direita. Como tomam como sentido da política a ordem (e não a liberdade), para ambas trata-se, em política, de lutar contra o outro lado para implantar a ordem que acham que condiz, no caso da esquerda, com o sentido (ou as leis) da história e, no caso da direita, com a ordem que acham que é designada por deus (quer dizer, pela religião) ou determinada pela natureza.

Atualmente o mesmo esquema é traduzido, pela esquerda, como uma luta dos “progressistas” contra a extrema-direita fascista.

É curioso porque, no lado dos “progressistas”, cabem os ditadores de esquerda. Os que divergem dessa narrativa são então colocados no lado dos fascistas.

Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Khamenei e seus braços terroristas (Irã), Bouphavanh (Laos), Chính (Vietnam), Lourenço (Angola), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua) e Canel (Cuba) são todos contra a extrema-direita. Putin (Rússia) é explicitamente antifascista (invadiu a Ucrânia para, supostamente, barrar os nazifascistas). Aliás, o muro de Berlim se chamava (na época em que Putin morava na Alemanha Oriental) Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção Antifascista). A não ser que queiramos enganar os outros, não faz o menor sentido classificar todos esses ditadores de esquerda (ou admirados pela esquerda) como “progressistas”

A única distinção honesta não é entre lados em eterno confronto entre si e sim entre regimes políticos: existem democracias e autocracias (ditaduras). Mas como existem ditaduras de esquerda e de direita, revela-se impotente (como categoria de análise) a distinção entre esquerda e direita ou (como diretiva política) a distinção entre “progressistas” e fascistas. Os regimes de esquerda de Maduro, Ortega e Canel são tão autocráticos quanto os regimes de direita de Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Bukele (El Salvador).

Governantes como Frederiksen (Dinamarca), Støre (Noruega) e Luxon (Nova Zelândia) não se definem por serem de esquerda ou de direita e sim por serem democratas liberais. Eles não são iguais a pretendentes autoritários de extrema-direita como Weidel (Alemanha), Ventura (Portugal) e Abascal (Espanha). O mesmo vale para Kristersson (Suécia), Schoof (Holanda) e Starmer (Reino Unido), que não são iguais a governantes autoritários de esquerda como Lourenço (Angola), Bouphavanh (Laos) e Chính (Vietnam).

Vai e volta e reaparece a ideia de uma “frente ampla contra o fascismo”. Por meio desse truque a esquerda quer que os democratas liberais se rendam, se diluam no condomínio dos “progressistas”, abram mão de apresentar à sociedade sua alternativa, em nome de derrotar a extrema-direita e, obviamente, colocar ou manter no poder a esquerda. O objetivo aqui é impedir a formação de um centro de gravidade democrático que não se defina por alinhamentos à esquerda ou à direita.

No Brasil dos dias que correm essa frente ampla para derrotar o bolsonarismo (de extrema-direita) quer manter o lulopetismo (de esquerda) no poder. Deve estar certo. Pois Zé Dirceu e seu fiel escudeiro Breno Altman são “progressistas”. Delúbio Soares e João Vaccari são “progressistas”. Ricardo Berzoini e Gleisi Hoffmann são “progressistas”. Frei Betto e seu pupilo Luiz Marinho são “progressistas”. O que importa é que todos são antifascistas!

Curioso que nessa já surrada “frente ampla contra o fascismo” dos populistas de esquerda não cabem os que são contra as ditaduras de Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei, Hamas e Hezbollah, Lourenço, Maduro, Ortega e Canel. Por quê? Ora, porque esses são de esquerda. E o objetivo de derrotar a direita é colocar no poder a esquerda, mesmo que seja autocrática. Alguém poderia dizer: viva Stalin (que matou cerca de 20 milhões de pessoas, mas era antifascista) contra Hitler.

Não há dois lados. Democracia e autocracia são regimes políticos, não lados. E, mesmo assim, existem democracias liberais (como Chile e Uruguai – cujo governo era dito de direita e agora é dito de esquerda) e democracias não-liberais (apenas eleitorais, algumas vezes com governos ditos de esquerda, como no México, em Honduras, na Colômbia, na Bolívia e no Brasil e, em outros casos, ditos de direita, como na Argentina e em Israel). E existem autocracias eleitorais (com governos ditos de direita, como na Índia ou ditos de esquerda, como na Bielorrússia) e autocracias não-eleitorais (com governos ditos de esquerda, como em Cuba ou ditos de direita, como no Haiti).

Querer reduzir tudo a dois lados em permanente confronto está no “DNA” da esquerda, que – desde sua pre-história jacobina e, em seguida, bolchevique – pratica a política como continuação da guerra por outros meios (o que, a rigor, do ponto de vista democrático, é antipolítica). É por isso que se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

Por que precisamos de comunidades políticas democráticas

Do ponto de vista da democracia como modo-de-vida, não há como alguém exercer o papel de agente democrático sem comunidade política. Sem a prática da continuada conversação democrática, a democracia fenece. Sem ambientes favoráveis à realização de projetos comuns democratizantes, a partir da congruência de desejos dos interagentes, a democracia falece.

É em comunidades políticas que pode se exercer a prática da continuada e recorrente conversação democrática, que gera circularidades inerentes, dando nascimento a novas culturas políticas, usinando padrões de apreensão do mundo e de ação sobre o mundo capazes de se replicar. É em comunidades políticas que se pode realizar projetos comuns democratizantes – e isso define a própria ideia de comunidade política democrática.

Uma vez experimentado por um número suficiente de seres humanos, um modo-de-vida pode tornar-se um padrão que se replica, inspirando agires (comportamentos) conexos em outras regiões do tempo. O que se replica são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar.

No caso da autocracia, comportamentos compatíveis com ideias míticas, sacerdotais e hierárquicas, de ordem como sentido da política – e de luta contra inimigos (guerra ou política como continuação da guerra por outros meios) para implantar essa ordem – que conformam padrões autocráticos.

No caso da democracia, comportamentos compatíveis com ideias de liberdade como sentido da política – de que a nossa liberdade não termina, mas começa onde começa a liberdade do outro (quer dizer, de que ninguém pode ser livre sozinho) –, com ideias de autonomia, com ideias colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada), que conformam padrões democráticos. Mas nada disso é possível sem comunidade política.

Partidos políticos tradicionais (hierárquicos) configuraram ambientes de reprodução de padrões mais autocráticos do que democráticos. Líderes conduzindo grandes massas compostas por indivíduos, também reproduziram padrões mais autocráticos do que democráticos. As chamadas “bolhas” que surgiram com as mídias sociais e os programas de mensagens, espécies de “partidos digitais” compostos por seguidores de líderes, igualmente estão reproduzindo padrões mais autocráticos do que democráticos. Só comunidades políticas democráticas (redes mais distribuídas do que centralizadas) poderão gerar padrões mais democráticos do que autocráticos.

Os democratas que tomam a democracia não apenas como as regras do jogo, mas como o próprio jogo; quer dizer, não apenas como modo político de administração do Estado, mas também como modo de vida (experimentando a democracia em não-países), não têm outro caminho a não ser articular comunidades políticas. Essas comunidades podem ser grandes ou pequenas – na maioria dos casos, sobretudo no começo, tendem a ser pequenas. Podem ser presenciais ou virtuais – em geral, nos tempos que correm, serão virtuais. O que importa é a sua estrutura ou padrão de organização (distribuído) e sua dinâmica ou modo de funcionamento (amistoso ou não-adversarial).


Nota

Juntamente com vários amigos e amigas, depois de uma longa trajetória investigativa e reflexiva e de vários ensaios de articulação de redes para vários propósitos nos últimos quinze anos, formamos algumas comunidades desse tipo chamando-as de Casas da Democracia. Mas o nome pouco importa. As pessoas podem chamá-las como quiserem. Podem encará-las como sua pólis, micropólis ou “pólis paralelas” – como fez Václav Benda (1978) no contexto do regime pós-totalitário da Tchecoslováquia. Alias, a polis onde nasceu a primeira democracia não era a cidade-Estado (de Atenas) e sim a comunidade (koinonia) política. Como notou Hannah Arendt (1958) em A Condição Humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses”. A comunidade política democrática é uma nova “entidade” que surge quando as pessoas passam a viver a sua convivência. É assim que nasce e renasce, continua ou intermitentemente, a democracia como modo-de-vida.

A queda da categoria “extremista”

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: “Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar”.

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino. 

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho). 

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria “extremista” é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas – não depois que chegaram ao poder. 

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis” e “Três Antis”).

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto – juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) – compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.

Desenvolvimento, capital social e democracia

O autor não conseguiu encontrar o local onde este texto foi originalmente publicado. Nem a data. Presume-se que deve ter sido escrito entre 2005 e 2008. 

1 – Em geral não se leva muito em conta que o desenvolvimento econômico deve ser interpretado como prosperidade econômica, medida como aumento da riqueza, não em termos absolutos ou médios, mas em termos do aumento do acesso das pessoas à propriedade produtiva e a melhoria das suas condições (e, portanto, o aumento de suas chances) de sucesso na realização dessa propriedade. Prosperidade econômica ainda é a melhor expressão do desenvolvimento econômico de uma sociedade e deve significar que mais e mais pessoas estão podendo não simplesmente obter renda, senão também gerá-la diversificadamente. Implica, portanto, para além da distribuição da renda, desconcentração da riqueza.

2 – Se a concentração da renda no Brasil é absurda (estamos entre os países mais injustos do mundo em termos de desigualdade de renda), também é injusta a distribuição da riqueza. Com efeito, se a maior parte (cerca de 70%, talvez) do faturamento bruto de todas as empresas fica nas mãos de uma pequena parcela (menos de 2%) das empresas, então estamos diante de uma monumental concentração de riqueza. Isso não é captado diretamente por indicadores de desigualdade de renda e nem por indicadores de aumento geral de riqueza (como o PIB).

3 – Há quem ache que tudo vai se resolver com a criação geral de mais riqueza e com a distribuição da renda. Há quem ache que se distribuirmos a renda então isso vai levar à distribuição da riqueza. Mas talvez tenha que haver alguma desconcentração de riqueza para que haja uma distribuição da renda. Em outras palavras, distribuir renda não é uma tarefa fácil enquanto a outra variável econômica que comparece na equação do desenvolvimento – a riqueza – permanecer tão concentrada. Ora, enquanto isso, enquanto a riqueza permanecer tão concentrada, pode até haver crescimento econômico, mas não haverá desenvolvimento econômico porque não haverá prosperidade econômica, a qual pressupõe diversidade econômica co-implicada no aumento da circulação de mercadorias (inclusive de moeda).

4 – Isso para não falar de outros fatores – extra-econômicos – que também comparecem na equação do desenvolvimento, como, por exemplo, o conhecimento e o poder. Ou seja, isso para não falar do desenvolvimento em um sentido mais sistêmico e global, para além do desenvolvimento econômico.

5 – Nos últimos anos tem se reforçado a hipótese de que o fenômeno de mudança que interpretamos como desenvolvimento econômico não é, na verdade, tão estritamente econômico quanto se pensa. Aparece como desenvolvimento econômico em virtude de interpretação fragmentária de um fenômeno que é global, envolvendo, para além da renda e da própria riqueza (ou seja, das internalidades), outras variáveis como conhecimento, poder, meio ambiente (que são consideradas externalidades).

6 – Mas mesmo para que haja o tal desenvolvimento econômico, interpretado como prosperidade econômica, é necessário, para além do crescimento econômico, que mais pessoas, individual e coletivamente, consigam empreender mais e ter mais sucesso em seus empreendimentos. Ora, para isso é necessário que mais pessoas tenham mais conhecimento (um dos componentes, talvez o principal, do que se chama, metaforicamente, de “capital humano”) e que os ambientes sociais em que essas pessoas convivem sejam ambientes capazes de encorajá-las a empreender mais e a adquirir mais conhecimento para empreender melhor.

7 – Esse encorajamento é uma espécie de poder (um “poder” social, não caracteristicamente político) que passa das coletividades para os indivíduos. É como um campo de força que aciona (energiza) elementos nele imersos por indução (na acepção física – como na indução eletromagnética – e não lógica do conceito). Esse é o processo que foi chamado de empoderamento, o qual tem a ver não com o poder de mandar, ou seja, com a possibilidade e a capacidade de um indivíduo ou grupo de impor sua vontade a outros indivíduos em virtude de algum atributo diferencial (força, saber ou riqueza), institucionalizado ou não e sim com os padrões de convivência social, vale dizer, com a configuração da rede social existente. Quem empodera é a rede social (que pode, então, também em termos metafóricos, ser interpretada como um outro tipo de capital, o chamado “capital social”).

8 – O fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico não pode ocorrer isoladamente. É um aspecto de uma mudança que envolve mudanças em vários outros fatores além daqueles que são considerados como internalidades econômicas. A incompreensão desse processo complexo levou os pensadores econômicos a imaginar que seriam as mudanças na renda e na riqueza (ou, em geral, apenas na renda ou no produto) que levariam a mudanças nos outros fatores extra-econômicos. Estabeleceu-se, assim, um modelo linear e unívoco, que parte do econômico (= a causa) em direção a outros fatores considerados sociais – sócio-culturais, sócio-políticos, sócio-ambientais etc – (= os efeitos).

9 – Essa é a razão pela qual o que se chama de política social sempre foi visto como uma política de segunda classe, já que ela não trabalharia com a causa e sim com os efeitos e, dessarte, não poderia ser tão estratégica quanto a política econômica. Caberia à política social compensar as defasagens de inserção no processo de desenvolvimento, quando os processos intra-econômicos não foram, por alguma razão extra-econômica que atrapalha o funcionamento dos mecanismos de distribuição econômica, capazes de incorporar “automaticamente” os excluídos. Para esse pensamento, contudo, o remédio principal para a inclusão, a receita que vale de fato, é a econômica, pelo incremento da renda, em geral via salário, quer dizer como remuneração do trabalho (de alguém que foi empregado para realizar a propriedade produtiva de outrem, subordinado ao sonho alheio) e não como recompensa ao empreendedorismo (como apropriação de um sobrevalor gerado pelo trabalho de realizar a própria propriedade produtiva) como deveria inspirar a utopia da livre iniciativa capitalista.

10 – Segundo esse modelo, se queremos promover a desenvolvimento social, então temos que promover o desenvolvimento econômico. E como o desenvolvimento econômico é visto como o resultado mais ou menos automático do crescimento econômico, então tudo se resume a promover o crescimento econômico.

11 – Ocorre que as relações entre as diversas variáveis do desenvolvimento são plurívocas. Nesse sistema complexo, não-linear, os supostos efeitos retroagem sobre a imaginada causa e todos os fatores interagem entre si. Então, quando acontece o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico, é porque vários outros fenômenos inter-relacionados aconteceram também.

12 – Pode-se dizer que a renda permite acesso ao conhecimento necessário para a geração de mais renda (sem o que, por um lado, não pode existir prosperidade econô-mica). Como isso é muito plausível, as pessoas costumam imaginar que tudo depende, nas sociedades de consumo, de ter mais renda para ter mais acesso à educação (ou à capacitação). No entanto, temos aqui apenas uma parte da história. Pois é difícil imaginar que a renda auferida individualmente consiga construir ambientes sociais favoráveis ao sucesso dessa geração de renda (sem o que, por outro lado, também não pode existir prosperidade econômica). Em outras palavras, para realizar a propriedade produtiva é necessário, além do capital humano, um certo estoque ou fluxo de capital social. Porque quanto menor o capital social menos chances de sucesso os empreendimentos terão e, portanto, menor será o grau de realização distribuída da propriedade produtiva.

13 – Como capital social não pode ser comprado, é um bem público que não pode ser adquirido no mercado, ele tem que ser gerado. Gerar capital social – como se sabe, desde que Jane Jacobs inventou o conceito – é a mesma coisa que tramar redes sociais. Mas o incremento da renda per capita não é capaz, por si só, de aumentar a trama do tecido social. Em contrapartida, se aumentamos – por que meio for – a trama do tecido social, aumentam as chances de sucesso dos empreendimentos produtivos.

14 – Desse ponto de vista poder-se-ia inverter a sentença: se queremos promover o desenvolvimento econômico então temos que promover o desenvolvimento social. A inteligência mediana retrucará que, apenas invertendo a implicação simples (‘desenvolvimento econômico => desenvolvimento social’) que vige na cabeça da maioria dos economistas, policymakers e jornalistas na atualidade, não se resolve o problema. Estaríamos trocando uma relação linear, baseada em uma crença de causalidade unívoca, por outra também linear, igualmente incapaz de captar a complexidade do fenômeno. A objeção é verossimilhante: por algum motivo as pessoas têm a impressão de que a verdade está no meio (daí a popularidade dos dísticos “nem 8, nem 80”, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”) e gostam de evitar os extremos. Ademais, soa razoável dar o mesmo peso a todos os fatores do desenvolvimento, haja vista, como se argumentou acima, que o que interpretamos, fragmentariamente, como desenvolvimento econômico, é um aspecto de um fenômeno de mudança global mais complexa. De sorte que o mesmo deveria valer para o desenvolvimento social, ou seja, o que interpretamos como desenvolvimento social poderia ser um aspecto, captado pela percepção fragmentária, do fenômeno de mudança mais global (o desenvolvimento em termos sistêmicos).

15 – Entretanto, a mudança que queremos interpretar como desenvolvimento, mesmo em termos sistêmicos, é uma mudança que ocorre sempre na sociedade humana. Ou seja, é uma mudança social, nas relações concretas entre as pessoas que vivem em sociedade e não nas relações entre os elementos de um esquema abstrato que foi construído para explicar uma classe qualquer de fenômenos observados na sociedade, como, por exemplo, a “máquina econômica” inventada pelos economistas.

16 – Em outras palavras, desenvolvimento, seja o que for, é alguma coisa que acontece na sociedade humana. Isso significa que todo desenvolvimento é, sempre e antes de qualquer coisa, desenvolvimento social. Não pode haver nenhum tipo de desenvolvimento que não seja desenvolvimento social. Pois desenvolvimento é um conceito que se aplica a sociedades humanas e não a outros sistemas (de seres animados ou inanimados). Só metaforicamente pode-se falar de desenvolvimento de uma colônia de insetos, de um processo industrial ou de uma teoria.

17 – Pois bem. Existem evidências suficientes para corroborar a hipótese de que o desenvolvimento é um fenômeno próprio das redes sociais, é como se fosse um aprendizado dessas redes. Uma sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo a manter uma congruência dinâmica com o meio. Em outras palavras, uma sociedade se desenvolvendo significa uma rede social mudando com a mudança das circunstâncias, ou seja, realizando o processo de se tornar sustentável. Desse ponto de vista não há nenhuma diferença entre os termos ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’.

18 – Uma nova visão do desenvolvimento social que emerge da compreensão das redes sociais é uma (talvez a única) visão compatível com a noção de capital social. No principio está a rede. O que chamamos de ‘social’ refere-se à rede social. A configuração e a dinâmica de sua rede social é o que podem explicar, em um nível mais profundo, os fenômenos que acontecem em uma sociedade. Uma sociedade só é distinguível de outra porque sua rede social é diferente da rede social da outra sociedade. A identidade de uma sociedade pode ser compreendida, nesse nível de profundidade, por padrões de tecitura social e de fluxos recorrentes ou circuitos ativados. Embora a rede seja móvel, embora os fluxos que a percorrem sejam diferentes em cada instante, existem padrões, invariantes que são próprios daquela particular coletividade. O retrato desses padrões é a impressão digital de uma particular sociedade. Aquilo que permanece constante na configuração e na dinâmica de uma rede social é a “carteira de identidade” da particular sociedade onde essa rede foi observada.

19 – Todavia, assim como a teia da vida que liga os elementos de um ecossistema é invisível para os olhos, assim também ocorre com a teia social que estabelece as conexões entre as pessoas e os grupos em uma sociedade. São essas conexões que caracterizam os padrões de convivência social. Anisotropias criadas nesse tecido social, singularidades geradas nesse “espaço”, condicionam fluxos, constroem caminhos preferenciais para esses fluxos. Perturbações introduzidas nesse espaço vão percorrer o sistema seguindo caminhos construídos por repetição, pré-cursos que foram sulcados pelo transito diferencial de mensagens. O software modifica o hardware. A dinâmica da rede constrói sua configuração. Um caminho muito trilhado é um canal com mais capacidade. Redes de conversações acionadas com grande freqüência são como ruas que ligam bairros construídos em uma cidade. Tornam-se padrões invariantes na geografia urbana. O sistema que resulta dessas múltiplas anisotropias conforma a identidade de um espaço social, quer dizer, uma rede social particular, identificável.

20 – A analogia da rede social com a cidade tem muito poder heurístico. Mas é mais do que isso: as cidades – ou, em termos ainda mais genéricos, as localidades – são redes sócio-territoriais. As cidades são resultados de comportamento coletivo. Elas se auto-organizam, mesmo as que foram planejadas se reorganizam, tornando-se, todas, auto-planejadas, bottom up. Mas só podem fazer isso porque têm artérias, canais, circuitos ligando suas várias localidades (regiões administrativas, bairros, ruas e praças e outros equipamentos e casas). Por esses canais fluem as mensagens. Assim, dentre os múltiplos caminhos percorridos, afirmam-se como principais aqueles mais trafegados.

21 – Tal ocorre com a rede social que está por trás da rede urbana. Mais do que isso: tal só ocorre no espaço urbano (territorial) porque ocorre no espaço das conexões entre pessoas e grupos (social). Isso é a localidade do ponto de vista do desenvolvimento sustentável.

22 – Sustentabilidade é o que chamamos de desenvolvimento com base em um modelo regulacional da mudança, ou seja, um modelo que não é nem (apenas) transformacional, nem (apenas) variacional. Transformações e variações acontecem o tempo todo. Mas transformações não são unicamente o desdobramento de um projeto prefigurado, contido em germe, em um programa arquivado em um genoma. E variações não são o resultado da replicação imperfeita desse projeto diante da mudança totalmente aleatória das circunstâncias. A nova ordem implicada na mudança só pode emergir porque a transformação e a variação passam a ser reguladas. Essa nova ordem emerge quando há regulação da mudança. Quem regula a mudança, desse ponto de vista, é a rede social. Ela se adapta e conserva seus padrões de adaptação. Ela só consegue conservar a adaptação porque reconstrói (ou seja, muda) seus programas de adaptação a partir desse padrão (a identidade de uma rede social). Sustentabilidade, isto é, desse ponto de vista, desenvolvimento, só pode existir quando existe ordem emergente, quer dizer, auto-regulada.

23 – Novamente aqui é evocado um poderoso paralelo heurístico. Se em termos biológicos sustentabilidade é a mesma coisa que vida, em termos sociais sustentabilidade é a mesma coisa que desenvolvimento. A vida cessa quando se rompe a congruência entre o indivíduo e o meio, o que significa incapacidade de manter uma correspondência dinâmica com os outros elementos da rede que possibilite a autopoiese. O desenvolvimento (sustentável) ocorre a não ser enquanto exista auto-regulação social.

24 – Mas há ainda um outro paralelo heurístico. Assim como o processo de vida é análogo ao processo de conhecimento, o processo social – ou seja, o processo de desenvolvimento social de um ponto de vista regulacional (ou para uma teoria sistêmica do desenvolvimento, poder-se-ia dizer) – é também comparável ao processo de conhecimento. É assim que se pode então dizer que a sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Aprendendo o quê? Aprendendo a se auto-regular. Aprender, aqui, significa ser capaz de reconstruir seu programa de adaptação; ou seja, ser capaz de construir um outro (novo) programa a partir da (mesma) matriz de identidade, quer dizer, do mesmo padrão que caracteriza uma sociedade particular porque contém os invariantes da configuração e da dinâmica de sua rede social.

25 – Ocorre que uma sociedade particular capaz de fazer isso é sempre uma sociedade local. É por isso que se diz que todo desenvolvimento (sustentável) é local, porque todo bottom up é local, porque todos os conhecimentos tomados (a partir de baixo) são locais, quer dizer, são tomados com base em avaliações locais das circunstâncias mais amplas ou das condições mais gerais. A emergência (quer dizer, o surgimento de uma nova ordem por auto-regulação) se dá a partir do local; inclusive uma ordem emergente de caráter mais global é construída a partir de interações locais.

26 – Sistemas complexos são capazes de fazer isso, ou seja, de configurar ordem mais global (macrocomportamentos) a partir de regras locais, tornando-se capazes de comportamento emergente, de inteligência coletiva, de swarm intelligence, quando seus elementos se concentram na solução dos mesmos problemas (que são, então, forçosamente, problemas locais).

27 – Sociedades (de massa) não são capazes de fazer isso, mas comunidades (de projeto) sim. Ou melhor, sociedades só são capazes de fazer isso se as comunidades de projeto que se formaram no seu seio fizerem isso, como percebeu Jane Jacobs, em outros termos, há 40 anos. Só comunidades de projeto – que se dedicam, por milhares de micromotivos diferentes das pessoas e grupos que as compõem – à resolução dos mesmos problemas locais, podem ser capazes de adquirir a dinâmica de sistemas complexos adaptativos e, assim, podem ser sustentáveis. É por isso que uma nova visão do desenvolvimento como a que está sendo cogitada aqui aponta para o desenvolvimento local. Desenvolvimento local, nesse sentido, não é uma redução, não é uma particularização. Desenvolvimento local nada mais é do que desenvolvimento comunitário, ou seja, desenvolvimento de comunidades de projeto a partir dessas próprias comunidades. Desenvolvimento, nesse sentido, é uma emergência. E o terreno da emergência é o local.

28 – Só redes podem aprender, mas não é qualquer rede que aprende. Só redes podem ser sustentáveis, mas não é qualquer rede que pode ser sustentável. No que tange a sociedades humanas, só em comunidades de projeto o tecido social pode atingir o grau de tramatura suficiente para ensejar a fenômeno da autorregulação. Comunidades são sociedades que atingiram certo grau de tramatura do seu tecido social. Uma ordem na sociedade global – se não for autocrática – só poderá emergir, quer dizer, vir de baixo, do local.

29 – Tudo isso pode ser analisado por teorias do capital social se considerarmos que o fator do desenvolvimento designado pela noção de capital social nada mais é do que a rede social. É o grau de conectividade, o número de caminhos (medido, se quisermos, pela ‘extensão característica de caminho’ ou pelo ‘comprimento de corrente’) existentes entre os nodos de uma rede social que dá o poder social de uma sociedade, ou seja, a sua capacidade de empoderar os seus elementos para que eles criem, inovem, empreendam, assumam protagonismo – enfim, se desenvolvam na medida em que desenvolvem o coletivo do qual fazem parte. Desenvolvimento (sustentável) é, assim, a coincidência de auto-desenvolvimento e comum-desenvolvimento. Em outras palavras, desenvolvimento é sempre a operação de uma rede de co-desenvolvimentos interdependentes

30 – Qualquer ordem não-autocrática só pode existir se for emergente. Temos aqui uma pista para estabelecer um nexo conotativo entre desenvolvimento e democracia. Assim como o desenvolvimento é o ‘aprender’ de uma comunidade, a democracia é um ‘deixar aprender’. Como pacto de convivência, a democracia é um modo de regulação de conflitos que preserva a existência dos conflitantes, que permite a continuidade de sua experiência de convivência social, que possibilita a expansão continuada dos graus de liberdade para que possa haver cada vez mais experimentação e mais aprendizagem e, por conseguinte, mais desenvolvimento.

31 – É por isso que não pode haver desenvolvimento (tomado em termos regulacionais, na visão proposta aqui, ou seja, desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade) sem democracia. Ou melhor, é por isso que mais desenvolvimento (ou sustentabilidade) implica mais democracia, avanço do processo de democratização, de democratização da democracia. Pode haver crescimento (da renda, da riqueza ou de qualquer outra variável extra-econômica da equação do desenvolvimento, como o conhecimento, por exemplo) sem democracia, mas não pode haver, nesse sentido, desenvolvimento.

32 – E é por isso que desenvolvimento depende da produção de capital social, ou seja, da capacidade de uma sociedade de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Em outras palavras, é por isso que desenvolvimento depende da capacidade de uma sociedade de constituir comunidade, de tramar o seu tecido social a ponto de permitir a eclosão dos fenômenos associados à emergência (multiplicidade, diversidade, reverberação, circuitos de retroalimentação de reforço ou de feedback positivo etc.).

33 – Ora, na sociedade (em termos genéricos; ou seja, nas sociedades humanas) quem pode fazer isso na escala e com a intensidade necessárias é o tipo de agenciamento chamado sociedade civil (ou comunidade, no sentido em que Offe e os teóricos alemães empregam o termo), esfera da realidade social caracterizável por uma racionalidade cooperativa e baseada em uma “lógica” participativa. Não é o Estado, caracterizado por uma racionalidade normativa e baseado em uma “lógica” representativa e delegativa, produtor, por excelência (e por definição) de ordem top down, ainda que o Estado possa também induzir processos bottom up, quando consegue estimular a sociedade civil a produzir capital social (ou quando se abstém de desestimulá-la, renunciando a programas baseados em uma padrão de relação centralizador, assistencialista, clientelista e adversarial). Nem o mercado, caracterizado por uma racionalidade competitiva, muito embora o mercado também produza algum tipo de ordem emergente.

34 – Impõe-se como necessária não a oposição entre essas esferas da realidade social – o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou comunidade) – mas a sua combinação virtuosa que pode surgir quando se busca extrair sinergias da sua atuação combinada. O Estado, sozinho, tenderá a induzir o desenvolvimento a partir de um modelo transformacional (a partir de um plano e de regulações exógenas) e o mercado, deixado ao léu da sua própria “lógica”, o fará – sem querer – a partir de um modelo variacional (apostando na sobrevivência dos que melhor se adaptaram). É por isso que cumpre um papel tão estratégico a participação da sociedade civil, de vez que somente a sociedade civil consegue suportar uma dinâmica endógena regulacional gerando novos macrocomportamentos a partir da composição de muitos quereres, de miríades de micromotivos. Para que tal aconteça, entretanto, é necessário instaurar uma atmosfera de liberdade coletiva, um clima de confiança que encoraje as pessoas, coletivamente, a sonhar e a correr atrás dos próprios sonhos, ensejando seu aprendizado – como soe ocorrer em uma comunidade de projeto sob a democracia.

Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.

Galerias da Democracia

Começando pelo princípio: os “pais fundadores” atenienses, se a democracia tivesse propriamente fundadores. Não tem. E se tivesse haveria uma mãe, que adquiriu reputação de puta (diz-se que pela maledicência dos oligarcas): Aspásia de Mileto. O que temos aqui? Clístenes (em virtude da reforma distrital que propôs e implantou a partir de 508 a.C.), Efialtes (em razão da reforma que retirou o poder político do Areópago, por volta de 461 a.C – uma espécie de suprema corte até então coalhada de oligarcas), Péricles (o principal expoente da primeira democracia), Aspásia (sua amante, entre outras coisas, mas que não podia participar da democracia por duas razões: ser mulher e ser estrangeira) e Protágoras (aqui representando os sofistas, esses seres vulneráveis à democracia que foram vítimas de terríveis e injustos ataques de Platão e, claro, dos oligarcas).

De nenhum desses chegou a nós qualquer escrito. Aliás, não há nenhum texto teórico dos século 5 e 4 defendendo a democracia que tenha sobrevivido (se é que algum foi escrito). Só sabemos que houve democracia, por testemunhos indiretos da época do auge democrático (século 5 a.C.), por Ésquilo (em 472 a.C., Os Persas) e Eurípedes (em 425-16 a.C., As Suplicantes). E também por dois historiadores: Heródoto e Tucídides, que provavelmente nunca se converteram à democracia.

Então a primeira galeria é singela (e nela a imagem de Efialtes é totalmente inconfiável). Não aparece aqui o introdutor (ou os introdutores) do sorteio, sem o qual jamais teríamos ouvido a palavra democracia, pois se fosse para continuar disputando tudo no voto, os remanescentes da aristocracia fundiária, contrários à democracia, que tinham mais recursos para arrebanhar e subornar pessoas, venceriam todas ou quase todas as disputas (como de fato aconteceu, frequentemente, nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes).

A collage of statues of men

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 Pulando mais de dois milênios, passemos agora aos modernos que criaram as bases conceituais para a reinvenção da democracia, começando com Spinoza (vinte anos antes de Locke) (1670), seguido por Locke (1689), Montesquieu (1749), Rousseau (1762), Jefferson (representando os redatores da Declaração de Independências dos EUA) (1776), Madison (representando os federalistas Hamilton e Jay) (1787-88), Paine (1791), Constant (1819), Tocqueville (1835), Mill (1859), Dewey (1937-39), Popper (1945) e Arendt (c. 1950).

A collage of portraits of men

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 Bem, agora vêm os pensadores que fizeram a ponte entre os modernos e os contemporâneos: Berlin (1969), Dahl (1972-98), Havel (1978), Lefort (1981), Bobbio (1981-84), Castoriadis (1986), Dahrendorf (1990), Rawls (1993), Maturana (1993), Sen (1999), Przeworski (1985), Fukuyama (1995) e Rancière (2005).

 Em seguida, mais duas galerias de contemporâneos, cujos nomes os leitores não vão ter muita dificuldade de associar às imagens abaixo; embora aqui estejam em ordem alfabética: Applelbaum, Carothers, Castells, Coppedge, Diamond, Foa, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Krauze, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, Naim, O’Donnell, Plattner, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt. Nem todos, porém, estão retratados.

A collage of men wearing suits

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A collage of several people

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 Claro que nas duas galerias acima não estão todos os pensadores (ou autores) contemporâneos da democracia. São apenas alguns exemplos destacados.

No entanto, estudar esses autores não é o único caminho – nem talvez o mais curto – para que as pessoas despertem para a democracia. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, ela se aprende melhor pelo avesso. Em outras palavras, aprender democracia é desaprender autocracia. Um dos caminhos, portanto, é explorar as distopias, nas quais os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase) e podem ser mais facilmente identificados. O reconhecimento desses padrões na vida cotidiana é o melhor indicador de aprendizagem da democracia.

Então, a próxima galeria reúne os principais distopistas: Jerome K. Jerome (1981 em A nova utopia); Yevgeny Zamyatin (1921 em Nós); Aldous Huxley (1932 em Admirável mundo novo); Arthur Koestler (1940 em O zero e o infinito, ou melhor, Escuridão ao meio dia); George Orwell (1945, em A revolução dos bichos, ou melhor, Fazenda dos animais; e também 1949, em 1984); Ray Bradbury (1953 em Fahrenheit 451); William Golding (1954 em O senhor das moscas); e Daniel Wallace (2015 em Star Wars: manual do império). Aqui, novamente, não estão todos; por exemplo, falta, entre outros, Margaret Atwood (1985 em O contro da aia).

 Por último, há os grandes ficcionistas (ditos às vezes “científicos”), fundadores de mundos imaginários que, ainda mais que os distopistas considerados acima, revelam uma camada interpretativa das configurações sociais que permitem a ereção de sistemas autocráticos. Vale a pena destacar pelo menos três: Isaac Asimov (1951-53, pela trilogia Fundação, e 1982-93 pela extensão da série); Frank Herbert (1965-85 pela série Duna) e Philip Dick (1962 pelo O homem do castelo alto).

A collage of men with beards

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 Algumas obras fundamentais dos construtores da “tradição” democrática moderna, de Baruch de Spinoza a Amartya Sen, estão disponíveis na nota Tratamento para o analfabetismo democrático. É possível que, futuramente, sejam disponibilizadas também as obras principais dos demais presentes nas galerias acima.