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Um programa para o centro democrático

Uma coisa é certa. O centro democrático definirá o resultado da próxima eleição. Tenha ou não candidato.

Mas se o centro democrático não tiver candidato em 2026 será obrigado a votar em um dos polos populistas para evitar a vitória do outro polo populista. Ou a se abster, votar branco ou nulo.

Se o centro democrático apresentar um candidato em 2026 e ele não for ao segundo turno, deverá ser alguém com um programa democrático, articulado com partidos ou setores políticos de centro e com extensas camadas da sociedade, disposto a continuar construindo a alternativa não-populista para 2030. Se esse candidato não passar ao segundo turno, não deve aderir a um governo populista vencedor, seja ele qual for, por medo de perder holofotes.

Em todo caso, 2030 passa por 2026. Se uma alternativa não-populista não se apresentar em 2026, o horizonte estratégico dos democratas vai se deslocar para 2034. Pois se já não estiver ativo um movimento democrático em 2026, não dará tempo para articular uma alternativa para 2030. Na boca da urna de 2030 é que isso não ocorrerá.

Todavia, 2026 é para valer. Está longe de ser certo que Lula (ou alguém indicado por ele) vá vencer as próximas eleições. As tendências estão agora mais claras. Essa é a posição da maioria dos brasileiros hoje: nem Bolsonaro, nem qualquer bolsonarista-raiz; nem Lula, nem qualquer lulopetista-raiz. Quem duvidar disso deve analisar as pesquisas. Essa realidade estatística, entretanto, ainda não foi transformada em uma realidade política.

Repetindo. Se Bolsonaro não será eleito (está inelegível, não será anistiado e sim, provavelmente, preso), um bolsonarista raiz também não deve ser eleito. Da mesma forma, Lula não deve ser reeleito ou um lulopetista indicado por ele também não deve ser eleito. Essa é a única maneira de escapar dos populismos que parasitam a nossa democracia e acabar com a polarização.

Não adianta instrumentalizar a justiça para desmoralizar politica e moralmente Bolsonaro e o bolsonarismo. Ao que tudo indica Lula, se perder, não perderá a eleição de 2026 para o bolsonarismo. Perderá para o antilulismo e para o antipetismo, que são hoje muito mais amplos.

Dificilmente Lula vencerá as eleições no Sul, no Centro-Oeste e no Sudeste do país. Se vencer no Norte e no Nordeste será por uma margem muito menor do que nas eleições passadas. Logo, nas condições normais de temperatura e pressão, Lula tende a perder as próximas eleições. O problema é que elas podem ocorrer em condições anormais. Neste momento, há uma clara interferência política – proveniente do judiciário e de parte da imprensa (chapa-branca) atuando como partidos políticos – para antecipar a campanha eleitoral, tentando tornar inimigo da democracia qualquer um que venha a herdar os votos de Bolsonaro, mesmo que não seja bolsonarista raiz e não tenha cometido qualquer crime. Querem vender a ideia de que se Lula (ou alguém do PT) não for eleito será um golpe dos fascistas. Sem essa interferência indevida, o mais provável é que Lula não seja reeleito.

Todavia, as chances são enormes de interferência indevida do judiciário e dos meios de comunicação alinhados ao governo no processo eleitoral (nas TVs amigas a campanha antecipada Lula 2026 já está em curso há tempos, diariamente). Por isso não se pode cravar que Lula (ou alguém indicado por ele) vai perder a eleição de 2026.

O centro democrático é contra a anistia aos golpistas bolsonaristas do final de 2022. Mas não tem a covardia de não lembrar que, na prática, o STF concedeu recentemente anistia a Lula, Dirceu e a outros petistas envolvidos no mensalão ou no petrolão. Seus processos foram anulados. Para todos os efeitos, isso equivale a esquecer os crimes que cometeram. Anistia geral e irrestrita. Nem o Emílio Odebrecht ficou preso.

De qualquer modo, só há uma solução democrática para o Brasil. Impedir que populistas ocupem novamente o governo para continuar parasitando nosso regime. Isso vale para os populistas de direita (bolsonaristas) e para os populistas de esquerda (lulopetistas).

Sim, nós – respaldados pela vontade política de mais metade dos brasileiros e brasileiras – apostamos nessa solução e vamos trabalhar para concretizá-la.

Para começar sugerimos os seguintes pontos programáticos que devem ser discutidos, aperfeiçoados e desenvolvidos a partir do diálogo com os partidos e setores políticos do centro democrático e com a sociedade.

• O parlamentarismo e o voto distrital misto

• O voto facultativo e as candidaturas independentes (ou avulsas)

• O municipalismo, baseado no localismo cosmopolita e o aumento do protagonismo das cidades (por meio da promoção do desenvolvimento local sustentável)

• A democratização da política e das suas instituições, sobretudo dos partidos (com o fim da partidocracia)

• Mudanças das regras eleitorais, inclusive para evitar a captura das eleições pelos populismos e o seu hackeamento pelos extremismos (com a introdução de inovações como, por exemplo, o voto em mais de um candidato, o voto ranqueado ou o voto negativo)

• A construção de novos mecanismos de interação democrática dos cidadãos (não-plebiscitários e não-assembleísticos) para influir no Estado

• A sustentabilidade como grande referencial para o desenvolvimento

• Uma economia de mercado, competitiva, que não queira impor à sociedade a sua racionalidade (ou seja, que parta da ideia de que a economia é que deve ser de mercado e competitiva, não a sociedade, que deve ser cada vez mais colaborativa)

• A redução das desigualdades socioeconômicas e o enfrentamento da pobreza pela via da promoção do desenvolvimento social e, emergencialmente, pela adoção de uma renda mínima cidadã, mas sobretudo por meio de outros mecanismos de inclusão baseados no investimento em capital humano e em capital social

• A defesa intransigente da ciência diante do ressurgimento de crenças que querem desacreditá-la e o investimento prioritário em ciência básica e aplicada e em tecnologia

• Uma nova educação para o século 21, que não pode ser repetição ou mero aperfeiçoamento da educação praticada nos séculos passados, baseada no desenvolvimento de uma inteligência tipicamente humana (que não será substituída pela inteligência artificial, mas a ela se somará)

• A saúde focada em prevenção e na criação de ambientes físicos e sociais saudáveis e o fortalecimento e expansão do sistemas públicos de saúde

• A promoção dos direitos humanos tendo como referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seus necessários aperfeiçoamentos

• A segurança pública como ação social e policial, não como guerra contra o crime

• Uma política externa orientada para paz e pela defesa da democracia e não por visões ideológicas, que vise buscar um novo lugar para o Brasil no mundo: o lugar de grande parceiro dos povos que se articulam para alcançar o bem comum para a humanidade em todas as áreas (científicas, tecnológicas, comerciais, de defesa dos direitos humanos em escala global e de preparação para o enfrentamento das mudanças globais que afetam a vida e a convivência social das populações do planeta, como as pandemias e epidemias, as doenças endêmicas e as catástrofes provocadas pelas mudanças climáticas, pelo aquecimento global ou pela predação do meio ambiente).

Onde a democracia não funciona bem

Versão preliminar. Sem revisão, sem notas, sem referências e ainda sem conclusão.

RESUMO

Este estudo pretende mostrar que não conformam ambientes favoráveis à democracia: 1 – países que têm sistemas de governo presidencialistas plenos; 2 – países muito grandes (com mais de 100 milhões de habitantes); 3 – países cujas populações são majoritariamente fundamentalistas religiosas; 4 – países em guerra; e 5 – países com regimes parasitados por governos populistas.

Temos hoje no mundo 65 países com sistemas de governo presidencialistas plenos. Desses, só temos dois países com democracia plena (The Economist Intelligence Unit), ou seja, 3%; e cinco países com democracia liberal (V-Dem), ou seja, 7,7%. A maioria dos países com sistemas de governo presidencialistas plenos é composta por autocracias.

Temos hoje no mundo 16 países muito grandes, com mais de 100 milhões de habitantes. Na lista de todos os (dezesseis) países com mais de 100 milhões de habitantes só temos uma democracia plena (segundo a EIU): o Japão (o que dá 6%). E só temos duas democracias liberais (segundo o V-Dem): os EUA e o Japão (ou seja, 12,5%). Da lista toda temos 11 autocracias, ou seja, quase 70% (68,75%).

Temos hoje no mundo 48 países cuja população é majoritariamente muçulmana e 1 país (Myanmar) cuja maioria da população é budista (theravada) com traços significativos de intolerância às demais religiões. Se usarmos a classificação do V-Dem, de 48 países de maioria islâmica só escapam quatro que não têm regimes autocráticos: Albânia, Gâmbia, Nigéria, Senegal (sendo que na Nigéria a população muçulmana é pouco mais de 50%). Claro que não há nenhuma democracia liberal ou plena. Mais de 90% (91,6%) são ditaduras (autocracias eleitorais ou autocracias fechadas). Myanmar, por sua vez, também é uma autocracia fechada.

Temos hoje no mundo 51 países em guerra (considerando conflitos armados com mais de mil mortes anuais ou crises humanitárias graves) ou estado de guerra persistente. Desses, 41 são autocracias (ou seja, mais de 80%). Só há uma democracia liberal (V-Dem). Não há nenhuma democracia plena (EIU).

Temos hoje no mundo, pelo menos, cerca de 21 países com regimes eleitorais parasitados por governos populistas, sejam neopopulistas (ditos de esquerda), sejam populistas-autoritários ou nacional-populistas (ditos de direita ou extrema-direita). São 10 governos neopopulistas e 10 governos populistas-autoritários, sendo que 1 ainda não se enquadra bem nas duas categorias (o governo da Argentina). Da lista inteira a metade é de ditaduras e só há 1 democracia liberal (EUA), sendo que o V-Dem, no seu relatório de 2025, incluiu também a África do Sul (que não vamos considerar aqui, pois deve ter sido um erro – na interpretação mais benévola). Segundo a The Economist Intelligence Unit, não há nenhuma democracia plena na lista.

INTRODUÇÃO

Por óbvio, a democracia não se aplica a regimes não-eleitorais e a regimes eleitorais autocráticos (pois seria uma contradição em termos: democracia é o oposto de autocracia).

Tomamos como referência para o presente estudo as classificações de regimes políticos das três mais conceituadas instituições que monitoram os regimes políticos no mundo: a The Economist Intelligence Unit (EIU), o Varieties of Democracy (V-Dem) e a Freedom House (FH).

O V-Dem classifica os regimes em quatro tipos: Liberal Democracy (Democracia Liberal), Electoral Democracy (Democracia Eleitoral), Electoral Autocracy (Autocracia Eleitoral) e Closed Autocracy (Autocracia Fechada). O regime brasileiro é classificado como Electoral Democracy. O V-Dem adota seis índices: Democracia Liberal (uma espécie de síntese, chamado LDI), Democracia Eleitoral, Componente Liberal, Componente Igualitário, Componente Participatório, Componente Deliberativo. Isso significa que, para o V-Dem, existem democracias não-liberais (que ele chama de democracias eleitorais), posto que, se fossem liberais, estariam na primeira categoria.

The Economist Intelligence Unit classifica os regimes em quatro tipos: Full Democracy (Democracia Plena), Flawed Democracy (Democracia Defeituosa), Hybrid Regime (Regime Híbrido) e Authoritarian Regime (Regime Autoritário). O regime brasileiro é classificado como Flawed Democracy. A EIU adota cinco índices: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política e Liberdades Civis.

A Freedom House classifica os regimes em três tipo: Free (Livres), Partly Free (Parcialmente Livres) e Not Free (Não Livres). Basicamente a FH adota dois índices: Direitos Políticos e Liberdades Civis.

Para começar seria interessante dizer onde, inequivocamente, a democracia funciona bem (como regime político instalado em Estados-nações, pois não vamos tratar aqui da democracia como modo-de-vida em não-países).

Vamos tomar como referência o cruzamento das democracias plenas (full democracies) da The Economist Intelligence Unit (EIU), segundo o relatório Democracy Index 2024 (intitulado “What’s wrong with representative democracy?”), com as democracias liberais (liberal democracies) do V-Dem, segundo o relatório V-Dem 2025 (intitulado “25 Years of Autocratization – Democracy Trumped?”). Obviamente, todos os países resultantes desse cruzamento, segundo o relatório Freedom in the World 2025 (intitulado “The uphill battle to safeguard rights”), da Freedom House (FH), são considerados livres (free countries). A lista resultante desse cruzamento, de 19 países, é a seguinte (em ordem alfabética):

  1. Alemanha
  2. Austrália
  3. Chequia
  4. Costa Rica
  5. Dinamarca
  6. Espanha
  7. Estônia
  8. Finlândia
  9. Holanda
  10. Irlanda
  11. Islândia
  12. Japão
  13. Luxemburgo
  14. Noruega
  15. Nova Zelândia
  16. Suécia
  17. Suíça
  18. Taiwan
  19. Uruguai

Consideramos, portanto, como países com regimes inequivocamente democráticos, onde a democracia funciona bem, os 19 países que são, simultaneamente, democracias plenas (EIU), democracias liberais (V-Dem) e livres (FH).

Isso não significa, entretanto, que apenas esses 19 países têm regimes que possam ser considerados democráticos. Se, em vez da interseção, considerarmos a conjunção das 25 democracias plenas (da EIU), com as 29 democracias liberais (do V-Dem), a lista resultante, de 34 países (excluída a África do Sul), seria mais abrangente:

  1. África do Sul
  2. Alemanha
  3. Australia
  4. Austria
  5. Barbados
  6. Bélgica
  7. Canadá
  8. Chequia
  9. Chile
  10. Costa Rica
  11. Dinamarca
  12. Espanha
  13. Estônia
  14. EUA
  15. Finlândia
  16. França
  17. Grécia
  18. Holanda
  19. Irlanda
  20. Islândia
  21. Itália
  22. Jamaica
  23. Japão
  24. Letônia
  25. Luxemburgo
  26. Maurício
  27. Noruega
  28. Nova Zelândia
  29. Portugal
  30. Reino Unido
  31. Seicheles
  32. Suécia
  33. Suíça
  34. Taiwan
  35. Uruguai

Claro que se incluirmos os 85 regimes livres (da FH), a lista ficaria imensa, mas os critérios da Freedom House são muito mais lassos, chegando a incluir, como livres, regimes híbridos (EIU), como a Romênia e democracias claramente não-liberais (V-Dem), talvez tendentes a virarem autocracias, como a Eslováquia. Então é melhor não.

1 – Democracia em sistemas de governo fortemente presidencialistas

O chamado “presidencialismo imperial” é um obstáculo ao bom funcionamento da democracia. É o que estamos vendo agora nos Estados Unidos sob um presidente que segue um plano de exacerbação da sua autoridade monocrática: Donald Trump.

Vejamos a lista de países com sistemas presidencialistas plenos (que exclui sistemas semipresidencialistas, como França e Portugal, onde há um primeiro-ministo com poderes significativos ao lado do presidente). A classificação dos regimes na lista abaixo é a do V-Dem 2025.

  1. Afeganistão – Sob o atual regime talibã, o sistema é presidencialista em estrutura, embora autoritário. Autocracia Fechada.
  2. Angola – Presidente eleito lidera o executivo. Autocracia Eleitoral.
  3. Argentina – Eleição direta do presidente desde 1853, com poderes executivos fortes. Democracia Eleitoral.
  4. Benim – Sistema presidencialista desde a transição democrática em 1991. Autocracia Eleitoral.
  5. Bolívia – Presidente eleito diretamente com amplo controle executivo. Democracia Eleitoral.
  6. Brasil – Presidencialismo adotado desde 1889, com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  7. Burundi – Presidente como chefe de Estado e governo, eleito diretamente. Autocracia Eleitoral.
  8. Camarões – Sistema presidencialista com forte centralização no presidente. Autocracia Eleitoral.
  9. Chade – Presidente domina o executivo, eleito por voto popular. Autocracia Eleitoral.
  10. Chile – Presidencialismo com eleição direta desde o século XIX. Democracia Liberal.
  11. Colômbia – Sistema presidencialista consolidado desde 1886. Democracia Eleitoral.
  12. Comores – Presidente eleito diretamente como líder do executivo. Autocracia Eleitoral.
  13. Congo, República do – Sistema presidencialista com eleição direta. Autocracia
  14. Congo, República Democrática do – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Eleitoral.
  15. Coreia do Sul – Presidencialismo desde 1948, com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  16. Costa Rica – Um dos presidencialismos mais antigos e estáveis das Américas. Democracia Liberal.
  17. Costa do Marfim – Presidente eleito diretamente com poderes executivos. Autocracia Eleitoral.
  18. Chipre – Sistema presidencialista pleno, sem primeiro-ministro. Democracia Eleitoral.
  19. Djibouti – Presidente domina o governo, eleito pelo povo. Autocracia Fechada.
  20. Dominicana, República – Presidencialismo com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  21. El Salvador – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Eleitoral.
  22. Equador – Sistema presidencialista com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  23. Estados Unidos – Modelo clássico de presidencialismo desde 1787. Democracia Liberal.
  24. Filipinas – Inspirado no modelo americano, com eleição direta. Autocracia Eleitoral.
  25. Gabão – Presidente eleito com forte controle executivo. Autocracia Fechada.
  26. Gâmbia – Sistema presidencialista desde a independência. Democracia Eleitoral.
  27. Gana – Presidencialismo adotado na transição democrática dos anos 1990. Democracia Eleitoral.
  28. Guatemala – Presidente eleito diretamente como líder do executivo. Democracia Eleitoral.
  29. Guiné – Sistema presidencialista, embora com instabilidade política. Autocracia Fechada.
  30. Guiné-Bissau – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Eleitoral.
  31. Guiné Equatorial – Presidencialismo autoritário com eleição formal. Autocracia Eleitoral.
  32. Haiti – Sistema presidencialista, apesar de crises frequentes. Autocracia Fechada.
  33. Honduras – Presidente eleito diretamente com poderes executivos. Democracia Eleitoral.
  34. Indonésia – Presidencialismo pleno desde reformas pós-1998. Autocracia Eleitoral.
  35. Irã – Presidencialismo combinado com teocracia; presidente eleito diretamente. Autocracia Eleitoral.
  36. Quênia – Sistema presidencialista consolidado desde 2010. Democracia Eleitoral.
  37. Libéria – Presidencialismo inspirado no modelo americano. Democracia Eleitoral.
  38. Malawi – Presidente eleito como chefe de Estado e governo. Democracia Eleitoral.
  39. Maldivas – Sistema presidencialista com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  40. México – Presidencialismo desde o século XIX, com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  41. Moçambique – Presidente como líder do executivo, eleito diretamente. Autocracia Eleitoral.
  42. Namíbia – Sistema presidencialista desde a independência em 1990. Democracia Eleitoral.
  43. Nicarágua – Presidente eleito com forte controle executivo. Autocracia
  44. Nigéria – Presidencialismo federal com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  45. Palau – Sistema presidencialista inspirado nos EUA.
  46. Panamá – Presidente como chefe de Estado e governo. Democracia Eleitoral.
  47. Paraguai – Presidencialismo com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  48. Peru – Sistema presidencialista com histórico de instabilidade. Democracia Eleitoral.
  49. Ruanda – Presidente domina o executivo, eleito pelo povo. Autocracia Eleitoral.
  50. Seichelles – Presidencialismo com eleição direta. Democracia Liberal.
  51. Serra Leoa – Sistema presidencialista desde a independência. Autocracia Eleitoral.
  52. Sri Lanka – Presidencialismo pleno desde a constituição de 1978. Democracia Eleitoral.
  53. Sudão – Sistema presidencialista, embora com forte influência militar. Autocracia Fechada.
  54. Sudão do Sul – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Fechada.
  55. Suriname – Presidencialismo com eleição indireta pelo legislativo. Democracia Eleitoral.
  56. Tajiquistão – Sistema presidencialista com características autoritárias. Autocracia Eleitoral.
  57. Tanzânia – Presidente eleito diretamente como líder do executivo. Autocracia Eleitoral.
  58. Togo – Presidencialismo com eleição direta, mas autoritário. Autocracia Eleitoral.
  59. Turcomenistão – Presidencialismo fortemente centralizado. Autocracia Fechada.
  60. Uganda – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Eleitoral.
  61. Uruguai – Sistema presidencialista com eleição direta. Democracia Liberal.
  62. Uzbequistão – Presidencialismo autoritário com eleição formal. Autocracia Fechada.
  63. Venezuela – Presidencialismo com eleição direta, mas contestado. Autocracia Eleitoral.
  64. Zâmbia – Sistema presidencialista com eleição direta. Democracia Eleitoral.
  65. Zimbábue – Presidente como chefe de Estado e governo. Autocracia Eleitoral.

A primeira evidência é que a maioria dos países com sistemas de governo presidencialistas plenos é composta por autocracias. A segunda evidência da lista acima é que nela só há duas democracias plenas (EIU): Costa Rica e Uruguai (o que corresponde a 3%); e só há cinco regimes considerados (pelo V-Dem) democracias liberais: Chile, Costa Rica, EUA, Seicheles e Uruguai (o que dá 7,7%).

2 – Democracia em países muito grandes

Países muito grandes, com mais de 100 milhões de habitantes, não constituem bons ambientes para o funcionamento de regimes democráticos.

Na lista de todos (os dezesseis) países com mais de 100 milhões de habitantes só temos uma democracia plena (segundo a EIU): o Japão. Nessa lista só temos duas democracias liberais (segundo o V-Dem): os EUA e o Japão. A maioria esmagadora é de ditaduras.

Examinemos os regimes políticos desses países grandes (considerando as classificações do V-Dem e da The Economist Intelligence Unit):

  1. India 1,450,935,791 – Autocracia Eleitoral | Democracia Defeituosa.
  2. China 1,419,321,278 – Autocracia Fechada | Regime Autoritário.
  3. Estados Unidos 345,426,571 – Democracia Liberal | Democracia Defeituosa.
  4. Indonésia 283,487,931 – Autocracia Eleitoral | Democracia Defeituosa.
  5. Paquistão 251,269,164 – Autocracia Eleitoral | Regime Autoritário.
  6. Nigéria 232,679,478 – Autocracia Eleitoral | Regime Híbrido.
  7. Brasil 211,998,573 – Democracia Eleitoral | Democracia Defeituosa.
  8. Bangladesh 173,562,364 – Autocracia Eleitoral | Regime Híbrido.
  9. Russia 144,820,423 – Autocracia Eleitoral | Regime Autoritário.
  10. Etiópia 132,059,767 – Autocracia Eleitoral | Regime Autoritário.
  11. México 130,861,007 – Democracia Eleitoral | Regime Híbrido.
  12. Japão 123,753,041 – Democracia Liberal | Democracia Plena.
  13. Egito 116,538,258 – Autocracia Eleitoral | Regime Autoritário.
  14. Filipinas 115,843,670 – Autocracia Eleitoral | Democracia Defeituosa.
  15. DR Congo 109,276,265 – Autocracia Eleitoral | Regime Autoritário.
  16. Vietnam 100,987,686 – Autocracia Fechada | Regime Autoritário.

Mas há ainda os países que crescem mais. Todos eles são ambientes desfavoráveis à democracia (e também ao desenvolvimento humano e social). Vejamos, na imagem abaixo, as previsões de crescimento para 2050 e 2100.

A chart of the country's number

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Entre os países cuja população vai crescer mais até 2100, temos Paquistão, Nigéria, Congo, Etiópia, Tanzania, Angola e Sudão – uma clara predominância de autocracias.

3 – Democracia em países cujas populações são majoritariamente fundamentalistas religiosas

Eis a lista dos 48 países cuja população é majoritariamente muçulmana e 1 país (Myanmar) cuja maioria da população é budista (theravada) com traços significativos de intolerância às demais religiões. Advirta-se que ser muçulmano não significa necessariamente ser fundamentalista ou intolerante com outras crenças: por exemplo, na Malásia há mais pluralismo do que na Mauritânia. A Índia não foi incluída na lista, mas o crescimento do hinduísmo Hindutva e de grupos como o RSS e BJP, sob o governo nacional-populista de Narendra Modi – que tenta emplacar seu projeto mítico e autocrático Bharat -, tem fortes traços fundamentalistas.

  1. Afeganistão: Quase 99,7% da população é muçulmana, majoritariamente sunita, com uma minoria xiita. Autocracia Fechada.
  2. Albânia: Aproximadamente 58-60% são muçulmanos, predominantemente sunitas, com uma minoria bektashi. Democracia Eleitoral.
  3. Arábia Saudita: Cerca de 97-99% da população é muçulmana, majoritariamente sunita (wahhabita), com uma minoria xiita. Autocracia Fechada.
  4. Argélia: Cerca de 99% são muçulmanos sunitas, com pequenas minorias xiitas e ibaditas. Autocracia Eleitoral.
  5. Azerbaijão: Cerca de 96% são muçulmanos, majoritariamente xiitas, com uma minoria sunita. Autocracia Eleitoral.
  6. Bahrein: Aproximadamente 70-75% são muçulmanos, com uma maioria xiita e uma minoria sunita. Autocracia Fechada.
  7. Bangladesh: Cerca de 90% são muçulmanos, predominantemente sunitas. Autocracia Eleitoral.
  8. Brunei: Aproximadamente 80-82% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  9. Burkina Faso: Cerca de 60-62% são muçulmanos, majoritariamente sunitas. Autocracia Fechada.
  10. Cazaquistão: Aproximadamente 70% são muçulmanos, predominantemente sunitas. Autocracia Eleitoral.
  11. Chade: Cerca de 55-58% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, com minorias xiitas. Autocracia Eleitoral.
  12. Comores: Quase 98% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral.
  13. Djibouti: Aproximadamente 97% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  14. Egito: Cerca de 90% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, com uma minoria copta cristã. Autocracia Eleitoral.
  15. Emirados Árabes Unidos: Cerca de 76% são muçulmanos, predominantemente sunitas, com uma minoria xiita. Autocracia Fechada.
  16. Gâmbia: Aproximadamente 95% são muçulmanos sunitas. Democracia Eleitoral.
  17. Guiné: Cerca de 85% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  18. Guiné-Bissau: Aproximadamente 50-55% são muçulmanos sunitas, com uma população religiosa diversa. Autocracia Eleitoral.
  19. Indonésia: Cerca de 87% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, o maior país muçulmano em população. Autocracia Eleitoral.
  20. Irã: Quase 99% são muçulmanos, com cerca de 90-95% xiitas e 5-10% sunitas. Autocracia Eleitoral.
  21. Iraque: Aproximadamente 97% são muçulmanos, com cerca de 60-65% xiitas e 32-37% sunitas. Autocracia Eleitoral.
  22. Jordânia: Cerca de 97% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  23. Kuwait: Aproximadamente 75% são muçulmanos, com uma divisão entre sunitas (maioria) e xiitas. Autocracia Fechada.
  24. Líbano: Cerca de 60% são muçulkanos, divididos quase igualmente entre sunitas e xiitas. Autocracia Fechada.
  25. Líbia: Quase 97% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  26. Malásia: Cerca de 61% são muçulmanos sunitas. Democracia Eleitoral.
  27. Maldivas: Praticamente 100% são muçulmanos sunitas, com a cidadania restrita a muçulmanos. Democracia Eleitoral.
  28. Mali: Aproximadamente 94% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  29. Marrocos: Cerca de 99% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  30. Mauritânia: Quase 100% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral.
  31. Níger: Cerca de 99% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  32. Myanmar: Mais de 80% da população é budista. Autocracia Fechada.
  33. Nigéria: Aproximadamente 50-53% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, com minorias xiitas (estimativas variam devido à população dividida com cristãos). Democracia Eleitoral.
  34. Omã: Cerca de 86% são muçulmanos, com uma maioria ibadita, além de sunitas e xiitas. Autocracia Fechada.
  35. Paquistão: Aproximadamente 96-97% são muçulmanos, com cerca de 80% sunitas e 15-20% xiitas. Autocracia Eleitoral.
  36. Palestina (Cisjordânia e Gaza): Cerca de 98% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral e Autocracia Fechada.
  37. Qatar: Aproximadamente 68-70% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, com uma minoria xiita. Autocracia Fechada.
  38. Quirguistão: Cerca de 88% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral.
  39. Senegal: Aproximadamente 96% são muçulmanos sunitas. Democracia Eleitoral.
  40. Serra Leoa: Cerca de 78% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral.
  41. Somália: Quase 99% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  42. Sudão: Cerca de 97% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  43. Síria: Aproximadamente 87% são muçulmanos, com cerca de 74% sunitas e 13% alauitas/xiitas. Autocracia Fechada.
  44. Tadjiquistão: Cerca de 96% são muçulmanos, majoritariamente sunitas, com uma minoria ismaelita. Autocracia Eleitoral.
  45. Tunísia: Quase 99% são muçulmanos sunitas. Autocracia Eleitoral.
  46. Turcomenistão: Aproximadamente 93% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  47. Turquia: Cerca de 98% são muçulmanos, predominantemente sunitas, com uma minoria alevita. Autocracia Eleitoral.
  48. Uzbequistão: Aproximadamente 88% são muçulmanos sunitas. Autocracia Fechada.
  49. Iêmen: Quase 99% são muçulmanos, com cerca de 65% sunitas e 35% xiitas (principalmente zaiditas). Autocracia Fechada.

Se usarmos a classificação do V-Dem, de 48 países de maioria islâmica só escapam quatro que não têm regimes autocráticos: Albânia, Gâmbia, Nigéria, Senegal (sendo que na Nigéria a população muçulmana é pouco mais de 50%). Claro que não há nenhuma democracia liberal ou plena. Mais de 90% (91,6%) são ditaduras (autocracias eleitorais ou autocracias fechadas). Myanmar, por sua vez, também é uma autocracia fechada.

4 – Democracia em países em guerra

Países em guerra (ou estado de guerra prolongado, mesmo que sem derramamento de sangue) não são bons ambientes para a democracia. Os dois exemplos mais recentes são a Ucrânia (que depois de ter sido invadida pela Rússia decaiu de democracia eleitoral para autocracia eleitoral) e Israel (que era democracia liberal antes da guerra em Gaza e agora virou democracia apenas eleitoral) – tudo segundo o V-Dem.

Eis a lista dos 51 países em guerra (considerando conflitos armados com mais de mil mortes anuais ou crises humanitárias graves) ou estado de guerra persistente. Desses, 41 são autocracias (ou seja, mais de 80%). Só há uma democracia liberal (V-Dem): os Estados Unidos. Não há nenhuma democracia plena (EIU).

  1. Afeganistão: Guerra civil e insurgência terrorista | Autocracia Fechada.
  2. Argélia: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  3. Bangladesh: Crise de governança e conflitos civis. | Autocracia Eleitoral.
  4. Benim: Insurgência terrorista. | Autocracia (sem classificação V-Dem).
  5. Burkina Faso: Insurgência terrorista. | Autocracia Fechada.
  6. Camarões: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  7. Chade: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  8. China: Preparação para invasão e anexação de Taiwan e disputas no Mar do Sul da China. | Autocracia Fechada.
  9. Colômbia: Guerra civil e guerra contra o narcotráfico. | Democracia Eleitoral.
  10. Coreia do Norte: Tensões com os EUA e testes de armas. | Autocracia Fechada.
  11. Costa do Marfim: Insurgência terrorista. | Autocracia Fechada.
  12. Equador: Conflito civil e guerra contra gangues. | Democracia Eleitoral.
  13. Estados Unidos: Ameaças de violação da soberania territorial da Groelândia (Dinamarca) e do Panamá (Canal). Ameaça de bombardeio ao Irã. Ameaça de expulsão da população palestina de Gaza e de anexação (ou apropriação) da Faixa. Guerra direta contra o Iêmem (Houthis). Guerra comercial global contra o mundo exterior, em especial contra as nações democráticas e contra algumas ditaduras, sobretudo a da China (mas não contra as ditaduras da Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Cuba). | Democracia Liberal.
  14. Etiópia: Conflitos étnicos e políticos. | Autocracia Eleitoral.
  15. Filipinas: Disputas no Mar do Sul da China. | Autocracia Eleitoral.
  16. Gana: Insurgência terrorista. | Democracia Eleitoral.
  17. Haiti: Guerra civil e violência de gangues. | Autocracia Fechada.
  18. Iêmen: Guerra civil. Guerra contra Israel e EUA (Houthis) | Autocracia Fechada.
  19. Índia: Conflito em Kashmir. | Autocracia Eleitoral.
  20. Irã: Guerra contra Israel por meio de uma dúzia de organizações terroristas coordenadas pela IRGC. Netwar contra o mundo democrático, sobretudo os EUA. | Autocracia Eleitoral
  21. Iraque: Insurgência terrorista e instabilidade política. | Autocracia Eleitoral.
  22. Israel: Guerra contra o Irã e seus braços terroristas na Palestina (Hamas e Jihad Islâmica), no Líbano (Hezbollah), no Iraque, na Síria, no Iêmem (Houthis). Guerra aberta contra Gaza e estado de guerra com Cisjordânia.
  23. Líbano: Conflitos com Israel e instabilidade interna. | Democracia eleitoral (Decaiu de democracia liberal após o início da guerra em Gaza).
  24. Líbia: Insurgência terrorista e conflitos entre facções. | Autocracia Fechada.
  25. Mali: Insurgência terrorista. | Autocracia Fechada.
  26. Marrocos: Insurgência terrorista. | Autocracia Fechada.
  27. Mauritânia: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  28. México: Guerra contra o narcotráfico. | Democracia Eleitoral.
  29. Moçambique: Guerra civil. | Autocracia Eleitoral.
  30. Moldávia: Tensões com a Rússia. | Democracia Eleitoral.
  31. Myanmar: Guerra civil. | Autocracia Fechada.
  32. Níger: Insurgência terrorista. | Autocracia Fechada.
  33. Nigéria: Insurgência terrorista. | Democracia Eleitoral.
  34. Palestina (Gaza): Guerra aberta contra Israel | Autocracia Fechada.
  35. Palestina (Cisjordânia): Estado de guerra com Israel. | Autocracia Eleitoral.
  36. Paquistão: Conflitos com o Afeganistão e instabilidade interna. | Autocracia Eleitoral
  37. República Centro-Africana: Guerra civil. | Autocracia Fechada.
  38. República Democrática do Congo: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  39. Rússia: Guerra contra a Ucrânia. Ameaça de invasão da Polônia, da Estônia, da Letônia, da Lituânia, da Moldávia, da Georgia, da Finlândia e até da Suécia. Liderança da netwar global contra o mundo democrático. | Autocracia Eleitoral.
  40. Sérvia: Tensões com o Kosovo. | Autocracia Eleitoral.
  41. Síria: Guerra civil e intervenções externas. | Autocracia Fechada.
  42. Somália: Guerra contra o Al-Shabaab. | Autocracia Fechada.
  43. Sudão do Sul: Violência étnica e conflitos políticos. | Autocracia Fechada.
  44. Sudão: Guerra civil. | Autocracia Fechada.
  45. Tanzânia: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  46. Togo: Insurgência terrorista.| Autocracia Eleitoral.
  47. Tunísia: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  48. Turquia: Conflitos com grupos curdos e vizinhos. | Autocracia Eleitoral.
  49. Ucrânia: Guerra com a Rússia. | Autocracia Eleitoral (decaiu de Democracia Eleitoral após o início da guerra).
  50. Uganda: Insurgência terrorista. | Autocracia Eleitoral.
  51. Venezuela: Instabilidade política e crise de refugiados. Ameaça de violação da soberania territorial da Guiana (Essequibo). | Autocracia Eleitoral.

Aqui há um conhecimento importante corroborado pela presente investigação: o de que autocracia é guerra (ou vice-versa). Dos 51 países hoje em guerra fria ou quente (considerando conflitos armados com mais de mil mortes anuais ou crises humanitárias graves), 41 são autocracias (ou seja, mais de 80%).

5 – Democracia em regimes eleitorais parasitados por governos populistas

Não há nenhuma base de dados onde seja possível identificar regimes eleitorais parasitados por populismos (inclusive porque não há consenso entre os pesquisadores sobre o que significa populismo e sobre quais os seus tipos). Eis uma lista (parcial) de 21 países com regimes eleitorais parasitados por governos populistas, sejam neopopulistas (ditos de esquerda), sejam populistas-autoritários ou nacional-populistas (ditos de direita ou extrema-direita) com os nomes de seus respectivos governantes atuais. A classificação dos regimes é a do V-Dem.

  1. África do Sul | Democracia Liberal? | Governo neopopulista (Ramaphosa).
  2. Angola | Autocracia Eleitoral | Governo neopopulista (Lourenço).
  3. Argentina | Democracia Eleitoral | Governo populista (Milei).
  4. Bielorrússia | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Lukashenko).
  5. Bolívia | Democracia Eleitoral | Governo neopopulista (Evo e Arce).
  6. Brasil | Democracia Eleitoral | Governo neopopulista (Lula).
  7. Colômbia | Democracia Eleitoral | Governo neopopulista (Petro).
  8. El Salvador | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Bukele).
  9. Eslováquia | Democracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Fico).
  10. Estados Unidos | Democracia Liberal | Governo populista-autoritário (Trump).
  11. Honduras | Democracia Eleitoral | Governo neopopulista (Manuel e Xiomara Zelaya).
  12. Hungria | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Orbán).
  13. Índia | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Modi).
  14. Indonésia | Autocracia Eleitoral | Governo neopopulista (Subianto).
  15. Itália | Democracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Salvini e Meloni).
  16. Israel | Democracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Netanyahu).
  17. México | Democracia Eleitoral | Governo neopopulista (Obrador e Sheinbaum).
  18. Nicarágua | Autocracia Eleitoral | Governo neopopulista (Ortega e Murillo).
  19. Rússia | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Putin).
  20. Turquia | Autocracia Eleitoral | Governo populista-autoritário (Erdogan).
  21. Venezuela | Autocracia Eleitoral | Governo neopopulista (Maduro).

Na lista acima temos 10 governos neopopulistas e 10 governos populistas-autoritários, sendo que 1 ainda não se enquadra bem nas duas categorias (o governo da Argentina). Da lista inteira a metade é de ditaduras e só há 1 democracia liberal (EUA), sendo que o V-Dem, no seu relatório de 2025, incluiu também a África do Sul (o que deve ser um erro). Segundo a The Economist Intelligence Unit, não há nenhuma democracia plena na lista.

Mas há ainda, pelo menos, 9 países com oposições populistas mais relevantes: 1 com oposição neopopulista e 8 com oposições populistas-autoritárias (ou nacional-populistas). Eis uma lista (parcial) com os nomes de seus principais líderes oposicionistas:

  1. Alemanha | Oposição populista-autoritária (Chrupalla e Weidel).
  2. Brasil | Oposição populista-autoritária (Bolsonaro).
  3. Equador | Oposição neopopulista (Luísa González e Rafael Correa).
  4. Espanha | Oposição populista-autoritária (Abascal).
  5. Finlândia | Oposição populista-autoritária (Purra).
  6. França | Oposição populista-autoritária (Le Pen e Bardella).
  7. Holanda | Oposição populista-autoritária (Wilders).
  8. Portugal | Oposição populista-autoritária (Ventura).
  9. Reino Unido | Oposição populista-autoritária (Farage).

CONCLUSÃO

Em breve. Aguardando reações dos leitores.

Para Lula não perder a eleição

Em condições normais Lula perderá a eleição de 2026. Não para o bolsonarismo e sim para o antilulismo e para o antipetismo, que são hoje muito mais amplos. Sabendo disso, o lulopetismo está tentando criar condições anormais. Como?

1) Transformando o julgamento de Bolsonaro e comparsas no STF em um julgamento político e numa antecipação da campanha eleitoral, para vender a ideia de que qualquer candidato não petista, que pretenda herdar os votos bolsonaristas, será um golpista (ou fascista) disfarçado. Em resumo, o PT quer disseminar a impressão de que a derrota eleitoral de Lula seria, para efeitos práticos, o equivalente a um golpe.

2) Censurando programas eleitorais das oposições no horário gratuito da TV; no limite, cassando candidaturas ou pré-candidaturas oposicionistas.

3) Usando as mídias profissionais (sobretudo as TVs – o leitor sabe quais) como imprensa chapa-branca ou assessoria de imprensa do governo (atuando informalmente como partidos políticos).

4) Aprovando, via STF, uma regulamentação das mídias sociais que asfixie as oposições, censurando conteúdos antilulistas e antipetistas; no limite tirando do ar algumas dessas mídias durante a campanha eleitoral sob o pretexto de que difundem fake news, desinformação, discurso de ódio ou atentado ao Estado de direito e à democracia.

Claro que, adicionalmente, Lula tentará aprovar todo tipo de benesses eleitoreiras para os pobres e remediados (onde está em franca minoria). Mas isso é do jogo tal como é jogado pelos populismos que parasitam nosso regime político. E não costuma funcionar mais como funcionava.

Em Defesa dos Conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

As empresas na sociedade-em-rede

Vamos conversar aqui sobre um assunto que investigo há mais de 25 anos: redes (e a emergência de uma sociedade em rede). Escrevi vários livros e dezenas de artigos sobre o assunto. No final de 2008, juntamente com alguns parceiros, fundei a Escola-de-Redes que chegou a ter mais de 13 mil pessoas conectadas. Trabalhei com o tema em organizações da sociedade civil, grandes e pequenas empresas e governos de todos os níveis.

A história começa assim.

Surgiu no final do século passado uma chamada Nova Ciência das Redes. Desse novo campo de investigação participaram vários cientistas, inicialmente físicos, em sua maioria, mas também matemáticos, sociólogos e pesquisadores de outras áreas do conhecimento. Pode-se citar alguns, meramente a título de exemplo: Albert-László Barabási, Steven Strogatz, Duncan Watts, Manuel Castells, Pierre Lèvy. E cada vez mais biólogos, epidemiologistas (e até médicos, como Nicholas Christakis). Vários modelos matemáticos (ou matematizáveis) de redes surgiram quase na mesma época: modelo de grafo aleatório Erdös-Rényi, modelo Watts-Strogatz de small world, modelo de fixação preferencial (preferential attachment) de Barabási-Albert etc.

Nunca se deve esquecer, porém, de Paul Baran que, em 1964, publicou o paper “On distributed communications”, deixando claras as diferenças entre topologias centralizadas, descentralizadas e distribuídas.

A diagram of different types of connections

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As principais descobertas da Nova Ciência das Redes que surgiram nos primeiros dez anos do século 21 são surpreendentes. Mas as aplicações desse conhecimento às sociedades e organizações logo foram descontinuadas pela reação do mundo hierárquico, sobretudo dos Estados-nações e de outras organizações centralizadas, por medo de deixarem de ser os fulcros dos sistemas de governança públicos e privados.

No Brasil, em particular, houve (e continua havendo) uma confusão entre redes sociais (pessoas interagindo por qualquer meio) e mídias sociais (sites, programas, tecnologias) que dificulta o entendimento das redes e desestimula o interesse pelo assunto.

As consequências mais drásticas da não continuidade da aplicação de processos de rede em empresas são: a) a perda de inovatividade, b) a perda de sustentabilidade por incapacidade de adaptação tempestiva às mudanças do meio e c) o aumento da vulnerabilidade ao risco sistêmico (perda de produtividade, mesmo com alto crescimento, coincidente com baixa inovatividade, levando à perda de sustentabilidade).

Vou falar aqui de descobertas que foram feitas há 10 ou 20 anos, ou até antes, mas que foram empurradas para o futuro – e lá estão exiladas. Portanto, ainda são novidade.

A Nova Ciência das Redes foi o resultado da confluência de três campos investigativos: a análise de redes sociais (SNA), que está na pré-história dessa nova ciência, tendo como patrono Leonhard Euler (1707-1783); redes como estruturas que se desenvolvem; e redes como sistemas dinâmicos complexos.

Suas descobertas principais indicam:

1) que o comportamento coletivo não pode ser derivado do comportamento dos indivíduos (ou que – como escreveu o físico Marc Buchanan – “diamantes não brilham porque os átomos que os constituem brilham, mas devido ao modo como esses átomos se agrupam em um determinado padrão: o mais importante é frequentemente o padrão e não as partes, e isso também acontece com as pessoas”),

2) que redes são múltiplos caminhos e que o padrão de organização (a topologia da rede) determina ou condiciona fortemente os comportamentos possíveis de qualquer coletivo,

3) que redes sociais são redes humanas e que redes sociais mais distribuídas do que centralizadas estão se espalhando nas sociedades (e que é isso que chamamos de emergência de uma sociedade em rede),

4) que descentralização não é a mesma coisa que distribuição,

5) que centralização é o que chamamos de hierarquia (topologias mais centralizadas do que distribuídas),

6) que a conectividade acompanha a distribuição,

7) que a interatividade acompanha a conectividade,

8) que adesão ou participação não são a mesma coisa que interação,

9) que tudo que interage tende a clusterizar (clustering),

10) que tudo que interage pode enxamear (swarming),

11) que o imitamento (cloning) é uma forma de interação,

12) que tudo que interage se aproxima (crunching) diminuindo o tamanho social dos mundos,

13) que assim como a interatividade cresce com a transição para rede, a inovatividade tende a crescer com a interatividade,

14) que o aumento da interatividade depende da desobstrução de fluxos (e que é isso que chamamos de processos de rede nas organizações),

15) que só redes podem aprender, que – como disse Humberto Maturana – “aprender não é apreender o mundo e sim mudar com o mundo” e que o que chamamos de inteligência é um atributo dessa capacidade de aprender.

Como consequências dessas descobertas – no que tange especificamente à inovação – é possível afirmar:

1) que não adianta querer mudar (a dinâmica de funcionamento) sem mudar (o padrão de organização) e que – como se pode derivar de tudo o que escreveu Marshall McLuhan – é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia,

2) que uma mudança só é possível do conhecido para o desconhecido, não do conhecido para o conhecido,

3) que inovação é sempre um resultado inesperado e, assim, é inútil tentar controlar processos de inovação verificando se foram alcançados os resultados esperados,

4) que inovação copiada é reprodução, não inovação. A inovação é sempre inédita e, portanto, é inútil tentar reproduzir os processos particulares pelos quais uma organização inovou com sucesso,

5) que nunca se trata de substituição, de colocar uma coisa no lugar de outra e sim de deixar que os novos processos que se acrescentam aos antigos gerem novas configurações emergentes,

6) que uma boa dose de comportamento aleatório é necessária para a inovação e que não é possível ser criativo sem partir em novas direções sem um plano pré-definido,

7) que é estúpido tentar organizar a auto-organização.

É possível aplicar esses novos conhecimentos da Nova Ciência das Redes às organizações atuais, desobstruindo fluxos para mudar o padrão de organização (de mais centralizado do que distribuído para mais distribuído do que centralizado).

A diagram of a team

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A network diagram with text

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Se uma organização for constituída do zero é possível evitar a adoção de padrões mais centralizados do que distribuídos de organização. Se a organização já estiver montada é arriscado tentar desmontá-la e remontá-la. Se ela não será eliminada para dar nascimento a outro tipo de organização a saída é reconfigurar os ambientes físicos, virtuais e de desenvolvimento (ou inovação).

A pyramid with a red sky

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Foto: Reuters/Elizabeth Frantz/File Photo

Trump e o deficit de agentes democráticos nos Estados Unidos

Estamos mergulhados numa terceira onda de autocratização, muito mais tenebrosa do que poderíamos prever ou imaginar. Com Trump alinhando os EUA ao eixo autocrático, a situação se agrava rapidamente e uma escuridão espessa vai se abatendo sobre o mundo.

Como escreveu ontem Francis Fukuyama, no Persuasion (20/02/2025):

“Os Estados Unidos sob Donald Trump não estão recuando para o isolacionismo. Eles estão ativamente aderindo ao campo autoritário, apoiando autocratas de direita em todo o mundo, de Vladimir Putin a Viktor Orbán, Nayib Bukele e Narendra Modi”.

Como Trump, o MAGA e o partido Republicano puderam fazer isso, rompendo uma tradição secular de defesa da democracia dos EUA?

Podemos aventar algumas hipóteses para explicar o fenômeno. A ascensão de Trump (um líder de espírito totalitário) revela que, do ponto de vista da democracia, havia algumas coisas muito erradas com o Estado e a sociedade americanos:

1 – Cultura política discriminatória (e depois antipluralista) dos colonos brancos.

2 – Medo injustificado da ‘tirania da maioria’ (que levou os “pais fundadores” a adotarem um modelo de regime mais inspirado pela república oligáquica romana do que pela experiência democrática ateniense).

3 – Dilapidação acelerada do capital social acumulado nas experiências do ‘network da Filadélfia’ (pró-Independência) e de “governo civil” (tocquevilliano) no século 19 (sobretudo na Nova Inglaterra):

a) centralização excessiva em Washington,

b) recorrência exagerada aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva,

c) ereção do complexo científico-industrial-militar, e

d) muitas guerras.

Sejam quais forem as razões históricas que possamos aventar para explicar as mudanças que permitiram essa guinada, uma coisa é certa: isso só aconteceu por defict de agentes democráticos na sociedade americana. Deficit de agentes democráticos dentro do próprio partido Democrata e nas instituições do Estado e da sociedade (universidades, imprensa, organizações civis, corporações etc.). Em outras palavras, o número de pessoas capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática e resistir aos autoritarismos (e a qualquer populismo) mostrou-se insuficiente. Ora, não há democracia (liberal) sem um número mínimo, crítico, ativo, de agentes democráticos.

Steven Levitsky, em entrevista recente à BBC News Brasil (19/01/2025), respondeu que a eleição de Trump ocorreu porque

“Os políticos foram irresponsáveis, em particular os políticos republicanos, ao nomear um candidato que eles sabiam que era uma ameaça à democracia e deixar essa decisão para os eleitores… Mais uma vez, os eleitores não são cientistas políticos. Cabe aos cientistas políticos determinar se algo é uma ameaça à democracia ou não. Cabe às elites políticas defender a democracia. Não é função dos eleitores”.

Mas não se trata bem disso. Não são apenas os “cientistas” e as “elites”, são as pessoas, embora sempre em minoria, porém ativas, que devem valorizar e defender a democracia. Como escrevi em meu livro mais recente (2023), Como as democracias nascem:

“Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – no Brasil e em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos. Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.”

Tenho dedicado minha vida, nos últimos vinte anos, à expandir a aprendizagem da democracia, compreendendo que aqui também, no Brasil, o número de agentes democráticos está abaixo do nível crítico capaz de cumprir as funções mencionadas no parágrafo anterior. Por isso, entre outras razões, nosso regime eleitoral continua parasitado por populismos de esquerda e de direita que se revezam no poder e investem na polarização e na divisão da sociedade brasileira.

A impressão que tenho é que não vamos sair dessa situação, nem facilmente e nem no curto prazo. Será preciso – nos EUA, no Brasil e na maioria dos países – começar de novo, investindo na aprendizagem da democracia, em termos teóricos e práticos, para multiplicar o número de agentes democráticos. Começar de novo, mais um vez: a maldição de Sísifo que paira sobre os democratas de todas as épocas.

A ameaça da China à democracia global

Michael Beckley & Hal Brands, Journal of Democracy, Janeiro 2023

Abstract

 Um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas a prevenção da democracia está muito no centro da estratégia chinesa hoje.

Desde os tempos antigos, as disputas entre grandes potências frequentemente envolvem disputas de ideias. A Guerra do Peloponeso não foi simplesmente um choque entre uma Esparta reinante e uma Atenas em ascensão, mas também colocou uma protodemocracia liberal e marítima que se via como a “escola da Hélade” contra um estado escravocrata militarizado e agrário. A ameaça ideológica que a França revolucionária representava para a ordem europeia era tão séria quanto a militar. Na preparação para a Segunda Guerra Mundial, potências fascistas e democracias se enfrentaram; durante a Guerra Fria, as superpotências dividiram grande parte do mundo ao longo de linhas ideológicas.

O entrelaçamento de ideologia e geopolítica não deveria ser surpreendente: no fundo, a política externa é como um país busca tornar o mundo seguro para seu próprio modo de vida. Muitos analistas aceitam que a política externa dos EUA é movida por impulsos ideológicos. Até mesmo os “realistas” radicais das relações internacionais admitem a importância da ideologia quando lamentam o domínio que as paixões liberais têm sobre a política de Washington. Curiosamente, porém, tem havido mais resistência à ideia de que pode haver um componente ideológico na grande estratégia do principal rival dos Estados Unidos — a República Popular da China (RPC). Pequim não está fazendo nenhum “grande esforço estratégico para minar a democracia e espalhar a autocracia”, escreve um importante sinólogo. Sua política externa é baseada em “decisões pragmáticas sobre os interesses chineses”. 1  Os realistas dizem que a China pratica  a Realpolitik  enquanto os Estados Unidos ignoram o conselho de John Quincy Adams de 1821 de “não ir para o exterior em busca de monstros para destruir”. Outros analistas sugerem que é uma distração ou mesmo uma “ilusão” enfatizar os aspectos ideológicos da rivalidade sino-americana em detrimento do desafio militar e económico de Pequim. 2

Na verdade, o inverso é verdadeiro: para entender o desafio chinês, precisamos entender suas dimensões ideológicas. Se Woodrow Wilson e seus seguidores queriam tornar o mundo seguro para a democracia, os governantes da RPC querem fazer o mesmo pela autocracia. Para eles, a autocracia não é simplesmente um meio de controle político ou um bilhete para o autoenriquecimento, mas um conjunto de ideias profundamente arraigadas sobre o relacionamento adequado entre governantes e as massas. Em seu discurso principal de outubro de 2022 no Vigésimo Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) — durante o qual ele próprio foi empossado para um terceiro mandato como líder máximo, enquanto no último dia teve seu antecessor Hu Jintao escoltado sem cerimônia para fora da sala — Xi Jinping insistiu que “escrever constantemente um novo capítulo na Sinicização do Marxismo é a solene responsabilidade histórica dos comunistas chineses contemporâneos” e deixou claro que “a autoridade do Comitê Central do Partido” continuará a estar “no cerne da liderança no controle da situação geral”. Tudo no discurso depende do PCC permanecer como o único responsável por “desenvolver o socialismo com características chinesas”. 3

Essa crença na superioridade de um modelo chinês autocrático coexiste com uma profunda insegurança: a RPC é um regime brutalmente iliberal em um mundo liderado por um hegemon liberal, uma circunstância da qual o PCC extrai uma sensação de perigo generalizado e um forte desejo de remodelar a ordem mundial para que a forma particular de governo da RPC não seja apenas protegida, mas privilegiada. É por isso que um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas o que o acadêmico Jason Brownlee chama de “prevenção da democracia” está muito no cerne da estratégia chinesa hoje.

As fontes da conduta chinesa

De certa forma, a tentativa da China de primazia na Ásia e no mundo é um novo capítulo na história mais antiga da história: à medida que os países se tornam mais poderosos, eles se interessam mais em remodelar o mundo. Estados em ascensão buscam influência, respeito e poder; eles descobrem interesses vitais em lugares que estavam simplesmente além de seu alcance antes. Durante o final do século XIX e início do século XX, uma Alemanha em ascensão exigiu seu “lugar ao sol”; após a Guerra Civil, os Estados Unidos da América reunificados e economicamente ascendentes expulsaram seus rivais do Hemisfério Ocidental e começaram a exercer seu peso globalmente. Como escreveu o grande estudioso realista Nicholas Spykman, “o número de casos em que um estado dinâmico forte parou de se expandir… ou estabeleceu limites modestos para seus objetivos de poder foi muito pequeno, de fato”. 4  Dada a rapidez com que o poder da China aumentou nas últimas quatro décadas, seria muito estranho se Pequim  não  estivesse se afirmando no exterior.

No entanto, a China é movida por mais do que a lógica fria da geopolítica. Ela também está buscando a glória como uma questão de destino histórico. Os líderes chineses se veem como herdeiros de um estado chinês que foi uma superpotência durante a maior parte da história registrada. Uma série de impérios chineses reivindicaram “tudo sob o céu” como seu mandato e comandaram a deferência de estados menores ao longo da periferia imperial. Na visão de Pequim, um mundo liderado pelos EUA no qual a China é uma potência de segunda linha não é a norma histórica, mas uma exceção profundamente irritante. Essa ordem foi criada após a Segunda Guerra Mundial, no final de um “século de humilhação” durante o qual potências estrangeiras vorazes saquearam uma China dividida. O mandato do PCC é consertar a história, retornando a China ao topo da pilha.

E então há o imperativo ideológico. Uma China forte e orgulhosa ainda pode representar problemas para Washington, mesmo que um governo liberal-democrático tenha poder em Pequim. O fato de a China ser governada por autocratas comprometidos em suprimir implacavelmente o liberalismo em casa turbina o revisionismo chinês globalmente. Um estado profundamente autoritário nunca pode se sentir seguro em seu próprio governo porque não desfruta do consentimento livremente dado pelos governados; nunca pode se sentir seguro em um mundo dominado por democracias porque as normas internacionais liberais desafiam as práticas domésticas não liberais. “Autocracias”, escreve o estudioso da China Minxin Pei, “simplesmente são incapazes de praticar o liberalismo no exterior enquanto mantêm o autoritarismo em casa”. 5

Isto não é exagero. O infame Documento Número 9, uma diretiva política emitida há quase uma década no início da presidência de Xi, mostra que o PCC vê uma ordem mundial liberal como inerentemente ameaçadora. 6  “Como a China e os Estados Unidos têm conflitos de longa data sobre suas diferentes ideologias, sistemas sociais e políticas externas”, um documento militar chinês declarou na década de 1990, “será impossível melhorar fundamentalmente as relações sino-americanas”.  Por décadas, de fato, autoridades chinesas alegaram que Washington vem travando uma campanha deliberada e bem orquestrada — uma “Terceira Guerra Mundial sem fumaça”, nas palavras de Deng Xiaoping — para enfraquecer e subverter fatalmente o PCC. 7  Deng culpou os Estados Unidos por estarem por trás dos “chamados democratas” que ousaram protestar na Praça da Paz Celestial em 1989. 8

Mesmo quando os Estados Unidos se envolveram com a China, os líderes desta última detectaram uma conspiração para derrubar seu regime. Em 1998, o sucessor de Deng, Jiang Zemin, alertou seus colegas de que, independentemente de os Estados Unidos estarem tomando uma posição de “contenção” ou “engajamento” em relação à RPC, o verdadeiro objetivo de Washington era promover uma “conspiração política” para “dividir nosso país” e “mudar o sistema socialista de nosso país”. 9  Depois de Jiang, veio Hu Jintao, que falou ao seu Ministério das Relações Exteriores em 2003 sobre a “séria realidade de que as forças hostis ocidentais ainda estão implementando a ocidentalização e os projetos políticos divisionistas na China”. 10

Os líderes chineses estão errados se pensam que os Estados Unidos estão ativamente buscando derrubar o regime do PCC. Eles não estão errados, no entanto, ao pensar que um mundo enraizado em valores liberais é aquele em que seu próprio governo deve ser perpetuamente precário. Em um sistema internacional construído com base no respeito aos direitos humanos e na preferência pela democracia, governos que assassinam seus próprios cidadãos correm o risco de censura, ostracismo e punição — como aconteceu com Pequim após a Praça da Paz Celestial em 1989 e está acontecendo novamente hoje em resposta à brutalização da minoria uigur. Um sistema internacional em que as democracias são fortes, vibrantes e globalmente engajadas é aquele em que tendências subversivas tentarão continuamente estados governados por tiranos: em 1989, os manifestantes da Praça da Paz Celestial ergueram uma réplica da Estátua da Liberdade, enquanto aqueles em Hong Kong trinta anos depois agitaram publicamente bandeiras americanas e cantaram “The Star-Spangled Banner”. No que é e no que faz, uma democracia hegemônica ameaça o regime chinês.

A insegurança resultante tem implicações poderosas para a arte de governar de Pequim. Os líderes chineses sentem uma compulsão para tornar as normas e instituições internacionais mais amigáveis ​​ao governo iliberal. Eles buscam afastar influências liberais perigosas das fronteiras da RPC: na mente de Pequim, escreve Timothy Heath, uma “Ásia harmoniosa” apresentaria uma “ordem política moldada pelos princípios políticos chineses”. Os governantes em Pequim sentem que devem arrancar a autoridade internacional de uma superpotência democrática com uma longa história de levar autocracias à ruína. E à medida que uma China autoritária se torna poderosa, ela inevitavelmente busca fortalecer as forças do iliberalismo — e enfraquecer as da democracia — como uma forma de aumentar sua influência e reforçar seu próprio modelo. 11  A China está fazendo isso, além disso, em um momento em que o mundo, e sua distribuição predominante de poder ideológico, apresenta ao PCC tanto ansiedades agudas quanto oportunidades tentadoras.

Ansiedade e Oportunidade

No momento mais sombrio da Segunda Guerra Mundial, havia talvez uma dúzia de democracias no mundo. Ainda em 1989, havia o dobro de governos autocráticos do que democracias. Vinte anos depois, no entanto, as democracias superavam as autocracias em 100 para 78, e a parcela da população mundial vivendo sob autocracia havia caído pela metade. Da perspectiva dos EUA, o avanço global da democracia foi um dos desenvolvimentos mais esperançosos da era pós-1945. Da perspectiva dos líderes da China, no entanto, foi um sinal claro de que a ordem mundial liberal estava manipulada contra sua forma de governo e precisava ser mudada antes que destruísse seu regime.

De acordo com a narrativa de Pequim, o problema começou no início do período pós-guerra, quando os Estados Unidos exploraram seu domínio para injetar ideias liberais radicais em instituições internacionais. Por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 da ONU foi modelada na Declaração de Direitos dos EUA. A DUDH afirma que todos os humanos nascem livres e têm o direito de derrubar governos que não respeitam essa liberdade. Nas décadas seguintes, Pequim assistiu com horror enquanto dezenas de nações, incluindo Coreia do Sul e Taiwan, evoluíram para democracias prósperas. O grupo global em expansão de democracias posteriormente usou força militar, sanções econômicas e uma série de organizações de mídia e direitos humanos para minar dezenas de regimes autocráticos — não apenas os de ditadores de lata, mas também a União Soviética e quase a própria RPC em 1989.

Embora os líderes da RPC tenham se irritado por muito tempo com essa pressão ideológica, ela era suportável enquanto a China desfrutava de uma economia em expansão e uma periferia estável. Quando o Produto Interno Bruto estava crescendo três vezes mais rápido do que a média democrática durante as décadas de 1990 e 2000, foi fácil para Pequim persuadir as pessoas em casa e no exterior de que o autoritarismo era melhor para a China, se não para outros países.

Mas agora, a economia da China está desacelerando, e o regime está sofrendo maior pressão interna — testemunhe os protestos em larga escala que eclodiram contra a política de zero covid de Xi em várias cidades e em dezenas de campi universitários no final de 2022. Pequim está enfrentando crescentes críticas e resistência internacionais em outras frentes também. Em todo o mundo, as visões negativas da China atingiram níveis nunca vistos desde o Massacre da Praça da Paz Celestial de 1989. Os taiwaneses estão mais determinados do que nunca a manter sua soberania de fato. O Japão está dobrando seus gastos com defesa e se preparando explicitamente para a guerra contra a China nesta década. Sob um novo governo democraticamente eleito, as Filipinas estão reforçando seus laços de defesa com os Estados Unidos. A Índia está concentrando forças na fronteira ocidental da China. A União Europeia recentemente rotulou a China como um “rival sistêmico” e suspendeu seu tratado de investimento com Pequim. Até mesmo a ONU, na qual a China ocupa vários cargos de liderança, divulgou recentemente um relatório declarando que Pequim pode ter cometido “crimes contra a humanidade” em Xinjiang. Abalroada por ventos contrários crescentes, a autocracia não é mais uma venda fácil para o PCC. Os cidadãos chineses estavam dispostos a abrir mão de direitos políticos quando suas carteiras e o status internacional de seu país estavam inchando, mas é uma questão em aberto se eles continuarão a fazê-lo sob condições mais duras. Essa questão é especialmente urgente no que diz respeito aos millennials da China, nascidos nas décadas de 1980 e 1990, que não conheceram nada além de ascensão econômica e mobilidade internacional.

Os governantes da China também entenderam há muito tempo o que os cientistas políticos provaram empiricamente: as autocracias geralmente caem em ondas, à medida que a atividade revolucionária em um país inspira revoltas populares em outros. 12  Um efeito dominó democrático derrubou regimes comunistas na Europa Central e Oriental em 1989. A autoimolação de um vendedor de frutas tunisiano no final de 2010 incendiou grande parte do mundo árabe. A lição é que uma revolução em qualquer lugar é uma ameaça à autocracia em todos os lugares. Xi Jinping sabe disso: não muito depois da Primavera Árabe, ele se preocupou em particular com o presidente Barack Obama e o vice-presidente Joe Biden que a China era um alvo de “revoluções coloridas” e vulnerável ao tipo de revolta que engolfava o Oriente Médio. 13

O PCC respondeu com repressão intensificada na última década — prendendo dissidentes, mobilizando forças de segurança, censurando informações e prevenindo a agitação popular. No entanto, a China agora é forte o suficiente para fazer mais do que apenas se agachar diante da pressão estrangeira. Xi acredita que o poder doméstico do PCC será aprimorado se o autoritarismo prevalecer e as democracias forem disfuncionais — colegas déspotas não punirão a China por abusos de direitos, e o povo chinês não desejará imitar o caos dos sistemas liberais. Ele acha que impedir revoltas contra o autoritarismo em outros países diminuirá as chances de tal revolta irromper na China. E ele acredita que silenciar os críticos no exterior limitará os desafios que o PCC enfrenta na China. Xi vê a reversão da democracia no exterior como parte de seu plano para proteger seu regime em casa.

Prevenção da Democracia

A RPC escreveu sua primeira estratégia formal de segurança nacional sob Xi, em 2014. 14  Enquanto a segurança do regime costumava ser uma das muitas prioridades do governo (embora a mais importante), agora é  a  prioridade. 15  Todas as outras questões — comércio, diplomacia, modernização militar — são complementos para manter o PCC no poder. Como resultado, cada questão é uma questão de segurança do regime. Uma guerra comercial com democracias ricas não é mais apenas um desacordo econômico; é um ataque ao estado chinês e um possível prelúdio para uma guerra armada.

Enquanto as administrações chinesas anteriores defendiam a “manutenção da estabilidade”, o foco sob Xi está na prevenção de ameaças. Documentos chineses comparam explosões populares a tumores cancerígenos que precisam ser extirpados rapidamente antes que se espalhem para órgãos vitais do estado. Ideologias que podem rivalizar com o comunismo, incluindo o liberalismo e o islamismo, são vistas como doenças infecciosas contra as quais a população da China deve ser imunizada. Como Sheena Chestnut Greitens demonstrou, essas metáforas médicas justificam mirar e “tratar” pessoas muito antes que elas apresentem sintomas ameaçadores. 16  A ilustração mais clara está em Xinjiang, onde a China prendeu extrajudicialmente mais de um milhão de uigures. 17  Mas a China está aplicando essa lógica preventiva além de suas fronteiras também.

Pequim gasta bilhões de dólares anualmente em um “kit de ferramentas antidemocrático” de organizações não governamentais, veículos de mídia, diplomatas, conselheiros, hackers e subornos, todos projetados para sustentar autocratas e semear discórdia nas democracias. 18  O PCC fornece armas, dinheiro e proteção contra a censura da ONU para outras autocracias, enquanto aplica sanções a defensores estrangeiros dos direitos humanos. Autoridades chinesas oferecem a seus irmãos autoritários equipamentos de controle de distúrbios e conselhos sobre como construir um estado de vigilância; o comércio, o investimento e os empréstimos da RPC permitem que esses ditadores evitem a condicionalidade ocidental em relação à anticorrupção ou à boa governança.

Pequim usa seus órgãos de mídia que abrangem o globo para apregoar as realizações do governo iliberal enquanto destaca as falhas e hipocrisias dos governos democráticos. A China trabalha com regimes autoritários companheiros, como o de Vladimir Putin na Rússia, para empurrar normas favoráveis ​​aos autocratas de gerenciamento da internet em instituições internacionais e órgãos de definição de padrões. Pequim também ajuda outros regimes iliberais próximos ou na Ásia Central a perseguir e reprimir exilados e dissidentes. Não menos importante, a China está travando uma campanha de coerção política e militar para desestabilizar Taiwan, uma nação florescente cuja própria existência refuta as alegações do PCC de que a cultura chinesa é incompatível com a democracia. O problema fundamental que Taiwan representa para a China, escrevem Andrew Nathan e Andrew Scobell, “vem de Taiwan simplesmente ser o que é — uma sociedade chinesa moderna que é economicamente próspera e politicamente democrática”. 19

Pode ser tentador descartar os esforços de prevenção da democracia da China como “política mundial como sempre”. Afinal, os autocratas têm conspirado para manter o liberalismo sob controle desde que os monarcas da Áustria, Prússia e Rússia se uniram para lutar contra a França Revolucionária há mais de dois séculos. Mas o ataque ideológico da China é especialmente ameaçador, por três razões.

Primeiro, o alcance global da China é mais penetrante do que o de qualquer potência iliberal anterior. Sua economia massiva e 1,4 bilhão de consumidores a armam com cenouras e porretes poderosos para silenciar a liberdade de expressão muito além de suas fronteiras. Austrália, Canadá, República Tcheca, Japão, Lituânia, Noruega, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Estados Unidos — além de dezenas de empresas privadas e indivíduos de nações democráticas — experimentaram recentemente a ira econômica da China. Em muitos casos, a punição foi amplamente desproporcional ao suposto crime. Por exemplo, a China aplicou tarifas altas em quase todas as principais exportações da Austrália depois que Canberra solicitou uma investigação internacional sobre as origens da covid-19.

Além de armas econômicas, a China ocupa cargos de liderança na ONU e em outras grandes instituições internacionais que dão a Pequim chances de dobrar a governança global em uma direção antiliberal. Por exemplo, quando Belarus violou normas internacionais ao forçar a queda de um avião que transportava um dissidente procurado em 2021, a China exerceu sua autoridade como chefe da Organização Internacional de Aviação Civil da ONU para proteger o regime brutal de Alyaksandr Lukashenka da censura. 20  E se a diplomacia e os incentivos econômicos falharem, Pequim pode usar sua marinha, agora a maior do mundo, e força de mísseis convencionais para coagir países a obedecer ou até mesmo para varrer democracias do mapa, como a China está ameaçando fazer com Taiwan.

Em segundo lugar, a campanha antiliberal da China capitaliza uma tendência global perturbadora: como relata a Freedom House, o autoritarismo se espalhou durante todos os anos desde 2006, enquanto a democracia recuou. Essa “recessão democrática” deu à China uma janela de oportunidade ideológica para promover uma visão de uma sociedade hierárquica e harmoniosa e uma crítica de um Ocidente desordenado e decadente. Em todo o mundo, a fé pública nas instituições democráticas caiu para níveis nunca vistos desde a década de 1930. O solo político amadureceu para o autoritarismo criar raízes, e a China, a Rússia e outros estados autoritários estão fertilizando essa planta antidemocrática com desinformação digital que seus propagandistas injetam nos feeds de mídia social de bilhões em todo o mundo. 21

O terceiro e mais importante fator que impulsiona os esforços da China é a revolução digital em andamento. 22  O PCC possui poder de coleta de dados e mensagens para rivalizar com o da Apple, Amazon, Facebook, Google e Twitter. 23  Ao combinar inteligência artificial (IA) e “big data” com tecnologias cibernéticas, biométricas e de reconhecimento facial e de fala, Pequim está sendo pioneira em um sistema que permitirá que ditadores saibam tudo sobre seus súditos — o que as pessoas estão dizendo e assistindo, com quem andam, do que gostam e não gostam e onde estão localizados em um determinado momento — e disciplinar cidadãos instantaneamente restringindo seu acesso a crédito, educação, emprego, assistência médica, telecomunicações e viagens, se não para caçá-los para formas mais medievais de punição.

Esta revolução tecnológica ameaça perturbar o equilíbrio global entre democracia e autoritarismo ao tornar a repressão mais acessível e eficaz do que nunca. 24  Em vez de depender de exércitos caros e potencialmente rebeldes para brutalizar uma população ressentida, um autocrata agora terá meios de controle mais insidiosos. Milhões de espiões podem ser substituídos por centenas de milhões de câmeras sem piscar. Tecnologias de reconhecimento facial podem classificar rapidamente feeds de vídeo e identificar encrenqueiros. Bots podem entregar propaganda personalizada para grupos específicos. Malware pode ser instalado em computadores por meio de aplicativos ou links aparentemente inócuos, e então hackers do governo podem invadir as redes de computadores de dissidentes ou coletar informações sobre suas operações. Essas informações, por sua vez, podem ser usadas para cooptar movimentos de resistência subornando seus líderes ou atendendo suas demandas mais inócuas. Alternativamente, as autoridades podem imprimir uma lista montada por IA de supostos ativistas e matar todos nela.

O gênio maligno desse “autoritarismo digital” é que a maioria das pessoas será aparentemente livre para cuidar de suas vidas cotidianas. Na verdade, porém, o estado estará constantemente censurando tudo o que veem e rastreando tudo o que fazem. Com o autoritarismo da velha escola, pelo menos se sabia de onde vinha a opressão. Mas agora as pessoas podem ser cutucadas e persuadidas por algoritmos invisíveis que entregam conteúdo personalizado para seus telefones. Em eras passadas, os autocratas tinham que fazer escolhas difíceis entre financiar esquadrões da morte ou desenvolvimento econômico. Hoje, no entanto, a repressão não é apenas acessível, mas também lucrativa, porque as tecnologias de “cidade inteligente” que permitem um controle social rígido também podem ser usadas para combater o crime, diagnosticar doenças e fazer os trens circularem no horário.

Essas tecnologias são o sonho de um tirano. Reconhecendo essa demanda, as empresas chinesas já estavam vendendo e operando sistemas de vigilância em mais de oitenta países em 2020. 25  À medida que o PCC se sente cada vez mais ameaçado em casa e no exterior, há todos os motivos para esperar que Pequim exporte o autoritarismo digital para mais longe e mais amplamente. Muitos países já o querem, e a China tem ferramentas poderosas para obrigar aqueles que não o querem. Quer acesso ao vasto mercado da RPC? Deixe a Huawei instalar os principais componentes da sua rede 5G. Quer um empréstimo chinês? Aceite a tecnologia de vigilância da RPC na sua capital.

À medida que mais governos fizerem parcerias com Pequim, o alcance do estado de vigilância da China aumentará. 26  As autocracias existentes se tornarão mais totalitárias, e algumas democracias irão migrar para o campo autoritário. Os conflitos internacionais provavelmente proliferarão — não apenas os de ideias, mas os de armas, pois, como ilustra a invasão da Ucrânia por Putin, a ditadura frequentemente se transforma em nacionalismo de sangue e solo e revanchismo violento. A crença liberal de que a democracia e a paz estão destinadas a se espalhar pelo mundo será derrubada. O mesmo acontecerá com o mito reconfortante de que a humanidade evoluiu além do ponto de atrocidades em massa, porque o autoritarismo digital não desloca gulags e genocídios; ele os possibilita. Quando as ditaduras aumentam a repressão digital, elas também se envolvem em mais torturas e assassinatos. 27  Computadores e câmeras que lidam com a vigilância cotidiana liberam os soldados rasos do regime para tarefas como limpeza étnica e espancamento de dissidentes até a submissão. Xinjiang, com suas cidades inteligentes e campos de concentração, oferece um vislumbre desse futuro terrível. 28

Proteção da Democracia

A ofensiva ideológica da China está, portanto, no cerne de seu esforço para remodelar a ordem global. Uma parte crucial da estratégia da China no mundo democrático, portanto, deve envolver a proteção de instituições democráticas contra ataques autoritários. Se  a promoção da democracia  tem má fama,  a proteção  da democracia está se tornando indispensável.

Esta campanha ideológica não implica buscar uma mudança de regime na China. A democracia pode eventualmente se consolidar naquele país, mas há pouca perspectiva disso em breve, e esforços ativos para desestabilizar o PCC podem ser contraproducentes e perigosos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos nunca tentaram realmente derrubar o governo soviético. Isso foi por preocupação de que isso pudesse desencadear a guerra quente que Washington esperava evitar. O mesmo princípio de cautela deve ser aplicado hoje. A proteção da democracia é uma estratégia essencialmente defensiva, embora em alguns casos exija táticas mais assertivas do que aquelas que os Estados Unidos e seus aliados têm estado dispostos a empregar até o momento.

Em sua essência, a proteção da democracia requer o que os planejadores militares chamam de “defender para a frente” — salvaguardar os sistemas democráticos enfraquecendo ativamente a capacidade de um oponente de danificá-los. 29  Os Estados Unidos devem fazer o que puderem para reforçar a democracia em casa e no exterior, mas a prioridade imediata deve ser abrir buracos na cortina de ferro digital que Pequim está desenhando em grandes áreas do globo. Se o mundo está de fato em um “ponto de inflexão” na luta entre democracia e autocracia, como Biden e Xi parecem pensar que está, uma América que permaneça na defensiva não fará a balança pender. Colocar “a casa democrática da América em ordem” é uma ideia maravilhosa, mas levará anos, se não décadas, e daria apenas ajuda indireta para deter a disseminação da autocracia no exterior. Formar uma aliança gigante de democracias é um objetivo digno, mas pode gerar debates intermináveis ​​em vez de ações decisivas. Em 2000, o governo Bill Clinton criou a “Comunidade das Democracias”, que, no final, incluía 106 países. Após anos de reuniões, sua única realização foi uma declaração insípida criticando o golpe militar de 2021 na Birmânia.

Em vez de construir mais uma organização em expansão ou remendar humildemente buracos nas defesas democráticas, os Estados Unidos deveriam levar a luta ao inimigo e mobilizar “gangues” rudes e prontas de aliados para degradar e deter as iniciativas de guerra política da China. O primeiro passo seria hackear sistemas autoritários digitais. Uma qualidade redentora dos estados policiais digitais é que eles têm uma miríade de pontos de falha. Qualquer computador ou capanga do governo é um ponto de entrada potencial para malware. Os hackers podem furtivamente alimentar “entradas adversárias” em sistemas de vigilância alterando alguns pixels em certas imagens, inserindo pontos de dados falsos ou inserindo código malicioso nos patches que os técnicos autoritários usam para consertar sistemas defeituosos. Os hacks podem permitir que notícias proibidas se tornem virais, enganar os sistemas de vigilância para ignorar a atividade dissidente e classificar erroneamente os leais ao regime como inimigos do estado.

Governos democráticos nem precisam atacar estados autoritários diretamente; democracias podem postar paródias online e deixar dissidentes ao redor do mundo usá-las como armas. E defensores da democracia não precisam interromper todos os regimes autoritários digitais — alguns erros de alto perfil podem ser o suficiente para diminuir a demanda pelos produtos de Pequim. Pense nisso como uma imposição de custo ideológica: o tempo, energia e dinheiro que a China terá que dedicar para consertar seu estado de vigilância doméstica serão tempo, energia e dinheiro que Pequim não pode gastar manipulando políticas democráticas no exterior.

Uma segunda tarefa vital é desacelerar a disseminação da tecnologia que permite a repressão. Em parte, isso significará produzir alternativas acessíveis aos produtos chineses de telecomunicações e cidades inteligentes. Essas alternativas podem incluir satélites de órbita baixa da Terra (como os mais de 3.000 satélites pequenos que compõem a rede Starlink) para fornecer banda larga global. Mais importante, isso também significará impedir que empresas dos EUA e aliadas transfiram certas tecnologias — como aquelas para reconhecimento avançado de fala e facial, visão computacional e processamento de linguagem natural — para regimes autoritários, bem como impedir que empresas estrangeiras envolvidas em repressão autoritária levantem capital nos mercados financeiros das democracias. 30  Durante a Guerra Fria, os governos ocidentais mantiveram o Comitê Coordenador para Controles Multilaterais de Exportação (Co-Com) para impedir que tecnologia avançada fosse vendida ao bloco soviético. Algo como a abordagem do Co-Com é adequado no que diz respeito à China. Washington e os aliados dos EUA já restringiram o acesso da RPC a semicondutores avançados, principalmente até agora por meio de novas regulamentações agressivas que o Departamento de Comércio dos EUA implementou em outubro de 2022. Embargos semelhantes serão necessários para prejudicar o estado de vigilância em expansão de Pequim. 31

Isso se relaciona a um terceiro imperativo — frustrar os esforços da China para expandir o alcance de sua internet autoritária. Uma maneira de fazer isso seria os Estados Unidos e seus aliados dividirem preventivamente a internet global criando um bloco digital no qual dados e produtos fluam livremente, excluindo a China e outros países que se recusam a respeitar a liberdade de expressão ou direitos de privacidade. Isso pode parecer drástico, mas pode ser necessário para combater o PCC, que atualmente desfruta do melhor dos dois mundos: ele administra uma rede fechada em casa (impedindo que cidadãos da RPC acessem sites estrangeiros e limitando o acesso digital de empresas ocidentais) enquanto também acessa seletivamente a internet globalmente para roubar propriedade intelectual, interferir em eleições democráticas, espalhar propaganda e hackear infraestrutura crítica. Esta é uma versão da era digital da infame Doutrina Brezhnev da União Soviética: o que é meu é meu, e o que é seu está em disputa.

Para combater essa exploração, Richard Clarke e Rob Knake propuseram formar uma “Internet Freedom League”, uma iniciativa que é melhor vista menos como uma aliança multilateral em expansão do que como uma espécie de união alfandegária digital. 32  Sob esse sistema, os países que aderirem à visão de uma internet livre e aberta permaneceriam conectados uns aos outros, enquanto os países que se opuserem a essa visão enfrentariam acesso restrito ou seriam excluídos. Todo o tráfego da web de não membros não seria bloqueado, apenas o tráfego de empresas e organizações que auxiliam e incentivam o autoritarismo digital ou o crime cibernético. Claro, o governo da RPC é um desses maus atores, então ele e as entidades que fazem suas licitações — sejam instituições governamentais ou empresas nominalmente privadas que estão profundamente ligadas ao estado chinês — seriam cortadas.

Quarto, uma maior cooperação entre democracias — econômicas e outras — diminuirá a capacidade da China de assustá-las e fazê-las silenciar punindo uma delas. A recente campanha da China contra a Austrália enfatizou isso. Em abril de 2020, Canberra pediu uma investigação internacional independente sobre as origens da pandemia de covid. Uma Pequim enfurecida aplicou tarifas altas sobre carvão, carne bovina, trigo, vinho e outros produtos australianos, ao mesmo tempo em que exigia que o governo australiano abafasse vozes domésticas “hostis” à RPC.

Para seu crédito, Canberra se recusou a ceder e lentamente encontrou mercados alternativos, em parte lançando uma campanha de relações públicas “combata o comunismo, compre vinho australiano”. O governo Biden informou às autoridades da RPC que as tensões bilaterais não diminuiriam se o PCC estivesse atacando os aliados dos EUA, e Washington prometeu fornecer à Austrália tecnologia nuclear para alimentar submarinos de ataque de ponta. A economia da Austrália sofreu um golpe, no entanto — e, desajeitadamente, empresas de outras democracias abocanharam parte da fatia de mercado resultante. Laços econômicos mais densos entre democracias e não democracias amigáveis ​​que temem a coerção chinesa, como Vietnã e Cingapura, podem cortar os custos de resistência futura. Ainda melhor seria se democracias ricas concordassem em infligir dor recíproca a Pequim por meio de contra-sanções. A China ainda poderia tentar censurar o discurso democrático em países estrangeiros, mas apenas ao custo de seu próprio crescimento econômico.

A China certamente se irritaria com essas medidas, mas até certo ponto isso é uma coisa boa, porque fornece oportunidades para incitar Pequim a erros estratégicos. Lembre-se do que aconteceu em março de 2021, quando os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá sancionaram quatro autoridades chinesas por abusos de direitos humanos em Xinjiang. As sanções foram tapas no pulso, mas desencadearam uma explosão autodestrutiva de “guerreiro-lobo”: Pequim desencadeou uma fuzilaria diplomática e sancionou autoridades e think tanks da UE; a UE respondeu congelando o pendente Acordo Abrangente sobre Investimento China-UE. Os Estados Unidos e seus aliados podem incitar a China de maneiras sutis que não correm o risco de guerra, mas provocam reações exageradas e tempestuosas por meio das quais Pequim se isola.

Estratégias de isca e sangramento, no entanto, exigem resiliência. Quando a mídia estatal chinesa ameaçou, em março de 2020, mergulhar a América em “um poderoso mar de coronavírus” negando-lhe produtos farmacêuticos, ela ressaltou a capacidade de Pequim de retaliar feio contra democracias que se recusam a seguir sua linha. 33  Um quinto requisito dessa estratégia, então, será desenvolver rapidamente redes de produção de mundo livre para recursos críticos que a China atualmente domina, incluindo minerais de terras raras e suprimentos médicos de emergência. A alternativa ao desenvolvimento proativo dessas redes é desenvolvê-las reativa e a um custo muito maior durante uma crise — como a Europa descobriu com sua transição forçada do fornecimento de energia russo devido à guerra na Ucrânia.

Um sexto aspecto da defesa avançada envolve lutar mais ativamente na guerra da informação. A estratégia da China envolve promover incansavelmente os supostos benefícios de seu próprio modelo, enquanto atiça as chamas da discórdia política em sociedades democráticas. Expor grupos falsos da sociedade civil ou veículos de mídia que são ferramentas de influência chinesa é obviamente vital. Igualmente importante, porém, é ser mais agressivo em virar o jogo contra Pequim, espalhando a notícia de seus abusos de direitos, crescentes problemas econômicos e sociais, corrupção desenfreada, práticas predatórias de empréstimos no exterior e outros crimes e deficiências do PCC. Os Estados Unidos acumularam muita experiência com tais esforços durante a Guerra Fria, quando instituições como a extinta Agência de Informação dos EUA disseram a verdade sobre o bloco soviético enquanto contestavam mentiras comunistas sobre o mundo livre. 34  Hoje, mensagens semelhantes podem não ressoar com líderes estrangeiros cleptocráticos que são financiados por Pequim — mas tais comunicações ajudarão a tornar o ambiente global de informações menos favorável à propaganda do PCC.

Sétimo, os Estados Unidos e seus aliados devem contestar mais efetivamente o terreno institucional, porque aqueles que governam os organismos internacionais do mundo escrevem as regras do mundo. Transformar organizações internacionais em ferramentas de entrincheiramento doméstico e influência global para regimes autoritários é uma estratégia de longa data do PCC. Pequim compra regularmente votos de estados-membros nessas organizações, que então elegem candidatos favorecidos pela RPC para liderá-los. Para deter a marcha da China em direção ao domínio institucional, os Estados Unidos devem aprender a reunir coalizões mutáveis ​​de países democráticos por trás de candidatos que defenderão os valores básicos do mundo livre. Isso aconteceu em setembro de 2022, quando Doreen Bogdan-Martin foi eleita secretária-geral da União Internacional de Telecomunicações da ONU.

Finalmente, os Estados Unidos precisam ajudar a proteger democracias que fazem fronteira com agressores autoritários. Defender nações vulneráveis ​​importa, principalmente porque a coerção autoritária bem-sucedida em um lugar pode encorajar ações perigosas em outro lugar. O principal campo de batalha hoje é a Ucrânia, com Taiwan em segundo lugar. Ao reforçar Taiwan com proteção militar e linhas de vida econômicas, Washington pode preservar uma alternativa ideológica potente ao PCC — e fortalecer uma coalizão de mundo livre que pode manter o mundo seguro para a democracia nas próximas décadas.

Este ensaio é uma adaptação do livro dos autores, Danger Zone: The Coming Conflict with China  (2022).

NOTAS

1. Jessica Chen Weiss, “Um mundo seguro para a autocracia? A ascensão da China e o futuro da política global”,  Foreign Affairs  98 (julho–agosto de 2019): 93–94.

2. Elbridge Colby e Robert D. Kaplan, “A ilusão ideológica: a competição da América com a China não é sobre doutrina”, Foreign Affairs,  4 de setembro de 2020.

3. “The Long and Short of the CCP Congress,” China Media Project, 16 de outubro de 2022,  https://chinamediaproject.org/2022/10/16/the-long-and-short-of-xis-political-report .  As palavras citadas são da versão curta do discurso de Xi, que pode ser baixada em chinês de um link nesta página e, em seguida, executada por um programa de tradução.

4. Nicholas Spykman,  Estratégia da América na Política Mundial: Os Estados Unidos e o Equilíbrio de Poder (Nova York: Harcourt and Brace, 1942), 20–22.

5. Minxin Pei, “Pragmatismo assertivo: ascensão econômica da China e seu impacto na política externa chinesa”, Departamento de Estudos de Segurança do IFRI, outono de 2006,  https://www.ifri.org/sites/default/files/atoms/files/Prolif_Paper_Minxin_Pei.pdf .

6. Suisheng Zhao, “O renascimento maoísta de Xi Jinping”,  Journal of Democracy 27 (julho de 2016): 85, www.journalofdemocracy.org/wp-content/uploads/2016/07/Zhao-27-3.pdf .

7. Citações de Christopher A. Ford,  China Looks at the West: Identity, Global Ambitions, and the Future of Sino-American Relations (A China olha para o Ocidente: identidade, ambições globais e o futuro das relações sino-americanas) (Lexington: University Press of Kentucky, 2015), 186; Samuel Kim, “Human Rights in China’s International Relations”, em Edward Friedman e Barrett L. McCormick, eds.,  What If China Doesn’t Democratize? Implications for War and Peace (E se a China não se democratizar? Implicações para a guerra e a paz) (Nova York: ME Sharpe, 2000), 130–31.

8. Citado em Rush Doshi,  The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order (Nova York: Oxford University Press, 2021), 52.

9. Doshi,  Jogo Longo, 54–55.

10. Doshi,  Jogo Longo, 56.

11. Timothy R. Heath, “O que a China quer? Discernindo a estratégia nacional da RPC”,  Asian Security 8 (março de 2012): 54–72.

12. Samuel P. Huntington,  The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century  (Norman: University of Oklahoma Press, 1993). Para dados, veja o Mass Mobilization Project,  https://massmobilization.github.io .

13. Chris Buckley e Steven Lee Myers, “Em tempos turbulentos, Xi constrói uma fortaleza de segurança para a China e para si mesmo”,  New York Times,  6 de agosto de 2022.

14. “O Comitê Central do PCC – Proposta Formulada para o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Metas de Longo Prazo para 2035”,  www. xinhuanet.com/2020-10/29/c_1126674147.htm .

15. Jude Blanchette, “Segurança ideológica como segurança nacional”, CSIS, 2 de dezembro de 2020,  www.csis.org/analysis/ideological-security-national-security .

16. Sheena Chestnut Greitens, “Repressão preventiva: segurança interna e grande estratégia na China sob Xi Jinping”, ms. não publicado, 2021.

17. Sheena Chestnut Greitens, Myunghee Lee e Emir Yazici, “Contraterrorismo e repressão preventiva: a mudança de estratégia da China em Xinjiang”,  International Security  44 (inverno de 2019–20): 9–47.

18. Christopher Walker e Jessica Ludwig, “The Long Arm of the Strongman: How China and Russia Use Sharp Power to Threaten Democracies”,  Foreign Affairs,  12 de maio de 2021; Elizabeth. C. Economy, “Exporting the China Model”, Testemunho perante a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 13 de março de 2020,  www.uscc.gov/sites/default/files/testimonies/USCCTestimony3-13-20%20(Elizabeth%20Economy)_justified.pdf .

19. Andrew J. Nathan e Andrew Scobell,  A busca da China por segurança (Nova York: Columbia University Press, 2012), 213.

20. Yaroslav Trofimov, Drew Henshaw e Kate O’Keeffe, “Como a China está assumindo o controle de organizações internacionais, um voto de cada vez”,  Wall Street Journal,  29 de setembro de 2020.

21. Michael J. Mazarr et al.,  Manipulação social hostil: realidades atuais e tendências emergentes  (Santa Monica: RAND Corporation, 2019); Jeff Kao, “Como a China construiu uma máquina de propaganda no Twitter e depois a soltou no coronavírus”,  ProPublica,  26 de março de 2020,  https://www.propublica.org/article/how-china-built-a-twitter-propaganda-machine-then-let-it-loose-on-coronavirus .

22. Veja os artigos na edição de janeiro de 2019 do  Journal of Democracy intitulados coletivamente “The Road to Digital Unfreedom”; veja também Richard Fontaine e Kara Frederick, “The Autocrat’s New Toolkit”,  Wall Street Journal,  15 de março de 2019.

23. Larry Diamond, “O caminho para a falta de liberdade digital: a ameaça do totalitarismo pós-moderno”,  Journal of Democracy  30 (janeiro de 2019): 22.

24. Tiberiu Dragu e Yonatan Lupu, “Autoritarismo digital e o futuro dos direitos humanos”,  Organização Internacional  75 (outono de 2021): 991–1017.

25. Sheena Chestnut Greitens, “Lidando com a demanda por exportações de vigilância global da China”,  Global China, abril de 2020,  www.brookings.edu/research/dealing-with-demand-for-chinas-global-surveillance-exports .

26. Alina Polyakova e Chris Meserole, “Exportando autoritarismo digital: os modelos russo e chinês”, Brookings Institution Policy Brief, agosto de 2019,  www.brookings.edu/wp-content/uploads/2019/08/FP_20190827_digital_authoritarianism_polyakova_meserole.pdf .

27. Andrea Kendall-Taylor, Erica Frantz e Joseph Wright, “Os ditadores digitais: como a tecnologia fortalece a autocracia”,  Foreign Affairs  99 (março–abril de 2020).

28. Ross Andersen, “O Panóptico Já Está Aqui”,  Atlantic,  setembro de 2020.

29. O Comando Cibernético dos Estados Unidos, por exemplo, adotou essa abordagem para proteger redes dos EUA. Veja Erica D. Lonergan, “Operationalizing Defend Forward: How the Concept Works to Change Adversary Behavior,”  Lawfare,  12 de março de 2020,  lawfareblog.com/operationalizing-defend-forward-how-concept-works-change-adversary-behavior .

30. Derek Scissors, “Limits Are Overdue in the US-China Technology Relationship”, Declaração ao Comitê Judiciário do Senado dos EUA, Subcomitê sobre Crime e Terrorismo, 4 de março de 2020.

31. Para uma lista de tecnologias críticas, veja Emma Rafaelof, “Unfinished Business: Export Control and Foreign Investment Reforms,” US-China Economic and Security Review Commission, Issue Brief, 1 de junho de 2021.

32. Richard A. Clarke e Rob Knake, “A Liga da Liberdade da Internet: Como reagir contra o ataque autoritário à Web”,  Foreign Affairs  98 (setembro–outubro de 2019).

33. Barnini Chakraborty, “China sugere negar medicamentos que salvam vidas para os Estados Unidos contra o coronavírus”, Fox News, 13 de março de 2020.

34. Hal Brands,  A luta crepuscular: o que a Guerra Fria nos ensina sobre a rivalidade entre grandes potências hoje  (New Haven: Yale University Press, 2022), 186–89

Michael Beckley is associate professor of political science at Tufts University and nonresident senior fellow at the American Enterprise Institute.

Hal Brands is the Henry Kissinger Distinguished Professor at the Johns Hopkins School of Advanced International Studies and senior fellow at the American Enterprise Institute. 

Não há dois lados

Os “progressistas” contra os fascistas

As narrativas de dois lados em eterno confronto fabricam guerras. Foi assim que se constituiu a ideia de esquerda e, simetricamente, de direita. Como tomam como sentido da política a ordem (e não a liberdade), para ambas trata-se, em política, de lutar contra o outro lado para implantar a ordem que acham que condiz, no caso da esquerda, com o sentido (ou as leis) da história e, no caso da direita, com a ordem que acham que é designada por deus (quer dizer, pela religião) ou determinada pela natureza.

Atualmente o mesmo esquema é traduzido, pela esquerda, como uma luta dos “progressistas” contra a extrema-direita fascista.

É curioso porque, no lado dos “progressistas”, cabem os ditadores de esquerda. Os que divergem dessa narrativa são então colocados no lado dos fascistas.

Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Khamenei e seus braços terroristas (Irã), Bouphavanh (Laos), Chính (Vietnam), Lourenço (Angola), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua) e Canel (Cuba) são todos contra a extrema-direita. Putin (Rússia) é explicitamente antifascista (invadiu a Ucrânia para, supostamente, barrar os nazifascistas). Aliás, o muro de Berlim se chamava (na época em que Putin morava na Alemanha Oriental) Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção Antifascista). A não ser que queiramos enganar os outros, não faz o menor sentido classificar todos esses ditadores de esquerda (ou admirados pela esquerda) como “progressistas”

A única distinção honesta não é entre lados em eterno confronto entre si e sim entre regimes políticos: existem democracias e autocracias (ditaduras). Mas como existem ditaduras de esquerda e de direita, revela-se impotente (como categoria de análise) a distinção entre esquerda e direita ou (como diretiva política) a distinção entre “progressistas” e fascistas. Os regimes de esquerda de Maduro, Ortega e Canel são tão autocráticos quanto os regimes de direita de Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Bukele (El Salvador).

Governantes como Frederiksen (Dinamarca), Støre (Noruega) e Luxon (Nova Zelândia) não se definem por serem de esquerda ou de direita e sim por serem democratas liberais. Eles não são iguais a pretendentes autoritários de extrema-direita como Weidel (Alemanha), Ventura (Portugal) e Abascal (Espanha). O mesmo vale para Kristersson (Suécia), Schoof (Holanda) e Starmer (Reino Unido), que não são iguais a governantes autoritários de esquerda como Lourenço (Angola), Bouphavanh (Laos) e Chính (Vietnam).

Vai e volta e reaparece a ideia de uma “frente ampla contra o fascismo”. Por meio desse truque a esquerda quer que os democratas liberais se rendam, se diluam no condomínio dos “progressistas”, abram mão de apresentar à sociedade sua alternativa, em nome de derrotar a extrema-direita e, obviamente, colocar ou manter no poder a esquerda. O objetivo aqui é impedir a formação de um centro de gravidade democrático que não se defina por alinhamentos à esquerda ou à direita.

No Brasil dos dias que correm essa frente ampla para derrotar o bolsonarismo (de extrema-direita) quer manter o lulopetismo (de esquerda) no poder. Deve estar certo. Pois Zé Dirceu e seu fiel escudeiro Breno Altman são “progressistas”. Delúbio Soares e João Vaccari são “progressistas”. Ricardo Berzoini e Gleisi Hoffmann são “progressistas”. Frei Betto e seu pupilo Luiz Marinho são “progressistas”. O que importa é que todos são antifascistas!

Curioso que nessa já surrada “frente ampla contra o fascismo” dos populistas de esquerda não cabem os que são contra as ditaduras de Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei, Hamas e Hezbollah, Lourenço, Maduro, Ortega e Canel. Por quê? Ora, porque esses são de esquerda. E o objetivo de derrotar a direita é colocar no poder a esquerda, mesmo que seja autocrática. Alguém poderia dizer: viva Stalin (que matou cerca de 20 milhões de pessoas, mas era antifascista) contra Hitler.

Não há dois lados. Democracia e autocracia são regimes políticos, não lados. E, mesmo assim, existem democracias liberais (como Chile e Uruguai – cujo governo era dito de direita e agora é dito de esquerda) e democracias não-liberais (apenas eleitorais, algumas vezes com governos ditos de esquerda, como no México, em Honduras, na Colômbia, na Bolívia e no Brasil e, em outros casos, ditos de direita, como na Argentina e em Israel). E existem autocracias eleitorais (com governos ditos de direita, como na Índia ou ditos de esquerda, como na Bielorrússia) e autocracias não-eleitorais (com governos ditos de esquerda, como em Cuba ou ditos de direita, como no Haiti).

Querer reduzir tudo a dois lados em permanente confronto está no “DNA” da esquerda, que – desde sua pre-história jacobina e, em seguida, bolchevique – pratica a política como continuação da guerra por outros meios (o que, a rigor, do ponto de vista democrático, é antipolítica). É por isso que se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.