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Não há dois lados

Os “progressistas” contra os fascistas

As narrativas de dois lados em eterno confronto fabricam guerras. Foi assim que se constituiu a ideia de esquerda e, simetricamente, de direita. Como tomam como sentido da política a ordem (e não a liberdade), para ambas trata-se, em política, de lutar contra o outro lado para implantar a ordem que acham que condiz, no caso da esquerda, com o sentido (ou as leis) da história e, no caso da direita, com a ordem que acham que é designada por deus (quer dizer, pela religião) ou determinada pela natureza.

Atualmente o mesmo esquema é traduzido, pela esquerda, como uma luta dos “progressistas” contra a extrema-direita fascista.

É curioso porque, no lado dos “progressistas”, cabem os ditadores de esquerda. Os que divergem dessa narrativa são então colocados no lado dos fascistas.

Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Khamenei e seus braços terroristas (Irã), Bouphavanh (Laos), Chính (Vietnam), Lourenço (Angola), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua) e Canel (Cuba) são todos contra a extrema-direita. Putin (Rússia) é explicitamente antifascista (invadiu a Ucrânia para, supostamente, barrar os nazifascistas). Aliás, o muro de Berlim se chamava (na época em que Putin morava na Alemanha Oriental) Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção Antifascista). A não ser que queiramos enganar os outros, não faz o menor sentido classificar todos esses ditadores de esquerda (ou admirados pela esquerda) como “progressistas”

A única distinção honesta não é entre lados em eterno confronto entre si e sim entre regimes políticos: existem democracias e autocracias (ditaduras). Mas como existem ditaduras de esquerda e de direita, revela-se impotente (como categoria de análise) a distinção entre esquerda e direita ou (como diretiva política) a distinção entre “progressistas” e fascistas. Os regimes de esquerda de Maduro, Ortega e Canel são tão autocráticos quanto os regimes de direita de Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Bukele (El Salvador).

Governantes como Frederiksen (Dinamarca), Støre (Noruega) e Luxon (Nova Zelândia) não se definem por serem de esquerda ou de direita e sim por serem democratas liberais. Eles não são iguais a pretendentes autoritários de extrema-direita como Weidel (Alemanha), Ventura (Portugal) e Abascal (Espanha). O mesmo vale para Kristersson (Suécia), Schoof (Holanda) e Starmer (Reino Unido), que não são iguais a governantes autoritários de esquerda como Lourenço (Angola), Bouphavanh (Laos) e Chính (Vietnam).

Vai e volta e reaparece a ideia de uma “frente ampla contra o fascismo”. Por meio desse truque a esquerda quer que os democratas liberais se rendam, se diluam no condomínio dos “progressistas”, abram mão de apresentar à sociedade sua alternativa, em nome de derrotar a extrema-direita e, obviamente, colocar ou manter no poder a esquerda. O objetivo aqui é impedir a formação de um centro de gravidade democrático que não se defina por alinhamentos à esquerda ou à direita.

No Brasil dos dias que correm essa frente ampla para derrotar o bolsonarismo (de extrema-direita) quer manter o lulopetismo (de esquerda) no poder. Deve estar certo. Pois Zé Dirceu e seu fiel escudeiro Breno Altman são “progressistas”. Delúbio Soares e João Vaccari são “progressistas”. Ricardo Berzoini e Gleisi Hoffmann são “progressistas”. Frei Betto e seu pupilo Luiz Marinho são “progressistas”. O que importa é que todos são antifascistas!

Curioso que nessa já surrada “frente ampla contra o fascismo” dos populistas de esquerda não cabem os que são contra as ditaduras de Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei, Hamas e Hezbollah, Lourenço, Maduro, Ortega e Canel. Por quê? Ora, porque esses são de esquerda. E o objetivo de derrotar a direita é colocar no poder a esquerda, mesmo que seja autocrática. Alguém poderia dizer: viva Stalin (que matou cerca de 20 milhões de pessoas, mas era antifascista) contra Hitler.

Não há dois lados. Democracia e autocracia são regimes políticos, não lados. E, mesmo assim, existem democracias liberais (como Chile e Uruguai – cujo governo era dito de direita e agora é dito de esquerda) e democracias não-liberais (apenas eleitorais, algumas vezes com governos ditos de esquerda, como no México, em Honduras, na Colômbia, na Bolívia e no Brasil e, em outros casos, ditos de direita, como na Argentina e em Israel). E existem autocracias eleitorais (com governos ditos de direita, como na Índia ou ditos de esquerda, como na Bielorrússia) e autocracias não-eleitorais (com governos ditos de esquerda, como em Cuba ou ditos de direita, como no Haiti).

Querer reduzir tudo a dois lados em permanente confronto está no “DNA” da esquerda, que – desde sua pre-história jacobina e, em seguida, bolchevique – pratica a política como continuação da guerra por outros meios (o que, a rigor, do ponto de vista democrático, é antipolítica). É por isso que se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

Por que precisamos de comunidades políticas democráticas

Do ponto de vista da democracia como modo-de-vida, não há como alguém exercer o papel de agente democrático sem comunidade política. Sem a prática da continuada conversação democrática, a democracia fenece. Sem ambientes favoráveis à realização de projetos comuns democratizantes, a partir da congruência de desejos dos interagentes, a democracia falece.

É em comunidades políticas que pode se exercer a prática da continuada e recorrente conversação democrática, que gera circularidades inerentes, dando nascimento a novas culturas políticas, usinando padrões de apreensão do mundo e de ação sobre o mundo capazes de se replicar. É em comunidades políticas que se pode realizar projetos comuns democratizantes – e isso define a própria ideia de comunidade política democrática.

Uma vez experimentado por um número suficiente de seres humanos, um modo-de-vida pode tornar-se um padrão que se replica, inspirando agires (comportamentos) conexos em outras regiões do tempo. O que se replica são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar.

No caso da autocracia, comportamentos compatíveis com ideias míticas, sacerdotais e hierárquicas, de ordem como sentido da política – e de luta contra inimigos (guerra ou política como continuação da guerra por outros meios) para implantar essa ordem – que conformam padrões autocráticos.

No caso da democracia, comportamentos compatíveis com ideias de liberdade como sentido da política – de que a nossa liberdade não termina, mas começa onde começa a liberdade do outro (quer dizer, de que ninguém pode ser livre sozinho) –, com ideias de autonomia, com ideias colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada), que conformam padrões democráticos. Mas nada disso é possível sem comunidade política.

Partidos políticos tradicionais (hierárquicos) configuraram ambientes de reprodução de padrões mais autocráticos do que democráticos. Líderes conduzindo grandes massas compostas por indivíduos, também reproduziram padrões mais autocráticos do que democráticos. As chamadas “bolhas” que surgiram com as mídias sociais e os programas de mensagens, espécies de “partidos digitais” compostos por seguidores de líderes, igualmente estão reproduzindo padrões mais autocráticos do que democráticos. Só comunidades políticas democráticas (redes mais distribuídas do que centralizadas) poderão gerar padrões mais democráticos do que autocráticos.

Os democratas que tomam a democracia não apenas como as regras do jogo, mas como o próprio jogo; quer dizer, não apenas como modo político de administração do Estado, mas também como modo de vida (experimentando a democracia em não-países), não têm outro caminho a não ser articular comunidades políticas. Essas comunidades podem ser grandes ou pequenas – na maioria dos casos, sobretudo no começo, tendem a ser pequenas. Podem ser presenciais ou virtuais – em geral, nos tempos que correm, serão virtuais. O que importa é a sua estrutura ou padrão de organização (distribuído) e sua dinâmica ou modo de funcionamento (amistoso ou não-adversarial).


Nota

Juntamente com vários amigos e amigas, depois de uma longa trajetória investigativa e reflexiva e de vários ensaios de articulação de redes para vários propósitos nos últimos quinze anos, formamos algumas comunidades desse tipo chamando-as de Casas da Democracia. Mas o nome pouco importa. As pessoas podem chamá-las como quiserem. Podem encará-las como sua pólis, micropólis ou “pólis paralelas” – como fez Václav Benda (1978) no contexto do regime pós-totalitário da Tchecoslováquia. Alias, a polis onde nasceu a primeira democracia não era a cidade-Estado (de Atenas) e sim a comunidade (koinonia) política. Como notou Hannah Arendt (1958) em A Condição Humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses”. A comunidade política democrática é uma nova “entidade” que surge quando as pessoas passam a viver a sua convivência. É assim que nasce e renasce, continua ou intermitentemente, a democracia como modo-de-vida.

A queda da categoria “extremista”

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: “Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar”.

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino. 

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho). 

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria “extremista” é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas – não depois que chegaram ao poder. 

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis” e “Três Antis”).

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto – juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) – compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.

Desenvolvimento, capital social e democracia

O autor não conseguiu encontrar o local onde este texto foi originalmente publicado. Nem a data. Presume-se que deve ter sido escrito entre 2005 e 2008. 

1 – Em geral não se leva muito em conta que o desenvolvimento econômico deve ser interpretado como prosperidade econômica, medida como aumento da riqueza, não em termos absolutos ou médios, mas em termos do aumento do acesso das pessoas à propriedade produtiva e a melhoria das suas condições (e, portanto, o aumento de suas chances) de sucesso na realização dessa propriedade. Prosperidade econômica ainda é a melhor expressão do desenvolvimento econômico de uma sociedade e deve significar que mais e mais pessoas estão podendo não simplesmente obter renda, senão também gerá-la diversificadamente. Implica, portanto, para além da distribuição da renda, desconcentração da riqueza.

2 – Se a concentração da renda no Brasil é absurda (estamos entre os países mais injustos do mundo em termos de desigualdade de renda), também é injusta a distribuição da riqueza. Com efeito, se a maior parte (cerca de 70%, talvez) do faturamento bruto de todas as empresas fica nas mãos de uma pequena parcela (menos de 2%) das empresas, então estamos diante de uma monumental concentração de riqueza. Isso não é captado diretamente por indicadores de desigualdade de renda e nem por indicadores de aumento geral de riqueza (como o PIB).

3 – Há quem ache que tudo vai se resolver com a criação geral de mais riqueza e com a distribuição da renda. Há quem ache que se distribuirmos a renda então isso vai levar à distribuição da riqueza. Mas talvez tenha que haver alguma desconcentração de riqueza para que haja uma distribuição da renda. Em outras palavras, distribuir renda não é uma tarefa fácil enquanto a outra variável econômica que comparece na equação do desenvolvimento – a riqueza – permanecer tão concentrada. Ora, enquanto isso, enquanto a riqueza permanecer tão concentrada, pode até haver crescimento econômico, mas não haverá desenvolvimento econômico porque não haverá prosperidade econômica, a qual pressupõe diversidade econômica co-implicada no aumento da circulação de mercadorias (inclusive de moeda).

4 – Isso para não falar de outros fatores – extra-econômicos – que também comparecem na equação do desenvolvimento, como, por exemplo, o conhecimento e o poder. Ou seja, isso para não falar do desenvolvimento em um sentido mais sistêmico e global, para além do desenvolvimento econômico.

5 – Nos últimos anos tem se reforçado a hipótese de que o fenômeno de mudança que interpretamos como desenvolvimento econômico não é, na verdade, tão estritamente econômico quanto se pensa. Aparece como desenvolvimento econômico em virtude de interpretação fragmentária de um fenômeno que é global, envolvendo, para além da renda e da própria riqueza (ou seja, das internalidades), outras variáveis como conhecimento, poder, meio ambiente (que são consideradas externalidades).

6 – Mas mesmo para que haja o tal desenvolvimento econômico, interpretado como prosperidade econômica, é necessário, para além do crescimento econômico, que mais pessoas, individual e coletivamente, consigam empreender mais e ter mais sucesso em seus empreendimentos. Ora, para isso é necessário que mais pessoas tenham mais conhecimento (um dos componentes, talvez o principal, do que se chama, metaforicamente, de “capital humano”) e que os ambientes sociais em que essas pessoas convivem sejam ambientes capazes de encorajá-las a empreender mais e a adquirir mais conhecimento para empreender melhor.

7 – Esse encorajamento é uma espécie de poder (um “poder” social, não caracteristicamente político) que passa das coletividades para os indivíduos. É como um campo de força que aciona (energiza) elementos nele imersos por indução (na acepção física – como na indução eletromagnética – e não lógica do conceito). Esse é o processo que foi chamado de empoderamento, o qual tem a ver não com o poder de mandar, ou seja, com a possibilidade e a capacidade de um indivíduo ou grupo de impor sua vontade a outros indivíduos em virtude de algum atributo diferencial (força, saber ou riqueza), institucionalizado ou não e sim com os padrões de convivência social, vale dizer, com a configuração da rede social existente. Quem empodera é a rede social (que pode, então, também em termos metafóricos, ser interpretada como um outro tipo de capital, o chamado “capital social”).

8 – O fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico não pode ocorrer isoladamente. É um aspecto de uma mudança que envolve mudanças em vários outros fatores além daqueles que são considerados como internalidades econômicas. A incompreensão desse processo complexo levou os pensadores econômicos a imaginar que seriam as mudanças na renda e na riqueza (ou, em geral, apenas na renda ou no produto) que levariam a mudanças nos outros fatores extra-econômicos. Estabeleceu-se, assim, um modelo linear e unívoco, que parte do econômico (= a causa) em direção a outros fatores considerados sociais – sócio-culturais, sócio-políticos, sócio-ambientais etc – (= os efeitos).

9 – Essa é a razão pela qual o que se chama de política social sempre foi visto como uma política de segunda classe, já que ela não trabalharia com a causa e sim com os efeitos e, dessarte, não poderia ser tão estratégica quanto a política econômica. Caberia à política social compensar as defasagens de inserção no processo de desenvolvimento, quando os processos intra-econômicos não foram, por alguma razão extra-econômica que atrapalha o funcionamento dos mecanismos de distribuição econômica, capazes de incorporar “automaticamente” os excluídos. Para esse pensamento, contudo, o remédio principal para a inclusão, a receita que vale de fato, é a econômica, pelo incremento da renda, em geral via salário, quer dizer como remuneração do trabalho (de alguém que foi empregado para realizar a propriedade produtiva de outrem, subordinado ao sonho alheio) e não como recompensa ao empreendedorismo (como apropriação de um sobrevalor gerado pelo trabalho de realizar a própria propriedade produtiva) como deveria inspirar a utopia da livre iniciativa capitalista.

10 – Segundo esse modelo, se queremos promover a desenvolvimento social, então temos que promover o desenvolvimento econômico. E como o desenvolvimento econômico é visto como o resultado mais ou menos automático do crescimento econômico, então tudo se resume a promover o crescimento econômico.

11 – Ocorre que as relações entre as diversas variáveis do desenvolvimento são plurívocas. Nesse sistema complexo, não-linear, os supostos efeitos retroagem sobre a imaginada causa e todos os fatores interagem entre si. Então, quando acontece o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico, é porque vários outros fenômenos inter-relacionados aconteceram também.

12 – Pode-se dizer que a renda permite acesso ao conhecimento necessário para a geração de mais renda (sem o que, por um lado, não pode existir prosperidade econô-mica). Como isso é muito plausível, as pessoas costumam imaginar que tudo depende, nas sociedades de consumo, de ter mais renda para ter mais acesso à educação (ou à capacitação). No entanto, temos aqui apenas uma parte da história. Pois é difícil imaginar que a renda auferida individualmente consiga construir ambientes sociais favoráveis ao sucesso dessa geração de renda (sem o que, por outro lado, também não pode existir prosperidade econômica). Em outras palavras, para realizar a propriedade produtiva é necessário, além do capital humano, um certo estoque ou fluxo de capital social. Porque quanto menor o capital social menos chances de sucesso os empreendimentos terão e, portanto, menor será o grau de realização distribuída da propriedade produtiva.

13 – Como capital social não pode ser comprado, é um bem público que não pode ser adquirido no mercado, ele tem que ser gerado. Gerar capital social – como se sabe, desde que Jane Jacobs inventou o conceito – é a mesma coisa que tramar redes sociais. Mas o incremento da renda per capita não é capaz, por si só, de aumentar a trama do tecido social. Em contrapartida, se aumentamos – por que meio for – a trama do tecido social, aumentam as chances de sucesso dos empreendimentos produtivos.

14 – Desse ponto de vista poder-se-ia inverter a sentença: se queremos promover o desenvolvimento econômico então temos que promover o desenvolvimento social. A inteligência mediana retrucará que, apenas invertendo a implicação simples (‘desenvolvimento econômico => desenvolvimento social’) que vige na cabeça da maioria dos economistas, policymakers e jornalistas na atualidade, não se resolve o problema. Estaríamos trocando uma relação linear, baseada em uma crença de causalidade unívoca, por outra também linear, igualmente incapaz de captar a complexidade do fenômeno. A objeção é verossimilhante: por algum motivo as pessoas têm a impressão de que a verdade está no meio (daí a popularidade dos dísticos “nem 8, nem 80”, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”) e gostam de evitar os extremos. Ademais, soa razoável dar o mesmo peso a todos os fatores do desenvolvimento, haja vista, como se argumentou acima, que o que interpretamos, fragmentariamente, como desenvolvimento econômico, é um aspecto de um fenômeno de mudança global mais complexa. De sorte que o mesmo deveria valer para o desenvolvimento social, ou seja, o que interpretamos como desenvolvimento social poderia ser um aspecto, captado pela percepção fragmentária, do fenômeno de mudança mais global (o desenvolvimento em termos sistêmicos).

15 – Entretanto, a mudança que queremos interpretar como desenvolvimento, mesmo em termos sistêmicos, é uma mudança que ocorre sempre na sociedade humana. Ou seja, é uma mudança social, nas relações concretas entre as pessoas que vivem em sociedade e não nas relações entre os elementos de um esquema abstrato que foi construído para explicar uma classe qualquer de fenômenos observados na sociedade, como, por exemplo, a “máquina econômica” inventada pelos economistas.

16 – Em outras palavras, desenvolvimento, seja o que for, é alguma coisa que acontece na sociedade humana. Isso significa que todo desenvolvimento é, sempre e antes de qualquer coisa, desenvolvimento social. Não pode haver nenhum tipo de desenvolvimento que não seja desenvolvimento social. Pois desenvolvimento é um conceito que se aplica a sociedades humanas e não a outros sistemas (de seres animados ou inanimados). Só metaforicamente pode-se falar de desenvolvimento de uma colônia de insetos, de um processo industrial ou de uma teoria.

17 – Pois bem. Existem evidências suficientes para corroborar a hipótese de que o desenvolvimento é um fenômeno próprio das redes sociais, é como se fosse um aprendizado dessas redes. Uma sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo a manter uma congruência dinâmica com o meio. Em outras palavras, uma sociedade se desenvolvendo significa uma rede social mudando com a mudança das circunstâncias, ou seja, realizando o processo de se tornar sustentável. Desse ponto de vista não há nenhuma diferença entre os termos ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’.

18 – Uma nova visão do desenvolvimento social que emerge da compreensão das redes sociais é uma (talvez a única) visão compatível com a noção de capital social. No principio está a rede. O que chamamos de ‘social’ refere-se à rede social. A configuração e a dinâmica de sua rede social é o que podem explicar, em um nível mais profundo, os fenômenos que acontecem em uma sociedade. Uma sociedade só é distinguível de outra porque sua rede social é diferente da rede social da outra sociedade. A identidade de uma sociedade pode ser compreendida, nesse nível de profundidade, por padrões de tecitura social e de fluxos recorrentes ou circuitos ativados. Embora a rede seja móvel, embora os fluxos que a percorrem sejam diferentes em cada instante, existem padrões, invariantes que são próprios daquela particular coletividade. O retrato desses padrões é a impressão digital de uma particular sociedade. Aquilo que permanece constante na configuração e na dinâmica de uma rede social é a “carteira de identidade” da particular sociedade onde essa rede foi observada.

19 – Todavia, assim como a teia da vida que liga os elementos de um ecossistema é invisível para os olhos, assim também ocorre com a teia social que estabelece as conexões entre as pessoas e os grupos em uma sociedade. São essas conexões que caracterizam os padrões de convivência social. Anisotropias criadas nesse tecido social, singularidades geradas nesse “espaço”, condicionam fluxos, constroem caminhos preferenciais para esses fluxos. Perturbações introduzidas nesse espaço vão percorrer o sistema seguindo caminhos construídos por repetição, pré-cursos que foram sulcados pelo transito diferencial de mensagens. O software modifica o hardware. A dinâmica da rede constrói sua configuração. Um caminho muito trilhado é um canal com mais capacidade. Redes de conversações acionadas com grande freqüência são como ruas que ligam bairros construídos em uma cidade. Tornam-se padrões invariantes na geografia urbana. O sistema que resulta dessas múltiplas anisotropias conforma a identidade de um espaço social, quer dizer, uma rede social particular, identificável.

20 – A analogia da rede social com a cidade tem muito poder heurístico. Mas é mais do que isso: as cidades – ou, em termos ainda mais genéricos, as localidades – são redes sócio-territoriais. As cidades são resultados de comportamento coletivo. Elas se auto-organizam, mesmo as que foram planejadas se reorganizam, tornando-se, todas, auto-planejadas, bottom up. Mas só podem fazer isso porque têm artérias, canais, circuitos ligando suas várias localidades (regiões administrativas, bairros, ruas e praças e outros equipamentos e casas). Por esses canais fluem as mensagens. Assim, dentre os múltiplos caminhos percorridos, afirmam-se como principais aqueles mais trafegados.

21 – Tal ocorre com a rede social que está por trás da rede urbana. Mais do que isso: tal só ocorre no espaço urbano (territorial) porque ocorre no espaço das conexões entre pessoas e grupos (social). Isso é a localidade do ponto de vista do desenvolvimento sustentável.

22 – Sustentabilidade é o que chamamos de desenvolvimento com base em um modelo regulacional da mudança, ou seja, um modelo que não é nem (apenas) transformacional, nem (apenas) variacional. Transformações e variações acontecem o tempo todo. Mas transformações não são unicamente o desdobramento de um projeto prefigurado, contido em germe, em um programa arquivado em um genoma. E variações não são o resultado da replicação imperfeita desse projeto diante da mudança totalmente aleatória das circunstâncias. A nova ordem implicada na mudança só pode emergir porque a transformação e a variação passam a ser reguladas. Essa nova ordem emerge quando há regulação da mudança. Quem regula a mudança, desse ponto de vista, é a rede social. Ela se adapta e conserva seus padrões de adaptação. Ela só consegue conservar a adaptação porque reconstrói (ou seja, muda) seus programas de adaptação a partir desse padrão (a identidade de uma rede social). Sustentabilidade, isto é, desse ponto de vista, desenvolvimento, só pode existir quando existe ordem emergente, quer dizer, auto-regulada.

23 – Novamente aqui é evocado um poderoso paralelo heurístico. Se em termos biológicos sustentabilidade é a mesma coisa que vida, em termos sociais sustentabilidade é a mesma coisa que desenvolvimento. A vida cessa quando se rompe a congruência entre o indivíduo e o meio, o que significa incapacidade de manter uma correspondência dinâmica com os outros elementos da rede que possibilite a autopoiese. O desenvolvimento (sustentável) ocorre a não ser enquanto exista auto-regulação social.

24 – Mas há ainda um outro paralelo heurístico. Assim como o processo de vida é análogo ao processo de conhecimento, o processo social – ou seja, o processo de desenvolvimento social de um ponto de vista regulacional (ou para uma teoria sistêmica do desenvolvimento, poder-se-ia dizer) – é também comparável ao processo de conhecimento. É assim que se pode então dizer que a sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Aprendendo o quê? Aprendendo a se auto-regular. Aprender, aqui, significa ser capaz de reconstruir seu programa de adaptação; ou seja, ser capaz de construir um outro (novo) programa a partir da (mesma) matriz de identidade, quer dizer, do mesmo padrão que caracteriza uma sociedade particular porque contém os invariantes da configuração e da dinâmica de sua rede social.

25 – Ocorre que uma sociedade particular capaz de fazer isso é sempre uma sociedade local. É por isso que se diz que todo desenvolvimento (sustentável) é local, porque todo bottom up é local, porque todos os conhecimentos tomados (a partir de baixo) são locais, quer dizer, são tomados com base em avaliações locais das circunstâncias mais amplas ou das condições mais gerais. A emergência (quer dizer, o surgimento de uma nova ordem por auto-regulação) se dá a partir do local; inclusive uma ordem emergente de caráter mais global é construída a partir de interações locais.

26 – Sistemas complexos são capazes de fazer isso, ou seja, de configurar ordem mais global (macrocomportamentos) a partir de regras locais, tornando-se capazes de comportamento emergente, de inteligência coletiva, de swarm intelligence, quando seus elementos se concentram na solução dos mesmos problemas (que são, então, forçosamente, problemas locais).

27 – Sociedades (de massa) não são capazes de fazer isso, mas comunidades (de projeto) sim. Ou melhor, sociedades só são capazes de fazer isso se as comunidades de projeto que se formaram no seu seio fizerem isso, como percebeu Jane Jacobs, em outros termos, há 40 anos. Só comunidades de projeto – que se dedicam, por milhares de micromotivos diferentes das pessoas e grupos que as compõem – à resolução dos mesmos problemas locais, podem ser capazes de adquirir a dinâmica de sistemas complexos adaptativos e, assim, podem ser sustentáveis. É por isso que uma nova visão do desenvolvimento como a que está sendo cogitada aqui aponta para o desenvolvimento local. Desenvolvimento local, nesse sentido, não é uma redução, não é uma particularização. Desenvolvimento local nada mais é do que desenvolvimento comunitário, ou seja, desenvolvimento de comunidades de projeto a partir dessas próprias comunidades. Desenvolvimento, nesse sentido, é uma emergência. E o terreno da emergência é o local.

28 – Só redes podem aprender, mas não é qualquer rede que aprende. Só redes podem ser sustentáveis, mas não é qualquer rede que pode ser sustentável. No que tange a sociedades humanas, só em comunidades de projeto o tecido social pode atingir o grau de tramatura suficiente para ensejar a fenômeno da autorregulação. Comunidades são sociedades que atingiram certo grau de tramatura do seu tecido social. Uma ordem na sociedade global – se não for autocrática – só poderá emergir, quer dizer, vir de baixo, do local.

29 – Tudo isso pode ser analisado por teorias do capital social se considerarmos que o fator do desenvolvimento designado pela noção de capital social nada mais é do que a rede social. É o grau de conectividade, o número de caminhos (medido, se quisermos, pela ‘extensão característica de caminho’ ou pelo ‘comprimento de corrente’) existentes entre os nodos de uma rede social que dá o poder social de uma sociedade, ou seja, a sua capacidade de empoderar os seus elementos para que eles criem, inovem, empreendam, assumam protagonismo – enfim, se desenvolvam na medida em que desenvolvem o coletivo do qual fazem parte. Desenvolvimento (sustentável) é, assim, a coincidência de auto-desenvolvimento e comum-desenvolvimento. Em outras palavras, desenvolvimento é sempre a operação de uma rede de co-desenvolvimentos interdependentes

30 – Qualquer ordem não-autocrática só pode existir se for emergente. Temos aqui uma pista para estabelecer um nexo conotativo entre desenvolvimento e democracia. Assim como o desenvolvimento é o ‘aprender’ de uma comunidade, a democracia é um ‘deixar aprender’. Como pacto de convivência, a democracia é um modo de regulação de conflitos que preserva a existência dos conflitantes, que permite a continuidade de sua experiência de convivência social, que possibilita a expansão continuada dos graus de liberdade para que possa haver cada vez mais experimentação e mais aprendizagem e, por conseguinte, mais desenvolvimento.

31 – É por isso que não pode haver desenvolvimento (tomado em termos regulacionais, na visão proposta aqui, ou seja, desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade) sem democracia. Ou melhor, é por isso que mais desenvolvimento (ou sustentabilidade) implica mais democracia, avanço do processo de democratização, de democratização da democracia. Pode haver crescimento (da renda, da riqueza ou de qualquer outra variável extra-econômica da equação do desenvolvimento, como o conhecimento, por exemplo) sem democracia, mas não pode haver, nesse sentido, desenvolvimento.

32 – E é por isso que desenvolvimento depende da produção de capital social, ou seja, da capacidade de uma sociedade de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Em outras palavras, é por isso que desenvolvimento depende da capacidade de uma sociedade de constituir comunidade, de tramar o seu tecido social a ponto de permitir a eclosão dos fenômenos associados à emergência (multiplicidade, diversidade, reverberação, circuitos de retroalimentação de reforço ou de feedback positivo etc.).

33 – Ora, na sociedade (em termos genéricos; ou seja, nas sociedades humanas) quem pode fazer isso na escala e com a intensidade necessárias é o tipo de agenciamento chamado sociedade civil (ou comunidade, no sentido em que Offe e os teóricos alemães empregam o termo), esfera da realidade social caracterizável por uma racionalidade cooperativa e baseada em uma “lógica” participativa. Não é o Estado, caracterizado por uma racionalidade normativa e baseado em uma “lógica” representativa e delegativa, produtor, por excelência (e por definição) de ordem top down, ainda que o Estado possa também induzir processos bottom up, quando consegue estimular a sociedade civil a produzir capital social (ou quando se abstém de desestimulá-la, renunciando a programas baseados em uma padrão de relação centralizador, assistencialista, clientelista e adversarial). Nem o mercado, caracterizado por uma racionalidade competitiva, muito embora o mercado também produza algum tipo de ordem emergente.

34 – Impõe-se como necessária não a oposição entre essas esferas da realidade social – o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou comunidade) – mas a sua combinação virtuosa que pode surgir quando se busca extrair sinergias da sua atuação combinada. O Estado, sozinho, tenderá a induzir o desenvolvimento a partir de um modelo transformacional (a partir de um plano e de regulações exógenas) e o mercado, deixado ao léu da sua própria “lógica”, o fará – sem querer – a partir de um modelo variacional (apostando na sobrevivência dos que melhor se adaptaram). É por isso que cumpre um papel tão estratégico a participação da sociedade civil, de vez que somente a sociedade civil consegue suportar uma dinâmica endógena regulacional gerando novos macrocomportamentos a partir da composição de muitos quereres, de miríades de micromotivos. Para que tal aconteça, entretanto, é necessário instaurar uma atmosfera de liberdade coletiva, um clima de confiança que encoraje as pessoas, coletivamente, a sonhar e a correr atrás dos próprios sonhos, ensejando seu aprendizado – como soe ocorrer em uma comunidade de projeto sob a democracia.

Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.

Galerias da Democracia

Começando pelo princípio: os “pais fundadores” atenienses, se a democracia tivesse propriamente fundadores. Não tem. E se tivesse haveria uma mãe, que adquiriu reputação de puta (diz-se que pela maledicência dos oligarcas): Aspásia de Mileto. O que temos aqui? Clístenes (em virtude da reforma distrital que propôs e implantou a partir de 508 a.C.), Efialtes (em razão da reforma que retirou o poder político do Areópago, por volta de 461 a.C – uma espécie de suprema corte até então coalhada de oligarcas), Péricles (o principal expoente da primeira democracia), Aspásia (sua amante, entre outras coisas, mas que não podia participar da democracia por duas razões: ser mulher e ser estrangeira) e Protágoras (aqui representando os sofistas, esses seres vulneráveis à democracia que foram vítimas de terríveis e injustos ataques de Platão e, claro, dos oligarcas).

De nenhum desses chegou a nós qualquer escrito. Aliás, não há nenhum texto teórico dos século 5 e 4 defendendo a democracia que tenha sobrevivido (se é que algum foi escrito). Só sabemos que houve democracia, por testemunhos indiretos da época do auge democrático (século 5 a.C.), por Ésquilo (em 472 a.C., Os Persas) e Eurípedes (em 425-16 a.C., As Suplicantes). E também por dois historiadores: Heródoto e Tucídides, que provavelmente nunca se converteram à democracia.

Então a primeira galeria é singela (e nela a imagem de Efialtes é totalmente inconfiável). Não aparece aqui o introdutor (ou os introdutores) do sorteio, sem o qual jamais teríamos ouvido a palavra democracia, pois se fosse para continuar disputando tudo no voto, os remanescentes da aristocracia fundiária, contrários à democracia, que tinham mais recursos para arrebanhar e subornar pessoas, venceriam todas ou quase todas as disputas (como de fato aconteceu, frequentemente, nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes).

A collage of statues of men

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 Pulando mais de dois milênios, passemos agora aos modernos que criaram as bases conceituais para a reinvenção da democracia, começando com Spinoza (vinte anos antes de Locke) (1670), seguido por Locke (1689), Montesquieu (1749), Rousseau (1762), Jefferson (representando os redatores da Declaração de Independências dos EUA) (1776), Madison (representando os federalistas Hamilton e Jay) (1787-88), Paine (1791), Constant (1819), Tocqueville (1835), Mill (1859), Dewey (1937-39), Popper (1945) e Arendt (c. 1950).

A collage of portraits of men

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 Bem, agora vêm os pensadores que fizeram a ponte entre os modernos e os contemporâneos: Berlin (1969), Dahl (1972-98), Havel (1978), Lefort (1981), Bobbio (1981-84), Castoriadis (1986), Dahrendorf (1990), Rawls (1993), Maturana (1993), Sen (1999), Przeworski (1985), Fukuyama (1995) e Rancière (2005).

 Em seguida, mais duas galerias de contemporâneos, cujos nomes os leitores não vão ter muita dificuldade de associar às imagens abaixo; embora aqui estejam em ordem alfabética: Applelbaum, Carothers, Castells, Coppedge, Diamond, Foa, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Krauze, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, Naim, O’Donnell, Plattner, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt. Nem todos, porém, estão retratados.

A collage of men wearing suits

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A collage of several people

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 Claro que nas duas galerias acima não estão todos os pensadores (ou autores) contemporâneos da democracia. São apenas alguns exemplos destacados.

No entanto, estudar esses autores não é o único caminho – nem talvez o mais curto – para que as pessoas despertem para a democracia. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, ela se aprende melhor pelo avesso. Em outras palavras, aprender democracia é desaprender autocracia. Um dos caminhos, portanto, é explorar as distopias, nas quais os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase) e podem ser mais facilmente identificados. O reconhecimento desses padrões na vida cotidiana é o melhor indicador de aprendizagem da democracia.

Então, a próxima galeria reúne os principais distopistas: Jerome K. Jerome (1981 em A nova utopia); Yevgeny Zamyatin (1921 em Nós); Aldous Huxley (1932 em Admirável mundo novo); Arthur Koestler (1940 em O zero e o infinito, ou melhor, Escuridão ao meio dia); George Orwell (1945, em A revolução dos bichos, ou melhor, Fazenda dos animais; e também 1949, em 1984); Ray Bradbury (1953 em Fahrenheit 451); William Golding (1954 em O senhor das moscas); e Daniel Wallace (2015 em Star Wars: manual do império). Aqui, novamente, não estão todos; por exemplo, falta, entre outros, Margaret Atwood (1985 em O contro da aia).

 Por último, há os grandes ficcionistas (ditos às vezes “científicos”), fundadores de mundos imaginários que, ainda mais que os distopistas considerados acima, revelam uma camada interpretativa das configurações sociais que permitem a ereção de sistemas autocráticos. Vale a pena destacar pelo menos três: Isaac Asimov (1951-53, pela trilogia Fundação, e 1982-93 pela extensão da série); Frank Herbert (1965-85 pela série Duna) e Philip Dick (1962 pelo O homem do castelo alto).

A collage of men with beards

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 Algumas obras fundamentais dos construtores da “tradição” democrática moderna, de Baruch de Spinoza a Amartya Sen, estão disponíveis na nota Tratamento para o analfabetismo democrático. É possível que, futuramente, sejam disponibilizadas também as obras principais dos demais presentes nas galerias acima.

Um teste sobre democracia para os membros do STF

O poder judiciário deve dizer o que é legal ou ilegal de acordo com a sua interpretação das leis escritas.

Em democracias:

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos éticos: não podem dizer o que é bom ou mau.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos “históricos”: não podem dizer o que é civilizatório ou não civilizatório.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos epistemológicos: não podem dizer o que é verdadeiro ou falso; nem o que é científico ou não científico.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos políticos: não podem dizer o que é politicamente correto ou incorreto.

Cortes supremas, em especial, devem se ater ao que é constitucional ou não. Se forem se meter a dizer, por exemplo, o que é democrático ou antidemocrático assumirão funções políticas.

Porque juízos dessa natureza dependerão das particulares concepções de democracia de seus membros, das suas orientações ou preferências políticas. E dependerão do grau de “alfabetização democrática” de seus membros, que muitas vezes é deficiente. Sim, frequentemente, notável saber jurídico não significa notável “saber democrático” (entre aspas porque a democracia não é propriamente um saber e sim um modo de se comportar politicamente).

Mesmo assim, é duvidoso se a maioria dos membros do nosso atual STF conseguiria ser aprovada com louvor num teste simples de dez perguntas fundamentais sobre democracia. Por exemplo:

1) Democracia é a mesma coisa que Estado de direito? Por que?

2) Por que, para a democracia, o sentido da política não pode ser a ordem e sim a liberdade?

3) A democracia depende mais da capacidade do Estado de impor suas leis à sociedade ou da possibilidade da sociedade de controlar o Estado?

4) A democracia conseguiria subsistir só com base em leis escritas? Qual o papel das leis não escritas (ἄγραφοι νόμοι) na consolidação da democracia?

5) Por que a reforma distrital, proposta por Clístenes em 508 a.C., substituindo o genos (γένος) pelo demos (δήμος), é considerada o marco fundador da primeira democracia?

6) Por que a reforma do Areópago, proposta por Efialtes em 461 a.C., retirando daquele tribunal supremo o poder político, foi fundamental para o desenvolvimento da primeira democracia?

7) Por que o Brasil não está incluído na lista das 32 democracias liberais do V-Dem 2024 (Austrália, Bélgica, Costa Rica, República Checa, Dinamarca, Estônia, Finlândia, Alemanha, Islândia, Irlanda, Japão, Letônia, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Seicheles, Espanha, Suécia, Suíça, Taiwan, EUA, Barbados, Butão, Canadá, Chile, França, Itália, Noruega, Coréia do Sul, Suriname, Reino Unido, Uruguai)?

8) Por que o Brasil não está incluído na lista das 24 democracias plenas (full democracies) da The Economist Intelligence Unit 2023 (Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Suíça, Holanda, Taiwan, Luxemburgo, Alemanha, Canadá, Austrália, Uruguai, Japão, Costa Rica, Áustria, Reino Unido, Grécia, Maurício, Coreia do Sul, França, Espanha)?

9) Você conhece as principais obras da “tradição” democrática moderna; por exemplo, de Althusius, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, von Humbolt, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Bobbio, Lefort, Castoriadis, Maturana, Rawls, Berlin, Havel, Dahrendorf, Sen e Dahl – para ficar até o final do século 20? Quantos desses autores você já estudou?

10) Você conhece as obras (livros ou artigos) de teóricos contemporâneos da democracia; por exemplo, de Carothers, Coppedge, Diamond, Foa, Fukuyama, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, O’Donnell, Plattner, Przeworski, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt? Quantos textos desses autores você já leu?

Talvez Luís Roberto Barroso, presidente do STF, queira contraditar este artigo. Poderia começar, ele mesmo, se submetendo ao teste acima. E depois nos explicando o seguinte: se uma força política não tem como estratégia dar golpes de Estado, isso significa que ela é democrática?

Sobre o estranho conceito de “democracia militante”

Como começou essa praga de “democracia militante”? Começou com Karl Loewenstein (1937), que acreditava que os nazistas só poderiam ser resistidos pela adoção de seus próprios métodos, defendendo a “preservação da democracia por métodos não democráticos”. Ele avaliava que as leis ordinárias não seriam capazes de afastar a ameaça fascista. Assim, ele recomendou medidas de repressão contra órgãos que possam entrar legalmente na política eleitoral e subverter o sistema por dentro. Por exemplo, a vigilância rigorosa das comunicações para coibir o Lügenpresse (“fake news”).

Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante.

Essas conversas de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’ são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.

O texto fundamental a ser estudado, para começar, é: Loewenstein, Karl (1937). Militant Democracy and Fundamental Rights I e II. The American Political Science Review Vol 31 Números 3 e 4.

O assunto é relevante porque esse estranho conceito vem infectando a cabeça de importantes juristas e membros do STF.

Eis a conclusão dos dois papers (cujos PDF estão linkados acima) de Loewenstein, efetuada por IA.

Conclusão

Como demonstrado por esta pesquisa, a democracia em autodefesa contra o extremismo não permaneceu de forma alguma inativa. Finalmente, o feitiço aterrorizante do olhar de basilisco do fascismo foi quebrado; a democracia europeia ultrapassou o fundamentalismo democrático e ascendeu à militância. A técnica fascista foi discernida e está sendo enfrentada por uma contração eficaz. Fogo é combatido com fogo. Muito foi feito; ainda há mais a ser feito. Nem mesmo o máximo de medidas de defesa em democracias é igual ao mínimo de autoproteção que o estado autoritário mais leniente considera indispensável. Além disso, a democracia deve estar em guarda contra otimismo excessivo. Superestimar a eficiência final das disposições legislativas contra a técnica emocional fascista seria um autoengano perigoso. O livro de estatutos é apenas um expediente subsidiário da vontade militante de autopreservação. Os estatutos mais perfeitamente redigidos e concebidos não valem o papel em que são escritos, a menos que sejam apoiados por uma vontade indomável de sobreviver. Se uma defesa bem-sucedida é finalmente possível depende de muitos fatores a serem discutidos aqui. Tradições nacionais, considerações econômicas, estratificação social, padrão sociológico e técnica jurídica específica de cada país individual, bem como a tendência da política mundial, entram em jogo. Para superar definitivamente o perigo da Europa se tornar totalmente fascista, seria necessário remover as causas, ou seja, mudar a estrutura mental desta era das massas e da emoção racionalizada. Nenhum esforço humano pode forçar tal curso na história. O governo emocional de uma forma ou de outra deve ter seu caminho até ser dominado por novos métodos psicotécnicos que regularizem as flutuações entre racionalismo e misticismo.

Talvez tenha chegado o momento em que não seja mais sensato fechar os olhos para o fato de que a democracia liberal, adequada, em última análise, apenas para os aristocratas políticos entre as nações, está começando a perder o dia para as massas despertas. A salvação dos valores absolutos da democracia não deve ser esperada da abdicação em favor do emocionalismo, utilizado para propósitos devassos ou egoístas por líderes autoproclamados, mas pela transformação deliberada de formas obsoletas e conceitos rígidos em novas instrumentalidades de democracia “disciplinada” ou mesmo — não nos acanhemos da palavra — “autoritária”. Se esse objetivo é alcançado pela transubstanciação das técnicas parlamentares tradicionais como na Bélgica, Tchecoslováquia e, por último, mas não menos importante, Grã-Bretanha, ou pelos dispositivos diretos de reformulação constitucional como no Estado Livre Irlandês ou na Estônia, é talvez de importância secundária quando comparado com o fim imediato, a saber, que aqueles que controlam o emocionalismo das massas devem ser tornados, por processos constitucionais, final e irrevogavelmente responsáveis ​​perante o povo.

Nesse sentido, a democracia tem que ser redefinida. Deveria ser — pelo menos para o estágio de transição até que um melhor ajuste social às condições da era tecnológica tenha sido alcançado — a aplicação de autoridade disciplinada, por homens de mente liberal, para os fins últimos do governo liberal: dignidade humana e liberdade.

Enquanto isso, uma vez que a maioria das pessoas em todas as democracias sob observação ainda é avessa à mentalidade fascista, o mínimo que se deve esperar é que os governos encarregados dos processos constitucionais estejam dispostos a enfrentar e derrotar a técnica fascista em seu próprio campo de batalha. O primeiro passo em direção à tão necessária Internacional democrática é a conscientização do perigo comum, juntamente com o reconhecimento do que foi feito em termos de defesa por outras nações em situações semelhantes. Negligenciar a experiência de democracias falecidas seria equivalente a se render por democracias vivas.

Obviamente, nenhum país é imunizado do fascismo como um movimento mundial. Uma vez que esse fato incontestável é reconhecido, a questão se sugere sobre se medidas legislativas contra o fascismo incipiente são talvez necessárias nos Estados Unidos. Investigar possibilidades nessa direção estaria além dos limites do presente estudo. Se, no entanto, a questão for respondida afirmativamente, um segundo problema se torna o de elaborar legislação antiextremista federal ou estadual em conformidade com o fundamentalismo elaborado de direitos constitucionais consagrados na constituição americana.