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A queda da categoria “extremista”

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: “Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar”.

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino. 

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho). 

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria “extremista” é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas – não depois que chegaram ao poder. 

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis” e “Três Antis”).

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto – juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) – compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.

Desenvolvimento, capital social e democracia

O autor não conseguiu encontrar o local onde este texto foi originalmente publicado. Nem a data. Presume-se que deve ter sido escrito entre 2005 e 2008. 

1 – Em geral não se leva muito em conta que o desenvolvimento econômico deve ser interpretado como prosperidade econômica, medida como aumento da riqueza, não em termos absolutos ou médios, mas em termos do aumento do acesso das pessoas à propriedade produtiva e a melhoria das suas condições (e, portanto, o aumento de suas chances) de sucesso na realização dessa propriedade. Prosperidade econômica ainda é a melhor expressão do desenvolvimento econômico de uma sociedade e deve significar que mais e mais pessoas estão podendo não simplesmente obter renda, senão também gerá-la diversificadamente. Implica, portanto, para além da distribuição da renda, desconcentração da riqueza.

2 – Se a concentração da renda no Brasil é absurda (estamos entre os países mais injustos do mundo em termos de desigualdade de renda), também é injusta a distribuição da riqueza. Com efeito, se a maior parte (cerca de 70%, talvez) do faturamento bruto de todas as empresas fica nas mãos de uma pequena parcela (menos de 2%) das empresas, então estamos diante de uma monumental concentração de riqueza. Isso não é captado diretamente por indicadores de desigualdade de renda e nem por indicadores de aumento geral de riqueza (como o PIB).

3 – Há quem ache que tudo vai se resolver com a criação geral de mais riqueza e com a distribuição da renda. Há quem ache que se distribuirmos a renda então isso vai levar à distribuição da riqueza. Mas talvez tenha que haver alguma desconcentração de riqueza para que haja uma distribuição da renda. Em outras palavras, distribuir renda não é uma tarefa fácil enquanto a outra variável econômica que comparece na equação do desenvolvimento – a riqueza – permanecer tão concentrada. Ora, enquanto isso, enquanto a riqueza permanecer tão concentrada, pode até haver crescimento econômico, mas não haverá desenvolvimento econômico porque não haverá prosperidade econômica, a qual pressupõe diversidade econômica co-implicada no aumento da circulação de mercadorias (inclusive de moeda).

4 – Isso para não falar de outros fatores – extra-econômicos – que também comparecem na equação do desenvolvimento, como, por exemplo, o conhecimento e o poder. Ou seja, isso para não falar do desenvolvimento em um sentido mais sistêmico e global, para além do desenvolvimento econômico.

5 – Nos últimos anos tem se reforçado a hipótese de que o fenômeno de mudança que interpretamos como desenvolvimento econômico não é, na verdade, tão estritamente econômico quanto se pensa. Aparece como desenvolvimento econômico em virtude de interpretação fragmentária de um fenômeno que é global, envolvendo, para além da renda e da própria riqueza (ou seja, das internalidades), outras variáveis como conhecimento, poder, meio ambiente (que são consideradas externalidades).

6 – Mas mesmo para que haja o tal desenvolvimento econômico, interpretado como prosperidade econômica, é necessário, para além do crescimento econômico, que mais pessoas, individual e coletivamente, consigam empreender mais e ter mais sucesso em seus empreendimentos. Ora, para isso é necessário que mais pessoas tenham mais conhecimento (um dos componentes, talvez o principal, do que se chama, metaforicamente, de “capital humano”) e que os ambientes sociais em que essas pessoas convivem sejam ambientes capazes de encorajá-las a empreender mais e a adquirir mais conhecimento para empreender melhor.

7 – Esse encorajamento é uma espécie de poder (um “poder” social, não caracteristicamente político) que passa das coletividades para os indivíduos. É como um campo de força que aciona (energiza) elementos nele imersos por indução (na acepção física – como na indução eletromagnética – e não lógica do conceito). Esse é o processo que foi chamado de empoderamento, o qual tem a ver não com o poder de mandar, ou seja, com a possibilidade e a capacidade de um indivíduo ou grupo de impor sua vontade a outros indivíduos em virtude de algum atributo diferencial (força, saber ou riqueza), institucionalizado ou não e sim com os padrões de convivência social, vale dizer, com a configuração da rede social existente. Quem empodera é a rede social (que pode, então, também em termos metafóricos, ser interpretada como um outro tipo de capital, o chamado “capital social”).

8 – O fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico não pode ocorrer isoladamente. É um aspecto de uma mudança que envolve mudanças em vários outros fatores além daqueles que são considerados como internalidades econômicas. A incompreensão desse processo complexo levou os pensadores econômicos a imaginar que seriam as mudanças na renda e na riqueza (ou, em geral, apenas na renda ou no produto) que levariam a mudanças nos outros fatores extra-econômicos. Estabeleceu-se, assim, um modelo linear e unívoco, que parte do econômico (= a causa) em direção a outros fatores considerados sociais – sócio-culturais, sócio-políticos, sócio-ambientais etc – (= os efeitos).

9 – Essa é a razão pela qual o que se chama de política social sempre foi visto como uma política de segunda classe, já que ela não trabalharia com a causa e sim com os efeitos e, dessarte, não poderia ser tão estratégica quanto a política econômica. Caberia à política social compensar as defasagens de inserção no processo de desenvolvimento, quando os processos intra-econômicos não foram, por alguma razão extra-econômica que atrapalha o funcionamento dos mecanismos de distribuição econômica, capazes de incorporar “automaticamente” os excluídos. Para esse pensamento, contudo, o remédio principal para a inclusão, a receita que vale de fato, é a econômica, pelo incremento da renda, em geral via salário, quer dizer como remuneração do trabalho (de alguém que foi empregado para realizar a propriedade produtiva de outrem, subordinado ao sonho alheio) e não como recompensa ao empreendedorismo (como apropriação de um sobrevalor gerado pelo trabalho de realizar a própria propriedade produtiva) como deveria inspirar a utopia da livre iniciativa capitalista.

10 – Segundo esse modelo, se queremos promover a desenvolvimento social, então temos que promover o desenvolvimento econômico. E como o desenvolvimento econômico é visto como o resultado mais ou menos automático do crescimento econômico, então tudo se resume a promover o crescimento econômico.

11 – Ocorre que as relações entre as diversas variáveis do desenvolvimento são plurívocas. Nesse sistema complexo, não-linear, os supostos efeitos retroagem sobre a imaginada causa e todos os fatores interagem entre si. Então, quando acontece o fenômeno que interpretamos como desenvolvimento econômico, é porque vários outros fenômenos inter-relacionados aconteceram também.

12 – Pode-se dizer que a renda permite acesso ao conhecimento necessário para a geração de mais renda (sem o que, por um lado, não pode existir prosperidade econô-mica). Como isso é muito plausível, as pessoas costumam imaginar que tudo depende, nas sociedades de consumo, de ter mais renda para ter mais acesso à educação (ou à capacitação). No entanto, temos aqui apenas uma parte da história. Pois é difícil imaginar que a renda auferida individualmente consiga construir ambientes sociais favoráveis ao sucesso dessa geração de renda (sem o que, por outro lado, também não pode existir prosperidade econômica). Em outras palavras, para realizar a propriedade produtiva é necessário, além do capital humano, um certo estoque ou fluxo de capital social. Porque quanto menor o capital social menos chances de sucesso os empreendimentos terão e, portanto, menor será o grau de realização distribuída da propriedade produtiva.

13 – Como capital social não pode ser comprado, é um bem público que não pode ser adquirido no mercado, ele tem que ser gerado. Gerar capital social – como se sabe, desde que Jane Jacobs inventou o conceito – é a mesma coisa que tramar redes sociais. Mas o incremento da renda per capita não é capaz, por si só, de aumentar a trama do tecido social. Em contrapartida, se aumentamos – por que meio for – a trama do tecido social, aumentam as chances de sucesso dos empreendimentos produtivos.

14 – Desse ponto de vista poder-se-ia inverter a sentença: se queremos promover o desenvolvimento econômico então temos que promover o desenvolvimento social. A inteligência mediana retrucará que, apenas invertendo a implicação simples (‘desenvolvimento econômico => desenvolvimento social’) que vige na cabeça da maioria dos economistas, policymakers e jornalistas na atualidade, não se resolve o problema. Estaríamos trocando uma relação linear, baseada em uma crença de causalidade unívoca, por outra também linear, igualmente incapaz de captar a complexidade do fenômeno. A objeção é verossimilhante: por algum motivo as pessoas têm a impressão de que a verdade está no meio (daí a popularidade dos dísticos “nem 8, nem 80”, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”) e gostam de evitar os extremos. Ademais, soa razoável dar o mesmo peso a todos os fatores do desenvolvimento, haja vista, como se argumentou acima, que o que interpretamos, fragmentariamente, como desenvolvimento econômico, é um aspecto de um fenômeno de mudança global mais complexa. De sorte que o mesmo deveria valer para o desenvolvimento social, ou seja, o que interpretamos como desenvolvimento social poderia ser um aspecto, captado pela percepção fragmentária, do fenômeno de mudança mais global (o desenvolvimento em termos sistêmicos).

15 – Entretanto, a mudança que queremos interpretar como desenvolvimento, mesmo em termos sistêmicos, é uma mudança que ocorre sempre na sociedade humana. Ou seja, é uma mudança social, nas relações concretas entre as pessoas que vivem em sociedade e não nas relações entre os elementos de um esquema abstrato que foi construído para explicar uma classe qualquer de fenômenos observados na sociedade, como, por exemplo, a “máquina econômica” inventada pelos economistas.

16 – Em outras palavras, desenvolvimento, seja o que for, é alguma coisa que acontece na sociedade humana. Isso significa que todo desenvolvimento é, sempre e antes de qualquer coisa, desenvolvimento social. Não pode haver nenhum tipo de desenvolvimento que não seja desenvolvimento social. Pois desenvolvimento é um conceito que se aplica a sociedades humanas e não a outros sistemas (de seres animados ou inanimados). Só metaforicamente pode-se falar de desenvolvimento de uma colônia de insetos, de um processo industrial ou de uma teoria.

17 – Pois bem. Existem evidências suficientes para corroborar a hipótese de que o desenvolvimento é um fenômeno próprio das redes sociais, é como se fosse um aprendizado dessas redes. Uma sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo a manter uma congruência dinâmica com o meio. Em outras palavras, uma sociedade se desenvolvendo significa uma rede social mudando com a mudança das circunstâncias, ou seja, realizando o processo de se tornar sustentável. Desse ponto de vista não há nenhuma diferença entre os termos ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’.

18 – Uma nova visão do desenvolvimento social que emerge da compreensão das redes sociais é uma (talvez a única) visão compatível com a noção de capital social. No principio está a rede. O que chamamos de ‘social’ refere-se à rede social. A configuração e a dinâmica de sua rede social é o que podem explicar, em um nível mais profundo, os fenômenos que acontecem em uma sociedade. Uma sociedade só é distinguível de outra porque sua rede social é diferente da rede social da outra sociedade. A identidade de uma sociedade pode ser compreendida, nesse nível de profundidade, por padrões de tecitura social e de fluxos recorrentes ou circuitos ativados. Embora a rede seja móvel, embora os fluxos que a percorrem sejam diferentes em cada instante, existem padrões, invariantes que são próprios daquela particular coletividade. O retrato desses padrões é a impressão digital de uma particular sociedade. Aquilo que permanece constante na configuração e na dinâmica de uma rede social é a “carteira de identidade” da particular sociedade onde essa rede foi observada.

19 – Todavia, assim como a teia da vida que liga os elementos de um ecossistema é invisível para os olhos, assim também ocorre com a teia social que estabelece as conexões entre as pessoas e os grupos em uma sociedade. São essas conexões que caracterizam os padrões de convivência social. Anisotropias criadas nesse tecido social, singularidades geradas nesse “espaço”, condicionam fluxos, constroem caminhos preferenciais para esses fluxos. Perturbações introduzidas nesse espaço vão percorrer o sistema seguindo caminhos construídos por repetição, pré-cursos que foram sulcados pelo transito diferencial de mensagens. O software modifica o hardware. A dinâmica da rede constrói sua configuração. Um caminho muito trilhado é um canal com mais capacidade. Redes de conversações acionadas com grande freqüência são como ruas que ligam bairros construídos em uma cidade. Tornam-se padrões invariantes na geografia urbana. O sistema que resulta dessas múltiplas anisotropias conforma a identidade de um espaço social, quer dizer, uma rede social particular, identificável.

20 – A analogia da rede social com a cidade tem muito poder heurístico. Mas é mais do que isso: as cidades – ou, em termos ainda mais genéricos, as localidades – são redes sócio-territoriais. As cidades são resultados de comportamento coletivo. Elas se auto-organizam, mesmo as que foram planejadas se reorganizam, tornando-se, todas, auto-planejadas, bottom up. Mas só podem fazer isso porque têm artérias, canais, circuitos ligando suas várias localidades (regiões administrativas, bairros, ruas e praças e outros equipamentos e casas). Por esses canais fluem as mensagens. Assim, dentre os múltiplos caminhos percorridos, afirmam-se como principais aqueles mais trafegados.

21 – Tal ocorre com a rede social que está por trás da rede urbana. Mais do que isso: tal só ocorre no espaço urbano (territorial) porque ocorre no espaço das conexões entre pessoas e grupos (social). Isso é a localidade do ponto de vista do desenvolvimento sustentável.

22 – Sustentabilidade é o que chamamos de desenvolvimento com base em um modelo regulacional da mudança, ou seja, um modelo que não é nem (apenas) transformacional, nem (apenas) variacional. Transformações e variações acontecem o tempo todo. Mas transformações não são unicamente o desdobramento de um projeto prefigurado, contido em germe, em um programa arquivado em um genoma. E variações não são o resultado da replicação imperfeita desse projeto diante da mudança totalmente aleatória das circunstâncias. A nova ordem implicada na mudança só pode emergir porque a transformação e a variação passam a ser reguladas. Essa nova ordem emerge quando há regulação da mudança. Quem regula a mudança, desse ponto de vista, é a rede social. Ela se adapta e conserva seus padrões de adaptação. Ela só consegue conservar a adaptação porque reconstrói (ou seja, muda) seus programas de adaptação a partir desse padrão (a identidade de uma rede social). Sustentabilidade, isto é, desse ponto de vista, desenvolvimento, só pode existir quando existe ordem emergente, quer dizer, auto-regulada.

23 – Novamente aqui é evocado um poderoso paralelo heurístico. Se em termos biológicos sustentabilidade é a mesma coisa que vida, em termos sociais sustentabilidade é a mesma coisa que desenvolvimento. A vida cessa quando se rompe a congruência entre o indivíduo e o meio, o que significa incapacidade de manter uma correspondência dinâmica com os outros elementos da rede que possibilite a autopoiese. O desenvolvimento (sustentável) ocorre a não ser enquanto exista auto-regulação social.

24 – Mas há ainda um outro paralelo heurístico. Assim como o processo de vida é análogo ao processo de conhecimento, o processo social – ou seja, o processo de desenvolvimento social de um ponto de vista regulacional (ou para uma teoria sistêmica do desenvolvimento, poder-se-ia dizer) – é também comparável ao processo de conhecimento. É assim que se pode então dizer que a sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Aprendendo o quê? Aprendendo a se auto-regular. Aprender, aqui, significa ser capaz de reconstruir seu programa de adaptação; ou seja, ser capaz de construir um outro (novo) programa a partir da (mesma) matriz de identidade, quer dizer, do mesmo padrão que caracteriza uma sociedade particular porque contém os invariantes da configuração e da dinâmica de sua rede social.

25 – Ocorre que uma sociedade particular capaz de fazer isso é sempre uma sociedade local. É por isso que se diz que todo desenvolvimento (sustentável) é local, porque todo bottom up é local, porque todos os conhecimentos tomados (a partir de baixo) são locais, quer dizer, são tomados com base em avaliações locais das circunstâncias mais amplas ou das condições mais gerais. A emergência (quer dizer, o surgimento de uma nova ordem por auto-regulação) se dá a partir do local; inclusive uma ordem emergente de caráter mais global é construída a partir de interações locais.

26 – Sistemas complexos são capazes de fazer isso, ou seja, de configurar ordem mais global (macrocomportamentos) a partir de regras locais, tornando-se capazes de comportamento emergente, de inteligência coletiva, de swarm intelligence, quando seus elementos se concentram na solução dos mesmos problemas (que são, então, forçosamente, problemas locais).

27 – Sociedades (de massa) não são capazes de fazer isso, mas comunidades (de projeto) sim. Ou melhor, sociedades só são capazes de fazer isso se as comunidades de projeto que se formaram no seu seio fizerem isso, como percebeu Jane Jacobs, em outros termos, há 40 anos. Só comunidades de projeto – que se dedicam, por milhares de micromotivos diferentes das pessoas e grupos que as compõem – à resolução dos mesmos problemas locais, podem ser capazes de adquirir a dinâmica de sistemas complexos adaptativos e, assim, podem ser sustentáveis. É por isso que uma nova visão do desenvolvimento como a que está sendo cogitada aqui aponta para o desenvolvimento local. Desenvolvimento local, nesse sentido, não é uma redução, não é uma particularização. Desenvolvimento local nada mais é do que desenvolvimento comunitário, ou seja, desenvolvimento de comunidades de projeto a partir dessas próprias comunidades. Desenvolvimento, nesse sentido, é uma emergência. E o terreno da emergência é o local.

28 – Só redes podem aprender, mas não é qualquer rede que aprende. Só redes podem ser sustentáveis, mas não é qualquer rede que pode ser sustentável. No que tange a sociedades humanas, só em comunidades de projeto o tecido social pode atingir o grau de tramatura suficiente para ensejar a fenômeno da autorregulação. Comunidades são sociedades que atingiram certo grau de tramatura do seu tecido social. Uma ordem na sociedade global – se não for autocrática – só poderá emergir, quer dizer, vir de baixo, do local.

29 – Tudo isso pode ser analisado por teorias do capital social se considerarmos que o fator do desenvolvimento designado pela noção de capital social nada mais é do que a rede social. É o grau de conectividade, o número de caminhos (medido, se quisermos, pela ‘extensão característica de caminho’ ou pelo ‘comprimento de corrente’) existentes entre os nodos de uma rede social que dá o poder social de uma sociedade, ou seja, a sua capacidade de empoderar os seus elementos para que eles criem, inovem, empreendam, assumam protagonismo – enfim, se desenvolvam na medida em que desenvolvem o coletivo do qual fazem parte. Desenvolvimento (sustentável) é, assim, a coincidência de auto-desenvolvimento e comum-desenvolvimento. Em outras palavras, desenvolvimento é sempre a operação de uma rede de co-desenvolvimentos interdependentes

30 – Qualquer ordem não-autocrática só pode existir se for emergente. Temos aqui uma pista para estabelecer um nexo conotativo entre desenvolvimento e democracia. Assim como o desenvolvimento é o ‘aprender’ de uma comunidade, a democracia é um ‘deixar aprender’. Como pacto de convivência, a democracia é um modo de regulação de conflitos que preserva a existência dos conflitantes, que permite a continuidade de sua experiência de convivência social, que possibilita a expansão continuada dos graus de liberdade para que possa haver cada vez mais experimentação e mais aprendizagem e, por conseguinte, mais desenvolvimento.

31 – É por isso que não pode haver desenvolvimento (tomado em termos regulacionais, na visão proposta aqui, ou seja, desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade) sem democracia. Ou melhor, é por isso que mais desenvolvimento (ou sustentabilidade) implica mais democracia, avanço do processo de democratização, de democratização da democracia. Pode haver crescimento (da renda, da riqueza ou de qualquer outra variável extra-econômica da equação do desenvolvimento, como o conhecimento, por exemplo) sem democracia, mas não pode haver, nesse sentido, desenvolvimento.

32 – E é por isso que desenvolvimento depende da produção de capital social, ou seja, da capacidade de uma sociedade de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Em outras palavras, é por isso que desenvolvimento depende da capacidade de uma sociedade de constituir comunidade, de tramar o seu tecido social a ponto de permitir a eclosão dos fenômenos associados à emergência (multiplicidade, diversidade, reverberação, circuitos de retroalimentação de reforço ou de feedback positivo etc.).

33 – Ora, na sociedade (em termos genéricos; ou seja, nas sociedades humanas) quem pode fazer isso na escala e com a intensidade necessárias é o tipo de agenciamento chamado sociedade civil (ou comunidade, no sentido em que Offe e os teóricos alemães empregam o termo), esfera da realidade social caracterizável por uma racionalidade cooperativa e baseada em uma “lógica” participativa. Não é o Estado, caracterizado por uma racionalidade normativa e baseado em uma “lógica” representativa e delegativa, produtor, por excelência (e por definição) de ordem top down, ainda que o Estado possa também induzir processos bottom up, quando consegue estimular a sociedade civil a produzir capital social (ou quando se abstém de desestimulá-la, renunciando a programas baseados em uma padrão de relação centralizador, assistencialista, clientelista e adversarial). Nem o mercado, caracterizado por uma racionalidade competitiva, muito embora o mercado também produza algum tipo de ordem emergente.

34 – Impõe-se como necessária não a oposição entre essas esferas da realidade social – o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou comunidade) – mas a sua combinação virtuosa que pode surgir quando se busca extrair sinergias da sua atuação combinada. O Estado, sozinho, tenderá a induzir o desenvolvimento a partir de um modelo transformacional (a partir de um plano e de regulações exógenas) e o mercado, deixado ao léu da sua própria “lógica”, o fará – sem querer – a partir de um modelo variacional (apostando na sobrevivência dos que melhor se adaptaram). É por isso que cumpre um papel tão estratégico a participação da sociedade civil, de vez que somente a sociedade civil consegue suportar uma dinâmica endógena regulacional gerando novos macrocomportamentos a partir da composição de muitos quereres, de miríades de micromotivos. Para que tal aconteça, entretanto, é necessário instaurar uma atmosfera de liberdade coletiva, um clima de confiança que encoraje as pessoas, coletivamente, a sonhar e a correr atrás dos próprios sonhos, ensejando seu aprendizado – como soe ocorrer em uma comunidade de projeto sob a democracia.

Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.

Galerias da Democracia

Começando pelo princípio: os “pais fundadores” atenienses, se a democracia tivesse propriamente fundadores. Não tem. E se tivesse haveria uma mãe, que adquiriu reputação de puta (diz-se que pela maledicência dos oligarcas): Aspásia de Mileto. O que temos aqui? Clístenes (em virtude da reforma distrital que propôs e implantou a partir de 508 a.C.), Efialtes (em razão da reforma que retirou o poder político do Areópago, por volta de 461 a.C – uma espécie de suprema corte até então coalhada de oligarcas), Péricles (o principal expoente da primeira democracia), Aspásia (sua amante, entre outras coisas, mas que não podia participar da democracia por duas razões: ser mulher e ser estrangeira) e Protágoras (aqui representando os sofistas, esses seres vulneráveis à democracia que foram vítimas de terríveis e injustos ataques de Platão e, claro, dos oligarcas).

De nenhum desses chegou a nós qualquer escrito. Aliás, não há nenhum texto teórico dos século 5 e 4 defendendo a democracia que tenha sobrevivido (se é que algum foi escrito). Só sabemos que houve democracia, por testemunhos indiretos da época do auge democrático (século 5 a.C.), por Ésquilo (em 472 a.C., Os Persas) e Eurípedes (em 425-16 a.C., As Suplicantes). E também por dois historiadores: Heródoto e Tucídides, que provavelmente nunca se converteram à democracia.

Então a primeira galeria é singela (e nela a imagem de Efialtes é totalmente inconfiável). Não aparece aqui o introdutor (ou os introdutores) do sorteio, sem o qual jamais teríamos ouvido a palavra democracia, pois se fosse para continuar disputando tudo no voto, os remanescentes da aristocracia fundiária, contrários à democracia, que tinham mais recursos para arrebanhar e subornar pessoas, venceriam todas ou quase todas as disputas (como de fato aconteceu, frequentemente, nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes).

A collage of statues of men

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 Pulando mais de dois milênios, passemos agora aos modernos que criaram as bases conceituais para a reinvenção da democracia, começando com Spinoza (vinte anos antes de Locke) (1670), seguido por Locke (1689), Montesquieu (1749), Rousseau (1762), Jefferson (representando os redatores da Declaração de Independências dos EUA) (1776), Madison (representando os federalistas Hamilton e Jay) (1787-88), Paine (1791), Constant (1819), Tocqueville (1835), Mill (1859), Dewey (1937-39), Popper (1945) e Arendt (c. 1950).

A collage of portraits of men

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 Bem, agora vêm os pensadores que fizeram a ponte entre os modernos e os contemporâneos: Berlin (1969), Dahl (1972-98), Havel (1978), Lefort (1981), Bobbio (1981-84), Castoriadis (1986), Dahrendorf (1990), Rawls (1993), Maturana (1993), Sen (1999), Przeworski (1985), Fukuyama (1995) e Rancière (2005).

 Em seguida, mais duas galerias de contemporâneos, cujos nomes os leitores não vão ter muita dificuldade de associar às imagens abaixo; embora aqui estejam em ordem alfabética: Applelbaum, Carothers, Castells, Coppedge, Diamond, Foa, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Krauze, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, Naim, O’Donnell, Plattner, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt. Nem todos, porém, estão retratados.

A collage of men wearing suits

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A collage of several people

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 Claro que nas duas galerias acima não estão todos os pensadores (ou autores) contemporâneos da democracia. São apenas alguns exemplos destacados.

No entanto, estudar esses autores não é o único caminho – nem talvez o mais curto – para que as pessoas despertem para a democracia. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, ela se aprende melhor pelo avesso. Em outras palavras, aprender democracia é desaprender autocracia. Um dos caminhos, portanto, é explorar as distopias, nas quais os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase) e podem ser mais facilmente identificados. O reconhecimento desses padrões na vida cotidiana é o melhor indicador de aprendizagem da democracia.

Então, a próxima galeria reúne os principais distopistas: Jerome K. Jerome (1981 em A nova utopia); Yevgeny Zamyatin (1921 em Nós); Aldous Huxley (1932 em Admirável mundo novo); Arthur Koestler (1940 em O zero e o infinito, ou melhor, Escuridão ao meio dia); George Orwell (1945, em A revolução dos bichos, ou melhor, Fazenda dos animais; e também 1949, em 1984); Ray Bradbury (1953 em Fahrenheit 451); William Golding (1954 em O senhor das moscas); e Daniel Wallace (2015 em Star Wars: manual do império). Aqui, novamente, não estão todos; por exemplo, falta, entre outros, Margaret Atwood (1985 em O contro da aia).

 Por último, há os grandes ficcionistas (ditos às vezes “científicos”), fundadores de mundos imaginários que, ainda mais que os distopistas considerados acima, revelam uma camada interpretativa das configurações sociais que permitem a ereção de sistemas autocráticos. Vale a pena destacar pelo menos três: Isaac Asimov (1951-53, pela trilogia Fundação, e 1982-93 pela extensão da série); Frank Herbert (1965-85 pela série Duna) e Philip Dick (1962 pelo O homem do castelo alto).

A collage of men with beards

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 Algumas obras fundamentais dos construtores da “tradição” democrática moderna, de Baruch de Spinoza a Amartya Sen, estão disponíveis na nota Tratamento para o analfabetismo democrático. É possível que, futuramente, sejam disponibilizadas também as obras principais dos demais presentes nas galerias acima.

Um teste sobre democracia para os membros do STF

O poder judiciário deve dizer o que é legal ou ilegal de acordo com a sua interpretação das leis escritas.

Em democracias:

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos éticos: não podem dizer o que é bom ou mau.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos “históricos”: não podem dizer o que é civilizatório ou não civilizatório.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos epistemológicos: não podem dizer o que é verdadeiro ou falso; nem o que é científico ou não científico.

√  Tribunais de justiça não são instâncias válidas para fazer julgamentos políticos: não podem dizer o que é politicamente correto ou incorreto.

Cortes supremas, em especial, devem se ater ao que é constitucional ou não. Se forem se meter a dizer, por exemplo, o que é democrático ou antidemocrático assumirão funções políticas.

Porque juízos dessa natureza dependerão das particulares concepções de democracia de seus membros, das suas orientações ou preferências políticas. E dependerão do grau de “alfabetização democrática” de seus membros, que muitas vezes é deficiente. Sim, frequentemente, notável saber jurídico não significa notável “saber democrático” (entre aspas porque a democracia não é propriamente um saber e sim um modo de se comportar politicamente).

Mesmo assim, é duvidoso se a maioria dos membros do nosso atual STF conseguiria ser aprovada com louvor num teste simples de dez perguntas fundamentais sobre democracia. Por exemplo:

1) Democracia é a mesma coisa que Estado de direito? Por que?

2) Por que, para a democracia, o sentido da política não pode ser a ordem e sim a liberdade?

3) A democracia depende mais da capacidade do Estado de impor suas leis à sociedade ou da possibilidade da sociedade de controlar o Estado?

4) A democracia conseguiria subsistir só com base em leis escritas? Qual o papel das leis não escritas (ἄγραφοι νόμοι) na consolidação da democracia?

5) Por que a reforma distrital, proposta por Clístenes em 508 a.C., substituindo o genos (γένος) pelo demos (δήμος), é considerada o marco fundador da primeira democracia?

6) Por que a reforma do Areópago, proposta por Efialtes em 461 a.C., retirando daquele tribunal supremo o poder político, foi fundamental para o desenvolvimento da primeira democracia?

7) Por que o Brasil não está incluído na lista das 32 democracias liberais do V-Dem 2024 (Austrália, Bélgica, Costa Rica, República Checa, Dinamarca, Estônia, Finlândia, Alemanha, Islândia, Irlanda, Japão, Letônia, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Seicheles, Espanha, Suécia, Suíça, Taiwan, EUA, Barbados, Butão, Canadá, Chile, França, Itália, Noruega, Coréia do Sul, Suriname, Reino Unido, Uruguai)?

8) Por que o Brasil não está incluído na lista das 24 democracias plenas (full democracies) da The Economist Intelligence Unit 2023 (Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Suíça, Holanda, Taiwan, Luxemburgo, Alemanha, Canadá, Austrália, Uruguai, Japão, Costa Rica, Áustria, Reino Unido, Grécia, Maurício, Coreia do Sul, França, Espanha)?

9) Você conhece as principais obras da “tradição” democrática moderna; por exemplo, de Althusius, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, von Humbolt, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Bobbio, Lefort, Castoriadis, Maturana, Rawls, Berlin, Havel, Dahrendorf, Sen e Dahl – para ficar até o final do século 20? Quantos desses autores você já estudou?

10) Você conhece as obras (livros ou artigos) de teóricos contemporâneos da democracia; por exemplo, de Carothers, Coppedge, Diamond, Foa, Fukuyama, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, O’Donnell, Plattner, Przeworski, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt? Quantos textos desses autores você já leu?

Talvez Luís Roberto Barroso, presidente do STF, queira contraditar este artigo. Poderia começar, ele mesmo, se submetendo ao teste acima. E depois nos explicando o seguinte: se uma força política não tem como estratégia dar golpes de Estado, isso significa que ela é democrática?

Sobre o estranho conceito de “democracia militante”

Como começou essa praga de “democracia militante”? Começou com Karl Loewenstein (1937), que acreditava que os nazistas só poderiam ser resistidos pela adoção de seus próprios métodos, defendendo a “preservação da democracia por métodos não democráticos”. Ele avaliava que as leis ordinárias não seriam capazes de afastar a ameaça fascista. Assim, ele recomendou medidas de repressão contra órgãos que possam entrar legalmente na política eleitoral e subverter o sistema por dentro. Por exemplo, a vigilância rigorosa das comunicações para coibir o Lügenpresse (“fake news”).

Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante.

Essas conversas de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’ são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.

O texto fundamental a ser estudado, para começar, é: Loewenstein, Karl (1937). Militant Democracy and Fundamental Rights I e II. The American Political Science Review Vol 31 Números 3 e 4.

O assunto é relevante porque esse estranho conceito vem infectando a cabeça de importantes juristas e membros do STF.

Eis a conclusão dos dois papers (cujos PDF estão linkados acima) de Loewenstein, efetuada por IA.

Conclusão

Como demonstrado por esta pesquisa, a democracia em autodefesa contra o extremismo não permaneceu de forma alguma inativa. Finalmente, o feitiço aterrorizante do olhar de basilisco do fascismo foi quebrado; a democracia europeia ultrapassou o fundamentalismo democrático e ascendeu à militância. A técnica fascista foi discernida e está sendo enfrentada por uma contração eficaz. Fogo é combatido com fogo. Muito foi feito; ainda há mais a ser feito. Nem mesmo o máximo de medidas de defesa em democracias é igual ao mínimo de autoproteção que o estado autoritário mais leniente considera indispensável. Além disso, a democracia deve estar em guarda contra otimismo excessivo. Superestimar a eficiência final das disposições legislativas contra a técnica emocional fascista seria um autoengano perigoso. O livro de estatutos é apenas um expediente subsidiário da vontade militante de autopreservação. Os estatutos mais perfeitamente redigidos e concebidos não valem o papel em que são escritos, a menos que sejam apoiados por uma vontade indomável de sobreviver. Se uma defesa bem-sucedida é finalmente possível depende de muitos fatores a serem discutidos aqui. Tradições nacionais, considerações econômicas, estratificação social, padrão sociológico e técnica jurídica específica de cada país individual, bem como a tendência da política mundial, entram em jogo. Para superar definitivamente o perigo da Europa se tornar totalmente fascista, seria necessário remover as causas, ou seja, mudar a estrutura mental desta era das massas e da emoção racionalizada. Nenhum esforço humano pode forçar tal curso na história. O governo emocional de uma forma ou de outra deve ter seu caminho até ser dominado por novos métodos psicotécnicos que regularizem as flutuações entre racionalismo e misticismo.

Talvez tenha chegado o momento em que não seja mais sensato fechar os olhos para o fato de que a democracia liberal, adequada, em última análise, apenas para os aristocratas políticos entre as nações, está começando a perder o dia para as massas despertas. A salvação dos valores absolutos da democracia não deve ser esperada da abdicação em favor do emocionalismo, utilizado para propósitos devassos ou egoístas por líderes autoproclamados, mas pela transformação deliberada de formas obsoletas e conceitos rígidos em novas instrumentalidades de democracia “disciplinada” ou mesmo — não nos acanhemos da palavra — “autoritária”. Se esse objetivo é alcançado pela transubstanciação das técnicas parlamentares tradicionais como na Bélgica, Tchecoslováquia e, por último, mas não menos importante, Grã-Bretanha, ou pelos dispositivos diretos de reformulação constitucional como no Estado Livre Irlandês ou na Estônia, é talvez de importância secundária quando comparado com o fim imediato, a saber, que aqueles que controlam o emocionalismo das massas devem ser tornados, por processos constitucionais, final e irrevogavelmente responsáveis ​​perante o povo.

Nesse sentido, a democracia tem que ser redefinida. Deveria ser — pelo menos para o estágio de transição até que um melhor ajuste social às condições da era tecnológica tenha sido alcançado — a aplicação de autoridade disciplinada, por homens de mente liberal, para os fins últimos do governo liberal: dignidade humana e liberdade.

Enquanto isso, uma vez que a maioria das pessoas em todas as democracias sob observação ainda é avessa à mentalidade fascista, o mínimo que se deve esperar é que os governos encarregados dos processos constitucionais estejam dispostos a enfrentar e derrotar a técnica fascista em seu próprio campo de batalha. O primeiro passo em direção à tão necessária Internacional democrática é a conscientização do perigo comum, juntamente com o reconhecimento do que foi feito em termos de defesa por outras nações em situações semelhantes. Negligenciar a experiência de democracias falecidas seria equivalente a se render por democracias vivas.

Obviamente, nenhum país é imunizado do fascismo como um movimento mundial. Uma vez que esse fato incontestável é reconhecido, a questão se sugere sobre se medidas legislativas contra o fascismo incipiente são talvez necessárias nos Estados Unidos. Investigar possibilidades nessa direção estaria além dos limites do presente estudo. Se, no entanto, a questão for respondida afirmativamente, um segundo problema se torna o de elaborar legislação antiextremista federal ou estadual em conformidade com o fundamentalismo elaborado de direitos constitucionais consagrados na constituição americana.

Levitsky e a subversão da democracia americana

Reproduzimos abaixo o artigo de Steven Levitsky publicado na Folha de São Paulo em 23 de setembro de 2024. Oportunamente interpolaremos alguns comentários críticos. A começar pela crítica ao título do seu mais recente livro, que repete a perigosa narrativa de “salvar a democracia”.

Depois vem toda essa conversa sobre maioria e minoria, que parece deslocada já que a democracia não é o regime da maioria e sim o regime de qualquer-um (inclusive das múltiplas minorias – e não só as raciais, que merecem todo o destaque no texto).

Por último, Levitsky parece não levar em conta o histórico da democracia americana: ao contrário do que se repete nos bancos escolares, nas academias e na imprensa, os EUA foram retardatários no processo de democratização do mundo: foram o último país a entrar na primeira onda de democratização (que vai de 1849, com a Suíça, até 1921, com os EUA e o Canadá). Até 1920 os EUA eram uma autocracia eleitoral (usando aqui a classificação adotada pelo V-Dem); só viraram uma democracia eleitoral em 1921 e uma democracia liberal em 1969. Sim, embora os EUA tenham adotado um regime eleitoral em 1796, juntamente com a Bélgica e a Holanda, sucedendo a França (em 1792) e Inglaterra e Irlanda (em 1790), isso não significa que tivessem sido uma democracia (antes de 1921). Não há como comparar os EUA com países de “tradição” democrática mais longa, cujos regimes já surgiram como democracias liberais: a Suíça em 1849, a Austrália em 1858, a Bélgica em 1897, a Dinamarca em 1902, a Noruega em 1906, a Nova Zelândia em 1913, a Holanda em 1918 e a Inglaterra em 1919 – para citar todos os exemplos.

Além disso, os EUA tanto acumularam, quanto dilapidaram, capital social, numa velocidade espantosa. As bases sociais da democracia tocquevilliana foram solapadas pela centralização em Washington, pela recorrência aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva, pelo complexo científico-industrial-militar e, é claro, pelas guerras. Trump e o MAGA são uma consequência da dilapidação.

Por ora, vamos ao artigo.

A subversão da democracia americana

Steven Levitsky, Folha de S. Paulo (23/09/2024)

A democracia dos Estados Unidos enfrenta hoje uma ameaça ainda maior que quando escrevemos “Como as Democracias Morrem“, há seis anos. Em 2020, Donald Trump se tornou o primeiro presidente da história dos EUA a tentar roubar uma eleição e impedir a transferência pacífica de poder. Porém, ao contrário do que aconteceu no Brasil, as instituições americanas não conseguiram responsabilizar Trump. Por isso, ele está concorrendo à Presidência mais uma vez e tem boas chances de vencer.

Trump tem sido transparente sobre o que tentará fazer se voltar ao poder. Ele nos diz que usará o Departamento de Justiça para investigar e processar seus rivais, perseguirá a imprensa independente, usará o Exército para reprimir protestos e ordenará a deportação de 15 a 20 milhões de pessoas.

Nosso novo livro – Como salvar a democracia, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2023) – tenta entender por que a democracia americana chegou ao ponto de ruptura. Argumentamos que os EUA estão passando por uma transição inédita — uma transição para uma democracia verdadeiramente multirracial na qual uma maioria branca cristã, anteriormente dominante, está perdendo seu status dominante. Isso desencadeou uma reação autoritária entre uma minoria de americanos.

Isso, no entanto, não é tudo: a Constituição exacerbou o problema ao dar poder a essa minoria autoritária. Vejamos cada um desses problemas.

A democracia americana está em crise porque um dos seus dois principais partidos não está mais comprometido com as regras do jogo democráticas. Os partidos que estão comprometidos com a democracia devem fazer três coisas. Em primeiro lugar, devem aceitar os resultados das eleições, ganhando ou perdendo. Em segundo lugar, devem rejeitar inequivocamente o uso da violência. Em terceiro lugar, devem romper com os extremistas antidemocráticos. O Partido Republicano violou todos esses três princípios desde 2020.

Donald Trump não foi apenas o primeiro presidente da história dos EUA a tentar anular uma eleição, já que a maior parte do Partido Republicano o apoiou.

Os políticos republicanos também começaram a flertar com a violência. Trump e seus aliados abraçaram a insurreição de 6 de janeiro como heróis. Em 2022, o jornal The New York Times encontrou mais de cem anúncios republicanos em que os candidatos ostentavam ou disparavam armas. Não me lembro de nenhum outro grande partido em qualquer democracia estabelecida em que os candidatos abraçam a violência tão abertamente.

Por fim, os republicanos se recusam a romper com as forças antidemocráticas. Líderes não conseguem matar uma democracia sozinhos — eles precisam de cúmplices entre os políticos mainstream. Esses são o que o cientista político Juan Linz chamou de democratas semileais. Eles se parecem com os políticos comuns, mas diferem na forma como respondem às ameaças autoritárias em seu próprio campo político.

Quando extremistas antidemocráticos surgem em seu próprio campo, os democratas leais fazem três coisas: primeiro, condenam publicamente o comportamento antidemocrático; segundo, expulsam os extremistas antidemocráticos de suas fileiras, se recusando a indicá-los ou a apoiar suas candidaturas; terceiro, unem forças com rivais pró-democracia de todo o espectro político para isolar e derrotar os extremistas antidemocráticos.

Os democratas semileais não fazem nada disso. Em vez de repudiar publicamente o comportamento antidemocrático em seu próprio campo, eles minimizam ou justificam esse comportamento — ou simplesmente permanecem em silêncio. Em vez de expulsar os extremistas antidemocráticos, os toleram ou os acomodam. O que é crucial, os semileais se recusam a trabalhar com rivais ideológicos para derrotar os extremistas antidemocráticos, mesmo quando a democracia está em jogo.

Uma lição evidente dos colapsos democráticos na Europa nos anos 1930 e na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970 é que, quando os principais políticos de centro-esquerda ou centro-direita flertam ou cooperam com extremistas antidemocráticos, as democracias têm problemas.

A semilealdade está agora disseminada no Partido Republicano.

Os líderes republicanos sabiam que Trump havia perdido a eleição de 2020 e muitos deles estavam preocupados com seu comportamento antidemocrático às vésperas do 6 de Janeiro, mas eles viabilizaram a invasão do Capitólio mesmo assim. Eles o protegeram ao recusar o impeachment e a condenação de Trump, bloquearam a criação de uma comissão independente para investigar a insurreição de 6 de janeiro e são quase unânimes em apoiar sua candidatura presidencial neste ano.

Por que isso está acontecendo? Por que um partido dominante como o Republicano poderia se afastar da democracia? Argumentamos que se trata de uma reação à democracia multirracial.

O primeiro obstáculo: o ressentimento branco

Para a democracia funcionar, os partidos políticos precisam ser capazes de tolerar a derrota. Isso geralmente acontece quando acreditam que têm chance de ganhar no futuro e que a derrota não trará consequências desastrosas. Contudo, quando os partidos ou seus apoiadores percebem que a derrota representa uma ameaça existencial, eles se radicalizam e, muitas vezes, se voltam contra a democracia.

No capítulo 3 do nosso livro, mostramos como isso aconteceu com a virada autoritária dos democratas sulistas durante a reconstrução pós-Guerra Civil, o primeiro experimento dos EUA com a democracia multirracial que trouxe uma ampla emancipação dos negros.

Os afro-americanos eram maioria ou quase maioria na maior parte dos estados do Sul. A emancipação deles, portanto, aterrorizou os democratas e seus apoiadores. O sufrágio dos negros não só ameaçava o domínio eleitoral dos democratas do Sul como também ameaçava toda a ordem racial.

Para muitos sulistas brancos, isso parecia uma ameaça existencial: eles se lançaram à violência e ao autoritarismo. Como declarou um democrata da Carolina do Norte: “Não podemos superar os negros numericamente. Então, temos que superá-los trapaceando, somando mais votos ou atirando neles”. Foi isso o que fizeram.

Os democratas usaram o terror da violência e a fraude eleitoral para tomar o poder em todo o Sul. Em seguida, se entrincheiraram no poder por meio do registro de eleitores condicionado ao pagamento de impostos, de testes de alfabetização e de outras medidas para acabar com o direito de voto dos afro-americanos. Sem aceitar a derrota, os democratas eliminaram o direito ao voto de quase metade da população, dando início a quase um século de governo autoritário no Sul.

Tememos que algo semelhante esteja acontecendo com o Partido Republicano hoje.

As raízes desse fenômeno estão nas reformas por direitos civis da década de 1960, a segunda experiência dos EUA com a democracia multirracial. A revolução dos direitos civis gerou uma boa dose de ressentimento entre os eleitores brancos, principalmente no Sul, onde eram majoritariamente democratas. O Partido Republicano era minoritário na década de 1960, mas o ressentimento branco a respeito dos direitos civis criou uma oportunidade de expansão da sua base.

Os políticos republicanos calcularam que, se conseguissem conquistar os eleitores brancos revoltados, poderiam se tornar o partido majoritário e, durante uma geração, apelaram para o ressentimento branco.

Começando com Goldwater na década de 1960 e continuando com Nixon e Reagan, os republicanos miraram em eleitores brancos cristãos conservadores. Funcionou. Os sulistas brancos deixaram de ser majoritariamente democratas e passaram a ser majoritariamente republicanos.

O Partido Republicano virou o partido dos cristãos brancos. Como o país ainda era predominantemente branco e cristão nas décadas de 1970 e 1980, se tornar o partido dos eleitores brancos e cristãos ajudou a fazer do Partido Republicano majoritário. Os republicanos venceram todas as eleições presidenciais entre 1968 e 1988, com exceção da eleição do Watergate, em 1976.

A estratégia, no entanto, acabou enfrentando problemas, porque, enquanto os republicanos se tornavam o partido dos cristãos brancos, o país se tornava menos branco e menos cristão. A porcentagem de americanos que se identificavam como brancos e cristãos caiu de 80% em 1976 para 43% em 2016.

Isso representou uma grave ameaça eleitoral para os republicanos. Ficou cada vez mais difícil para um partido esmagadoramente branco e cristão conquistar maiorias nacionais no século 21. Os republicanos não vencem no voto popular para presidente desde 2004. Em 1980, Ronald Reagan recebeu 55% dos votos dos brancos e transformou isso em uma vitória avassaladora. Em 2012, Mitt Romney obteve 59% dos votos dos brancos, mas mesmo assim perdeu a eleição. Quando os republicanos perceberam que estavam vencendo entre os brancos mas perdendo no voto popular, começaram a entrar em pânico.

O problema, porém, ia além de perder eleições. Para grande parte da base republicana, a transição dos EUA para a democracia multirracial parecia uma ameaça existencial. Os cristãos brancos não eram um grupo qualquer. Durante dois séculos, eles ocuparam o primeiro escalão das hierarquias sociais, econômicas, políticas e culturais: eram os políticos, os juízes, os CEOs, os reitores das universidades, os editores de jornais e as celebridades da TV.

Até meados da década de 1980, todos os presidentes e vice-presidentes, todos os presidentes da Câmara, líderes da maioria no Senado, presidentes da Suprema Corte, governadores, CEOs da Fortune 500 e todas as Miss América eram brancos.

Tudo isso está acabando rapidamente agora, bem diante de nossos olhos. O número de políticos negros e latinos do Congresso mais que quadruplicou: de 28 em 1980 para 114 hoje. Pela primeira vez na história, a porcentagem de afro-americanos no Congresso agora é igual à porcentagem de afro-americanos na população em geral. Em 1965, todos os nove ministros da Suprema Corte eram homens brancos. Hoje, apenas quatro dos nove são homens brancos, e só seis dos nove são brancos.

A mudança vai além da política. Vemos isso na presença cada vez maior de famílias não brancas e multirraciais em anúncios, na televisão e nos filmes. Vemos isso na crescente rejeição social a atos racistas (pense nos protestos do Black Lives Matter) e nas contestações cada vez maiores (em Redações e salas de aula) a narrativas históricas que minimizam ou ignoram o passado racista dos EUA.

Esses passos em direção à democracia multirracial são essencialmente liberais: eles universalizam os direitos individuais básicos. A ideia de que indivíduos de todas as raças devem ter acesso igual ao Estado, ser igualmente protegidos pelo Estado e não ser desproporcionalmente perseguidos, encarcerados ou mortos pelo Estado não poderia ser mais liberal. Desprezar as demandas por direitos iguais como “identitarismo” é, além de enganoso, vergonhoso.

Estamos testemunhando um golpe sem precedentes nas hierarquias raciais dos EUA, mas, quando seu grupo está no topo de uma hierarquia social há 250 anos, contestações a essa hierarquia podem parecer uma ameaça. Perder o status social dominante é um acontecimento importante e pode gerar uma sensação de risco existencial. Muitos eleitores de Trump sentem que estão perdendo seu país: eles sentem que o país em que cresceram está sendo tomado deles.

Essa sensação de perda tem impulsionado muitos republicanos comuns em direção ao extremismo. Em uma pesquisa realizada em 2021, 56% dos republicanos concordaram com a afirmação de que “o modo de vida tradicional americano está desaparecendo tão rapidamente que talvez seja preciso usar a força para salvá-lo”.

O segundo obstáculo: instituições contramajoritárias

A radicalização dos republicanos representaria uma ameaça menor se os EUA fossem como outras democracias, em que as maiorias eleitorais governam. O trumpismo nunca representou a maioria dos americanos.

De fato, pela primeira vez na história, a maioria dos americanos abraça os princípios básicos da democracia multirracial no século 21. A maioria apoiou os protestos do Black Lives Matter em 2020. Mais de 60% dos americanos concordam com a afirmação de que a crescente diversidade social torna os EUA um lugar melhor para se viver. Uma pesquisa recente revelou que mais de 60% acha que escolas devem ensinar às crianças a história do racismo nos EUA, mesmo que isso as deixe desconfortáveis.

Isso é muito importante: pela primeira vez, no século 21, os EUA têm uma maioria democrática multirracial. Essa maioria democrática multirracial, contudo, se lançou contra algumas das instituições contramajoritárias mais poderosas do mundo.

É importante dizer que algumas instituições contramajoritárias são essenciais para a democracia. A democracia moderna exige a proteção dos direitos das minorias. Como disse o ex-ministro da Suprema Corte Robert Jackson, alguns domínios devem estar “fora do alcance das maiorias”.

Dois domínios em particular devem permanecer fora do alcance das maiorias. O primeiro são os direitos civis: o direito ao voto, a liberdade de expressão e a liberdade de associação devem ser protegidos dos impulsos da maioria.

Um segundo domínio que deve estar fora do alcance das maiorias é o próprio processo democrático. Os governos eleitos não podem usar as maiorias populares ou parlamentares para se entrincheirar no poder, aprovando leis que enfraqueçam os oponentes ou prejudiquem a competição justa, por exemplo.

Esse é o tipo de tirania da maioria que vimos na Venezuela e na Hungria. Precisamos de mecanismos para proteger o sistema democrático de maiorias que o subverteriam.

Os direitos civis e o direito à competição justa são direitos essenciais das minorias. É por isso que precisamos da Declaração de Direitos dos EUA, do Judiciário independente e de barreiras relativamente altas para reformas constitucionais.

Muitas instituições contramajoritárias, porém, não são essenciais para a democracia. Lembre-se: as democracias devem dar poder às maiorias. Portanto, assim como alguns domínios devem ser colocados fora do alcance das maiorias, outros devem permanecer ao seu alcance.

As eleições são um deles. Aqueles com mais votos devem prevalecer sobre aqueles com menos votos no processo que determina os ocupantes de cargos políticos — nenhuma teoria de democracia liberal justifica qualquer outro resultado.

Outro domínio que deve permanecer ao alcance das maiorias é a legislação: as maiorias eleitorais devem ser capazes de governar. Uma minoria legislativa não deve poder vetar leis apoiadas pela maioria. As instituições que impedem que as maiorias eleitorais ganhem ou governem não são essenciais. Na verdade, são antitéticas à democracia.

Acontece que os EUA têm um número incomum de instituições contramajoritárias antidemocráticas: o Colégio Eleitoral, um Senado com representação extremamente desproporcional, a obstrução (“filibuster”) no Senado e uma Suprema Corte com grandes poderes e composta de ministros com mandato vitalício.

Essas instituições começaram a subverter a democracia dos EUA. As concessões outorgadas a estados escravocratas e pequenos na Convenção Constitucional de 1787 criaram um viés no nosso sistema político — territórios poucos populosos têm representação excessiva. O Colégio Eleitoral os favorece, o Senado os favorece fortemente e, como o Senado aprova os indicados para a Suprema Corte, a Suprema Corte também é enviesada na direção dos estados pouco populosos.

Esse viés rural sempre existiu, mas nunca favoreceu seriamente um partido porque, durante a maior parte da nossa história, os dois principais partidos tinham ramificações urbanas e rurais. Hoje, porém, os partidos estão divididos entre áreas urbanas e rurais, com os democratas estabelecidos em centros metropolitanos e os republicanos em cidades pequenas e na zona rural. Isso dá aos republicanos uma vantagem no Colégio Eleitoral, no Senado e na Suprema Corte.

Os republicanos ganharam no voto popular para presidente apenas uma vez desde 1988 e, no entanto, ocuparam a Presidência durante a maior parte do século 21. A maioria popular não foi suficiente para Joe Biden vencer em 2020. O presidente teve de ganhar no voto popular por pelo menos quatro pontos percentuais — se tivesse ganhado por dois pontos, como Lula, Trump teria sido reeleito (Kamala Harris enfrenta o mesmo problema neste ano).

O Senado tem uma distorção semelhante. Mesmo que os democratas alcancem 51% ou 52% do voto popular, os republicanos controlarão o Senado. Os democratas venceram a votação popular em todos os ciclos de seis anos desde 2000, mas os republicanos controlaram o Senado por quase metade desse período.

Em 2016, os democratas ganharam no voto popular para a Presidência e o Senado e, mesmo assim, os republicanos ocuparam a Presidência e controlaram o Senado.

O governo da minoria é um problema exclusivamente americano. Em nenhuma outra democracia estabelecida as minorias partidárias podem impedir as maiorias eleitorais tão consistentemente quanto nos EUA. Por que isso acontece?

O excesso de contramajoritarismo era muito comum. A Europa tinha muitas instituições antidemocráticas no século 19 — monarquias, eleições indiretas e órgãos legislativos não eleitos ou com representação desproporcional. Com o passar do tempo, no entanto, outras democracias se desfizeram gradualmente de suas instituições pré-democráticas.

A Grã-Bretanha enfraqueceu a Câmara dos Lordes, retirando-lhe o poder de veto. Dinamarca, Suécia, Nova Zelândia e Portugal eliminaram suas câmaras altas não democráticas. Alemanha, Áustria e Bélgica democratizaram seus Senados, os tornando mais proporcionais à população. A Grã-Bretanha, o Canadá, a Austrália, a França e outras democracias estabeleceram regras que permitem que maiorias simples encerrem o debate parlamentar (portanto, não há obstrução por parte da minoria). Todas as democracias europeias e latino-americanas estabeleceram limites de mandato ou idade de aposentadoria para ministros das Cortes Supremas.

Todas as demais democracias presidencialistas do mundo se livraram de seus colégios eleitorais. A Argentina foi a última, em 1994.

Portanto, outras democracias se tornaram mais democráticas nos últimos cem anos, eliminando instituições dos séculos 18 e 19 que permitiam que as minorias impedissem sistematicamente a ação das maiorias. Somente os EUA mantiveram a maioria de suas instituições pré-democráticas.

Democratizar a democracia dos EUA

Os EUA são a única democracia presidencial do mundo com um colégio eleitoral. Temos o Senado com representação mais desproporcional do mundo, com exceção da Argentina e do Brasil.

Nenhuma outra democracia permite que uma minoria do Congresso vete rotineiramente uma legislação regular apoiada pela maioria, e os EUA são a única democracia estabelecida em que ministros da Suprema Corte têm mandatos realmente vitalícios — todas as demais têm limites de mandato ou idade de aposentadoria obrigatória.

Precisamos democratizar a democracia americana.

No livro, propomos 15 reformas que dariam poder às maiorias e contribuiriam para deter o governo das minorias, incluindo o registro automático de eleitores, a abolição do Colégio Eleitoral, o fim do “filibuster”, um Senado mais proporcional e limites de mandato para os ministros da Suprema Corte.

Essas não são reformas radicais — simplesmente colocariam os EUA em linha com outras democracias —, mas são importantes porque, se não tomarmos medidas para fortalecer a maioria democrática multirracial do país, seremos governados por uma minoria autoritária.

Os EUA estão em uma encruzilhada. Ou seremos uma democracia multirracial no século 21 ou não seremos uma democracia. Ambos os caminhos estão diante de nós e não há como voltar atrás.

Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino

A “internacional fascista” e o eixo autocrático

Vamos prestar atenção ao que dizem duas das mais reconhecidas instituições que monitoram os regimes políticos no mundo: o V-Dem Institute (da Universidade de Gotemburgo) e a The Economist Intelligence Unit (EIU). Segundo o V-Dem o Brasil não é uma autocracia (ou ditadura) e sim uma democracia não-liberal. Segundo a EIU o Brasil, igualmente, não é um regime autoritário (ou ditadura) e sim uma democracia não-plena.

Prefiro dizer – e já mostrei por quê em um artigo – que o Brasil tem um regime eleitoral parasitado pelos dois populismos do século 21: o neopopulismo dito de esquerda e o populismo-autoritário dito de direita e, portanto, está em risco de entrar em transição autocratizante. Isso significa que o Brasil, enquanto permanecer nessa condição de hospedeiro de populismos, não caminhará para ser uma democracia liberal ou plena. Mas, atenção: não significa que viraremos, nos curto ou médio prazos, uma autocracia eleitoral ou fechada (na classificação do V-Dem) ou que nos converteremos em um regime híbrido ou autoritário (na classificação da EIU).

Mas o risco continua porque os dois populismos que parasitam nosso regime político, embora não sejam iguais, têm, ambos, efeitos adversos sobre o regime do ponto de vista da democracia: o neopopulismo não costuma (a não ser em alguns casos extremos, como o da Venezuela e o da Nicarágua) matar o hospedeiro, enquanto que o populismo-autoritário pode, sim, acabar matando-o (como ocorreu na Hungria, na Turquia e em El Salvador – que se transformaram em autocracias eleitorais ou regimes autoritários).

Em outras palavras, no caso concreto do Brasil, o lulopetismo não mata o hospedeiro, mas o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização) impedindo que nosso regime eleitoral se converta em uma democracia liberal ou plena, enquanto que o bolsonarismo pretende matar o hospedeiro quando, além de impedir que nosso regime político vire um regime liberal, dificulta até mesmo que continuemos sendo uma democracia eleitoral.

Claro que para entender isso é preciso admitir que existem dois tipos de populismos no século 21 e não apenas o populismo dito de extrema-direita, como querem nos fazer acreditar os intelectuais acadêmicos de ciência política, muitos teóricos atuais da democracia e quase todos os jornalistas e analistas políticos na grande imprensa.

Estabelece-se a partir daí uma grande confusão, diria mesmo uma mistificação, na qual o grande ou principal (ou único) inimigo universal da democracia é o populismo-autoritário ou nacional-populismo dito de extrema-direita. Já mostrei em outro artigo que isso é falso. Das 89 autocracias que existem hoje no mundo (segundo o V-Dem), somente três são governadas por líderes nacional-populistas (Hungria, Turquia e El Salvador). Todas as demais são ditaduras islâmicas (que não podem ser caracterizadas como de direita ou de esquerda; e. g. Afeganistão, Arábia Saudita, Barein, Catar, Iémen, Jordânia, Kuwait, Líbia, Marrocos, Omã, Somália, Sudão) ou regimes na esfera de influência do eixo autocrático composto por Rússia, China, Irã etc. (e. g. Azerbaijão, Bielorrússia, Camboja, Chade, Gaza, Guine Equatorial, Mali, Síria, Sudão do Sul, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão) ou regimes declarada ou historicamente de esquerda ou extrema-esquerda (e. g. China, Coreia do Norte, Cuba, Laos, Venezuela, Nicarágua, Vietnam, Angola).

O eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat – a nova Índia de Modi, que é uma autocracia) ao qual estão se alinhando regimes eleitorais não-liberais parasitados por populismos de esquerda (e. g. México, Colômbia, Bolívia, Brasil, Honduras, África do Sul) é um inimigo muito mais perigoso e poderoso para as democracias liberais do que a chamada “internacional fascista” composta pelos populistas-autoritários ditos de extrema-direita (e. g. Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro) que, repita-se, só estão no governo em três países (com exceção de Meloni, pois a Itália continua sendo uma democracia liberal).

Isso não significa que a chamada extrema-direita não seja um perigo para a democracia. Mas significa que ela não representa o único, nem o principal, inimigo das democracias liberais (segundo o V-Dem 2023: EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Seicheles, Butão, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia).

Claro que a eleição de Trump (levando de carona Vance, Bannon e, agora, Elon Musk) pode alterar a correlação de forças no plano mundial, mas não mudar a natureza da principal ameaça à democracia representada pela ascensão do eixo autocrático. Com Trump ou sem Trump, o eixo autocrático continuará sendo a maior coalizão de ditaduras já conformada na história do planeta, atualmente empenhada em uma segunda grande guerra fria cujo objetivo último é exterminar as democracias liberais na face da Terra.

Com exceção do que pode acontecer com os EUA (e com o mundo) na hipótese da vitória Trump e de Putin que, situado no coração do eixo autocrático, investe no populismo de esquerda e no populismo de direita (Mélenchon e Le Pen, Lula e Bolsonaro) – porque sabe que a polarização tóxica entre os populismos é a principal arma de destruição das democracias liberais – essa cogitada “internacional fascista” é fichinha comparada ao eixo autocrático.

Lula e o PT já fizeram sua opção pelo eixo autocrático

Uma hipótese.

O PT concluiu (ou está a um passo de concluir) que a estratégia eleitoral de conquistar hegemonia sobre a sociedade, a partir de vitórias eleitorais sucessivas, delongando-se nos governos para ter tempo de controlar as instituições e modificá-las por dentro, não tem mais grandes chances de sucesso. Não, pelo menos, em doses homeopáticas, como previa até há pouco.

Pois ocorreu que, depois do impeachment de Dilma, houve uma descontinuidade no controle que o PT exercia sobre os aparatos do Estado e, em parte, da sociedade. E, em seguida, surgiu uma espécie de “revolução” eleitoral (ainda que uma revolução para trás) da chamada extrema-direita (que nada mais é do que uma mixórdia de correntes nacional-populistas ou populistas-autoritárias), com a vitória de representantes não subordinados a Lula e ao PT para postos legislativos e executivos do Estado.

A nova realidade que surgiu não foi bem a da ascensão de uma força política orgânica, como a que o PT constituiu ao longo de três a quatro décadas, e sim uma rebelião dos insatisfeitos e irritados com o petismo – o que configurou um imenso e capilarizado antipetismo.

De sorte que o PT, decorridos oito anos do seu principal revés (o impeachment, seguido da prisão de Lula e das derrotas eleitorais de 2018 e 2020), ficou em minoria nos parlamentos e nos governos em nível nacional (com exceção da presidência da república), estadual e municipal. Além disso, ficou em minoria nas novas mídias sociais e nas ruas.

Nessas novas circunstâncias, o PT não tem mais a menor garantia de que vencerá as próximas eleições de 2024, 2026, 2028 e 2030. Pelo contrário, está fortemente desconfiado de que poderá perdê-las.

Em minoria nesses âmbitos políticos e sociais, ao PT restou um alinhamento dos tribunais superiores, do ministério público e dos grandes meios de comunicação profissionais (como os principais canais de TV a cabo), para fazer sua política, bypassando as mediações institucionais onde a correlação de forças lhe é desfavorável. E que tende a ficar mais desfavorável ainda, pois o antipetismo não diminuiu e sim aumentou bastante, inclusive pelo descontentamento generalizado com decisões autoritárias e desastradas do STF – visto por amplas parcelas da população como alinhado ao governo – que atingem não somente o estamento político (como o Congresso Nacional, francamente não-governista), mas a vida das pessoas comuns (como ocorreu, por exemplo, com as ordens de bloqueio do X e das multas extorsivas a quem usar VPN para acessá-lo).

O que fazer numa situação assim?

Confrontadas com a contrariedade e até mesmo com a indignação de boa parte da sociedade brasileira que seu apoio inegável às ditaduras (como Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola – para não falar da Rússia, da China e do Irã) provocou, as bases mais radicalizadas do PT e seus dirigentes históricos (incluído Lula), foram chegando à conclusão de que não adianta muito disfarçar tal posição antidemocrática com desculpas de que o Brasil quer apenas ampliar suas relações comerciais com esses países e manter a sua vocação de mediador em busca da paz. O próprio Lula escarneceu dessas desculpas, urdida por intelectuais e jornalistas passapanistas, ao dizer e repetir, com todas as letras, que o interesse do Brasil em se alinhar ao eixo autocrático tem objetivos políticos estratégicos.

O engajamento no BRICS (agora, talvez, ampliado com Venezuela e Nicarágua) – uma articulação política de ditaduras e governos populistas, sobretudo de esquerda, disfarçada de bloco econômico – é uma evidência de que já foi feita a opção do governo e do PT pelo lado sombrio da força nesta segunda guerra fria que está em curso. O PT acha que é esse “lado” que vencerá a guerra.

A guinada que amadurece nos porões do governo e na cúpula do partido é a de que é preciso seguir em frente, manter o caminho e acelerar o passo, dobrando as apostas em vez de recuar e contemporizar. Assim, o PT age como se estivéssemos em uma situação pré-revolucionária, embora sabendo que as condições objetivas para tanto não estão dadas. Então está tentando forçar uma configuração de condições subjetivas que possa criar artificialmente as condições objetivas, a partir da vontade, de cima para baixo.

Para afastar a possibilidade de surgimento de uma força política democrática liberal (o que, na verdade, estima ser o grande perigo para o seu projeto), o PT investe, em consequência, cada vez mais, na polarização tóxica com o bolsonarismo, propagando a ideia perversa e incorreta de que ainda estamos sob risco de um golpe de Estado, desta feita pela entrada dos fascistas na disputa eleitoral. A vitória eleitoral dos fascistas seria, nessa releitura, equivalente a um golpe de Estado.

A explicação é que os fascistas (entendidos de modo safado como todos aqueles que não se subordinam a Lula) usam as mídias sociais para espalhar o ódio, lançam mão de fake news e outros artifícios que seriam ilegais para vencer ilegalmente a disputa eleitoral (como se todos que se opõm ao PT fossem bolsonaristas, golpistas e terroristas: por acaso a mesma linguagem usada por Nicolás Maduro para caracterizar a oposição ao seu governo). É necessário, portanto, que lhes sejam retirados os instrumentos para cometer essa “fraude”. A proibição do X, a multa para quem acessá-lo por VPN e, em seguida, uma regulamentação das mídias sociais que retire desses golpistas a capacidade competitiva, passam a ser providências estratégicas para tentar eliminar concorrentes que podem ameaçar a continuidade do PT no poder.

Ora, isso não pode ser feito sem alguma dose de autocratização do regime político. O PT está disposto a arcar com esse custo se souber que mais adiante conseguirá se recompor como força hegemônica. É um jogo de vale-tudo e de vida ou morte, uma vertigem que leva a aumentar sempre a velocidade, como se não houvesse amanhã.

Como haverá um amanhã, isso só se sustenta se houver uma mudança brusca na correlação de forças, na verdade uma revolução (para frente), que justifique a adoção de remédios alopáticos fortes, com sérios efeitos colaterais. Estamos vivendo agora no Brasil neste preciso momento em que está havendo uma mudança importante na conjuntura.