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Principais características dos democratas

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

2 – Quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

3 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

4 – Democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

5 – Democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

6 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

7 – Democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

8 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

9 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

10 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

11 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

12 – Democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

13 – Democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

14 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

15 – Democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Trump em guerra

Há uma guerra instalada no mundo. É a segunda grande guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. 

O eixo autocrático é composto por autocracias (fechadas e eleitorais) e regimes eleitorais parasitados por governos populistas. De qualquer modo, o eixo autocrático usa o populismo como sua principal arma.

Mas não há apenas um tipo de autocracia (fechada ou eleitoral) no eixo autocrático e sim dois tipos: as autocracias ditas de direita ou de extrema-direita e as autocracias ditas de esquerda (ou socialistas). 

E não há apenas um tipo de populismo e sim dois tipos: o nacional-populismo ou populismo-autoritário (dito de direita ou extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). 

Então, tudo isso significa que há duas alas em disputa no eixo autocrático. A ALA A versus a ALA B. Vejamos.

ALA A

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025)

AUTOCRACIAS E REGIMES ELEITORAIS NÃO-AUTORITÁRIOS PARASITADOS POR GOVERNOS POPULISTAS DITOS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA)

Hungria = Autocracia eleitoral: Orbán no governo

Turquia = Autocracia eleitoral: Erdogan no governo

El Salvador = Autocracia eleitoral: Bukele no governo

Índia = Autocracia eleitoral: Modi no governo – Posição ainda incerta

Itália = Democracia liberal: Meloni no governo – Posição ainda incerta

EUA = Democracia liberal: Trump no governo

Eslováquia = Democracia eleitoral: Fico no governo

Argentina = Democracia eleitoral: Milei no governo – Posição ainda incerta

Israel = Democracia eleitoral: Netanyahu no governo

FORÇAS NACIONAL-POPULISTAS DITAS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA) FORA DO GOVERNO

França = Democracia liberal: Le Pen fora do governo

Alemanha = Democracia liberal: Weidel fora do governo

Reino Unido = Democracia liberal: Farage fora do governo

Holanda = Democracia liberal: Wilders fora do governo

Espanha = Democracia liberal: Abascal fora do governo

Portugal = Democracia eleitoral: Ventura fora do governo

Finlândia = Democracia liberal: Purra fora do governo

Brasil = Democracia eleitoral: Bolsonaro fora do governo

ALA B

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025 – com exceção da África do Sul)

AUTOCRACIAS (FECHADAS E ELEITORAIS) DITAS DE ESQUERDA (OU SOCIALISTAS)

China = Autocracia fechada: Xi Jinping no governo

Coreia do Norte = Autocracia fechada: Kim no governo

Laos = Autocracia fechada: Bouphavanh no governo

Vietnam = Autocracia fechada: Chính no governo

Angola = Autocracia eleitoral: Lourenço no governo

Cuba = Autocracia fechada: Diáz-Canel no governo

Venezuela = Autocracia eleitoral: Maduro no governo

Nicarágua = Autocracia eleitoral: Ortega no governo

REGIMES AUTORITÁRIOS APOIADOS PELA ESQUERDA (E ÀS VEZES PELA DIREITA)

Irã e seus braços terroristas = Autocracia eleitoral: Khamenei (e IRGC) no governo – apoiados pela esquerda

Rússia = Autocracia eleitoral: Putin no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Bielorrússia = Autocracia eleitoral: Lukashenko no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Iêmen, EAU, Egito e outras ditaduras islâmicas – apoiadas pela esquerda

Cazaquistão, Uzbequistão e outras ditaduras asiáticas sob controle da Rússia ou da China

Congo DR, Nigéria, Uganda e outras ditaduras africanas sob controle da Rússia ou da China

REGIMES NÃO-AUTORITÁRIOS E NÃO-LIBERAIS DITOS DE ESQUERDA (E ALINHADOS AO EIXO AUTOCRÁTICO) 

México = Democracia eleitoral: Claudia no governo

Honduras = Democracia eleitoral: Xiomara no governo

Colômbia = Democracia eleitoral: Petro no governo

Bolívia = Democracia eleitoral: Arce no governo

Brasil = Democracia eleitoral: Lula no governo

África do Sul = Democracia eleitoral: Ramaphosa no governo

Indonésia = Autocracia eleitoral: Subianto no governo – é a única exceção de regime autoritário neste conjunto

BRICS, UM BOM EXEMPLO

O BRICS (ou Sul Global) é uma articulação política disfarçada de bloco econômico sob influência predominante da ALA B.

Dos 11 membros permanentes (plenos) do BRICS, 9 (82%) são ditaduras que se alinham:

Brasil – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Rússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Índia – Autocracia eleitoral | ALA A (mas a posição ainda é incerta)

China – Autocracia fechada | ALA B

África do Sul – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Egito (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B (vulnerável à ALA A)

Etiópia (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B

Irã (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B 

Emirados Árabes Unidos (aderiu em 2024) – Autocracia fechada | ALA B (vulnerável à ALA A)

Indonésia (aderiu em janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Arábia Saudita – Autocracia fechada – Ainda não decidiu se permanece no grupo | ALA A

Dos 10 países parceiros do BRICS, 8 (80%) são ditaduras que se alinham:

Bielorrússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Bolívia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Cazaquistão – Autocracia eleitoral | ALA B

Cuba – Autocracia fechada | ALA B

Malásia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Nigéria (confirmada como parceira em 17 de janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Tailândia – Autocracia eleitoral | ALA B

Uganda – Autocracia eleitoral | ALA B

Uzbequistão – Autocracia fechada | ALA B

Vietnã (o último confirmado) – Autocracia fechada | ALA B

Ou seja, o BRICS está claramente no campo da esquerda (ou sob influência predominante da esquerda) – ALA B. Por isso virou alvo da guerra de Trump.

A GUERRA DE TRUMP

Trump – sob influência MAGA ou realizando seu propósito – quer ser o líder global de um eixo autocrático populista de extrema-direita – a ALA A. Mas a parte mais ativa (e poderosa) do eixo autocrático realmente existente, no comando de governos, é de esquerda ou mais próxima da esquerda, ou apoiada pela esquerda (considerando que, politicamente, a Rússia, a Bielorrússia e o Irã, que do ponto de vista interno poderiam ser considerados de direita, do ponto de vista externo estão alinhados à esquerda) – a ALA B.

Numa conjuntura de guerra contra a ala esquerda do eixo autocrático (sobretudo a China), qualquer um na posição de Trump – ou seja, nacional-populista, autoritário, iliberal e antidemocrático, de extrema-direita – tomaria atitudes ainda mais duras contra Cuba, Venezuela, Nicarágua, México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul etc. pelo fato de esses regimes de esquerda ou pertencerem ao eixo autocrático (caso dos três primeiros) ou estarem se alinhando a esse eixo (caso dos seis últimos). Tudo, porém, na ALA B. 

O Brasil, em especial, foi escolhido por Trump por alguns motivos. O primeiro deles é o processo contra Bolsonaro, com o qual se identifica; e contra os bolsonaristas, que são aliados do MAGA. 

O segundo é a perseguição movida por Alexandre de Moraes (e seus colegas do STF) às plataformas americanas de mídias sociais (em especial as medidas censórias contra o X, mas não só) que se alinharam à ALA A. O governo americano sabe que os poderes no Brasil são formalmente independentes, mas não acredita nisso diante da evidência de o STF estar atuando em conluio com o governo. Aliás, Trump não acredita nessa independência do judiciário nem nos Estados Unidos. 

O terceiro motivo é a saliência de Lula em aparecer no BRICS como campeão da luta contra o imperialismo norte-americano, para se cacifar como o grande líder emergente do Sul Global. Lula, de certo modo, “cavou a falta” para aumentar sua popularidade cadente na base da patriotada fácil e da exploração populista do nacionalismo contra o grande satã. 

O fator mais decisivo, porém, foi o alinhamento do governo Lula à ALA B do eixo autocrático. Setores da Casa Branca avaliam que o Brasil, se já não é, pode se converter em braço da China (e da ALA B) nas Américas. Então é guerra.

Mas Trump não deseja a guerra quente (uma terceira guerra mundial nos moldes da primeira e da segunda). A sua guerra é uma guerra fria, baseada na ameaça e na imposição de sanções. Ele quer um eterno ‘estado de guerra’, de preferência sem derramamento de sangue.

Às vezes parece que Trump gostaria de um mundo que evocasse o 1984 de George Orwell. Três grandes potências autocráticas – Oceânia (EUA), Eurásia (Rússia) e Lestásia (China) – regulariam adversarialmente todo o globo (em guerras regionais quentes e em guerras que não seriam consumadas como conflitos violentos, algumas até de mentirinha – como pretexto para autocratizar internamente o próprio regime americano, pois os outros dois já são autocracias). Um mundo em que não haverá mais instituições multilaterais reguladoras, pois a força faz a lei. Esse mundo, entretanto, não é possível – mas o pretexto é possível. No final do dia, Trump espera não propriamente ser imperador do mundo (como disse Lula) e sim imperador de um novo – e tenebroso – Estados Unidos da América Autocrática. É claro que, se os EUA se transformarem em uma autocracia intervencionista (mesmo que apenas em termos de sanções econômicas e disposições restritivas geopolíticas sustentadas por poderio militar), todas as democracias liberais estarão ameaçadas de morte pela ALA A. Assim como também estarão se houver o predomínio da ALA B.

Por isso não pode analisar a questão como um FLA X FLU. Interessa igualmente à ALA A e à ALA B instaurar um clima de guerra (causando internamente polarização e divisão nas sociedades nacionais). É isso que destrói a democracia e não a vitória de um lado ou do seu oposto. Do ponto de vista das democracias liberais ambos são ameaças, porque ambos – cada qual a seu modo – são iliberais. Por isso Putin financia tanto Le Pen (da ALA A) quanto, por baixo do pano, incentiva Melénchon (da ALA B). E Trump, ao mesmo tempo em que apoia Putin, o ameaça com sanções. E sanciona a Índia (que pende mais para a ALA A) com tarifas semelhantes às aplicadas aos países cujos regimes estão alinhados à ALA B. A guerra fria permanente é a chave.

Ou é guerra ou não é guerra. Guerra fria é guerra. Se é guerra, de qualquer modo, a autocracia (seja dita de direita ou de esquerda) está vencendo; quer dizer, a democracia está perdendo. A guerra – não quem a promove – é a autocracia.

Uma força maligna do ponto de vista da democracia

O PT se converteu em uma força maligna do ponto de vista da democracia. Não que as pessoas que o compõem sejam malignas, longe disso. São pessoas normais, com virtudes e limitações como todos nós. Mas o organismo que foi se engendrando desenvolveu de modo negativo os traços militantes da primeira guerra fria (o atávico anti-imperialismo norte-americano do PT vem daí) e da luta contra a ditadura militar em condições desumanas, que impuseram extremo sofrimento aos (futuros dirigentes partidários) que se opuseram àquele regime.

Isso tudo foi racionalizado, a partir de uma visão marxista, como crença de que a história vai para algum lugar que pode ser conhecido de antemão pelos que têm a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade (o próprio marxismo), de que a luta de classes é o motor da história e de que o sentido da política é a ordem (ou seja, de que a política é guerra para implantar uma ordem mais justa) e não a liberdade (que seria a própria definição de democracia). Adquiriu assim características de uma espécie de “Irmandade Muçulmana” (de uma religião laica).

Infelizmente, o PT não conseguiu se desvencilhar dessa herança e os seus militantes mais jovens foram contaminados pelos mais velhos com o vírus de uma cultura adversarial que vê e aponta culpados ou inimigos em vez de identificar e tentar resolver problemas. A luta interna incessante entre as diversas tendências foi o campo de treinamento para produzir um tipo de agente partidário avesso à democracia como modo de vida, em que derrotar o outro tornou-se mais importante do que se comprazer na convivência com ele.

O ambiente antissocial que se configurou internamente ficou então marcado, no plano do emocionar, por ressentimento e desejo de vingança; no plano político, por hegemonismo, antipluralismo e política praticada como continuação da guerra por outros meios, quer dizer, construção continuada de inimigos (na base do “nós contra eles”); no plano moral, pela convicção de que “nós” estamos sempre do lado certo da história e que somos (moralmente) superiores a “eles” – ou seja, a todos os demais atores.

Isso tudo gerou um organismo intrinsecamente antidemocrático, embora proclame defender (e até querer salvar) a democracia, tomada, porém, como adesão sôfrega à disputa eleitoral (a guerra por votos), como promoção da igualdade (socioeconômica) como precondição para a liberdade (política), como cidadania para todos ofertada pelo Estado comandado pelo líder populista e como soberania (nacional) alçada à qualidade equiparável, se não superior, à democracia como valor (universal).


Muitos analistas, sobretudo acadêmicos, discordarão dessa apreciação. Em primeiro lugar porque são, em sua maioria, marxistas (por profissão de fé ou por profissão mesmo, conquanto alguns neguem). Em segundo lugar porque pensam que sabem o que é o PT, seja porque leram teses universitárias sobre o partido, seja porque militaram perifericamente no “partido externo” (e até hoje acreditam que são uma tendência externa capaz de influir na direção do “partido interno”). O que posso dizer? Fui dirigente nacional do partido nos seus primeiros dez anos de vida (do qual me afastei em 1994) e presenciei os movimentos iniciais de geração desse organismo que se tornou maligno do ponto de vista da democracia. A evidência mais contundente do desfecho dessa trajetória antidemocrática, trinta anos depois, é o alinhamento atual do PT ao eixo autocrático, composto pelas maiores ditaduras do planeta (Rússia, China, Irã etc.) em guerra contra as democracias liberais.ch

Democratas, populistas e autocratas

Boric (do Chile) é de esquerda, eu apoio Boric. Lacalle Pou (do Uruguai) é de direita, eu apoiava Pou. Agora Orsi (que sucedeu Boric no Uruguai) é de esquerda, eu apoio Orsi. Úrsula (da União Europeia) é dita de direita, eu apoio Úrsula. Por quê? Porque não são populistas nem autocratas. Estou pouco ligando se se dizem ou são ditos de esquerda ou de direita.

Lula (do Brasil) é de esquerda, eu não apoio Lula. Bolsonaro (do Brasil) se diz de direita, eu não apoio Bolsonaro. Petro (da Colômbia) é de esquerda, eu não apoio Petro. Trump (dos EUA) se diz de direita, eu não apoio Trump. E não apoio nenhum desses não porque sejam de esquerda ou de direita e sim porque são populistas.

Também não apoio Xi Jinping (da China), Canel (de Cuba) e Kim Jong-un (da Coreia do Norte) não porque sejam de esquerda e sim porque são autocratas. E não apoio igualmente Orbán (da Hungria), Erdogan (da Turquia) e Bukele (de El Salvador) não porque sejam de direita e sim porque são autocratas.

Contra autocratas, como é óbvio, só temos a democracia. Mas contra populistas, o que já não é tão óbvio, também só temos a democracia. Os novos populismos do século 21 são adversários da democracia, ainda que a parasitem. Não são propriamente ideologias e sim comportamentos políticos baseados na divisão da sociedade em uma única clivagem (povo x elites), no encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós contra eles”) e na ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Em alguns casos, não todos, os populismos são mais rudes e querem chegar ao governo pelo voto para, em seguida, acabar com o regime político democrático, seja erodindo progressivamente a democracia – desativando seus mecanismos de freios e contrapesos, seja, até, desferindo um golpe de Estado (ou auto-golpe) a partir do governo. Não é relevante que os populistas que se comportam assim se digam ou sejam ditos de esquerda ou de direita.

Os populistas vicejam em regimes eleitorais – chamados ainda de democracias, mesmo que não sejam liberais – porque esses regimes têm falhas “genéticas”: não têm proteção eficaz contra o discurso inverídido, não têm proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, não têm proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam e não têm proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interação de opiniões. Pouco importa se os populistas que penetram por essas brechas se declarem ou sejam considerados de esquerda ou de direita.

Então vamos simplificar tudo. Passou da hora de jogar fora no lixo esse papo de esquerda e direita. Os líderes e suas forças políticas podem ser classificados hoje basicamente em três tipos: democratas, populistas e autocratas.

A diagram of the political party

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Democratas (como Frederiksen, da Dinamarca e Merz, da Alemanha) não são populistas, nem autocratas. Não importa se a primeira é dita de esquerda (ou progressista) e o segundo é dito de direita (ou conservador).

Populistas podem ser autocratas (como Maduro, da Venezuela e Bukele, de El Salvador) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda e o segundo é dito de direita. Mas populistas podem também não ser autocratas (como Xiomara, de Honduras e Fico, da Eslováquia) – e não importa se a primeira se identifica com a esquerda e o segundo com a direita.

Autocratas podem não ser populistas (como Chính, do Vietnam e Min Aung Hlaing, de Mianmar) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda (e socialista) e o segundo é considerado de direita (um ditador militar).

Note-se que, nos pares citados acima como exemplos, sempre um é dito de esquerda e o outro de direita. Isso é para mostrar que não há diferença relevante entre eles em termos de comportamento político.

É claro que se pode detalhar a classificação proposta aqui para revelar as diferenças entre dois tipos de democratas, dois tipos de populistas e dois tipos de autocratas, como na imagem abaixo:

A diagram of different colors of circles

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Entre os democratas, temos os democratas liberais (como Rodrigo, da Costa Rica) e os democratas apenas eleitorais (como Plenkovic, da Croácia).

Entre os populistas, temos os neopopulistas (como Arce, da Bolívia) e os populistas-autoritários ou nacional-populistas (como Modi, da Índia).

Entre os autocratas, temos os autocratas eleitorais (como Putin, da Rússia) e os autocratas não-eleitorais (como bin Salman, da Arábia Saudita).

Claro que, como já foi dito, há uma interseção entre populistas e autocratas (no caso, autocratas eleitorais). O neopopulista Ortega (da Nicarágua) e o nacional-populista Erdogan (da Turquia) são também autocratas eleitorais.

Mas essas subclassificações não alteram a divisão básica entre democratas, populistas e autocratas.

Também não ajuda classificar as forças políticas em conservadores, liberais e socialistas – colocando os dois últimos como progressistas (quando muitos que se declaram socialistas são regressistas). Além disso, essa classificação ideológica exclui a possibilidade da existência de liberal-conservadores. As forças políticas não podem ser classificadas pelas ideologias confessadas por seus líderes e sim pelo comportamento político do conjunto de seus agentes.

Regulamentação das redes sociais

Há uma sanha de regulamentação das chamadas redes sociais. Neste artigo mostro por que está tudo (ou quase tudo) errado. 

1 – Em primeiro lugar, não são redes sociais (social networks) e sim mídias sociais (social media). Só no Brasil se confunde tanto as duas coisas. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio, não plataformas, aplicativos, programas, tecnologias. Redes sociais não são um nome para um novo tipo de organização e sim um padrão de organização (caracterizado por topologias mais distribuídas do que centralizadas). Você quer entender essas diferenças? Vai aqui uma bibliografia básica (1).

2 – Em segundo lugar, as regulamentações propostas pelos que querem estabelecer, desde o século passado, o “controle social da mídia”, não afetam apenas as mídias sociais e sim toda a internet. E o controle social que preconizam acaba sendo, na prática, um controle partidário-governamental (na medida em que qualquer órgão regulador inventado será vulnerável ao processo de conquista de hegemonia efetivado por parte de militantes e simpatizantes de partidos ou movimentos que praticam a política como guerra, quer dizer, como construção contínua de inimigos, na base do “nós contra eles”). Você quer entender por que a internet como um todo será afetada e não apenas as mídias sociais? Acompanhe os posts do @ayubio, que entende do assunto (2). Vale a pena ler também a avaliação do Ronaldo Lemos sobre a regulamentação aprovada pelo STF (3).

3 – Em terceiro lugar, as mídias sociais poderiam ser excelentes instrumentos de netweaving (ou seja, de articulação e animação de verdadeiras redes sociais), mas infelizmente não são. Seus algoritmos caixa preta acabam induzindo o broadcasting, a disseminação de mensagens um-para-muitos que estimula seus usuários a adquirir cada mais seguidores – em vez de interagir (que é aceitar ser modificado pelo outro-imprevisível, na interação fortuita) – ficando sujeitos à doença da rede que chamamos de fama e não leva à formação de redes humanas, redes de pessoas interagindo em um padrão mais distribuído do que centralizado (que são as verdadeiras redes sociais). Se você quiser saber mais sobre netweaving, pesquise (4). 

4 – Em quarto lugar, os modelos de negócios das grandes plataformas de mídias sociais estimulam a discórdia e não a concórdia, o dissenso e não o consenso, a desavença e não o encontro, configurando ambientes favoráveis à luta de facções e tribos pelo predomínio ou pela supremacia no novo espaço público digital e não à busca coletiva de soluções compartilhadas para seus problemas, à realização de projetos comuns que partam da congruência de seus desejos; ou, mesmo, à simples convivência amistosa (ou não-adversarial). A preocupação com isso é legítima, ou seja, não está errada. O que está errado aqui são as soluções repressivas frequentemente apresentadas por motivos políticos.

5 – Em quinto lugar, toda regulamentação marcada pelo imperativo de alterar a correlação de forças a favor de um projeto político de poder acaba desaguando no processo eleitoral. Na conjuntura atual brasileira os promotores de regulamentações autoritárias estão preocupados precipuamente em reeleger Lula da Silva em 2026 e então estão procurando um meio de usar algum tipo especioso de regulamentação para proibir que as campanhas de oposição: a) falem da história de corrupção do PT; b) associem a corrupção do INSS e outros escândalos ao incumbente e seus aliados ou seguidores; c) tragam à tona a aliança histórica de Lula e do PT com ditaduras (como Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola) e denunciem a aproximação de Lula com Putin, sua admiração por Xi Jinping e sua simpatia pelos teocratas iranianos e por outros autocratas ou populistas alinhados no propósito de destruir as democracias liberais. É improvável que essa manobra suja – “eu fico com as TVs e vocês ficam sem as mídias sociais” – funcione eleitoralmente, pelos motivos apresentados no tópico abaixo.

6 – Em sexto lugar, é uma ilusão pensar que coibindo o uso das mídias sociais por parte dos nacional-populistas, o problema da existência de uma extrema-direita com ampla base eleitoral (e social) será resolvido. O emprego abusivo e destrutivo das mídias sociais é parte de um movimento de caráter revolucionário (ainda que para trás, quer dizer, reacionário) que está presente no mundo todo. Não adianta demonizar os trilionários malvadões das bigtechs e seus algoritmos malignos, pois a apropriação e o uso político desses meios não obedece a nenhuma coordenação centralizada: é um movimento difuso ou distribuído que acaba arrastando todos aqueles que não estão satisfeitos com “o sistema”, com a maneira como esse sistema (seja o que entendam por isso) está organizado e funciona. Ademais os tecnofeudalistas provedores da infraestrutura e dos algoritmos das grandes plataformas não vão se abalar muito com um traque soltado pela suprema corte brasileira: continuarão funcionando e será impossível proibir o uso de VPNs e outros meios de desobedecer e burlar as proibições a não ser que o país esteja disposto a se transformar em uma ditadura. Tais proibições só aumentarão e espalharão a revolta. No Brasil, em particular, o bolsonarismo tem de ser enfrentado pela democracia. Não por medidas antidemocráticas (como uma regulamentação autoritária que vise impedir a paridade de armas em disputas eleitorais e outras). Nossa democracia deve ser capaz de resistir ao nacional-populismo (bolsonarista) e ao neopopulismo (lulopetista) com mais democracia, não com menos. Do contrário, o regime político brasileiro se autocratizará.

Estamos em guerra

Nesta terceira década do século 21 o mundo está imerso numa terceira grande guerra. E não é possível escapar dela.

A guerra mundial atual é uma guerra fria. Guerra fria é guerra. Estamos numa segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais – e não apenas uma guerra EUA x China, como se fosse um repeteco da primeira guerra fria EUA (e Ocidente) x URSS.

A guerra atual é uma netwar: não apenas uma ciberguerra, mas uma guerra social, que atravessa todas as fronteiras e divide as sociedades nacionais.

A netwar já é a terceira guerra mundial – que também não é um repeteco da primeira e da segunda guerras quentes mundiais.

Teremos ainda muitos episódios de guerras quentes regionais, mas o evento mais importante é a guerra global que já se instalou. É por isso, por exemplo, que a guerra de Gaza não é em Gaza, mas no mundo todo. Em Gaza, Israel vai vencendo. No mundo, o Hamas já venceu.

As guerras quentes regionais cumprem um papel alimentador e detonador da netwar global. Assim ocorre com a guerra do Irã (integrante do eixo autocrático) contra Israel (que era uma democracia liberal), seja via uma dúzia de grupos terroristas (Hamas, Jihad Islâmica, Hezbollah, Houthis etc.), seja, agora, diretamente. Em todas as sociedades ditaduras e democracias parasitadas por governos populistas se levantam contra Israel (e, mais do que isso, espalham o antissemitismo).

Assim ocorre com a guerra da Rússia (integrante do eixo autocrático e na vanguarda da netwar) contra a Ucrânia, na verdade, contra as democracias europeias, ameaçando imediatamente a Moldávia, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Finlândia, a Geórgia e até a Suécia e a Polônia. Novamente, se colocam a favor da Rússia as ditaduras e setores das democracias parasitadas por governos populistas.

Assim também ocorrerá, em breve, na guerra da China (integrante do eixo autocrático) contra Taiwan (uma democracia liberal).

A polarização e a consequente divisão que a netwar instala nas sociedades de todos os países é parte da netwar global que, para todos os efeitos práticos, é uma campanha de exterminação das cerca de três dezenas de democracias liberais que ainda restam no mundo. Além disso, uma vez entrando em guerra quente regional, atacadas por algum integrante do eixo autocrático, as democracias liberais decaem. Segundo o V-Dem, depois do ataque terrorista e do início da guerra contra o Hamas, Israel deixou de ser uma democracia liberal e passou a ser uma democracia apenas eleitoral (um regime não-liberal). A Ucrânia deixou de ser uma democracia eleitoral e passou a ser uma autocracia eleitoral. O mesmo ocorrerá com Taiwan, quando a China começar a invadí-la.

Países com regimes democráticos não entram em guerra entre si. Mas uma vez atacados por países com regimes autocráticos, os países com regimes democráticos decaem: ou deixam de ser liberais ou, pior, passam a ser autocracias. Tudo isso acontece porque não é que países autocráticos façam guerra (entre si e contra países democráticos) e sim porque a guerra é a autocracia.

A guerra é o modo de ser da autocracia. Em outras palavras: o que chamamos de autocracia é um modo guerreiro de regulação de conflitos. Em geral há dificuldade de entender isso porque as pessoas acham que guerra é apenas guerra quente (com derramamento de sangue) e não veem que guerra fria também é guerra e que a política praticada como continuação da guerra por outros meios (na base do “nós contra eles”, como fazem todos os populismos, ditos de direita ou de esquerda) também é guerra. Não veem que guerra não é destruição violenta de inimigos e sim construção de inimigos, o que pode acontecer, inclusive, de forma não violenta.

As pessoas não veem que toda guerra é interna. Que o objetivo da guerra é instalar um estado de guerra que justifique a reorganização dos cosmos sociais para erigir padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação.

Como disse Larry Diamond (2020), ventos malignos (Ill Winds) estão soprando. E podem soprar ainda por muito tempo nesta terceira onda de autocratização que nos assola. Não há como se esconder deles.

O que é um comportamento democrático

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas ideologias confessadas por seus integrantes em vez de pelo comportamento praticado por eles, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz conservador, liberal ou socialista. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas suas posições nos lados em confronto da política praticada como continuação de guerra por outros meios, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz de esquerda ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelos rótulos de suas crenças ou visões de mundo, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz social-democrata de esquerda ou centro-esquerda ou social-liberal de centro, centro-direita ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Piora tudo, é claro, se quisermos dividir as forças políticas em progressistas x fascistas ou em comunistas globalistas x patriotas nacionalistas. É nesse lugar escuro, nesse pátio fétido da polarização, em que, infelizmente, nos encontramos.

Chegamos então ao centro da questão. O que é um comportamento democrático? Em primeiro lugar é um comportamento não-populista, pluralista e liberal (no sentido político do termo). Isso resumo (quase) tudo, mas precisa ser debulhado.

Democratas defendem – não importa se ditos conservadores, liberais ou socialistas; de esquerda (como Boric) ou de direita (como Lacalle Pou); social-democratas ou social-liberais – as seguintes ideias:

Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).

Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (e, portanto, recusam o majoritarismo e o hegemonismo).

Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.

Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).

Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.

Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).

Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.

Império da lei e judiciário independente (e auto contido em suas atribuições).

Forças armadas subordinadas ao poder civil.

A sociedade controla o governo e não o contrário (pois avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado – o que pressupõe recusa ao estatismo).

Tudo bem como ideário. Mas como democratas se comportam, na prática?

Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (ditadura ou autocracia), seja dita de esquerda ou de direita, religiosa ou laica.

Democratas se opõem a governos antidemocráticos (mesmo quando governando em regimes democráticos) e a oposições antidemocráticas (que queiram não apenas mudar o governo, o que é legítimo, mas alterar a natureza do regime democrático ou substituí-lo por regimes não democráticos).

Democratas se opõem a governos, mesmo democráticos, dos quais discordam (pois sabem que a democracia funciona com situação democrática e oposição democrática e que, por isso, as oposições democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como fundamentais para o bom funcionamento de regime).

Democratas recusam a guerra (ou não praticam a política como continuação da guerra por outros meios): repudiam o antipluralismo, o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”, pois avaliam que política não é guerra e sim evitar a guerra.

Democratas atuam, fundamentalmente, no sentido de fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática; ou seja, não se dedicam a tentar converter todos os indivíduos de uma população em democratas – pois sabem que isso é impossível: nunca aconteceu no passado, não acontece hoje e não acontecerá no futuro, até porque não faz sentido – e sim a criar condições para que a interação das opiniões diversas e plurais que existem na sociedade tenha como resultante, por emergência, uma opinião pública (que não é a mesma coisa que a soma das opiniões privadas dos indivíduos) democrática. Nesse sentido, pode-se dizer que não são a massa, mas o fermento na massa.

Corrupção, ditaduras e dois canos fumegantes

O pior problema do lulopetismo não é que ele tenha a mais extensa folha corrida de corrupção da história universal em democracias. Muito mais grave do que isso é que Lula, o PT e seu governo se aliam às maiores ditaduras do planeta contra as democracias liberais.

Há um problema histórico de corrupção. Mas o mensalão e o petrolão não levaram a um arrependimento do PT. Os lulopetistas achavam que tinham direito de fazer o que fizeram pois o objetivo final era nobre: financiar seu projeto de poder que tinha como propósito acabar com a desigualdade. Era “a revolução pela corrupção”, como cunhou o saudoso Ferreira Gullar.

Para remover essa mancha do seu caráter teria de haver arrependimento, autocrítica, correção de rumos e afastamento dos dirigentes envolvidos. O PT fez o contrário: negou tudo e manteve os implicados em posições de destaque no partido (e alguns até no governo).

Com esse comportamento é mesmo impossível se desvencilhar da dependência da trajetória. É o que estamos vendo agora com o caso do roubo dos aposentados. O governo do PT sabia há tempos do roubo dos aposentados. Não fez nada porque, entre os ladrões, estavam vários apaniguados da patota sindicalista. Agora, que o escândalo veio a público, está mentindo que foi ele que revelou o assalto. Pode-se dizer que isso é o batom na cueca. Não, por certo, o batom da Débora, condenada a quase 15 anos de prisão por ter pichado uma estátua. Mas a cueca lembra, com certeza, a daquele assessor do José Guimarães, líder do governo na Câmara.

O Sindnapi (Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos), que tem como vice-presidente “Frei Chico”, irmão de Lula, chegou a incluir 3,2 mil novos filiados por dia. Dados da CGU mostram que, em julho de 2023, o sindicato do irmão do Lula incluiu 67,2 mil novos aposentados em seus sistemas de descontos e em junho do ano passado foram outras 63,1 mil novas inclusões potencialmente ilegais. Impossível não levantar a hipótese de que esse tipo de sindicalismo (lulopetista) é uma forma de banditismo.

O governo Lula III – seguindo a tradição dos governos Lula I, Lula II, Dilma I e Dilma II – compactua com esse tipo de comportamento. Diz que vai investigar e punir os responsáveis, doa a quem doer. Mas as evidências não confirmam tal vontade. A AGU de Lula deixou de fora dos pedidos de bloqueio de recursos e quebra de sigilo as entidades aparelhadas pelo PT. Livrou a CONTAG que recebeu R$ 426 milhões em 2023 porque sua presidente é petista. Livrou o SINDNAPI (“sindicato dos aposentados”) que tem como diretor Frei Chico, o irmão de Lula. Livrou o CONAFER (agricultores familiares) cuja receita superou os R$ 202,3 milhões em 2023. É o que leio na imprensa. Não sou da Polícia Federal, nem do FBI ou da CIA.

Sim, o PT tem um imenso histórico de corrupção. Mas pouca gente entendeu (sobretudo os lavajatistas) que:

1) O PT praticou a corrupção tradicional do sistema político (simbolizado pelo famoso “caixa 2”, aquele que se faz para eleger representantes e, com as sobras, para enriquecer e se dar bem na vida) e a corrupção com motivos estratégicos de poder (o “caixa 3”, desviando recursos para financiar um Estado paralelo que tinha como objetivo delongar a presença do partido no governo até tomar o poder).

2) O problema principal do PT não é a corrupção e sim o populismo, o antipluralismo e o hegemonismo que são contra-liberais e, quando praticados por tempo suficiente, autocratizam o regime democrático alterando por dentro o seu DNA.

Mas pouca gente percebeu tudo isso porque o PT escondeu sua corrupção estratégica dentro da corrupção tradicional, depositando seus ovos na carcaça podre do velho sistema político. Assim, ficou parecendo que Lula era a mesma coisa que Cabral, que Dirceu era mais ou menos igual a Cunha, que Vaccari era uma espécie de Geddel. Nunca foram. Não são. Nunca serão.

Esse caráter autocrático ou autocratizante do PT, entretanto, não é em geral tão percebido, a despeito da montanha de evidências. Vejamos algumas.

1 – Lula, o PT e o governo se proclamam democratas e até mesmo salvadores da democracia. Se é assim, por que o Brasil não se articula com as democracias plenas ou liberais das Américas (como Canadá, Costa Rica, Uruguai e Chile)? Por que prefere se aproximar dos regimes eleitorais parasitados por governos populistas que se dizem de esquerda (como México, Honduras, Colômbia, Bolívia)? Pior. Por que o Brasil se aproxima de ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela e Nicarágua)?

2 – Lula, o PT e o governo e seus esbirros na imprensa se autoelogiam por estarem empenhados em articular o BRICS. Mas entre os 10 membros plenos do BRICS, 80% são ditaduras. Entre os 9 membros parceiros do BRICS, 78% são ditaduras. Nas duas categorias, 79% são ditaduras. Nelas não há nenhuma democracia liberal ou plena. O que o Brasil – se quer ser uma democracia plena – está fazendo no BRICS?

3 – Lula, o PT e o governo e seus esbirros na imprensa, dizem que a democracia liberal está ameaçada pelo crescimento da extrema-direita e aí citam Trump, Le Pen, Orbán, Bukele, Milei, Bolsonaro, Weidel (AfD), Ventura, Abascal, Farage, Wilders etc. É engraçado que não citam Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un, Lukashenko, Cuòng (Vietnam), Sisoulith (Laos), Khamenei (Irã e seus braços terroristas Hamas, Hezbollah, Houthis), Lourenço, Canel, Maduro, Ortega. Esses ditadores da segunda lista (alguns declaradamente de esquerda ou socialistas) não ameaçam a democracia?

Existem mais evidências.

4 – Neste exato momento Lula está na Rússia, representando o Brasil na Parada da Vitória promovida pelo ditador Putin. Não estará presente no convescote nenhuma democracia liberal ou plena. Não estará presente nenhuma democracia formal, mesmo defeituosa, com exceção do Brasil (e dos países satélites da Rússia, como a Eslováquia e a Sérvia). Cerca de 90% dos convidados presentes são ditadores que foram a Moscou ajudar a recuperar a imagem de Putin e aplaudir o desfile de tropas que invadiram ou invadirão a Ucrânia. O que o Brasil está fazendo nessa caterva? O que justifica tal comportamento a não ser dar uma demonstração clara para o mundo de que o Brasil se aliou ao eixo autocrático contra as democracias liberais?

Corrupção, ditaduras e dois canos fumegantes. Uma história de dependência e amor bandido.

Democracia: não estamos falando da mesma coisa

Quando falamos de democracia é bom ver se estamos falando da mesma coisa. Vamos ver alguns exemplos.

Alguém pode pensar que é democrata porque lutou contra a ditadura militar.

Alguém pode pensar que é democrata porque é antifascista.

Alguém pode pensar que é democrata porque é contra o bolsonarismo.

Alguém pode pensar que é democrata porque é contra o populismo de direita e as ditaduras de extrema-direita.

Nada disso, porém, basta para qualificar um ator ou força política como democratas.

Alguém pode ter lutado contra a ditadura militar para implantar outra ditadura (por exemplo, a ditadura do proletariado).

Ser antifascista não garante nada em termos democráticos (os ditadores Canel, Maduro, Ortega, Xi Jinping e Putin são declaradamente antifascistas).

Ser contra o bolsonarismo, o populismo de direita e as ditaduras de extrema-direita também não atesta conversão à democracia, a qual exige uma posição contrária a qualquer populismo, inclusive contra os populismos de esquerda e contra as ditaduras de esquerda.

Como resolver o problema de saber quais são os requisitos para caracterizar um ator ou força política como democratas? É preciso observar os critérios democráticos.

Os dez critérios para caracterizar um regime democrático em sua plenitude (liberal) são:

1 – Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).

2 – Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo).

3 – Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.

4 – Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).

5 – Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.

6 – Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).

7 – Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.

8 – Império da lei e judiciário independente.

9 – Forças armadas subordinadas ao poder civil.

10 – A sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado – o que pressupõe recusa ao estatismo).

Considerando o que se expôs acima podemos ver que muitas pessoas e forças políticas que se apresentam como estando no campo da democracia na verdade não estão. A não ser que tenham outro conceito de democracia, um conceito não-liberal.

É muito comum forças políticas se apresentarem como democráticas confundindo o conceito de democracia com o conceito de cidadania. Em geral, falam de cidadania para todos ofertada pelo Estado, quando “nas mãos certas”, quer dizer, comandado por forças políticas ditas progressistas. Cidadania universalizada é um bom propósito, é desejável, mas não é a mesma coisa que democracia. Isso pode ser ofertado por regimes não-democráticos, quer dizer, por autocracias.

Singapura, uma autocracia eleitoral (segundo o V-Dem), está fazendo isso. A China, uma autocracia fechada, diz que está fazendo isso a partir do seu próprio conceito de democracia: a chamada “democracia popular de processo integral”. Mas essa “democracia” chinesa não atende aos critérios acima.

Cuba, outra autocracia fechada, segundo Lula, faz isso. Para ele “o único país [na América Latina] que conseguiu dar um salto foi Cuba… eles resolveram o problema da cidadania”.

Certamente, em muitos casos não estamos falando da mesma coisa quando usamos a palavra democracia. Por isso os critérios acima são tão importantes. Deveriam ser impressos, emoldurados e pendurados, pelos democratas, nas paredes das instituições públicas e privadas, nas residências, nas escolas, nas igrejas, nas organizações da sociedade civil, nas empresas, em todo lugar.


P.S. É quase inútil discutir com lulopetistas sobre democracia. Eles capturaram a palavra democracia para designar outra coisa. O que Lula e o PT chamam de democracia não é o que se entende por democracia na Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chequia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estônia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai – ou seja, as democracias liberais (V-Dem) ou plenas (EIU). Para alguns petistas democracia é o que a China chama de “democracia popular de processo integral”. Para outros é o regime vigente em Angola e Cuba. Há até quem chame de democracia o regime da República Popular Democrática da Coreia (do Norte). É difícil conversar quando as mesmas palavras não significam as mesmas coisas.

É uma vergonha democratas não criticarem o BRICS 

É inacreditável – e inaceitável – que não haja uma oposição democrática no Brasil criticando o governo Lula por participar e querer até liderar o BRICS.

O BRICS, originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia e China em 2009 (com a adesão da África do Sul em 2010), expandiu-se significativamente em 2024 e 2025. Deixou de lado o disfarce de bloco econômico e assumiu seu objetivo político de aumentar a influência do Sul Global (uma espécie de terceiro-mundismo requentado) no combate ao imperialismo norte-americano e o neocolonialismo europeu, quer dizer, em oposição à ordem internacional liberal e às democracias liberais.

QUEM SÃO OS PAÍSES BRICS

Em 2025, o BRICS é composto por membros plenos e países parceiros, conforme detalhado abaixo, com base em informações recentes e confiáveis:

Membros Plenos do BRICS

Os países que atualmente são membros plenos do BRICS, com direito a participar de todas as reuniões e tomar decisões por consenso, são:

Brasil – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista.

Rússia – Autocracia eleitoral.

Índia – Autocracia eleitoral.

China – Autocracia fechada.

África do Sul – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista. (Por erro ou vezo ideológico o V-Dem promoveu a África do Sul à democracia liberal no seu relatório de 2025, mas é melhor ignorar esse percalço).

Egito (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral.

Etiópia (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral.

Irã (aderiu em 2024) – Autocracia fechada.

Emirados Árabes Unidos (aderiu em 2024) – Autocracia fechada.

Indonésia (aderiu em janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral.

Nota: A Arábia Saudita (Autocracia fechada) foi convidada a se tornar membro pleno em 2023, mas sua adesão ainda não foi oficialmente confirmada, embora algumas fontes indiquem que ela já participa como membro.

Não há nenhuma democracia liberal (V-Dem) no BRICS. Não há nenhuma democracia plena (The Economist Intelligence Unit) no BRICS.

Entre os 10 membros plenos do BRICS, 8 (80%) são ditaduras.

Países Parceiros do BRICS

Os países parceiros são uma categoria criada em 2024, durante a Cúpula de Kazan, na Rússia, para integrar nações em um estágio preliminar antes da possível adesão como membros plenos. Esses países participam de cúpulas e reuniões temáticas, mas não têm direito a voto ou aprovação de documentos. Os atuais países parceiros, confirmados a partir de janeiro de 2025, são:

Belarus – Autocracia eleitoral.

Bolívia – Democracia eleitoral (não-liberal), flawed, parasitada por governo neopopulista.

Cazaquistão – Autocracia eleitoral.

Cuba – Autocracia fechada.

Malásia – Democracia eleitoral, flawed.

Nigéria (confirmada como parceira em 17 de janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral.

Tailândia – Autocracia eleitoral.

Uganda – Autocracia eleitoral.

Uzbequistão – Autocracia fechada.

Entre os 9 membros parceiros do BRICS, 7 (78%) são ditaduras.

Nota sobre outros países convidados

Durante a Cúpula de Kazan, em outubro de 2024, 13 países foram convidados a se tornarem parceiros, mas apenas os nove listados acima confirmaram sua participação até janeiro de 2025. Os outros quatro países convidados — Argélia (Autocracia eleitoral), Turquia (Autocracia Eleitoral), Vietnã (Autocracia fechada) e Nigéria (antes de sua confirmação em janeiro) — não haviam respondido formalmente até o final de 2024, e Argélia, Turquia e Vietnã ainda não confirmaram sua adesão como parceiros até abril de 2025.

Nenhuma democracia liberal, nenhuma democracia plena

Mais de 30 países expressaram interesse em participar do BRICS, seja como membros ou parceiros. Nenhuma democracia liberal (V-Dem) se interessou. Nenhuma democracia plena (The Economist Intelligence Unit) se interessou.

Conclusão

O BRICS é uma articulação política (inicialmente disfarçada de bloco econômico) composta majoritariamente por ditaduras (79%). O BRICS é hoje um instrumento do eixo autocrático contra as democracias liberais.