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Golpe de Estado

A esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) não tem medo de um golpe de Estado. Ela tem medo do voto! Do voto de quem não vota na esquerda. Por isso ela denuncia golpe de Estado onde não há golpe de Estado. 

Vejamos. Segundo os populistas de esquerda, a condenação e prisão dos principais dirigentes do PT pelo mensalão e pelo petrolão foi um golpe de Estado. O impeachment de Dilma foi um golpe de Estado. A condenação e prisão de Lula foi um golpe de Estado. A eleição de Bolsonaro foi um golpe de Estado. Tudo falso. Nada disso foi golpe de Estado. 

Claro que, depois, uma parcela da direita populista (bolsonarista) quis mesmo dar um golpe de Estado (à moda antiga): articulou e intentou fazer isso, embora não tenha conseguido consumar sua intenção por falta de capacidade de organização, de estratégia e, fundamentalmente, de força político-militar para tanto. Condenados por tentativa de golpe de Estado, os principais líderes, civis e militares, da intentona, estão sendo presos. 

Mas o fato de parte dos antigos eleitores de Bolsonaro continuarem não querendo votar na esquerda, não é golpe de Estado. 

Frustrada a tentativa de golpe do final de 2022, não há mais golpe nenhum sendo tramado no Brasil por esses desastrados atores. Nem da parte de outros atores. Não há condições objetivas e subjetivas para um golpe de Estado (sobretudo à moda antiga, com intervenção militar). 

Mas o PT insistirá em dizer que quem não votar em Lula (no primeiro turno de 2026) ou mesmo quem se apresentar como candidato nas próximas eleições desafiando o quarto mandato de Lula e o sexto do PT (seja bolsonarista, quer dizer, súdito fiel da famiglia Bolsonaro – ou não) é um fascista golpista, disfarçado ou camuflado. É a tese do golpe continuado. Ou seja, o PT manteve sua narrativa anterior e continua dizendo que tudo que contraria seu projeto de poder é golpe de Estado.

O mapa do caminho

Descobrimos então que a COP 30 era muito mais importante para a esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) do que imaginamos. Eles jogaram tudo para fazer da COP 30 um tipping point

Para o governo Lula foi um ato de campanha, pleno de marquetagens: “a maior COP do mundo”, “a COP do povo liderada por Lula” – o guia genial, o grande timoneiro. Basta ver que o último discurso de Lula na COP 30 foi tipicamente eleitoral. Uma fala populista num palanque para dentro. O tal “mapa do caminho” mesmo só teremos… nas próximas COPs. Compromissos com metas necessárias e críveis ocorrerão… nas próximas COPs. Para Lula, o mais importante vem antes: nas urnas de 2026.

Para a esquerda, órfã das grandes narrativas totalizantes do século 20, era para ser uma espécie de “enchente amazônica”, uma “explosão atlântica” onde os excluídos, os condenados da Terra, os povos originários e todas as minorias acordaram (woke) para dizer ao mundo dos ricos que não aceitam mais a situação de injustiça instalada. O climático serviu como um gancho perfeito para o social. Injustiça climática. Exclusão climática. Racismo climático. A discriminação climática é estrutural.

Uma revivescência da luta de classes e da luta contra a discriminação. O início de uma verdadeira revolução social. Uma sublevação do Sul Global. A esquerda agora não só lidera, mas se apropria da causa climática… contra a direita. 

Foi aí que apareceu a proposta do Mapa do Caminho para redução das emissões de CO2, lavando a contradição do Brasil querer liderar essa caminhada mantendo a exploração dos combustíveis fósseis. Porque no futuro, ah!, no futuro, não será mais assim. Vamos para o reino da liberdade e da abundância: mas amanhã, não hoje. Sim, vamos extinguir o Estado: mas amanhã, não hoje. Hoje, nós, os socialistas, fortalecemos o Estado para enfraquecê-lo. Mas hoje só amanhã.

(Se você não quiser deixar de fazer alguma coisa julgada reprovável, proponha um “mapa do caminho” para deixar de fazer essa coisa no futuro. Com esse truque você obtém uma licença para continuar fazendo o que não deve. É como uma ditadura prometendo um reino da liberdade amanhã). 

O Mapa do Caminho era um mapa para a reeleição de Lula e para o renascimento da esquerda como portadora da salvação universal.

Os países do eixo autocrático e os EUA trumpista, porém, não toparam essa parada. E o mapa ficou sem caminho; ou o caminho ficou sem mapa. A proposta de um plano de ação com etapas e metas para acabar com o uso de petróleo, gás natural e carvão mineral não avançou. China, Índia, Arábia Saudita e Nigéria não aceitam – pelo menos até agora – nenhum texto sobre o tema. E se aceitarem não irão realizar suas prescrições. Sem falar dos EUA, é claro. E da Rússia.

O ambientalismo, parasitado pelos órfãos das narrativas totalizantes do século 20, está alimentando o surgimento de uma militância proto-fundamentalista que passou a assombrar a humanidade com o apocalipse do aquecimento global. Não é que o aquecimento global não seja uma ameaça real. É que tratar isso na base do medo, crucificando como negacionistas climáticos os que não são fiéis do novo credo, instalará uma nova cruzada do bem contra o mal cujos resultados serão nocivos à liberdade. 

Entenda-se bem. O problema existe. E não há como resolvê-lo com uma grande vassourada. Como escreveu Quico Toro, o processo COP não funciona porque “imagina as emissões [de CO₂] como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato” (1). Não há como resolver o problema derrotando os negacionistas climáticos e, para tanto, incentivando uma nova polarização em que os militantes ambientalistas vão abrir uma guerra contra os negacionistas climáticos. 

Se a chamada esquerda, que sempre se acha do lado do bem, abrir esse tipo de guerra contra a chamada direita negacionista, sempre avaliada, pela esquerda, como estando do lado do mal, isso não contribuirá em nada para resolver o problema. 

Não é uma guerra universal que precise ser vencida, com a derrota definitiva dos inimigos incréus para nos salvar do apocalipse. É preciso ver o que se pode fazer agora, a começar pelos nossos atos singulares e precários em todos os âmbitos, das pessoas e comunidades, dos pesquisadores e empreendedores inovadores, das empresas e dos governos dos municípios, regiões e países e das organizações internacionais.


Nota

(1) Como escreveu Quico Toro, em Persuasion (13/11/2025), o processo COP não funciona “porque se baseia em um modelo errado sobre o que determina o nível de emissões de gases de efeito estufa de um país. A COP imagina essas emissões como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato. Mas as emissões são mais parecidas com o PIB: o resultado de um processo complexo que os políticos gostariam de controlar, mas que na realidade não controlam. Assim como o PIB, as emissões climáticas são o resultado cumulativo de bilhões de decisões tomadas por bilhões de atores — negociadores climáticos, empresas de serviços públicos, operadores de redes elétricas, reguladores, políticos, burocratas, banqueiros, investidores, empresas e famílias — cada um dos quais precisa ponderar uma série de compensações. Essas compensações incluem a qualidade do ar e as emissões de carbono, sim, mas também a acessibilidade, a confiabilidade, a soberania, a disponibilidade de recursos naturais e o nível de prontidão tecnológica. Nos países desenvolvidos, o resultado combinado dessas decisões tem sido uma queda gradual das emissões nas últimas duas décadas. Desde o pico em 2007, as emissões de CO₂ dos países desenvolvidos caíram de 15,7 gigatoneladas para 12,9 gigatoneladas em 2023. (Uma gigatonelada equivale a um bilhão de toneladas.) Também em 2023, pela primeira vez, a China emitiu mais dióxido de carbono do que todos os países desenvolvidos juntos. Entre 1970 e 2023, as emissões chinesas cresceram de 7,6 gigatoneladas por ano para 13,3 gigatoneladas por ano, e as emissões do restante do mundo em desenvolvimento aumentaram de 7,9 para 11,7 gigatoneladas. Para cada molécula de CO₂ que os países ricos reduziram suas emissões desde 2007, os países em desenvolvimento emitiram três a mais”.

Os democratas podem votar na chamada ‘direita’?

É muito difícil tirar um partido hegemonista do governo, sobretudo quando liderado por um parasita populista com alta gravitatem, pelos processos eleitorais normais num contexto em que o concorrente incumbente tem a simpatia da maioria dos jornalistas (comentaristas e analistas) políticos, dos pesquisadores de institutos de pesquisa de opinião e de agências de checagem, de uma rede suja de sites e influencers nas mídias sociais, dos artistas e famosos em geral, da maioria dos acadêmicos (sobretudo das áreas de humanas das universidades federais), dos sindicatos, centrais e associações profissionais, dos movimentos sociais e de boa parte das ONGs e, ainda por cima, conta com uma TV do maior grupo de comunicação do país para reverberar tudo isso diariamente. Sobretudo se o incumbente contar também com a simpatia da maioria da suprema corte, de vários tribunais superiores e de grupos influentes de juristas alinhados.

Nestas circunstâncias até entende-se a atratividade de uma alternativa antissistêmica, revolucionária (ainda que para trás, ou seja, reacionária). Há uma crença difusa de que a situação só muda com um curto-circuito no sistema, ainda que isso possa acelerar uma transição autocratizante do nosso regime político ou mesmo abrir a possibilidade de um golpe de Estado (embora hoje essa possibilidade esteja afastada no Brasil).

Em outras palavras, o hegemonismo é tão sufocante que grande parcela da população – em sua maioria não convertida à democracia – prefere qualquer coisa à manutenção do status quo, no limite até a abolição da democracia. Essa é a razão pela qual um populismo dito de direita (bolsonarista) chegou ao governo depois de vários mandatos consecutivos da esquerda populista (lulopetista). Como tal revolução não houve, a hegemonia conquistada de 2003 a 2016 não foi substituída por outra, o sistema continuou rodando nos mesmos parâmetros e o lulopetismo voltou ao governo em 2023. E a via antissistema perdeu todas as suas chances de ressurgir entre nós num horizonte divisável.

Sem a via antissistêmica, dita de extrema-direita, o que chamam de direita é apenas um componente normal de qualquer regime democrático. Em princípio entende-se que direita é tudo que não é esquerda. Todavia, opor direita, como se fosse “o mal”, ao governismo, tido por “o bem” porque seria de esquerda, é uma fraude.

Até os mais lúcidos jornalistas políticos tratam quem não é governista como sendo ‘de direita’. Mas que conversa é essa de ser ‘de direita’? A maioria da nossa população – que não é governista – nada tem a ver com ‘direita’. Isso tem um nome: hegemonia. Muitas vezes sem ter consciência disso nosso jornalismo se habituou a pensar sob comando. Comando de quem? Ora, dos populistas que se dizem esquerda e que estão no governo e dos populistas que, remedando os primeiros com o sinal trocado, querem se dizer de direita e estão na oposição.

O ardil é especialmente maligno quando urdido e aplicado pelo populismo lulopetista. Basta não ser governista para ser qualificado como direita. E já vai embutida a ideia de que direita, no Brasil, é a extrema-direita bolsonarista. Repetindo e acrescentando: a maioria da população brasileira, além de não ser governista, não é de direita, nem bolsonarista. Afirmar o contrário é a fraude política de que estamos tratando neste artigo.

Um editorial da Folha de São Paulo de ontem (15/11/2025), comentando as recentes pesquisas de opinião (em especial a da Quaest) diz o seguinte:

O quadro geral que determinou o resultado apertadíssimo das eleições de 2022 não dá mostras de ter-se diluído. Parcela francamente majoritária dos 50,9% que votaram em Lula naquele segundo turno continua a apoiá-lo como presidente. Já os que o rejeitam correspondem quase matematicamente aos 49,1% que votaram em Jair Bolsonaro (PL). Um segmento de eleitores independentes — que ora oscila para um lado, ora para o outro — tem causado as idas e vindas na aprovação do petista desde a posse, em janeiro de 2023. A movimentação pendular prediz que essa fatia no centro do espectro ideológico vai decidir a sucessão presidencial em outubro de 2026.

Na luta para capturar os 10% (há quem diga que são apenas 3%) que vão decidir a eleição de 2026, a direita é pintada como tendo sido devorada, digerida e dejetada pela extrema-direita. O cadáver insepulto de Bolsonaro continuará, para tanto, sendo agitado como um espantalho. De modo que não reste alternativa, a qualquer pessoa de bom senso, senão rejeitar a direita. Por quê? Porque ela não passa de uma fantasia usada pela extrema-direita para voltar ao governo e tentar novamente seu plano de dar um golpe de Estado na nossa democracia, desta feita com a ajuda do imperalismo norte-americano returbinado por Donald Trump. A extrema-direita realmente existente, quer dizer, os reacionários antissistema que são, na verdade, os agentes da camorra bolsonarista, dão credibilidade a essa farsa assumindo-se como os únicos verdadeiros antipetistas (porque são anticomunistas). Para vencer os comunistas qualquer ajuda será válida, inclusive do governo dos Estados Unidos, mesmo violando a nossa soberania nacional.

Os opostos jogam juntos na criação desse ambiente deletério para a democracia. Superar essa constelação aziaga de fatores exige, entretanto, começar esquecendo as ideologias. Não importa se as forças políticas principais se dizem progressistas (uma sopa de socialistas e liberais que acham que devem ser posicionar mais à esquerda) ou conservadoras (em boa parte reacionárias travestidas de conservadoras que querem se dizer de direita).

E devemos esquecer também o esquema classificatório ultrapassado que divide as forças políticas em esquerda e direita. Do ponto de vista propriamente político existem governo e oposição. O governo é populista. Parte da oposição (a parte bolsonarista) também é populista. Os democratas, no sentido pleno ou liberal do termo, não são populistas. Esses últimos, embora minoritários, são o que há de oposição democrática no Brasil. Serão eles suficientes para apresentar uma alternativa não populista para 2026? Não parece ser o mais provável, ainda que possa acontecer.

Já está passando da hora de pré-candidatos que não são populistas (nem lulopetistas, nem bolsonaristas) e não apoiam ditaduras apresentarem à sociedade brasileira um programa coerente capaz de situá-los no centro de gravidade da política democrática. Mas embora o programa deva vir antes do nome, não adiantará mais, nesta altura do campeonato, um programa sem um nome. E também não adiantará um programa e um nome sem um movimento. Eduardo Leite poderia ser esse nome, mas – além de estar dependendo da conveniência política do chefe do seu partido, o PSD – parece ter medo de queimar a largada e virar vidraça antes do tempo se se lançar num franco movimento por uma via democrática para o Brasil. Há incerteza sobre se um movimento desse tipo não seria taxado, inclusive pela imprensa, como ‘de direita’, dificultando a adesão de eleitores moderados de centro.

O truque, reconheçamos, funcionou perfeitamente até agora. O medo da acusação de ser ‘de direita’ (e, na visão dos acusadores, antidemocrático) é tão grande que, por incrível que pareça, até uma parcela de liberais que querem ser esquerda (justamente para não ficarem com a pecha de ser ‘de direita’), trabalham objetivamente contra essa via democrática. Só há explicação se partirmos de uma hipótese abstrusa: parece que existem pessoas cujo córtex frontal é liberal, mas o cérebro límbico é de esquerda populista (ou seja, iliberal). É esse tipo de gente que, na reta final de 2026, acabará recomendando o voto em Lula como o menos pior. E atenção! A reta final pode não ser o segundo turno, de vez que o governo e o PT vão jogar tudo para reeleger Lula no primeiro turno.

É claro que há uma malandragem jornalística em curso para captar a simpatia dos 3 aos 10% de votos moderados de centro, que podem decidir a eleição. Na reta final os malandros dirão que, infelizmente, não apareceu ninguém que valha a pena e então recomendarão o voto em Lula como o menos pior. E já que é o menos pior, por que não elegê-lo logo no primeiro turno afastando o risco do governo cair nas mãos de um aventureiro reacionário ou de um fisiológico ou corrupto do “centrão”?

Assim, temos de passar a observar de perto não os que hoje defendem a reeleição de Lula ou a eleição de um oposicionista. Mas os que estão cativando a simpatia desses 3 a 10% de votos ditos centristas, projetando um caminho para, amanhã, recomendar o voto em Lula como o menos pior para a democracia.

Ao fazerem isso, porém, esses trânsfugas do liberalismo estarão não apenas eliminando a possibilidade de uma via democrática para 2026 (se houver um candidato não populista viável), mas inclusive para 2030 e, quiçá, além. Descartada a via antissistema, dita de extrema-direita, nos curto e médio prazos, o hegemonismo petista continuará aparelhando as instituições e colonizando as consciências durante o quarto mandato de Lula e o sexto do PT neste século. E, dependendo do que vier a acontecer nos próximos cinco anos, 2030 pode ser ainda mais difícil para uma via democrática do que 2026. Não se deve duvidar disso. Estamos sob uma terceira onda de autocratização e em plena recessão democrática desde o início deste século. É mais ou menos como a antessala de uma idade das trevas, semelhante àquela que vivemos nos anos 20-30 do século 20.

Há pouco mais de um ano (em 04/11/2024) publiquei um artigo intitulado Centro democrático? Sim, em 2030. O artigo terminava assim:

Claro que 2030 passa por 2026. E que se deve fazer o possível em 2026. Desde que a comichão de jogar todas as fichas na loteria do calculismo eleitoreiro de curto prazo não nos desvie das tarefas estratégicas cujo horizonte, queiramos ou não, salvo um acontecimento extraordinário, já vai se deslocando para 2030. Não somos idiotas. Não se trata de abrir mão de 2026 e sim de começar hoje, no final de 2024, a construir as condições para uma vitória futura, que não cairá do céu…

Porém um ano se passou e fizemos muito pouco nesse sentido. Se não houver um fato extraordinário, o tempo hábil é muito curto para estruturar, fermentar e fazer crescer um movimento democrático-liberal capaz de suplantar os dois populismos que estão alimentando uma polarização tóxica no Brasil.

Nestas circustâncias, qualquer candidato que não se alinhe ao eixo autocrático, seja pela esquerda (Rússia, Bielorrússia, China, Vietnam, Laos, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Angola, Cuba, Venezuela, Nicarágua etc.), seja pela direita (Rússia novamente, Índia, Turquia, Hungria, Eslováquia, El Salvador, EUA-MAGA etc.) – e que não seja populista – é melhor do que Lula ou um lulopetista e do que um bolsonarista-raiz (ou seja, um súdito fiel da famiglia Bolsonaro).

Sim, a política externa passou a ser um tema de campanha na medida em que Lula e o PT tomaram e acentuaram, neste quinto mandato petista, posições francamente antidemocráticas e favoráveis à ditaduras de esquerda, como demonstra a folha corrida do PT desde o seu surgimento (e como elencou o Heni Ozi Cukier neste vídeo) e o bolsonarismo também o fez, ao não apoiar a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin, da Rússia, ao apoiar o governo Netanyahu, de Israel, que abriga supremacistas judaicos, ao elogiar e pedir ajuda ao ditador Orbán da Hungria, ao tentar colocar o autocrata Nayib Bukele, de El Salvador, como modelo de combate ao crime, ao apoiar o populista Milei, da Argentina, adepto da servidão voluntária a Trump – tudo culminando com os pedidos para que o presidente dos EUA pressionasse os poderes da república brasileira para reverter a ilegibilidade e a condenação de Bolsonaro ou livrasse da prisão ele e algum (ou alguns) dos seus filhos (o que deu e continua dando muito errado, como estamos vendo).

De sorte que não há como tirar a política externa da campanha, a menos que o TSE e o STF – neste caso para favorecer Lula, o mais vulnerável pela sua aproximação crescente com ditaduras amigas – decidam proibir que os candidatos abordem o tema. Sim, absurdo, mas é possível no Brasil dos dias que correm.

Frisando esse ponto. Não havendo um candidato democrata-liberal viável, qualquer candidato não-alinhado ao eixo autocrático e não-populista (não lulopetista e não bolsonarista) será uma alternativa. Não precisa ser um social-democrata ou alguém dito de centro-esquerda. Qualquer político moderado de centro, ou até considerado do “centrão” – e dito ‘de direita’ – que jogue dentro das regras da democracia representativa, seria melhor do que a reeleição de Lula ou a eleição de um bolsonarista-raiz (quer dizer, nunca é demais repetir a definição: um súdito fiel da famiglia Bolsonaro).

Por todas as razões apresentadas, os democratas:

1 – Não devem votar na continuidade do atual governo (que se diz e é dito de esquerda – mas não por ser de esquerda e sim porque Lula e o PT são populistas e hegemonistas, além de estarem alinhando o Brasil ao eixo autocrático contra as democracias liberais).

2 – E não podem votar em ninguém considerado de extrema-direita (ou seja, num candidato reacionário antissistema) – por razões tão óbvias a esta altura que seria ocioso enumerar.

3 – Preferencialmente devem votar em um candidato democrata liberal (se houver algum viável). Mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato é ‘de direita’ (querendo com isso dizer que ele é um bolsonarista de extrema-direita ou um golpista e fascista disfarçado).

4 – Na ausência dessa alternativa devem votar em algum democrata considerado de centro (que for viável). Idem; ou seja, mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato é ‘de direita’ (querendo com isso dizer que ele é um bolsonarista de extrema-direita ou um golpista e fascista disfarçado).

5 – Se não houver um democrata de centro, devem votar num candidato rotulado (pela esquerda) como sendo moderado ‘de direita’. Idem-idem; quer dizer, mesmo que a campanha do PT diga que esse candidato não é ‘de direita’ e sim de extrema-direita, golpista e fascista.

Qual o problema?

As duas únicas democracias liberais da América do Sul – o Chile e o Uruguai – passaram por isso.

O caso do Chile. Aylwin é substituído por Frei, que é substituído por Lagos, que é substituído por Bachelet, que é substituída por Piñera, que é substituído novamente por Bachelet, que é substituída novamente por Piñera, que é substituído por Boric (dito ‘de esquerda’). E o mundo não acabou (pelo menos até às arriscadíssimas eleições de ontem). O Chile continuou sendo uma democracia liberal – coisa que nunca fomos no Brasil (1).

O caso do Uruguai. Sanguinetti é substituído por Lacalle, que é substituído por Sanguinetti novamente, que é substituído por Batlle, que é substituído por Vázquez, que é substituído por Mujica, que é substituído novamente por Vazquez, que é substituído por Lacalle Pou (dito ‘de direita’). E o mundo não acabou. O Uruguai continuou sendo uma democracia liberal – coisa que nunca fomos no Brasil.

Pelo exposto fica claro que os democratas podem, sim, votar num candidato que seja dito ou até que se diga ‘de direita’ – embora isso seja uma besteira. A esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Nota

(1) Boric não conseguiu montar uma coalizão democrática expressiva. Já se sabia que sua candidata não venceria no primeiro turno e perderia para todos os concorrentes no segundo turno. O diabo é que o Chile, uma das poucas democracias liberais da América Latina (juntamente com Costa Rica e Uruguai), vai entrar em risco de decair para democracia apenas eleitoral no curto prazo e no médio prazo as consequências podem ser piores. O importante era que o Chile continuasse sendo uma democracia liberal, não que continuasse sendo governado pela esquerda. O Uruguai foi governado por Pou, que não era de esquerda, e continuou sendo uma democracia liberal. A coalizão governista no Chile perdeu ontem (16/11/2025) a Câmara e o Senado. E, não ocorrendo um milagre, perderá também a presidência. Essa besteira de querer ser ‘de esquerda’ levou à escolha de uma candidata do partido comunista (que não consegue nem dizer que Cuba é uma ditadura).

Facção criminosa e organização terrorista

Eu assisti, ninguém me contou. No decorrer da invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, o apresentador da Globo News chamou repetidamente os vândalos de terroristas. Depois a emissora corrigiu essa abordagem (sem dizer que corrigiu, nem porque corrigiu). Os invasores tinham intenções golpistas (chamar uma intervenção militar para interromper o mandato do presidente recém-eleito e já empossado, Lula da Silva), mas eles eram terroristas?

Jair Bolsonaro (já eleito e ainda não empossado) declarou no final de 2018 na avenida Paulista: “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”. Os militantes do MST (de Stédile) e do MTST (de Boulos) são terroristas?

Putin acaba de fazer aprovar nestes dias, pelo parlamento fantoche da ditadura russa, um tratado de parceria estratégica com o ditador Maduro para, entre outras coisas, combater o… terrorismo. Ele, Putin, há sete anos, já havia chamado os opositores de Maduro (Maria Corina incluída) de terroristas e continua qualificando seus próprios opositores na Rússia como terroristas. O mesmo faz o ditador Erdogan na Turquia. Estão vendo como esse assunto é delicado?

O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.

A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto antigo em debate, de 1996, já caracterizava terrorismo como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.

Mas praticar atos que infundem o terror nem sempre é suficiente para caracterizar uma organização como terrorista. Por exemplo, em guerra mudam-se os critérios. No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo?

La Résistance, a resistência francesa à ocupação hitlerista, era terrorista? Era uma organização armada, não-regular, não-legal, que praticava atos violentos (matava, sequestrava, mutilava seres humanos, sabotava, explodia bombas etc.) com efeitos claramente propagandísticos: visando atemorizar a população civil para dissuadi-la de colaborar com o nazismo. E aí? Aí vale porque os invasores eram estrangeiros? Quer dizer que o que define terrorismo não é a natureza das ações praticadas e sim os motivos pelos quais foram praticadas? Quer dizer que se ações tipicamente terroristas forem praticadas em defesa da pátria ou da nação – e da soberania nacional – está valendo? Que ética é capaz de resistir a tais critérios?

Além disso, todos os governos autoritários classificam seus opositores mais incômodos como terroristas e, para tornar juridicamente válida essa classificação, tentam criar novas leis (ou modificar leis já existentes) para tipificar como terroristas as ações ofensivas dos que se lhe opõem.

O assunto é espinhoso e exige que nos concentremos no básico. E o básico é o seguinte:

Organizações terroristas sempre têm uma causa político-religiosa (incluídas aí as religiões laicas, como certas ideologias revolucionárias). Na verdade o terrorismo é, a rigor, uma via antipolítica para alcançar algum objetivo não-mercantil (ou extra-mercantil).

Facções criminosas não são organizações terroristas. Elas não têm causa nenhuma. Não se vê “soldados” do narcotráfico (ou “trabalhadores do narcotráfico”, segundo Gustavo Petro) sacrificando suas vidas para atingir um objetivo. Por exemplo, se imolando em praça pública ou detonando um colete de explosivos no meio de uma multidão para matar o maior número de pessoas. Não se vê nem mesmo um “lobo solitário” do narcotráfico esfaqueando uma pessoa na rua em nome da sua causa de libertação (como faziam os zelotas na antiga Palestina ocupada pelos romanos) ou em nome da instauração de um califado universal (como os jihadistas do Estado Islâmico ou da Al Qaeda).

Facções criminosas, ditas do narcotráfico, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, são organizações com objetivos de lucro. São empresas bandidas. Ou seja, seu comportamento não é presidido por uma racionalidade extra-mercantil. Pode-se dizer que são um novo tipo de organização criminosa para o enfrentamento do qual as forças de segurança não estão preparadas.

A rigor as facções criminosas, em especial o PCC, não são mais nem organizações dedicadas ao tráfico de drogas como seu negócio principal. São uma espécie de máfia (amoral, mas sem familismo), de base prisional (parte de seus principais comandantes estão protegidos dos seus concorrentes nas prisões, sob custódia do Estado), que lucram com a venda e a cobrança ilegal de serviços, a imposição de taxas sobre negócios privados e a extorsão da população capturada em seus territórios.

Segundo artigo de Arthur Trindade, publicado no Correio Braziliense de ontem, “um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, existiam 88 facções de base prisional no Brasil. Sendo que 72 delas têm atuação local como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e têm conexões internacionais”.

Fala-se de uma coordenação entre governos federal e estaduais para enfrentar o crime organizado. Não basta. A situação chegou a tal ponto que é necessário um verdadeiro pacto social. Por mais que se aumente a repressão, a inteligência e os recursos, isso não bastará. É necessária a participação da sociedade e, inclusive, a colaboração das populações sequestradas nos territórios dominados pelas facções (muitas vezes na forma de resistência que não pode se revelar). Todavia, governos populistas, ditos de esquerda ou de direita, não são capazes de promover nada disso. Os de esquerda continuam acreditando que a criminalidade deriva da desigualdade social – o que leva à uma perigosa leniência, como se os criminosos fossem rebeldes primitivos que só existissem em razão da brutal desigualdade social e da exploração econômica, da opressão política e da dominação e discriminação ideológica das elites, dos capitalistas, dos imperialistas, dos neocolonialistas, sobre os trabalhadores ou o povo pobre. Os de direita continuam acreditando que existem os homens do bem e os homens do mal e que os primeiros devem exterminar os segundos pela força bruta, extirpando as maçãs podres da cesta – o que é a barbárie.

Definir as facções criminosas como organizações terroristas é uma armadilha autoritária. É conveniente para os que acham que se trata de eliminar fisicamente os bandidos (na base do “bandido bom é bandido morto”, ao arrepio das normas que regem os Estados democráticos de direito). Ninguém se escandaliza quando forças de segurança policiais ou militares abatem a tiros um terrorista, seja em Telavive, em Chicago, em Londres ou Amsterdã. Ninguém cobra que o terrorista seja preso, após a leitura de seus direitos e apresentado a um juiz. Há um consenso (tácito) sobre isso, que atravessa as ditaduras e chega até às mais plenas democracias liberais.

Mas matar os membros das facções criminosas não resolve o problema. Mil chacinas policiais ou militares não resolverão o problema. Cada “soldado” morto no narcotráfico será substituído rapidamente por outro. Cada “comandante” morto será sucedido por outro. Antes de qualquer coisa porque, a despeito dos riscos imensos, o negócio é muito lucrativo. E também porque o ambiente configurado nas favelas e periferias é favorável à instalação e replicação de uma cultura que valida, aos olhos de parte das comunidades, tal comportamento. Os feitos dos “heróis insurgentes” dos morros são cantados em prosa ou verso por artistas populares, cujas músicas são ouvidas por todos, crianças, jovens, adultos e idosos que nada têm a ver com o crime. Sim, o que estou dizendo é que há base social que permite que esse tipo de organismo nasça, cresça, se desenvolva e se reproduza.

Vários fatores combinados permitiram (e continuam permitindo) o surgimento (e a proliferação) desse tipo de organização criminosa. O principal desses fatores é uma depressão no campo interativo que extermina velozmente capital social. CV, PCC e Milícias surgem desse black hole. Uma deformação do tecido da sociedade – e uma degeneração do Estado inclusive (sobretudo no caso das milícias, que não surgem por ausência de Estado já que são uma espécie de dark side do próprio Estado). As facções criminosas do narcotráfico são uma degeneração do modo de agenciamento chamado mercado, assim como as milícias são uma degeneração do modo de agenciamento chamado Estado. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Clube de Leitura das Distopias

As distopias são livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social. Dois esclarecimentos preliminares são necessários:

Quando falamos de rede social não estamos querendo nos referir às mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio (mídia) enquando estão interagindo: não plataformas, sites, programas, algoritmos, dispositivos.

Investigar as distopias não se baseia na ideia de que no futuro vão acontecer mundos parecidos com os descritos pelos autores distópicos. Investigar as distopias é importante porque aspectos desses mundos descritos pelos autores distópicos estão acontecendo agora.

Os mesmos padrões hierárquicos de organização e os mesmos modos autocráticos de regulação de conflitos aventados pelos distopistas estão presentes em muitos mundos sociais realmente existentes e adjacentes aos nossos, mas nem sempre somos capazes de reconhecê-los.

As distopias são construções imaginativas que realçam, em alguns casos levando ao paroxismo, as deformações no fluxo da convivência social, evidenciando as principais perturbações no campo interativo e com isso permitindo a identificação de características autoritárias e totalitárias que dificilmente seriam percebidas nas rotinas dos mundos em que vivemos.

Elas fornecem, assim, os esquemas e as disposições teoréticas e simbólicas do que pode se manifestar quando configurações sinérgicas (ou seja, estruturas e dinâmicas que condicionam o fluxo interativo de modo congruente) são replicadas.

É claro que a realidade é sempre mais ousada do que as criações dos ficcionistas distópicos. Nenhuma distopia conseguiu antever ou agravar a deformação promovida nas sociedades soviéticas durante o período do Grande Expurgo stalinista. Nenhum dos livros que possamos examinar chegou perto do que se faz nos dias que correm na Coreia do Norte. Nenhum autor conseguiu imaginar um horror semelhante ao que se instalou em Raka, ocupada pelo Estado Islâmico.

Mas essas exacerbações de formas de comportamento político anti-humano são singularidades que podem acabar cumprindo o perigoso papel de nos alienar do essencial. E o essencial é perceber na nossa vida cotidiana, aceita como normal, as manifestações desses padrões.

Não é mera coincidência que muitos dos padrões do livro 1984 (Nineteen Eighty-Four) de Orwell estejam presente num treinamento ideológico realizado por grupos jihadistas ou que o duplipensar orwelliano esteja presente em qualquer discussão com militantes de organizações políticas autocráticas.

Nem é por acaso que os argumentos simplórios de A Nova Utopia de Jerome K. Jerome (1891) estejam sendo reproduzidos pela militância de protoditaduras latino-americanas em plena terceira década do século 21, ou seja, mais de um século depois. Ou que a subordinação da liberdade à igualdade ou a substituição da liberdade pela felicidade como ideal utópico ainda constituam o centro articulador do pensamento autoritário em todo mundo.

Como escreveu Ernst Bloch (1935) em The Heritage of Our Times, “nem todas as pessoas existem no mesmo Agora”. Essa teoria blochiana da “não-contemporaneidade” só se torna, porém, compreensível, quando percebemos que as pessoas são emaranhados sociais (e não indivíduos isolados) e que a época em que elas vivem depende da configuração dos ambientes em que convivem.

As distopias, são, dessarte, livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social em qualquer época.

Na medida em que rede é fluxo (ou seja, metabolismo-e-corpo, dinâmica-e-estrutura) a programação da rede é também uma reprogramação do tempo e por isso é tão difícil estabelecer sintonias com certas pessoas que estão vivendo em outros ambientes. Porque – mesmo estando co-presentes, inclusive na nossa vizinhança – elas estão vivendo em outro tempo.

É preciso estimular a descoberta de pistas de deciframento para aprender a reconhecer padrões autocráticos onde quer que eles se manifestem, inclusive na nossa vida cotidiana (1).

Nossa experiência indica que, do ponto de vista pedagógico (e talvez não só), é sempre melhor começar com a leitura e exploração das distopias, pelas razões expostas a seguir.

As dificuldades de aprendizagem da democracia não têm nada a ver com falta de inteligência (ou de consciência). A conversão à democracia está um andar abaixo: os receptores não estão no solo e sim no subsolo das consciências onde remanescem matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas fundantes do tipo de civilização em que vivemos há cinco ou seis milênios. Mesmo que tenha lido ou ouvido tudo que foi escrito ou dito sobre democracia, uma pessoa continuará “sub-pensando”, para citar alguns exemplos, que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo, que o comportamento coletivo pode ser compreendido a partir do comportamento dos indivíduos, que nada pode ser organizado sem hierarquia, que sempre serão necessários líderes destacados para viabilizar qualquer ação coletiva etc. Só a interação recorrente, a conversação continuada de uma comunidade política sobre democracia, pode encontrar (por insistência, até por tentativa e erro – ou comportamento aleatório) esses receptores e, entrando nessa região escura que subjaz na mente coletiva ou na cultura que se replica automaticamente no tipo de civilização em que vivemos, alterar essas matrizes. Essas matrizes, que geram padrões autocráticos, pertencem ao modo de vida patriarcal e é por isso que se pode dizer, como fez Humberto Maturana (1993), em “Amar e brincar”, que a democracia foi uma brecha aberta no muro da cultura patriarcal que, entretanto, continua se replicando agora, milênios após o seu surgimento.

Ninguém nasce democrata, se torna. A conversão à democracia começa com uma emoção. Alguém se torna democrata, em primeiro lugar, não por um esforço intelectual e sim por uma inconformidade (e uma insuportabilidade) com o emocionar hierárquico e autocrático. Se torna democrata – no sentido forte do conceito de democracia, como processo de desconstituição de autocracia e no sentido amplo desse conceito, da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado – quando passa a resistir a padrões autocráticos, quer dizer, a um modo de interagir com o mundo que reproduz a cultura patriarcal (lato sensu), ou seja, a que replica matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas.

Em suma, na base da conversão à democracia há um emocionar de insuportabilidade com a tirania que é mais difícil de comover quem não viveu sob um regime autoritário. A leitura das distopias tem mais chances de evocar essas emoções do que o estudo de textos teóricos sobre a democracia.

A conquista de hegemonia nas universidades

Há pouco mais de um ano (em 16/07/2024) publiquei aqui (e na revista Inteligência Democrática) um extenso artigo intitulado “A estratégia de conquista de hegemonia do neopopulismo no Brasil”. Agora vamos comentar cada um dos “centros” da sociedade e do Estado que foram, total ou parcialmente, hegemonizados e que se transformaram em difusores de um pensamento hegemônico, ou melhor, de comportamentos hegemonistas. Esse texto vai gerar uma série sobre hegemonismo, cujo primeiro artigo segue abaixo.

Comecemos pelas universidades, sobretudo pelas áreas de ciências humanas das universidades federais.

Dois artigos recentes, publicados no mesmo dia, abordaram a questão: o de Catarina Rochamonte, em O Antagonista (25/08/2025), intitulado “Universidade sem pluralismo e democracia sem dissenso: o projeto hegemônico da esquerda iliberal” e o editorial do jornal O Estado de São Paulo (25/08/2025), ao qual o artigo de Catarina se refere, intitulado “O silêncio dos universitários”. Vamos republicá-los abaixo, juntamente com uma nota sobre a pesquisa do Instituto Sivis, também tomada como referência pelos dois artigos, para concluir com alguns comentários.


Universidade sem pluralismo e democracia sem dissenso: o projeto hegemônico da esquerda iliberal

Catarina Rochamonte, O Antagonista (25/08/2025)

Embora a intolerância não seja apanágio da esquerda, sabe-se que, no ambiente universitário, é o radicalismo esquerdista marxista ou identitário que se impõe como um rolo compressor contra a “dissidência”

Na introdução à sua erudita obra Histoire des idées politiques aux Temps modernes et contemporains, o pensador político francês, Philippe Nemo, destaca que os tempos modernos e contemporâneos são caracterizados principalmente pela aparição das teorias que fundam o Estado democrático e liberal.

Embora, segundo o mesmo autor, quase todas as ideias de base desse estado de direito tenham sido já formuladas por pensadores antigos e medievais, tal configuração só se tornou possível devido à concepção de um novo modelo de ordem social, qualificado por ele de “ordem para o pluralismo.”

Direito abstrato e universal, direitos dos homens, mercado, democracia, instituições acadêmicas livres, imprensa livre, etc; tudo isso faz parte dessa nova ordem que resultou da virada de chave intelectual por intermédio da qual se deu a tomada de consciência de que “a liberdade individual e o pluralismo que é seu corolário não eram fator de colapso social e desordem, mas uma forma superior de organização das relações entre os homens”.

Esse preâmbulo vem à guisa de comentário a uma recente pesquisa divulgada pelo Instituto Sivis, cujos dados comprovam algo já bastante perceptível e rotineiramente constatado: o fim do pluralismo na universidade, a transformação dos campi em espaços de doutrinação, silenciamento, cerceamento ideológico e intolerância.

Segundo dados da pesquisa realizada com estudantes de universidades públicas e privadas brasileiras, 57,1% dos estudantes que se identificam como sendo de centro se autocensuram em algum grau, ou seja, evitam emitir opiniões sobre temas controversos por medo de retaliações.

Embora a intolerância não seja apanágio da esquerda, sabe-se que, no ambiente universitário, é o radicalismo esquerdista marxista ou identitário que se impõe como um rolo compressor contra a “dissidência”.

Isso foi pontuado pelo editorial do Estadão, “o silêncio dos universitários”, ao comentar a referida pesquisa:

“Naturalmente, há fanatismos de direita rondando os portões da universidade, tentando minar a legitimidade da ciência e instrumentalizar a ignorância. Mas a verdade incômoda é que, dentro dos muros, os maiores carrascos da liberdade não são reacionários caricatos, e sim a esquerda iliberal hegemônica nas humanidades. Sob a máscara da “inclusão” e da “justiça social”, essa nova ortodoxia impôs um código de fé progressista, em que divergências são escorchadas como blasfêmia”.

O fenômeno não é nenhuma novidade. É sobejamente conhecido e vem se desenrolando há anos, mas não deixa de ser positivo que um jornal de grande circulação chame atenção para o problema em seu editorial, apontando inclusive a retroalimentação que há entre a tentativa da esquerda de se manter na universidade como pensamento único e a direita mais extremada que eles alegam combater:

“Ao abdicar da liberdade acadêmica, a universidade legitima o populismo que diz combater, abrindo espaço para que demagogos de direita se apresentem como paladinos da “verdade proibida”, explica o editorialista.

Admito que tenho certa dificuldade de tratar desse assunto de forma objetiva e impessoal, pelo simples fato de que minha vida acadêmica foi duramente marcada pelo confronto com a intolerância do ambiente universitário. Mas cá estou, teimosa e falante, diferentemente dos 57,1% acadêmicos que, segundo a pesquisa do Sivis, calaram suas opiniões por medo ou comodismo.

Continuo lastimando publicamente que a minha área, a Filosofia – mais que qualquer outra destinada à liberdade de pensamento e de expressão – tenha se deixado cooptar, com raras e louváveis exceções, até o ponto de se transformar em mera ideologia liberticida.

A título de exemplo, por esses dias, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) fez publicar em seu site um artigo intitulado “Uma democracia necessita de esquerda e de direita? Sobre o dissenso político na democracia”, assinado por um professor doutor da PUCRS. O ensaio é uma amostra interessante de como pensa a maioria dos intelectuais de esquerda.

Por meio de sofismas e daquela linguagem empolada típica de intelectual que só sabe escrever para seus pares e para suas bolhas ideológicas, o autor critica a afirmação de que “uma democracia não existe sem direita e esquerda”, feita por Renato Janine Ribeiro.

O mui democrático autor julga que a frase de Janine é uma imposição de dissenso que estaria “obrigando aos cidadãos de um povo [sic] a discordarem entre si”.

O dito cujo também critica a ideia de que a alternância de poder seja necessária na democracia e ilustra sua posição com o fato de que tal argumento, da necessidade de alternância de poder, “foi utilizado na campanha presidencial de 2014, quando a então presidenta Dilma concorria ao seu segundo mandato, sendo o quarto consecutivo do PT”.

Lá pelas tantas, o professor acaba confessando como ele e seus pares concebem a política e arremata seu artigo com uma lógica abertamente intolerante, antidemocrática e antiliberal:

“O campo político é o campo de disputa pela hegemonia. Se eu creio que a minha posição política-ideológica é a que melhor atende às aspirações de sociabilidade e emancipação humana, o meu dever é fazer com que a minha posição seja a posição hegemônica”, escreveu o docente de filosofia.

Eis aí. São réus confessos. Dizem claramente o que querem e como militam. Pena que não encontram muitos que os confrontem. Acostumaram-se a impor o silêncio e fizeram da universidade um cemitério onde jaz o pensamento livre, sepultado em meio a alunos e professores zumbis.


O silêncio dos universitários

Editorial, O Estado de S. Paulo (25/08/2025)

Pesquisa mostra que metade dos alunos evita discutir temas polêmicos nas universidades por temer perseguição e retaliação. O câmpus, que deveria ser o lugar das ideias, virou usina de dogmas

As universidades vieram à luz como templos da liberdade intelectual, carregando já no nome a promessa de brilhar como um “universo” de saberes, onde ideias rivais se enfrentam sem medo, dogmas são desafiados e consensos só existem enquanto resistem ao fogo do debate. Mas essa promessa foi traída. O câmpus, que deveria ser laboratório do pluralismo, tornou-se casamata da intolerância.

Professores e alunos admitem que se calam por medo das patrulhas ideológicas. Segundo uma pesquisa do Instituto Sivis, 47% dos estudantes brasileiros consultados relutam em discutir assuntos controversos. Os mais afetados são os estudantes que se consideram de centro: 57% deles se autocensuram, contra 43% dos alunos de esquerda e 39% dos de direita. Discussões políticas (39%) lideram o cardápio de temas que costumam ser evitados.

A mordaça não vem de decreto nem da polícia, mas do medo de ser linchado nas redes sociais, sabotado pelos pares, hostilizado em sala de aula. A autocensura se tornou forma mentis. O preço de pensar fora da cartilha é a difamação, o cancelamento e até o veto a pesquisas ou à docência.

Naturalmente, há fanatismos de direita rondando os portões da universidade, tentando minar a legitimidade da ciência e instrumentalizar a ignorância. Mas a verdade incômoda é que, dentro dos muros, os maiores carrascos da liberdade não são reacionários caricatos, e sim a esquerda iliberal hegemônica nas humanidades. Sob a máscara da “inclusão” e da “justiça social”, essa nova ortodoxia impôs um código de fé progressista, em que divergências são escorchadas como blasfêmia. A universidade, que deveria ser antídoto contra o pensamento único, abastardou-se em sua encarnação mais zelosa.

Uma academia sem dissenso não forma lideranças democráticas: fabrica inquisidores de toga acadêmica, adestrados para silenciar o adversário em vez de refutá-lo. A retórica do respeito a grupos marginalizados virou desculpa para marginalizar dissidentes. A depauperação do debate interno repercute na sociedade: onde a discordância vira ofensa, a política degenera em polarização tóxica. Ao abdicar da liberdade acadêmica, a universidade legitima o populismo que diz combater, abrindo espaço para que demagogos de direita se apresentem como paladinos da “verdade proibida”.

A degradação não foi imposta de fora para dentro. Foi construída por anos de covardia institucional e conformismo ideológico. Diretores coniventes com protestos truculentos; colegiados que chancelam cursos com uma versão única da História; professores que se calam para não perder prestígio ou verbas. A cultura do cancelamento floresce porque encontrou terreno fértil na militância disfarçada de docência e no silêncio cúmplice da administração.

Há antídotos. Universidades que adotam a neutralidade institucional – recusando-se a endossar causas políticas ou manifestos partidários – preservam maior diversidade intelectual. Experiências internacionais mostram que regras de convivência, centradas na defesa intransigente da liberdade de expressão, criam ambientes mais férteis para a ciência e mais resilientes a modismos ideológicos. No Brasil, manifestos de intelectuais que denunciam a asfixia do pluralismo são sinais tímidos, mas encorajadores, de resistência. Porém, só terão efeito se acompanhados de reformas institucionais: desde códigos de conduta que protejam vozes divergentes até currículos que ofereçam perspectivas contrastantes, em vez de catecismos disfarçados de disciplinas.

A liberdade de se expressar não é luxo nem bandeira partidária. É a quintessência da vida acadêmica. Sem ela, a universidade deixa de ser espaço de investigação crítica e se converte em megafone de dogmas; deixa de formar cidadãos esclarecidos e passa a moldar militantes biônicos – alienando todo o resto. Uma universidade que cancela palestras, silencia teses e criminaliza a divergência trai sua missão e se torna caricatura de si mesma. Ou as universidades resgatam sua vocação para o livre debate e experimentação de ideias, ou continuarão a se desmoralizar – e se desfigurar – como tribunais ideológicos. E quem perde não são só os acadêmicos – é a própria democracia brasileira.


Uma nota sobre pesquisa do Instituto Sivis, ao qual os dois textos acima se referem, publicada originalmente no jornal O Globo e republicado no site do Sivis, segue abaixo. A pesquisa “VOXIUS, Liberdade de Expressão Acadêmica, Panorama no Brasil” está disponível aqui.

Metade dos universitários evita debater temas polêmicos no ambiente acadêmico, aponta pesquisa inédita

Caio Sartori, O Globo (10/08/2025)

Levantamento indica que há mais estudantes declaradamente de esquerda nas faculdades, e alunos de centro são os que mais se ‘autocensuram’ ao falar de políticaUma ampla pesquisa feita com estudantes de universidades públicas e privadas brasileiras constatou que metade deles reluta em discutir temas controversos no ambiente acadêmico — postura registrada sobretudo entre os que se consideram de centro e não querem se expor a debates polarizados. Do total de entrevistados pelo Instituto Sivis, 47,7% dizem ter evitado abordar alguma pauta considerada “polêmica” na esfera acadêmica nos últimos 12 meses.

Feito a partir de uma amostra de 1092 alunos divididos por todas as regiões, áreas de conhecimento e outras estratificações, o estudo em parceria com a Foundation for Individual Rights and Expression (FIRE) e a Future of Free Speech se debruçou ainda sobre o posicionamento ideológico dos universitários do país. A predominância é do pensamento de esquerda, adotado por 46,9%. A direita abocanha 26%, e o centro, 16,7%. Outros 10% não responderam.Quando se cruzam os dados de posicionamento ideológico e os de resistência a emitir opiniões, a pesquisa mostra que os estudantes de centro são os mais reticentes em se manifestar sobre determinados assuntos em discussões com colegas ou professores.

— Podemos gerar algumas hipóteses, apesar das limitações causais. Pode estar relacionado ao ambiente de polarização ideológica e também de polarização afetiva muito exacerbado na sociedade. Com polarização afetiva, quero dizer a animosidade em relação a determinado grupo de oposição — aponta a analista de pesquisa do Instituto Sivis, Sara Clem.

Entre os de centro, 57,1% afirmam que se autocensuram em algum grau. Percentual superior aos registrados nos de esquerda (43,8%) ou direita (39%). Apesar de serem majoritários, os progressistas evitam com maior frequência emitir opiniões sobre temas controversos. Os de direita, portanto, estão um pouco mais à vontade para dizer o que pensam.

— O que vemos aqui é uma porcentagem significativa, ainda mais porque a universidade é o lugar em que o debate público deveria funcionar com pluralidade de ideias — afirma a pesquisadora.

A pesquisa separou 14 tópicos e os estudantes foram instados a dizer se sentiam “algum nível de conforto” ou de “relutância” em abordá-los. Os resultados dão pistas de quais são as pautas consideradas mais delicadas. “Política e eleições” está no topo, com 39% tendo algum tipo de hesitação. Na sequência, aparecem a legalização ou porte de armas (37%) e o aborto (29,7%).

Os que menos oferecem resistência à emissão de opiniões são a pandemia de Covid-19, com apenas 8,8%, debates ligados à liberdade de expressão (9,9%) e temas da disciplina em si que está sendo ministrada em sala (10,7%). Pautas relevantes ligadas a identidades, como orientação sexual, são vistas pela maioria como cômodas de abordar, com mais que o triplo (78,5%) se dizendo confortáveis do que o percentual dos relutantes (20,6%).

Se na análise geral de temas a esquerda tem mais pé atrás que a direita para se pronunciar, o cenário muda um pouco na leitura específica por política e eleições. Dentro do universo de 39% de estudantes que sentem desconforto em debater essas questões, os de centro se sobressaem de novo, e a diferença entre eles e os que estão de um dos lados do espectro se acentua.

Dos estudantes de centro, 54,7% relutam em falar sobre política e eleições, contra 43% que ficam à vontade. É o único grupo que nutre mais incômodo do que conforto para debater a pauta. Entre os de direita, o resultado é de 33,9% para os que se sentem acuados ante 65% que não se veem inibidos. A distância aumenta entre os de esquerda, com 27% a 73%.


Alguns comentários

No artigo original, que gerou a presente série sobre hegemonismo, escrevemos o seguinte:

Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).

O sentido em que a palavra hegemonia foi empregada no artigo original é o seguinte:

Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.

Caberia acrescentar que a o processo de conquista de hegemonia ocorre quando uma força política (hegemonista) controla: a maioria dos movimentos corporativos, os sindicatos e as centrais; os chamados movimentos sociais e a maioria das ONGs; os movimentos feministas, racialistas e LGBTs e os movimentos ambientalistas; os movimentos artísticos e culturais (e obtém a simpatia de atores, cantores e compositores famosos); os coletivos de advogados, procuradores e juízes; os meios de comunicação (a maioria dos jornalistas e analistas, os principais institutos de pesquisa de opinião e as agências de checagem); e, fundamentalmente, quando a força política hegemonista controla extensas áreas das universidades.

Mas como se poderia definir hegemonismo? O hegemonismo é um comportamento político antipluralista que avalia que um projeto político (em geral, redentor) só pode ser implantado se a maioria das pessoas estiverem engajadas na sua realização ou, no mínimo, concordarem com ele. Nesse sentido é um tipo de majoritarismo. No caso das universidades, esse tipo de comportamento político é de mais fácil aplicação e replicação, pois a universidade é a escola da escola: é ela que forma os professores de outros níveis de ensino que, por sua vez, repassam as matrizes do seu pensamento para todos os alunos de qualquer escola.

Além disso, há uma tradição autocrática (“estrutural”) nas universidades, que surgiram na passagem do ano 1000 para o ano 2000 como corporações medievais meritocráticas e ficaram infensas a onda pré-democrática que instalou os primeiros regimes eleitorais (1790-1848) e às ondas de democratização que vieram depois (a primeira, de 1849-1921; a segunda, de 1945-1961; e a terceira, de 1989-1999). Embora tenha sido palco de fervilhante debate democrático, a corporação em si não se democratizou. Mas este já é um outro tema.

Por que Lula não é um democrata

O fato de Lula sempre ter se submetido ao resultado nas várias eleições que perdeu (uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República) não o torna um democrata.

O fato dele jamais ter buscado fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder não o torna um democrata.

O fato de que ele respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva, não o torna um democrata.

O fato de que nunca instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele, não o torna um democrata.

Todas as alegações acima são feitas por contraposição ao que fez Bolsonaro, que também não é um democrata. Mas se opor a alguém que não é democrata não torna ninguém democrata. Stalin se opunha ao antidemocrático Hitler, mas isso não significa que fosse democrata. O autor deste artigo se opôs à ditadura militar brasileira e não era, na época, um democrata.

Quem não é golpista não faria nada disso que fez um golpista como Bolsonaro. Lula não é golpista. Por isso não faz essas coisas. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrata.

Repetindo. Tentar dar golpe de Estado torna qualquer um antidemocrático. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrático.

Quem adotar uma estratégia hegemonista não dará golpe de Estado, mas mesmo assim será antidemocrático. Para entender isso é preciso ver que existem dois caminhos principais para autocratizar um regime político: o golpe de Estado (à moda antiga) e a erosão democrática (que já é a via predominante no século 21).

Sim, as democracias no século 21 não caem mais, na maior parte dos casos, por golpes de Estado (à moda antiga, com protagonismo militar), como tentaram fazer os bolsonaristas no Brasil (sem sucesso) e os gorilas de Mianmar (com sucesso). Agora 70% dos processos de autocratização ocorrem por erosão democrática, na maioria das vezes lentamente, sem ruptura violenta e até sem rasgar as Constituições.

Tal ocorre quando uma força hegemonista, tendo chegado ao governo pelo voto, se dedica a ocupar as instituições, não para destruí-las e sim para fazer maioria em seu interior colocando-as a serviço do seu projeto de poder. Pois o que visam não é dar uma quartelada anacrônica e sim conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo, violando o princípio da rotatividade ou alternância democrática.

Mas então, o leitor pode perguntar, o que é necessário para qualificar um ator político como um democrata? Basicamente, o seguinte.

Em primeiro lugar, democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

Aqui neste primeiro critério Lula já não passa. Ele se opõe à ditaduras de direita, mas se alia à ditaduras de esquerda. Fez assim historicamente com Cuba e também com Angola, Venezuela e Nicarágua. Mais recentemente se alinhou à Rússia de Putin, foi simpático à teocracia do Irã (e nunca condenou claramente seus braços terroristas) e defendeu manter relações políticas (não apenas, nem principalmente comerciais – foi ele próprio que o disse, e isso foi antes de Trump 2) – com a China de Xi Jinping. Na sua primeira viagem à China depois de eleito pela terceira vez, no dia 14 de abril de 2023 (em pleno governo Biden nos EUA), Lula declarou: “A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial… [para]elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”.

Em segundo lugar, quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

Nesse segundo critério Lula também não passa. Uma prova disso é seu empenho em turbinar o BRICS, uma articulação política (disfarçada de bloco econômico) composta por 80% de ditaduras. Além disso, sabotou às sanções dos países democráticos ao regime de Putin, multiplicando o comércio com a ditadura russa (sobretudo com a compra de óleo em grande quantidade, financiando indiretamente a invasão da Ucrânia).

Em terceiro lugar, democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

Lula também seria reprovado neste terceiro critério. Foi o seu partido – e todo mundo sabe, não é possível esconder – que introduziu o “nós contra eles” na política brasileira, gerando uma revolta de amplos setores da população com o petismo. Isso fez crescer o antipetismo, que só existe porque existe petismo. Acrescente-se que o PT é um partido hegemonista, que acha que a única maneira de implantar um projeto político é fazendo maioria em todo lugar (de um DCE universitário, passando por uma agência reguladora, até chegar a um tribunal superior de justiça) para impor a predominância de um modo de pensar e de se comportar politicamente.

Em quarto lugar, democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

Aqui temos, igualmente, uma clara linha divisória que não pode ser ultrapassada por um democrata. Mas que Lula ultrapassa. Ele defende os direitos das minorias sociais, mas não os das minorias políticas, que – a seu ver e ao ver do PT – devem ser deslegitimadas quando se opõem aos projetos populares. Embora sendo estatista (ou tendo uma visão estadocêntrica do mundo) ele não é favorável (pelo menos até agora, antes de ter conquistado hegemonia) à tirania do Estado, mas acha “natural” que a maioria imponha sua vontade às minorias (políticas). Sua visão de democracia está alicerçada na crença de que democracia é a vontade da maioria e que uma maioria eleitoral confere a quem a recebeu legitimidade para realizar o seu projeto, não sendo necessário negociar com as minorias (a não ser quando isso for necessário para emplacar seus projetos). Isso, é claro, desde que tal maioria eleitoral seja conferida a quem está realmente “do lado do povo” ou “do lado certo da história”.

Em quinto lugar, democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

Bem… aqui temos o melhor exemplo de incompatibilidade total com o pensamento de Lula. Ele acha que um governo que está “do lado do povo” é o máximo da democracia (que confunde, porém, com cidadania ofertada pelo líder identificado com o povo, como veremos adiante). Estatista, como já se disse aqui, Lula encara a sociedade como dominium do Estado (quando esse Estado está “nas mãos certas”, ou seja, nas mãos dos legítimos representantes do povo). Sim, o PT acha que cabe ao governo popular controlar e comandar a sociedade, inclusive a economia. Por isso não aceita a independência do Banco Central e das Agências Reguladoras e tenta burlar a lei das estatais para nomear para suas diretorias seus militantes ou aliados políticos. O Estado é o grande ator, posto que só ele (quando “nas mãos certas”) pode combater os inimigos do povo e levar adiante à consumação dos interesses populares. Este quinto critério, no qual Lula também é reprovado, é a prova do seu caráter não-liberal (ou iliberal).

Em sexto lugar, democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

Para Lula e o PT, entretanto, a política só tem sentido se for uma luta para implantar uma ordem mais justa (concebida por eles ex ante à interação das pessoas). Portanto, o sentido da política, para eles, é a ordem – não a liberdade. Quanto ao conceito democrático originário de liberdade, eles não fazem a menor ideia do que seja. Liberdade se reduz, na sua concepção, à libertação de um poder opressor (desde que esse poder seja inimigo do povo, estando do lado errado da história).

Em sétimo lugar, democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

Essa ideia de que há um grande inimigo responsável por todo mal que ocorre no mundo está entranhada no PT (e Lula, sim, o Lula, compartilha dela). O grande inimigo, claro, é o capitalismo e suas construções: as classes dominantes (os ricos), o imperialismo norte-americano (e, numa inclusão posterior, insuflada pelo identitarismo, o neocolonialismo eurocêntrico e heteronormatizador). Isso se explica porque o marxismo está na raiz da ideologia do PT (1). Ocorre que a democracia jamais nasceu de revoluções que destruíram um ‘sistema’ (ou modo de produção e suas construções sociais e políticas) ou substituíram no poder uma classe social por outra classe (tal como o marxismo define essa noção) e sim de reformas que introduziram inovações. Se, para inventar a democracia pela primeira vez, os atenienses tivessem que ter destruído o modo de produção escravista que vigorava na época, jamais teríamos ouvido a palavra democracia. Se os parlamentares que propuseram os Bill of Rights em oposição ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17, tivessem primeiro que ter desconstituído todo o sistema econômico, social e político, instalado naquele então na Europa e no mundo, a democracia jamais teria sido reinventada (2). No seu estrato intelectual, o PT foi organizado por militantes da primeira grande guerra fria, que continuaram se comportando como militantes da primeira grande guerra fria mesmo após a queda do muro de Berlim (que não caiu dentro de suas cabeças) e o colapso da União Soviética (que, in pectore, lamentaram). O seu anti-imperialismo norte-americano vem daí: não é um anti-imperialismo apenas quando republicanos conservadores como Reagan, Bush pai e filho e republicanos-MAGA, como Trump, estão no poder, mas também quando os democratas Clinton, Obama e Biden governaram. Não é um anti-imperialismo por princípio, pois transige com o imperialismo de Putin. É um vício. Lula adquiriu esse vício, que é antidemocrático.

Em oitavo lugar, democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

Lula é um condutor de massas, um líder que, segundo sua própria apreciação (muito favorável a si mesmo), já sintetiza o povo que pretende conduzir. Além disso é majoritarista, como foi mencionado anteriormente neste artigo.

Em nono lugar, democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

Lula é populista, um populista de esquerda ou neopopulista (uma das duas espécies principais de populismos do século 21, além do populismo-autoritário ou nacional-populismo, dito de direita) que surgiu no movimento de ascensão de Chávez (e depois Maduro) na Venezuela, Evo (e depois Arce) na Bolívia, Correa (e depois Moreno) no Equador, Lugo (sem sucessor) no Paraguai, Funes (e depois Cerén) em El Salvador, Obrador (e depois Claudia) no México, Zelaya (e depois Xiomara) em Honduras, Cristina (e depois Fernandez) na Argentina. O fato de ele não ser um neopopulista que tenha virado ditador – como Ortega e Maduro viraram – não altera a natureza iliberal do seu populismo (e dos demais neopopulismos que surgiram na mesma onda) (3).

Em décimo lugar, democratas não reduzem a democracia à eleições.

Bom, dizer o quê? O PT (e Lula, pois o PT é em tudo indistinguível de Lula, a não ser em potencial eleitoral) é eleitoralista. Pode-se dizer que, já nos seus primórdios, o PT abandonou a perspectiva revolucionário-rupturista de parte de seus fundadores para adotar a via eleitoral, mas não porque achou que é melhor para a democracia a alternância pacífica nos governos via eleições e sim porque avaliou que o caminho revolucionário anterior era inadequado (posto que com poucas chances de sucesso) nas novas condições do mundo após a derrocada do socialismo real. Uma prova disso é o conselho que Lula deu aos dirigentes das FARC, no sentido de que depusessem as armas, construíssem um partido (nos moldes do PT) e disputassem eleições (como fez Chávez, como fez ele próprio, como fez Evo, como fez Correa e como, depois do fracasso da revolução sandinista, como fez Ortega). O PT ama de paixão eleições, mas não aceita a rotatividade ou alternância democrática. As eleições, para o PT, não fazem parte do metabolismo normal dos regimes democráticos, mas são um meio (instrumental) para alcançar e reter o poder em suas mãos indefinidamente. As eleições, para Lula e para o PT, são o caminho tático possível para chegar ao governo e nele se delongar até ter condições de tomar o poder (não dando um golpe, mas conquistando hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido). O regime eleitoral (ao qual se reduz, segundo eles, para todos os efeitos práticos, a democracia) é um meio instrumental de travar a luta política como uma espécie de guerra (onde as armas passam a ser os votos), mas a dinâmica adversarial é a mesma. Outra prova disso é que o PT não faz aliados fora do campo de esquerda que hegemoniza, a não ser para ficar mais forte e, quando não precisar mais desses aliados tático-instrumentais, matá-los como agentes políticos ao final.

Em décimo-primeiro lugar, democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

Lula e o PT não aceitam vários desses critérios da legitimidade democrática. Quando estão no governo, não respeitam a publicidade ou transparência (e tanto é assim que decretam sigilos de até 100 anos em documentos que nada têm a ver com segurança nacional), têm horror da rotatividade ou alternância (pois ela não seria legítima quando os vencedores das eleições são inimigos do povo, ou seja, qualquer um que esteja fora do seu campo do esquerda ou a ele subordinado: e tanto é assim que pediram o impeachment de todos os presidentes não-petistas eleitos na Nova República – com exceção de Bolsonaro, pois queriam deixá-lo sangrando para batê-lo mais facilmente nas urnas e voltar ao governo), violam a legalidade (como demonstram os casos do mensalão e do petrolão, entre outros) e só reconhecem a validade da institucionalidade quando podem ocupar e controlar as instituições.

Em décimo-segundo lugar, democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

Lula e o PT acham que tudo isso é conversa “para inglês ver”. Defendem, sim, instituições estáveis, desde que estejam no controle dessas instituições (por meio da sua ocupação ou aparelhamento e da formação de maiorias no seu interior). Defendem judiciário independente e autocontido em suas atribuições somente quando estão na oposição: se estão no governo querem um judiciário como aliado político e por isso indicam seus militantes ou simpatizantes para compor os tribunais (no caso da suprema corte Lula indicou um advogado do partido, o seu próprio advogado pessoal e um agente político do seu governo, ex-membro do Partido Comunista do Brasil).

Em décimo-terceiro lugar, democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

Lula e o PT nunca reconheceram e valorizaram as oposições (mesmo as democráticas) como peças fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático. Mesmo as oposições democráticas são encaradas como forças antipopulares, representantes das elites (ou dos ricos) contra o povo, quando não fascistas – e então deslegitimadas (como ocorreu com o PSDB após a primeira vitória de Lula em 2002). Eles não aceitam a evidência de que situação há em qualquer regime (inclusive nos regimes autocráticos), mas oposição (democrática) só nas democracias. Ou seja, de que não há democracia (no sentido liberal ou pleno do termo) sem oposição democrática (atuante). Ora, se um governo se diz democrático, mas não reconhece e valoriza a oposição democrática como fundamental para o bom funcionamento do regime, então esse governo não é, na verdade, democrático, ainda que o regime político possa ser considerado formalmente democrático, como foi o caso nos governos do PT. Em geral um governo que deslegitima as oposições – não apenas as antidemocráticas, mas também as democráticas – é um governo antipluralista (o que é uma característica iliberal do populismo).

Em décimo-quarto lugar, democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

Lula e o PT confundem o conceito de democracia com o conceito de cidadania. Falam de cidadania para todos ofertada pelo Estado, quando “nas mãos certas”, quer dizer, comandado por forças políticas ditas progressistas. Pior, acreditam que a cidadania seria conferida ao povo pelo líder populista. Conquanto cidadania universalizada seja um bom propósito, portanto desejável, ela não é a mesma coisa que democracia. Isso pode ser ofertado por regimes não-democráticos, quer dizer, por autocracias (4). Para Lula e para o PT a igualdade socioeconômica é pré-condição para a liberdade política e por isso desqualificam todas as democracias liberais ou plenas que existem no mundo como democracias para as elites e não para o povo (5). Essa é uma posição claramente antidemocrática.

Em décimo-quinto lugar, democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Lula se travestiu de defensor da soberania por meio de uma narrativa (e de uma propaganda) soberanista (que toma a soberania dos Estados-nações como um valor absoluto). Mas todo soberanismo é incompatível com a democracia. Se a soberania fosse um valor absoluto não se poderia tomar medidas contra tiranias que invadem outros países para subjugá-los (como está fazendo a Rússia com a Ucrânia). Por isso o governo do PT, liderado por Lula, coloca-se “ativa e altivamente” contra as justas sanções dos países democráticos às tiranias de Cuba, Venezuela, Irã e Rússia, com a alegação de que isso estaria violando a soberania desses países. E, inclusive, sabota essas sanções. Além disso, por motivos eleitoreiros, Lula aproveitou as sanções impostas por Trump para estruturar e antecipar ilegalmente sua campanha de 2026 em torno da ideia-força de defesa da soberania nacional, o que o leva a encenar patriotadas diárias para tentar unir o povo em torno da sua candidatura. De “salvador da democracia” em 2022, Lula quer voltar como o “salvador da soberania” em 2026.

Para qualquer pessoa honesta as provas apresentadas acima bastam para mostrar que Lula e o PT não são democráticos.

O fato de termos tão poucos artigos como este na nossa grande imprensa e, inclusive, na imprensa alternativa, revela a extensão e a profundidade do analfabetismo democrático entre nós e a falta de programas de aprendizagem da democracia. Na verdade, revela o defict de agentes democráticos na sociedade brasileira. E como não existe democracia sem democratas, isso deve ser motivo de grande preocupação.

Notas

(1) Todos os primeiros dirigentes do partido, os fundadores que tinham condições de formulação teórica, eram revolucionários marxistas – ou ex-revolucionários marxistas que não conseguiram se desvencilhar das matrizes marxistas de interpretação do mundo. Uma das três correntes que constituíram o PT era formada pelos dirigentes e militantes de antigas organizações políticas, colocadas na clandestinidade pela ditadura militar, alguns recém liberados de prisões brasileiras e outros voltando do exílio, era composta por marxistas, em geral, por marxistas-leninistas. É obvio que muitos líderes fundadores do PT, sobretudo os sindicalistas que compõem uma das três correntes da sua constituição, não foram marxistas, mas acabaram concordando com a visão marxista de que há uma imanência histórica, de que a história vai para algum lugar e tem leis que podem ser conhecidas por quem conhece a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade, de que a luta de classes é o motor da história, de que o sentido da política é uma espécie de guerra (sem derramamento de sangue, se não for necessário) para implantar uma ordem mais justa, inspirada nos interesses da classe trabalhadora. A terceira corrente de constituição do PT, formada pelos militantes da igreja do povo, inspirados pela teologia da libertação, também estava sob forte influência dessas ideias. Tais concepções, entretanto, não eram (e continuam não sendo) democráticas. Eram ideias revolucionárias, ainda que os revolucionários que as carregavam tivessem adotado a via eleitoral de chegar inicialmente ao governo para então, só depois, tentar tomar o poder (embora não necessariamente por meios violentos).

(2) A democracia surge em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., por meio de reformas: a reforma de Clístenes (que, em 508 a.C. substituiu o genos, os clusters familiares da aristocracia fundiária, pelo demos, os distritos em que qualquer um podia participar), a reforma (de origem desconhecida) que introduziu o sorteio no lugar de eleições (pois os oligarcas, mais organizados e com mais recursos, ganharam quase todas as disputas nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes) e da reforma de Efialtes (que, em 461 a.C., retirou o poder político do Areópago, uma espécie de suprema corte da época).

(3) Aqui é preciso entender que os populismos do século 21 não podem ser definidos como foram os populismos do século 20 e, muito menos, como foram os populismos dos séculos anteriores. Não é propriamente demagogia, clientelismo, assistencialismo e irresponsabilidade fiscal (embora algumas dessas características tenham permanecido). Os populismos do século 21 são comportamentos políticos guerreiros(baseados na prática da política como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin) que usam os regimes eleitorais (em geral os democráticos defeituosos, mas também os plenos) para impedir que esses regimes ascendam à condição de (ou se mantenham como) democracias liberais. Os populismos (de esquerda ou direita) são hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários da democracia liberal.

(4) Singapura, uma autocracia eleitoral (segundo o V-Dem 2025), está fazendo isso. A China, uma autocracia fechada, diz que está fazendo isso a partir do seu próprio conceito de democracia: a chamada “democracia popular de processo integral”. Mas essa “democracia” chinesa não atende aos critérios democráticos listados neste artigo. Cuba, outra autocracia fechada, segundo Lula, faz isso. Para ele “o único país [na América Latina] que conseguiu dar um salto foi Cuba… eles resolveram o problema da cidadania”.

(5) Populistas de esquerda e de direita escarnecem quando se fala do mundo democrático. Mas tomando os relatórios de duas das principais instituições que monitoram os regimes políticos no mundo – o V-Dem e a The Economist Intelligence Unit – é fácil fazer uma lista de quem compõe hoje o mundo democrático. São consideradas (em 2025) democracias liberais ou plenas (ou ambas) menos de 35 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chéquia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estónia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai. Sim, os EUA ainda estão na lista, embora talvez por pouco tempo em razão dos ataques de Trump (que é um populista-autoritário), mas governo não é regime. De qualquer modo, esses não são os aliados preferenciais de Lula e do PT. Por que? Ora, porque eles não são democráticos.

Principais características dos democratas

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

2 – Quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

3 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

4 – Democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

5 – Democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

6 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

7 – Democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

8 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

9 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

10 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

11 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

12 – Democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

13 – Democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

14 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

15 – Democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Trump em guerra

Há uma guerra instalada no mundo. É a segunda grande guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. 

O eixo autocrático é composto por autocracias (fechadas e eleitorais) e regimes eleitorais parasitados por governos populistas. De qualquer modo, o eixo autocrático usa o populismo como sua principal arma.

Mas não há apenas um tipo de autocracia (fechada ou eleitoral) no eixo autocrático e sim dois tipos: as autocracias ditas de direita ou de extrema-direita e as autocracias ditas de esquerda (ou socialistas). 

E não há apenas um tipo de populismo e sim dois tipos: o nacional-populismo ou populismo-autoritário (dito de direita ou extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). 

Então, tudo isso significa que há duas alas em disputa no eixo autocrático. A ALA A versus a ALA B. Vejamos.

ALA A

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025)

AUTOCRACIAS E REGIMES ELEITORAIS NÃO-AUTORITÁRIOS PARASITADOS POR GOVERNOS POPULISTAS DITOS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA)

Hungria = Autocracia eleitoral: Orbán no governo

Turquia = Autocracia eleitoral: Erdogan no governo

El Salvador = Autocracia eleitoral: Bukele no governo

Índia = Autocracia eleitoral: Modi no governo – Posição ainda incerta

Itália = Democracia liberal: Meloni no governo – Posição ainda incerta

EUA = Democracia liberal: Trump no governo

Eslováquia = Democracia eleitoral: Fico no governo

Argentina = Democracia eleitoral: Milei no governo – Posição ainda incerta

Israel = Democracia eleitoral: Netanyahu no governo

FORÇAS NACIONAL-POPULISTAS DITAS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA) FORA DO GOVERNO

França = Democracia liberal: Le Pen fora do governo

Alemanha = Democracia liberal: Weidel fora do governo

Reino Unido = Democracia liberal: Farage fora do governo

Holanda = Democracia liberal: Wilders fora do governo

Espanha = Democracia liberal: Abascal fora do governo

Portugal = Democracia eleitoral: Ventura fora do governo

Finlândia = Democracia liberal: Purra fora do governo

Brasil = Democracia eleitoral: Bolsonaro fora do governo

ALA B

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025 – com exceção da África do Sul)

AUTOCRACIAS (FECHADAS E ELEITORAIS) DITAS DE ESQUERDA (OU SOCIALISTAS)

China = Autocracia fechada: Xi Jinping no governo

Coreia do Norte = Autocracia fechada: Kim no governo

Laos = Autocracia fechada: Bouphavanh no governo

Vietnam = Autocracia fechada: Chính no governo

Angola = Autocracia eleitoral: Lourenço no governo

Cuba = Autocracia fechada: Diáz-Canel no governo

Venezuela = Autocracia eleitoral: Maduro no governo

Nicarágua = Autocracia eleitoral: Ortega no governo

REGIMES AUTORITÁRIOS APOIADOS PELA ESQUERDA (E ÀS VEZES PELA DIREITA)

Irã e seus braços terroristas = Autocracia eleitoral: Khamenei (e IRGC) no governo – apoiados pela esquerda

Rússia = Autocracia eleitoral: Putin no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Bielorrússia = Autocracia eleitoral: Lukashenko no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Iêmen, EAU, Egito e outras ditaduras islâmicas – apoiadas pela esquerda

Cazaquistão, Uzbequistão e outras ditaduras asiáticas sob controle da Rússia ou da China

Congo DR, Nigéria, Uganda e outras ditaduras africanas sob controle da Rússia ou da China

REGIMES NÃO-AUTORITÁRIOS E NÃO-LIBERAIS DITOS DE ESQUERDA (E ALINHADOS AO EIXO AUTOCRÁTICO) 

México = Democracia eleitoral: Claudia no governo

Honduras = Democracia eleitoral: Xiomara no governo

Colômbia = Democracia eleitoral: Petro no governo

Bolívia = Democracia eleitoral: Arce no governo

Brasil = Democracia eleitoral: Lula no governo

África do Sul = Democracia eleitoral: Ramaphosa no governo

Indonésia = Autocracia eleitoral: Subianto no governo – é a única exceção de regime autoritário neste conjunto

BRICS, UM BOM EXEMPLO

O BRICS (ou Sul Global) é uma articulação política disfarçada de bloco econômico sob influência predominante da ALA B.

Dos 11 membros permanentes (plenos) do BRICS, 9 (82%) são ditaduras que se alinham:

Brasil – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Rússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Índia – Autocracia eleitoral | ALA A (mas a posição ainda é incerta)

China – Autocracia fechada | ALA B

África do Sul – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Egito (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B (vulnerável à ALA A)

Etiópia (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B

Irã (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B 

Emirados Árabes Unidos (aderiu em 2024) – Autocracia fechada | ALA B (vulnerável à ALA A)

Indonésia (aderiu em janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Arábia Saudita – Autocracia fechada – Ainda não decidiu se permanece no grupo | ALA A

Dos 10 países parceiros do BRICS, 8 (80%) são ditaduras que se alinham:

Bielorrússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Bolívia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Cazaquistão – Autocracia eleitoral | ALA B

Cuba – Autocracia fechada | ALA B

Malásia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Nigéria (confirmada como parceira em 17 de janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Tailândia – Autocracia eleitoral | ALA B

Uganda – Autocracia eleitoral | ALA B

Uzbequistão – Autocracia fechada | ALA B

Vietnã (o último confirmado) – Autocracia fechada | ALA B

Ou seja, o BRICS está claramente no campo da esquerda (ou sob influência predominante da esquerda) – ALA B. Por isso virou alvo da guerra de Trump.

A GUERRA DE TRUMP

Trump – sob influência MAGA ou realizando seu propósito – quer ser o líder global de um eixo autocrático populista de extrema-direita – a ALA A. Mas a parte mais ativa (e poderosa) do eixo autocrático realmente existente, no comando de governos, é de esquerda ou mais próxima da esquerda, ou apoiada pela esquerda (considerando que, politicamente, a Rússia, a Bielorrússia e o Irã, que do ponto de vista interno poderiam ser considerados de direita, do ponto de vista externo estão alinhados à esquerda) – a ALA B.

Numa conjuntura de guerra contra a ala esquerda do eixo autocrático (sobretudo a China), qualquer um na posição de Trump – ou seja, nacional-populista, autoritário, iliberal e antidemocrático, de extrema-direita – tomaria atitudes ainda mais duras contra Cuba, Venezuela, Nicarágua, México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul etc. pelo fato de esses regimes de esquerda ou pertencerem ao eixo autocrático (caso dos três primeiros) ou estarem se alinhando a esse eixo (caso dos seis últimos). Tudo, porém, na ALA B. 

O Brasil, em especial, foi escolhido por Trump por alguns motivos. O primeiro deles é o processo contra Bolsonaro, com o qual se identifica; e contra os bolsonaristas, que são aliados do MAGA. 

O segundo é a perseguição movida por Alexandre de Moraes (e seus colegas do STF) às plataformas americanas de mídias sociais (em especial as medidas censórias contra o X, mas não só) que se alinharam à ALA A. O governo americano sabe que os poderes no Brasil são formalmente independentes, mas não acredita nisso diante da evidência de o STF estar atuando em conluio com o governo. Aliás, Trump não acredita nessa independência do judiciário nem nos Estados Unidos. 

O terceiro motivo é a saliência de Lula em aparecer no BRICS como campeão da luta contra o imperialismo norte-americano, para se cacifar como o grande líder emergente do Sul Global. Lula, de certo modo, “cavou a falta” para aumentar sua popularidade cadente na base da patriotada fácil e da exploração populista do nacionalismo contra o grande satã. 

O fator mais decisivo, porém, foi o alinhamento do governo Lula à ALA B do eixo autocrático. Setores da Casa Branca avaliam que o Brasil, se já não é, pode se converter em braço da China (e da ALA B) nas Américas. Então é guerra.

Mas Trump não deseja a guerra quente (uma terceira guerra mundial nos moldes da primeira e da segunda). A sua guerra é uma guerra fria, baseada na ameaça e na imposição de sanções. Ele quer um eterno ‘estado de guerra’, de preferência sem derramamento de sangue.

Às vezes parece que Trump gostaria de um mundo que evocasse o 1984 de George Orwell. Três grandes potências autocráticas – Oceânia (EUA), Eurásia (Rússia) e Lestásia (China) – regulariam adversarialmente todo o globo (em guerras regionais quentes e em guerras que não seriam consumadas como conflitos violentos, algumas até de mentirinha – como pretexto para autocratizar internamente o próprio regime americano, pois os outros dois já são autocracias). Um mundo em que não haverá mais instituições multilaterais reguladoras, pois a força faz a lei. Esse mundo, entretanto, não é possível – mas o pretexto é possível. No final do dia, Trump espera não propriamente ser imperador do mundo (como disse Lula) e sim imperador de um novo – e tenebroso – Estados Unidos da América Autocrática. É claro que, se os EUA se transformarem em uma autocracia intervencionista (mesmo que apenas em termos de sanções econômicas e disposições restritivas geopolíticas sustentadas por poderio militar), todas as democracias liberais estarão ameaçadas de morte pela ALA A. Assim como também estarão se houver o predomínio da ALA B.

Por isso não pode analisar a questão como um FLA X FLU. Interessa igualmente à ALA A e à ALA B instaurar um clima de guerra (causando internamente polarização e divisão nas sociedades nacionais). É isso que destrói a democracia e não a vitória de um lado ou do seu oposto. Do ponto de vista das democracias liberais ambos são ameaças, porque ambos – cada qual a seu modo – são iliberais. Por isso Putin financia tanto Le Pen (da ALA A) quanto, por baixo do pano, incentiva Melénchon (da ALA B). E Trump, ao mesmo tempo em que apoia Putin, o ameaça com sanções. E sanciona a Índia (que pende mais para a ALA A) com tarifas semelhantes às aplicadas aos países cujos regimes estão alinhados à ALA B. A guerra fria permanente é a chave.

Ou é guerra ou não é guerra. Guerra fria é guerra. Se é guerra, de qualquer modo, a autocracia (seja dita de direita ou de esquerda) está vencendo; quer dizer, a democracia está perdendo. A guerra – não quem a promove – é a autocracia.

Uma força maligna do ponto de vista da democracia

O PT se converteu em uma força maligna do ponto de vista da democracia. Não que as pessoas que o compõem sejam malignas, longe disso. São pessoas normais, com virtudes e limitações como todos nós. Mas o organismo que foi se engendrando desenvolveu de modo negativo os traços militantes da primeira guerra fria (o atávico anti-imperialismo norte-americano do PT vem daí) e da luta contra a ditadura militar em condições desumanas, que impuseram extremo sofrimento aos (futuros dirigentes partidários) que se opuseram àquele regime.

Isso tudo foi racionalizado, a partir de uma visão marxista, como crença de que a história vai para algum lugar que pode ser conhecido de antemão pelos que têm a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade (o próprio marxismo), de que a luta de classes é o motor da história e de que o sentido da política é a ordem (ou seja, de que a política é guerra para implantar uma ordem mais justa) e não a liberdade (que seria a própria definição de democracia). Adquiriu assim características de uma espécie de “Irmandade Muçulmana” (de uma religião laica).

Infelizmente, o PT não conseguiu se desvencilhar dessa herança e os seus militantes mais jovens foram contaminados pelos mais velhos com o vírus de uma cultura adversarial que vê e aponta culpados ou inimigos em vez de identificar e tentar resolver problemas. A luta interna incessante entre as diversas tendências foi o campo de treinamento para produzir um tipo de agente partidário avesso à democracia como modo de vida, em que derrotar o outro tornou-se mais importante do que se comprazer na convivência com ele.

O ambiente antissocial que se configurou internamente ficou então marcado, no plano do emocionar, por ressentimento e desejo de vingança; no plano político, por hegemonismo, antipluralismo e política praticada como continuação da guerra por outros meios, quer dizer, construção continuada de inimigos (na base do “nós contra eles”); no plano moral, pela convicção de que “nós” estamos sempre do lado certo da história e que somos (moralmente) superiores a “eles” – ou seja, a todos os demais atores.

Isso tudo gerou um organismo intrinsecamente antidemocrático, embora proclame defender (e até querer salvar) a democracia, tomada, porém, como adesão sôfrega à disputa eleitoral (a guerra por votos), como promoção da igualdade (socioeconômica) como precondição para a liberdade (política), como cidadania para todos ofertada pelo Estado comandado pelo líder populista e como soberania (nacional) alçada à qualidade equiparável, se não superior, à democracia como valor (universal).


Muitos analistas, sobretudo acadêmicos, discordarão dessa apreciação. Em primeiro lugar porque são, em sua maioria, marxistas (por profissão de fé ou por profissão mesmo, conquanto alguns neguem). Em segundo lugar porque pensam que sabem o que é o PT, seja porque leram teses universitárias sobre o partido, seja porque militaram perifericamente no “partido externo” (e até hoje acreditam que são uma tendência externa capaz de influir na direção do “partido interno”). O que posso dizer? Fui dirigente nacional do partido nos seus primeiros dez anos de vida (do qual me afastei em 1994) e presenciei os movimentos iniciais de geração desse organismo que se tornou maligno do ponto de vista da democracia. A evidência mais contundente do desfecho dessa trajetória antidemocrática, trinta anos depois, é o alinhamento atual do PT ao eixo autocrático, composto pelas maiores ditaduras do planeta (Rússia, China, Irã etc.) em guerra contra as democracias liberais.ch