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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula: cai a máscara democrática de um tirano

Lula tem uma habilidade ímpar de transmutar seu discurso ao gosto do ouvinte, adequando-o ao público que o ouve. É um príncipe. O príncipe, de Maquiavel. Aquele que não tem rigidez moral, mas se move de acordo com as circunstâncias. A ética, para ele, não é uma camisa de força como o é para os tolos que tentam efetivamente agir com retidão e justiça e, tendo isso em vista, agem dentro de determinados parâmetros, sem abrir mão de princípios.

Lula e seus asseclas estão de volta ao poder porque, para eles, o poder sempre foi a meta. Eles são mais eficientes na sua conquista porque não impõem restrições morais a esse objetivo. Para voltar ao poder no Brasil, foi necessário colocar a máscara do democrata. Tarefa difícil para quem, além de ter sido condenado por corrupção, deu apoio político e financeiro aos regimes ditatoriais de esquerda da América Latina.

O figurino de democrata só voltou a colar porque surgiu um palhaço maior na República que, não tendo o ardil de esconder seu pendor antidemocrático, seduziu, com a retórica inflamada dos loucos, aqueles que já estavam saturados do teatro petista de décadas.

O tal “Sul global”

pomposa cerimônia do 8 de janeiro   – que comemorou uma democracia supostamente inabalada e ungiu Lula como seu defensor perpétuo – deu a ele a confiança necessária para pôr de lado a incômoda fantasia. Ciente do êxito do espetáculo e da força do conluio que o sustém, Lula pode agora passar para uma nova fase na qual sua lógica ideológica e pendor autoritário não precisam de justificação.

O endosso formal de Lula à infundada acusação de que Israel está cometendo genocídio mostra que ele já não se importa em ser visto por todo o mundo livre como mais um populista inconsequente. Ele não se importa porque acredita que pode liderar o tal “Sul global”, um bloco formado por ditadores e autocratas, que, sob a bandeira do vitimismo, tentam confrontar o Ocidente.

A atitude foi tão despropositada e tão contrária à tradição diplomática brasileira que conseguiu a proeza de fazer com que EstadãoO Globo e até mesmo a Folha de S.Pauloescrevessem editoriais criticando-a. 

Para o Estadão, a denúncia contra Israel por genocídio, apresentada à Corte Internacional de Justiça (CIJ) pela África do Sul e endossada pelo Brasil, “não leva em conta o fato de que Israel foi atacado por um grupo terrorista cuja missão declarada é exterminar os judeus”, portanto, explica o jornal, “não tem bases fáticas e jurídicas sólidas”.

A banalização do genocídio

A acusação de que Israel — o país que foi fundado para oferecer segurança aos judeus depois que 6 milhões deles foram exterminados pelo nazismo — estaria cometendo genocídio é extremamente grave. Ela banaliza o termo, uma tipificação de crime que foi criada justamente como “resposta da comunidade internacional à dimensão extraordinária do Holocausto”, lembra o jornal.

A argumentação do editorial O Globo segue o mesmo tom duramente crítico: “Ao atender ao pedido do embaixador palestino no Brasil, Lula viola a tradição de equilíbrio da diplomacia brasileira, banaliza uma acusação que só deveria ser feita com a maior parcimônia, em atitude que fortalece a vertente mais insidiosa do antissemitismo contemporâneo“.

Folha de S.Paulo, por sua vez, expõe o duplo padrão moral de Lula: 

“Relatório recente da Human Rights Watch aponta a oscilação de líderes mundiais quando se trata de condenar violações dos direitos humanos. Eles tendem a fazer vista grossa quando os perpetradores são governos aliados e a carregar nas tintas contra adversários. Um dos criticados pela organização global, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acaba de oferecer novo subsídio para a tese.”

O mundo passa por uma grande turbulência. O presidente americano, Joe Biden, em discurso de apoio a Israel, logo após o início da guerra, fez a seguinte declaração: “O Hamas e Putin representam ameaças diferentes, mas têm algo em comum: ambos querem aniquilar completamente uma democracia vizinha”.

Como entender que um presidente que quer se passar por democrático coloque o Brasil não ao lado das democracias ameaçadas por grupos terroristas e por tiranos, mas ao lado dos que as querem exterminar? 

Como interpretar o descaso de Lula pelo acordo Mercosul-União Europeia e o seu empenho com o BRICS no qual se congregam os países mais liberticidas e antidemocráticos do mundo senão como a deposição da máscara de democrata e a assunção da essência de um tirano?

8 de janeiro: democracia inabalada?

Democracia é um regime político, originado na Grécia Antiga, baseado nos princípios de isegoria (igualdade do ponto de vista da palavra) e isonomia (igualdade perante a lei), que surge quando o poder decisório, deslocado para o espaço público, passa para o demos (povo) e a autoridade, outrora unificada na figura do tirano, é distribuída para o chefe militar, o chefe religioso e o governante, todos escolhidos pelos cidadãos.

Na modernidade, com a formação dos Estados nacionais e a consolidação do conceito de soberania, os valores de igualdade e liberdade, instituídos na antiga Grécia, retornam na defesa de um Estado liberal contra o Estado absoluto.

Um Estado liberal não é necessariamente democrático nem um governo democrático é necessariamente liberal. Conforme explica Norberto Bobbio no livro Liberalismo e Democracia, trata-se de duas exigências fundamentais que nasceram com o Estado moderno: a exigência de limitar o poder (liberalismo) e de distribuí-lo (democracia).

Quais são, então, as características do Estado democrático? Elenquemos algumas: distinção entre o poder e o governante, garantida pela presença de leis, divisão das esferas de autoridade e existência de eleições; princípio republicano de distinção entre o público e o privado, existência de situação e oposição, maioria e minoria, respeitadas pela lei; legitimidade do dissenso e do contraditório.

Quais são, ainda, os pressupostos do Estado liberal? A doutrina dos direitos do homem elaborada pela tradição do direito natural, que está na base do direito proclamado nas duas principais revoluções liberais, a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).

O Estado Democrático de Direito é, pois, aquele em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais e constitucionais). É o governo de leis e não o governo dos homens. É um Estado, em suma, dotado de mecanismos constitucionais que obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder. Esses mecanismos são:

1 – Controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo;

2 –Eventual controle do Legislativo por uma Suprema Corte à qual se pede a averiguação da constitucionalidade das leis;

3 – Magistrado independentedo poder político.

Armados dessa introdução conceitual, passemos a analisar o 8 de janeiro de 2023.

O que houve de fato nessa data? Milhares de bolsonaristas, que estavam há dias acampados em frente a quartéis, invadiram a Praça dos Três Poderes. Alguns quebraram vidros, relógios, picharam estátuas, defecaram no STF, urinaram na tapeçaria, esfaquearam um Portinari e rasgaram a Constituição. 

Esses foram os fatos. Mas, como diria Nietzsche, não existem fatos, só existem interpretações. Então, vamos elas. 

Quem mais se beneficiou da patacoada bolsonarista foi, obviamente, Luiz Inácio Lula da Silva, que posa hoje de herói da democracia e aproveita a oportunidade para estreitar laços com todos os ministros do STF, convidando-os para churrascos e, claro, para a solenidade “Democracia inabalada”, que marcará um ano dos “ataques golpistas às sedes dos três Poderes, em Brasília”, reunindo no Congresso Nacional cerca de 500 convidados, entre autoridades e representantes da sociedade civil.

O ministro Alexandre de Moraes confirmou presença no pomposo evento, durante entrevista para O Globo, na qual declarou que “quem não acredita na democracia, não deve participar da vida política do país.” 

Estranha, porém, essa democracia tornada inabalável através de ações autoritárias que corrompem a democracia em seus princípios. Na democracia em que acredito, o Supremo Tribunal Federal não instaura inquérito de ofício – que dura cinco anos – para investigar Fake News, nem ministro julga processo no qual é também investigador e vítima. Na democracia em que acredito, há garantia de direitos individuais mesmo se o investigado tiver cometido o que seria, na cabeça de alguns, o maior de todos os delitos: ser bolsonarista.

A massa de manobra que invadiu a Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro é formada principalmente por pessoas de classe média baixa, doutrinadas durante anos por um discurso raso, reducionista, reacionário e belicoso, difundido por meio de aplicativos de mensagens. 

São pessoas comuns, alguns jovens, mas, principalmente, pessoas de meia idade: pais e mães, avôs e avós de família, que deveriam ser processadas individualmente por dano ao patrimônio público não por cinco crimes, como julgou procedente o autoritário e inclemente Alexandre de Moraes.

Muitos bolsonaristas estão se lixando para a democracia, queriam sim fechar o congresso, o STF e adorariam ver um golpe de Estado. Mas eles não eram capazes de dar esse golpe, portanto não deveriam ser julgados e condenados por isso. 

Como bem escreveu Diogo Mainardi, em seu blog, no site Não é imprensaos bolsonaristas que, ao contrário de Bolsonaro, participaram do quebra-quebra foram iludidos de que aquilo resultaria num golpe, mas o fato é que nunca houve o menor perigo de que isso ocorresse, porque os militares não estavam dispostos a derrubar o regime. O Brasil inventou essa modalidade de golpistas sem golpe, que serviram de pretexto para o grande conluio nacional.” 

O que vai ser celebrado, portanto, na cerimônia “Democracia inabalada” não é a democracia, mas o triunfo desse conluioO STF, odiado por metade do país por ter possibilitado o retorno à vida pública de Lula e por ter revertido as penas da Lava Jato que incidiram sobre os corruptos mais poderosos do país, agora está de mãos dadas com o Poder Executivo. Às favas com o princípio democrático de independência do magistrado em relação ao poder político.

A democracia do supremo-lulismo é formidável. Que um homem chamado Clezão tenha morrido sob custódia do Estado com um parecer favorável de soltura da PGR engavetado é só um detalhe incômodo. Que um jovem de 24 anos tenha sido condenado a 17 anos de prisão pelo terrível crime de ter entrado no Congresso Nacional em 8 de janeiro e divida a cela com condenados por estupro e homicídio que cumprem pena menor que a dele, é outro detalhe de somenos importância.

Essa é a democracia festejada pelos esquerdistas que aclamam o ministro Alexandre de Moraes aos gritos de “Xandão” e “sem anistia”, enquanto babam de satisfação ao ver a vingança sem tréguas contra seus adversários políticos. 

Mas as prisões da fulana cozinheira, do sicrano pedreiro, do beltrano corretor e de tantas outras pessoas simples, sem nenhum antecedente criminal, deveriam pesar também na consciência dos influenciadores de direita que, durante anos, encheram o próprio bolso com o rentável ofício de blogueiros chapa-branca do bolsonarismo, pagos para reproduzir em seus canais o discurso da ordem do dia.

De Miami ou do conforto do seu sofá, incentivaram e insuflaram a invasão do dia 8 de janeiro, seguindo o exemplo do covarde-mor, o próprio Jair. A peãozada foi presa por Moraes. Os influencers estão curtindo uma temporada nos Estados Unidos. 

Trinta senadores da oposição assinaram um manifesto público em resposta ao evento “Democracia inabalada”, promovido pelo governo federal.

No documento, os signatários condenam “vigorosamente os atos de violência e a depredação dos prédios públicos ocorridos no dia 08.01.2023, em Brasília.” Também alertam que “o abuso dos poderes e o uso indevido de interpretações de dispositivos constitucionais pode matar a democracia” e ainda apelam para a “volta da normalidade democrática”.

Tudo isto está bem dito e é correto, mas não tem força pelo simples fato de que a maioria dos que assinam o documento foram incapazes de romper com o bolsonarismo quando isso se fazia claramente necessário. 

Apontar o que há de autoritário e antidemocrático nos nossos adversários políticos é fácil; difícil é apontar isso dentro do próprio espectro político ou do próprio grupo. A democracia brasileira continuará abalada sempre que a sua suposta salvação retroalimentar o populismo.

‘Queers for Free Palestine' em Delhi Queer Pride walk 2023. | Foto: Manisha Mondal/ThePrint.

Wokismo: o destrutivo tsunami ideológico que ameaça o Ocidente

O jornalista britânico e editor do The Sunday TelegraphAllister Heath, publicou, em 13 de dezembro, um artigo de opinião no qual afirma que “a civilização ocidental está sendo destruída por dentro por forças que não podemos controlar”.

Essas forças de dissolução, segundo ele, foram subestimadas por muito tempo e aqueles que “alertaram para a ameaça devastadora representada pela tomada das nossas instituições por ideólogos conscientes (woke ideologues) foram implacavelmente atacados e ridicularizados”.

“terrível verdade” exposta por Heath no referido artigo é que essas pessoas que supostamente se preocupam com os outros e que dizem acreditar na justiça social e na auto-realização sexual, combater o preconceito, esclarecer a história, promover a igualdade e salvar o planeta são as mesmas que apoiam abertamente o genocídio.

Embora grande parte da mídia esteja embotada pela ideologia woke, o referido artigo do The Telegraph é uma amostra de que vozes qualificadas têm denunciado, aqui e ali, o paradoxo desses que se pretendem politicamente corretos ao mesmo tempo em que relativizam e justificam as piores barbáries.

Recentemente, em 11 de dezembro, o jornal suíço Neue Zürcher Zeitung(NZZ) publicou um artigo de opinião do seu correspondente político, Benedict Neff, intitulado “Traktat über die Verirrten: Der Palästina-Konflikt demaskiert die radikale Linke” (Tratado sobre os Perdidos: O Conflito Palestino Desmascara a Esquerda Radical).

Nesse artigo, o analista político suíço explica a infiltração da ideologia radical esquerdista nas universidades, sob o manto das teses antirracistas e pós-colonialistas, e denuncia a hipocrisia desses radicais diante das atrocidades cometidas pelo grupo terrorista Hamas:

“Há acontecimentos que levam a uma clareza peculiar. Um exemplo é o massacre do Hamas em Israel, em 7 de outubro de 2023. Um desmascaramento ocorreu longe dos combates. Depois de os terroristas palestinos massacrarem e raptarem mais de 1.000 civis inocentes, os ultra-esquerdistas e os islamistas do Ocidente saíram juntos às ruas para se manifestarem contra Israel. O crime não foi motivo para estes esquerdistas radicais mostrarem solidariedade para com as vítimas. Pelo contrário, deram proteção aos flancos dos perpetradores”, escreveu o articulista suíço.

Ambos os artigos citados denunciam que o 7 de outubro escancarou um absurdo padrão de pensamento que já existia há muito tempo, mas não era levado a sério; um padrão de pensamento no qual os modelos ideológicos seriam mais forte do que a compaixão humana:

“Hoje podemos considerar isto ingênuo, mas acredito que muitas pessoas — incluindo muitas da esquerda — só recentemente se tornaram plenamente conscientes do pensamento delirante e mecânico dos extremistas de esquerda, baseado em teorias pós-coloniais e antirracistas. Porque basicamente estes esquerdistas radicalizados disseram: os israelenses não são vítimas e não podem ser vítimas”, escreveu Benedict Neff, no NZZ.

“Forma demente de pensar”

Allister Heath, do The Telegraph, liga essa “forma demente de pensar” ao “destrutivo tsunami ideológico desencadeado pelos fanáticos despertos (woke fanatics)”. Para ele, embora muitos já compreendam, por exemplo, que “o aumento da defesa extrema dos trans levou à mutilação de muitas crianças e à erosão dos direitos das mulheres”“a natureza autoritária, e até mesmo fascista, da ´teoria crítica da raça´ e da ´teoria pós-colonial´ foi subestimada”.

Depois do constrangedor silêncio das organizações feministas em relação à violência sexual contra as mulheres israelenses, deu-se o caso das dirigentes de Harvard, da Universidade da Pensilvânia e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que, ao serem questionadas por uma comissão do Congresso dos EUA, se recusaram a confirmar que o apelo ao genocídio dos judeus violaria o código de conduta das universidades e disseram, com um sorriso sarcástico nos lábios, que isso “dependeria do contexto”.

Não é de surpreender, afinal, que, para os ideólogos radicais da esquerda, o massacre de 7 de outubro, orquestrado sinistramente pelo Hamas, também não pode ser analisado sem um contexto, ou seja, sem ser justificado dentro da ideologia woke que divide o mundo em opressores e oprimidos.

“O povo judeu é classificado como ´branco´ ou ´branco adjacente´ e, portanto, opressor, e isto supostamente dá aos manifestantes luz verde para entoar slogans que qualquer observador objetivo deveria considerar apoiar o genocídio”, explica o analista do jornal britânico.

Ele lembra ainda o quão essas pessoas que se recusam a criticar as manifestações pró-Hamas antissemitas são “paranóicos obcecados por microagressões com códigos discursivos estritos para prevenir ofensas”.

Duplo padrão

Sob a óptica dessa etiqueta discursiva politicamente correta, que escancara o duplo padrão moral que grassa hoje na maioria das universidades, professores ou estudantes podem ser perseguidos caso errem um pronome de quem mudou a identidade de gênero, mas clamar pela “Intifada revolution” e cantar “from the river to the sea”, que são inequivocamente vistos como apelos ao terrorismo e à eliminação de Israel do mapa, são atitudes analisadas de modo muito complacente, pois dependeriam contexto.

Segundo o artigo do The Telegraph, essa “normalização do racismo com um toque de década de 1930”, que tem tomado conta das universidades, impacta muito negativamente a sociedade:

“O vírus da mente desperta (woke mind) transformou outrora grandes centros de aprendizagem em campos de doutrinação, veículos para fabricar consentimento para ideias niilistas e um novo obscurantismo.”

Ainda segundo o analista britânico, é a “hierarquia de vitimização”, própria da ideologia woke, a razão pela qual algumas pessoas “ainda admiram as moralmente falidas Nações Unidas”:

“O enviado do Irã ter presidido a uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, apesar de a República Islâmica ser um dos principais violadores dos direitos humanos não importa, argumentam os extremistas despertos (woke extremists): é um membro do ‘sul global’, lutando contra o ‘imperialismo’.”

O artigo de Allister Heath também critica a UNRWA, tantas vezes denunciada aqui, em O Antagonista:

“Tomemos o exemplo da UNRWA para os Refugiados da Palestina: transformou os seus pupilos numa classe perpétua de refugiados, roubando-lhes a agência e rotulando as suas cidades como “campos de refugiados” permanentes. Os palestinos são o único povo para quem o estatuto de refugiado é automaticamente transmitido através das gerações, garantindo que as suas queixas nunca possam ser resolvidas e que a burocracia da ONU possa manter o seu trem da alegria na estrada. Isto é uma tragédia para os palestinos e torna a paz quase impossível.”

O artigo também tece duras, mas pertinentes, críticas ao ambientalismo de Greta Thumberg, as quais reproduzimos a seguir:

“O ambientalismo de Greta Thunberg parece agora ser uma mera tábua de um movimento revolucionário mais amplo. Entre outros ataques a Israel, ela foi filmada cantando “esmague o sionismo” em um comício em Estocolmo em novembro. Foi também coautora de um artigo para o The Guardian no qual alega que Israel cometeu “crimes de guerra” e “genocídio”, um caso clássico de inversão moral e culpabilização da vítima. […]

O que tem a israelofobia de Thunberg a ver com a abordagem de um problema técnico como o aquecimento global? A resposta é tudo e nada: os fanáticos verdes mais extremos são autoritários woke que querem travar guerra à meritocracia, ao individualismo, à racionalidade, ao capitalismo e até à democracia moderna. As alterações climáticas são apenas um pretexto para fomentar uma convulsão mais ampla. É por isso que tantos verdes radicais não estão interessados em soluções tecnológicas para a descarbonização.

Os aliados de Thunberg acreditam que ‘não há justiça climática sem direitos humanos’. Assim, com a ‘justiça climática’ não se trata de reduzir o crescimento das temperaturas médias: trata-se de destruir Israel, de lutar contra o sonho americano, de eliminar a liberdade de expressão e assim por diante. A ‘justiça climática’ não tem realmente a ver com clima nem com justiça, tal como a ‘justiça social’ é antissocial e injusta.”

A agenda woke, obviamente, não sobreviveria fora do mundo livre e seus defensores seriam friamente eliminados caso os fanáticos islâmicos lograssem êxito em impor sua visão de mundo teocrática. Mas o ódio ao “ocidente colonizador” parece ser maior do que o instinto de sobrevivência que deixaria entrever essa verdade.

“Filosofia para a Palestina”? Habermas e Ferry discordam

A filosofia, aurora do pensamento ocidental, tem sido sistematicamente encurralada nas suas louváveis pretensões de autonomia do pensamento para ser cada vez mais cooptada pela ideologia e pelas ideias nefastas que corrompem e desintegram a sociedade.

No atual estágio de desenvolvimento moral e jurídico da humanidade já deveria haver algumas balizas dentro das quais as ideias seriam discutidas com bom senso, boa fé e respeito a alguns imperativos morais inquestionáveis.

Infelizmente não é esse o caso. Enquanto alguns poucos filósofos conseguem trazer ao debate público ideias sensatas, pertinentes e corretas, a maioria se contenta com aventuras retóricas irresponsáveis nas quais o terror, o ódio e a barbárie são relativizados ou mesmo justificados em nome de ideais políticos. 

É importante, pois, trazer ao conhecimento do público brasileiro as raras vozes que têm nadado contra a maré da indolência intelectual no ambiente acadêmico filosófico. 

Se, por um lado, alguns ideólogos que se pretendem filósofos, assinaram uma carta aberta intitulada Philosophy for Palestine, na qual acusam Israel de genocídio e justificam o massacre do Hamas, por outro lado, o alemão Jürgen Habermas escreveu sua carta aberta Grundsätze der Solidarität. Eine Stellungnahme em condenação ao Hamas e em solidariedade a Israel e aos judeus.

Outro filósofo que entrou corajosamente no debate público, desde o início da guerra Israel-Hamas, é o ex-ministro de Educação da França, Luc Ferry.

Nem Habermas nem Ferry são considerados pensadores de direita. Ambos, porém, distanciam-se do fanatismo da esquerda anti-Israel que radicaliza o ambiente universitário com teses que fazem convergir decolonialismo, antissionismo, antissemitismo e wokismo em um mosaico de ódio e ressentimento contra tudo o que é ocidental, judaico e cristão.

Já comentamos aqui o artigo de Ferry intitulado “judeofobia, compreendendo a nova situação”, no qual o filósofo expõe o ódio ao “ocidente colonizador” como um sentimento catalisador capaz unir a militância de extrema esquerda apologeta do Hamas.

Em novo artigo, publicado também no jornal Le Figaro, Ferry defende que as atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de outubro devem ser consideradas crimes contra a humanidade.

Segundo ele, essa classificação importa ainda mais “porque alguns, cegos pelo velho antissemitismo da extrema esquerda, querem vê-lo como um movimento que ostenta o prestigiado selo da Resistência!” 

O filósofo explica que, para além dos debates que ocupam os juristas quanto à definição deste tipo de crime, “fica claro que os abusos cometidos pelo Hamas contra civis foram de fato perpetrados com uma lógica de extermínio visando toda uma comunidade.”

“Quer tenham sido assassinatos, violações ou torturas diversas, as pessoas raptadas, massacradas ou martirizadas estavam lá por quem eram ou deveriam ser, e não pelo que fizeram ou deveriam ter feito. Prova disso é o fato de até bebês, por definição inocentes, terem sido mortos como judeus, o que é suficiente para definir o crime contra a humanidade e, no final, incluí-los numa categoria mais ampla, o do genocídio”, completa o filósofo francês.

Enquanto a tal carta Philosophy for Palestine insiste na retórica hipócrita de que Israel está cometendo um genocídio em Gaza (retórica, aliás, já criticada na carta aberta de Habermas como “perda completa de parâmetros”), Ferry expõe a obviedade negligenciada pelos ideólogos de extrema esquerda: as atrocidades cometidas pelos Hamas é que “foram levadas a cabo numa lógica claramente genocida”.

Uma curiosidade sobre a carta dos ideólogos assinada por professores de filosofia na América do Norte, na América Latina e na Europa é que, entre as 207 assinaturas, constam as assinaturas de 8 brasileiros, cinco dos quais são cearenses, professores da Faculdade de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Antissemitismo institucional parece não ser mais privilégio da Universidade da Pensilvânia (Penn), de Harvard, do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e congêneres. Pelo que se vê, já há muitas sucursais do tipo pelo Brasil, uma das quais se destaca no nordeste do Brasil. 

Ps. Eu me formei em Filosofia na UECE e lecionei lá durante dois anos até sofrer pesado assédio moral e perseguição ideológica por parte dos mesmos professores que hoje assinam a referida carta. O caso resultou em processos criminais e trabalhistas ainda em curso.

“Allahu Akbar ”: o grito macabro que amedronta o mundo

“Em _____, um grupo de ____homens fortemente armados e vestidos de preto entrou em um _____ em _______ e matou _____ pessoas. Os atacantes foram filmados gritando “Allahu akbar!”. Em entrevista coletiva à imprensa, o presidente _____ disse: “Condenamos esse ato criminoso de extremistas e sua tentativa de justificar seus atos violentos em nome de uma religião pacífica não terá êxito. Condenamos igualmente aqueles que queiram usar essa atrocidade como pretexto para crimes de ódio islamofóbicos”.

É assim que começa o livro Herege: Por que o Islã precisa de uma reforma imediata, da ex-muçulmana, ex-ateia e agora cristã, Ayaan Hirsi Ali. A lacuna no nome do lugar, no número de assassinos e no de vítimas deve-se à grande quantidade de casos semelhantes. O leitor pode preencher as lacunas com o caso mais recente do noticiário.

Após relembrar alguns atentados, a autora escreve que há mais de treze anos vem defendendo um argumento simples em resposta a atos terroristas como estes: “Afirmo que é tolice insistir, como fazem habitualmente nossos líderes, que os atos violentos dos islamitas radicais podem ser dissociados dos ideais religiosos que os inspiram. Temos de reconhecer que eles são movidos por uma ideologia política, uma ideologia com raízes no próprio islã, no livro santo do Alcorão e na vida e ensinamentos do profeta Maomé descritos no hadith.”

A ex-muçulmana diz, com todas as letras, aquilo que os progressistas ocidentais e seus líderes insistem em negar: “Deixo claro o meu ponto de vista nos termos mais simples possíveis: o islamismo não é uma religião pacífica.”

Na contramão das susceptibilidades multiculturalistas que se melindram com esse tipo de argumento “insensível”, Hirsi Ali expõe em seu livro “a ideia de que a violência islâmica não tem raízes em condições sociais, econômicas ou políticas — e nem mesmo em erro teológico —, e sim nos textos fundamentais do próprio islamismo.” Por defender isso, ela foi silenciada, execrada e humilhada não só por muçulmanos, mas também por alguns militantes progressistas e apologistas ocidentais do Islã.

Por inúmeras razões, parte do Ocidente está mais preparado para ser subjugado pelo Islã e padecer sob a espada de Maomé do que para aceitar essa afirmação. Prova disso é que as declarações de Hirsi Ali suscitaram críticas tão veementes que parecia ter sido ela a autora de atos de violência: “pois hoje parece ser crime falar a verdade sobre o islã”, explica Ali. “´Discurso de ódio´é o termo moderno para heresia. E no clima atual, qualquer coisa que faça os muçulmanos se sentirem incomodados é rotulada de ódio.”

Não cabe aqui nesse contexto fazer uma resenha do referido livro, o qual indico como uma leitura atual e importante. Apenas citei a sua tese inicial à guisa de introdução para comentar o último atentado que ocorreu em Paris, em 02 de dezembro, nas proximidades da torre Eiffel.

Um homem de 26 anos matou com uma faca um jovem turista germano-filipino e depois atacou mais duas pessoas com um martelo. Assim como os terroristas do Hamas ao metralharem os jovens da festa rave em Israel e assim como tantos outros terroristas, o assassino Armand Rajabpour-Miyandoab gritou Allahu Akbar antes de esfaquear sua vítima. 

Mas o nome verdadeiro do assassino não é Armand. Um documento, apresentado como extrato do diário oficial de 22 de março de 2002, contendo o decreto de naturalização de membros da família do agressor, circulou amplamente no X (antigo Twitter). Neste documento, o homem é referido como Iman Rajabpour-Miyandoab. Uma fonte policial confirmou à imprensa que o primeiro nome do terrorista foi mudado em 2003, quando ele tinha seis anos.

Iman ou Armand, é filho de iranianos, converteu-se ao Islã na juventude e já planejou um ataque terrorista em 2016, pelo qual foi condenado a cinco anos de prisão. O agressor francês de origem iraniana estava ligado a vários terroristas, incluindo os assassinos de Samuel Paty (um professor morto em 16 de outubro de 2020 perto do colégio Conflans-Sainte) e de Jacques Hamel (padre que teve a garganta cortada no dia 26 de julho de 2016, ao final de uma missa diante de três freiras e um casal de paroquianos). 

Armand também manteve contacto com um jihadista francês que partiu para a Síria e era antigo membro do grupo Forsane Alizza, célula terrorista dissolvida em 2012, que defendia a jihad armada e queria “estabelecer um califado” na França.

Nesse último atentado insere-se também o contexto da guerra Israel-Hamas. Segundo o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, além de gritar “Allahu akbar”, o assassino disse à polícia não tolerar mortes de muçulmanos em Gaza.

Uma reportagem do jornal Le Figaro fez um levantamento: o turista alemão morto em Paris é a 274ª vítima de um ataque islâmico, desde 2012 na França, período no qual ocorreram 26 ataques islâmicos fatais, oito deles após 2020. 

Eis a lista macabra: 


2012: 3 ataques fatais (7 mortos)
2015: 6 ataques fatais (150 mortos)
2016: 3 ataques fatais (89 mortos)
2017: 2 ataques fatais (3 mortes)
2018: 3 ataques fatais (10 mortos)
2019: 1 ataque fatal (4 mortos)
2020: 4 ataques fatais (7 mortes)
2021: 1 ataque fatal (1 morte)
2022: 1 ataque fatal (1 morte)
2023: 2 ataques fatais (2 mortes)

A mídia francesa vem, compreensivelmente, dando grande repercussão ao ocorrido. O diretor de redação do jornal Le figaro, Vincent Trémolent de Villers, escreveuem editorial de 03 de dezembro: 

“A França é um país onde existe o risco de morrer por uma facada a qualquer hora, a qualquer hora, em qualquer lugar. […] A frouxidão migratória, a desintegração cultural, a delinquência sistêmica, o jihadismo atmosférico e a fraqueza judicial estão interligados. Nesta França, o carrasco lamenta-se como vítima e a vítima, dano colateral do grande projeto multicultural, é rapidamente esquecida. Quem se lembra das jovens cujas gargantas foram cortadas há seis anos na estação Saint Charles? Ou do homem assassinado por um refugiado sudanês enquanto abria a janela em total confinamento?” 

A preocupação, porém, do coordenador do partido de extrema esquerda, La France insoumise, Manuel Bompard, não é evitar novos atentados terroristas islâmicos, mas evitar que se dê uma interpretação inadequada a eles: “Vejo claramente que, por exemplo, a questão da loucura deste indivíduo parece estar completamente retirada de questão e, no entanto, parece-me que este é um dos assuntos que terá de ser examinado após esta tragédia”, registrou o coordenador insoumise.

Para Bompard, o ataque com faca que custou a vida a um turista alemão em Paris foi apenas o ato de “uma pessoa claramente desequilibrada” para o qual não se pode “dar significado político geral.” 

Jean-Luc Mélenchon, líder do La France insoumise, também manteve suas considerações limitadas ao perfil psiquiátrico do assassino, sem mencionar as suas motivações terroristas. Tratar-se ia apenas de um homem com distúrbios psiquiátricos que interrompeu seu tratamento medicamentoso: “É hora de percebermos as consequências do colapso do sistema psiquiátrico! Cuidados, monitoramento e confinamento médico são urgentes para diminuir o dano deste tipo de pessoa”, acrescentou o três vezes candidato presidencial. 

Pouco antes do ataque o agressor, que consta na lista policial de radicalização islâmica, assumiu a responsabilidade pelo ataque evocando em um vídeo as notícias, o governo e o assassinato de muçulmanos inocentes. Na hora do assassinato ele gritou “Allahu Akbar”. Mesmo assim, uma vertente política tenta desconectar o crime da questão islâmica. 

Voltemos ao livro de Ayaan Hirsi Ali, escrito em 2015. Deixarei que ela, que conhece o islamismo muito melhor do que eu, conclua esse artigo:

“Já faz quase uma década e meia que temos políticas e pronunciamentos baseados na suposição de que o terrorismo e o extremismo podem e devem ser diferenciados do islã. Sempre na esteira de ataques terroristas em todo o mundo, líderes ocidentais apressam-se a declarar que o problema nada tem a ver com o islã propriamente dito. Porque o islamismo é uma religião pacífica. 

Mas e se essa premissa for totalmente errada? Porque não são apenas a Al-Qaeda e o EI que mostram a face violenta da fé e da prática islâmica. É também o Paquistão, onde qualquer declaração que critique o Profeta ou o islã é considerada blasfêmia e punível com a morte. É a Arábia Saudita, onde igrejas e sinagogas são proibidas, e onde a decapitação é uma forma legítima de punição, tanto assim que em agosto de 2014 houve quase uma decapitação por dia. É o Irã, onde o apedrejamento é uma punição aceitável, e os homossexuais são enforcados por seu “crime”. É Brunei, onde o sultão está reinstituindo a lei islâmica da sharia e a pena capital para a homossexualidade. […]

Atualmente ainda tentamos argumentar que a violência é obra de um punhado de extremistas lunáticos. Recorremos a metáforas médicas, tentando definir o fenômeno como algum tipo de corpo estranho no meio religioso em que ele se propaga. E fingimos acreditar que temos extremistas tão perversos quanto os jihadistas.”

Foto de Taylor Brandon na Unsplash

Israel, Hamas e o crepúsculo do Ocidente

Para mães palestinas que seguram seus filhos feridos não importa a razão de ser do ataque sofrido, para o pai que teve sua família dizimada por terroristas cruéis não importa o motivo do ataque, para os inúmeros reféns que se encontram subjugados e torturados não há barbaridade maior do que a que sofrem. Por qualquer ângulo que se olhe, o martírio de inocentes é injustificável e intolerável. O que deveria causar revolta e indignação é que se tente justificar a crueldade e a barbaridade por floreios retóricos que tomam por base uma argumentação histórica de um conflito milenar.

O mal, quando emerge sob o manto da reivindicação da justiça, é o mal dissimulado e insidioso, é o mal dos hipócritas e dos covardes. E há mal moral enraizado na mente dos que supostamente militam pela paz.

Os pacifistas que fecham os olhos para as atrocidades cometidas contra os seres humanos quando tais atrocidades ferem não aqueles cuja subjugação oferece a bandeira adequada para a sua militância doentia, mas aqueles que supostamente seriam os opressores que a sua ideologia resolveu demonizar são, na verdade, pessoas sem bussola moral, sem integridade e sem equilíbrio para lidar politicamente com uma situação tão delicada como a que o mundo agora vivencia após o atentado terrorista do Hamas.

Não basta clamar por um cessar fogo sem reconhecer que as reivindicações de Israel, como Estado atacado, são legítimas; não adianta apontar os civis mortos no ataque em Gaza sem esclarecer que tais civis são feitos de escudo pelos terroristas que se escondem nos túneis subterrâneos; não serve posar de bom-moço e pedir a paz mundial sem reconhecer que essa paz é reiteradamente ameaçada por déspotas como Vladimir Putin que hipocritamente se coloca no tabuleiro da guerra do Oriente Médio esperando a oportunidade de oferecer seu poderio bélico a todos aqueles que se alinhem à sua insânia expansionista e possam servir aos seus interesses.

Os jovens que se arvoram defensores da liberdade e da igualdade deveriam estar atentos e temerosos com a expansão autocrática contra as democracias liberais, mas, paradoxalmente, o que vemos são estudantes e professores universitários vociferando contra Israel em nome de uma abstração chamada “causa palestina”.

Qual é, afinal, a causa palestina? Quem está travando os tratados de paz senão os próprios fundamentalistas que minam todas as negociações possíveis e espalham o terror para evitar a concórdia? São os terroristas do Hamas que mantêm a população de Gaza subjugada e exposta para que o ódio recrudesça no coração de todos.

Por que a ONU não se interessou em condenar o feroz ataque perpetrado pelos terroristas antes de clamar pela paz? Por que a Assembleia Geral da ONU aprovou um projeto de resolução que pede uma pausa segundo o critério dos Estados árabes alinhados ao que há de mais retrógrado em termos de Direitos Humanos, desconsiderando a decisão coletiva das sociedades livres para as quais Israel tem o direito, senão o dever, de combater e eliminar o grupo terrorista que o atacou? O que faz com que uma instituição como a ONU, que deveria ser um ponto de dissuasão de conflitos, se torne um reprodutor de discursos hipócritas e demagógicos que não aponta com clareza o mal e que foge à responsabilidade de combatê-lo? São respostas difíceis porque talvez a ONU seja apenas o reflexo institucional de um cenário global de ambiguidade moral, de falta de critérios, de perda de prumo e de relativismo doentio.  

O secularismo, tão aclamado por progressistas e materialistas, parece ter levado ao seu oposto: a submissão ao que há de mais radical e primitivo em termos de religião. Por que o Islã não pode se curvar à política liberal do Ocidente, mas a política liberal do Ocidente precisa se curvar ao Islã? Por que o fanatismo de um povo que clama pelo extermínio dos judeus está sendo tolerado e incorporado pela cultura livre que o acolhe? O que significa a place de la République tomada por muçulmanos e simpatizantes gritando “Allah Akbar” após uma carnificina contra os judeus senão o atestado de submissão daquela que foi outrora a pátria dos Direitos do Homem e do Cidadão?

O problema é mais filosófico do que político. O iluminismo, o materialismo, o secularismo, na sua ânsia de renegar o cristianismo e seu legado moral acabou abrindo espaço para outra religião, não compatível com as leis e os costumes ocidentais. O esforço do Ocidente para trocar o cristianismo pelo ateísmo de Estado e virar as costas para sua tradição e para sua história religiosa fragilizou-o sobremaneira.

O niilismo decorrente da falta de raízes permitiu a proliferação de teorias absurdas e aberrantes tidas hoje como respeitáveis e as universidades dissolveram-se no caos do imoralismo que busca antes transgredir do que formar. Sob o nome pomposo de “decolonização”, professores militantes conseguiram fomentar um desprezo pelo que chamam de “eurocentrismo”, que nada mais é que a referência judaico-cristã da história. Movidos por ressentimento e vitimismo, exigem uma retratação em nome de uma suposta marginalização e costumam desprezar os clássicos por se acharem portadores de uma grande verdade atual. Com tudo isso, fizeram da Filosofia uma mera excrescência ideológica na qual se pavoneiam com floreios linguísticos.

Por pouco estudo que se tenha, por pouco que se conheçam os fatos, por simplória que seja a mente de um indivíduo é gritante a iniquidade que há em se justificar atrocidades em nome de uma causa política. O uso da violência no seu aspecto mais bestial não pode ser tolerado e muito menos aclamado. Os intelectuais da extrema esquerda que tratam Israel como “Estado terrorista” e o acusam de genocídio enquanto silenciam sobre a causa original da guerra em curso são ideólogos que falseiam a história.

Nesse crepúsculo do Ocidente haveremos ainda de encontrar vozes lúcidas que renegarão a perfídia. Essas vozes serão muitas vezes silenciadas e perseguidas. Mas elas ressoarão no fundo das consciências momentaneamente obnubiladas pela histeria de um mundo sem rumo e sem fé.

Israel x Hamas: direito de defesa com proteção aos civis

Há uma meta a ser cumprida na guerra Israel-Hamas: a eliminação do grupo terrorista que que invadiu Israel, exterminou e sequestrou civis. Ceder agora é ser passivo diante da monstruosidade perpetrada, é condescender com a barbárie.  

O direito de resposta de Israel à ignomínia à qual seu povo foi exposto é inegável. Não há corrente do Direito Internacional que não reconheça a legitimidade da resposta, uma vez que as fronteiras do país atacado de forma vil e selvagem estão expostas aos terroristas, que não respeitam leis ou tratados.

O direito de defesa pressupõe, no entanto, o respeito às normas internacionais que regem as relações entre os povos. Os civis devem ser protegidos tanto quanto os combatentes do Hamas devem ser alcançados. A estratégia para isso deve ser a entrada em Gaza por terra, uma vez que o bombardeio aéreo indiscriminado daria vitória a Israel, mas à custa de muitas vidas inocentes.

A invasão por terra não será fácil; haverá muitas baixas israelenses. Ou seja, Israel exporá a vida dos seus filhos para resguardar a vida de civis palestinos. Como isso pode ser moralmente equivalente às atrocidades perpetradas pelo Hamas?

Não se trata aqui de guerra comum, onde duas nações se enfrentam por questões econômicas e geopolíticas, mas de conflito no qual há um abismo entre a bestialidade de um ataque terrorista deliberado, com grau de crueldade inimaginável, e a resposta de guerra a ele.

Ambos os eventos são traumáticos, ambos levam ao luto e ao sofrimento, mas um responde à agressão iníqua e está respaldado pelo direito e pelas leis, outro rege uma orquestra demoníaca de vozes enfurecidas que berram contra o fim de Israel e o extermínio dos judeus.

Uma vez nos calamos e demoramos a retaliar. Uma vez esperamos para ver até onde o mal poderia ir. A resposta veio como a máquina infernal da SS, com seus fanáticos enfileirados; a resposta veio com os campos de concentração; a resposta foi a morte de milhões de inocentes. Milhões de judeus.

Não nos cabe agora repreender Israel pelos seus erros no antigo problema com os palestinos. Não cabe porque esse é um problema diplomático, que só poderá ser resolvido se houver diplomacia, algo impossível em um Estado islâmico, uma teocracia na qual o pensamento mundial deve se curvar a Allah e aos seus fiéis.

O mundo ocidental está brincando com o risco da sua própria aniquilação. A impressão que dá é que luta nas ruas, universidades e redes sociais para ser subjugado por um poder despótico e cruel.

O movimento político-ideológico que sustenta o Hamas tem ramificações enormes, por isso a mídia ainda não se colocou formalmente ao lado de Israel, banindo de seus quadros aquele que manifeste inclinações antissemitas e favoráveis aos terroristas. Mas é imperioso que emissoras e redações condenem formal e explicitamente um discurso cujo resultado já vimos no passado.

O holocausto foi possível porque a máquina de propaganda nazista foi eficaz, porque a aquilo que há de pior na espécie humana foi catalisado por líderes através do imenso poder da propaganda.

Os que hoje silenciam frente ao horror do atentado contra os israelenses, silenciariam na terrível noite dos cristais; os que hoje comemoram o que consideram uma façanha do Hamas, comemorariam os expurgos de Hitler. A desumanidade quando vista e não condenada abre espaço para desumanidades maiores e cada vez mais aberrantes.

Não há que se negar a boa fé e o senso de justiça dos que verdadeiramente almejam a paz entre os dois povos, mas há que se considerar que, uma vez que o mal tomou o caminho deliberado de negá-la, o bem não pode silenciar e esconder-se. Trata-se de uma resposta humana, dentro da humana falibilidade.

O mundo não é o paraíso celeste de espíritos redimidos. O mundo é o que é: um lugar de lutas e aprendizados, expiações e provas, dores e resgates. É neste quadro que devemos nos mover. E quando a guerra começa é preciso saber para que lado ir. O meu lado é o da civilização.

Foto: Mahmud Hams/AFP

Ideologia e Terror: Israel sob Ataque

Não há justificativa moral ou política para um ato de crueldade; não há teoria que tenha legitimidade quando tenta se impor pela violência e pelo mal.

É preciso que cada cidadão reflita a propósito de sua visão de mundo e de suas convicções, que se questione se aquilo que defende é digno ou iníquo; é preciso que a consciência de cada um esteja desperta para que a brutalidade, a insânia, a perversidade que atravessa o mundo nessa hora sintomática não ponham a perder os esforços daqueles que querem efetivamente alcançar a paz e a fraternidade entre os homens.

O apoio a uma causa política não pode ser motivo de morticínio e a adesão a determinado programa ideológico não se coaduna com a tentativa de aniquilação de um povo. Não é razoável, sob nenhuma ótica dentro dos preceitos éticos fundamentais, que se apoie barbaridades como a execução sumária de civis inocentes, o sequestro de mulheres, crianças e idosos e toda a selvageria que caracteriza os atos dos fundamentalistas islâmicos.

Esses extremistas, porém, encontram nos hipócritas e nos covardes o eco necessário para as suas incursões demoníacas e perversas.

Todos aqueles que, tendo um papel social a cumprir, optam por corroborar com o mal, emprestando sua fama, seu poder ou sua influência a causas desgraçadas como a do terrorismo respondem, de algum modo, por esses crimes.

Não se trata de favorecer uma ou outra narrativa, mas de rechaçar uma delas em absoluto: aquela que relativiza a vida humana, que bestializa o homem, que atenta contra a dignidade e que fere a sensibilidade de quantos ainda não estão embotados pela ideologia nefasta que professam de maneira inconsequente.

O mal moral existe, está bem visível e requer condenação. Não se pode relativizá-lo.

Isso não equivale a aderir ao governo atual de Israel ou negar valor à luta palestina, equivale a resguardar a consciência moral, que não transige com o terror.

O ser humano livre é aquele capaz de pensar e sentir. Se você não sentiu dor e indignação diante dos relatos do horror perpetrado contra os civis inocentes em Israel, uma parte da sua alma adoeceu. E você está procurando a cura no lugar errado.

Autoridade e autoritarismo, segundo Hannah Arendt

A autoridade, explica Hannah Arendt, é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Isso se dá porque ela sempre exige obediência. Contudo, “a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou.[1]” A autoridade se contrapõe não apenas à coerção pela força, mas também à persuasão através de argumentos: “onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso[2]”. É na hierarquia, cuja legitimidade é reconhecida tanto por aquele que manda quanto por aquele que obedece, que a autoridade se assenta.

No ensaio O que é autoridade?, Arendt delimita o conceito em questão a fim de possibilitar a sua contraposição à estrutura de governo totalitária, que se erigiu também como uma resposta à crise da autoridade. Longe de confundir autoritarismo com autoridade legítima ou governos autoritários com regimes totalitários, suas reflexões acerca do tema têm por objetivo depurar os conceitos a fim de que as análises alcancem o fenômeno do totalitarismo na sua peculiaridade e distinção. Na sua interpretação, o desenvolvimento de formas totalitárias de governo relaciona-se, em algum grau, com “o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais[3]”.

A crise de autoridade a que ela se refere não se limita à perda de prestígio do governo ou do sistema de partidos, mas de algo anterior, que se espalha “em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural[4].” Além disso, essa perda da autoridade não pode ser analisada como fenômeno isolado, uma vez que se trata apenas da “fase final, embora decisiva, de um processo que, durante séculos, solapou basicamente a religião e a tradição[5].”

Essa crise maior, não apenas da autoridade, mas da religião, da tradição e da própria razão, tornou-se patente na contemporaneidade, principalmente através das críticas de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, pensadores que “desafiaram os pressupostos básicos da religião tradicional, do pensamento político tradicional e da metafísica tradicional invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.[6]” Responsabilizar, porém, os pensadores rebeldes do século XIX pelas catástrofes do século XX seria “ainda mais perigoso que injusto[7]”, pois “as implicações manifestas no evento concreto da dominação totalitária vão muito além das mais radicais e ousadas ideias de quaisquer desses pensadores[8]”. É preciso, ao contrário, reconhecer-lhes a grandeza por “terem percebido o seu mundo como um mundo invadido por problemas e perplexidades novas com as quais nossa tradição de pensamento era incapaz de lidar[9]”.

Kierkegaard, Marx e Nietzsche, segundo Hannah Arendt, “situam-se no fim da tradição, exatamente antes de sobrevir a ruptura”.[10] Eles radicalizaram a abordagem ao passado pelo fio da continuidade histórica, questionando a tradicional hierarquia conceitual que dominara a filosofia ocidental desde Platão e que Hegel dera por assegurada, sendo “para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse[11]”, mas não podem, por isso, responder pela brutal quebra que houve em nossa história: “esta brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia cristalizaram em uma nova forma de poder e de dominação[12]”.

Tendo por pano de fundo a sua crítica à noção linear de História típica da modernidade, Arendt aponta certas fragilidades nos argumentos de liberais e conservadores quando estes abordam a dicotomia autoridade versus liberdade. Liberalismo e conservadorismo seriam, segundo ela, “a expressão política da consciência histórica do derradeiro estágio da época moderna”[13] e procederiam “sob a implícita suposição de que as distinções não são importantes”. O uso que ambas as vertentes fazem dos conceitos de história, progresso e decadência responderiam pela incapacidade de distinguir, atestando seu pertencimento a uma época na qual tais conceitos “começaram a perder sua clareza e plausibilidade por terem perdido seu significado na realidade público-política sem perderem inteiramente sua importância”.[14] Liberalismo e conservadorismo teriam mostrado, em conjunto, que estivemos diante de um retrocesso simultâneo tanto da liberdade quanto da autoridade, mas, por se manterem dentro das categorias de uma filosofia da história, foram insuficientes na interpretação do fenômeno totalitário, o qual analisaram não na sua essência e originalidade, como evento qualitativamente distinto, mas sim como mera medida de distanciamento daquilo que traziam como expectativa:

“O liberalismo mede um processo de refluxo da liberdade, enquanto o conservadorismo mede um processo de refluxo da autoridade; ambos denominam de totalitarismo o resultado final esperado e veem tendências totalitárias onde quer que um ou outro esteja presente[15].”

A crítica de Arendt, portanto, não se limita ao liberalismo e ao conservadorismo enquanto tais, mas à falta de sutileza das ciências sociais, políticas e históricas como um todo. O filósofo (no caso, a filósofa) vê diferenças de natureza onde o pesquisador comum enxerga apenas diferenças de grau. Por partir do pressuposto de que há uma constância do progresso na direção da liberdade organizada, as teorias liberais olham cada desvio desse rumo como um mero processo reacionário e perdem de vista as nuances de cada forma de governo, desconsiderando as diferenças entre elas:

“Isso faz com que passem por alto a diferença de princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total eliminação da espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários, por intermédio dos seus diversos métodos de condicionamento. O escritor liberal, preocupado antes com a história e o progresso da liberdade que com as formas de governo, vê aqui apenas diferenças de grau, e ignora que o governo autoritário empenhado na restrição à liberdade permanece ligado aos direitos civis que limita, na medida em que perderia sua própria essência se os abolisse inteiramente – isto é, transformar-se-ia em tirania[16].”

Aqui se torna patente a importância do rigor conceitual: autoritarismo não pode ser confundido com totalitarismo. Por trás da confusão liberal inclinada a ver tendência totalitária em toda limitação autoritária jaz, segundo Arendt, a “confusão mais antiga de autoridade com tirania e de poder legítimo com violência[17]”. É preciso, pois, salientar as distinções:

“A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. Seus atos são testados por um código que […] não foi feito pelos detentores efetivos do poder. A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior ao seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado[18].”

As distinções entre sistemas tirânicos, autoritários e totalitários propostas por Arendt são a-históricas e antifuncionais. Elas implicam que, no mundo moderno, a autoridade desapareceu tanto no mundo livre quanto nos chamados sistemas autoritários e que a liberdade “está sob ameaça em toda parte, mesmo nas sociedades livres, tendo sido, porém, abolida radicalmente apenas nos sistemas totalitários, e não nas tiranias e nas ditaduras[19]”.

A autoridade, explica Hannah Arendt, não se acha necessariamente presente em todos os organismos políticos. Tanto a palavra (auctoritas) quanto o conceito são de origem romana e não estiveram presentes nem na língua grega nem nas várias experiências políticas da história grega[20]. A experiência da pólis, como se sabe, era baseada no logos, na doxa, na consideração do mundo comum a partir de diversos pontos de vista: “Em um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, tais como apresentados aos cidadãos de Atenas pelos sofistas, o grego aprendeu a intercambiar seu próprio ponto de vista, sua própria opinião com os seus concidadãos[21]”.  O governo absoluto, por sua vez, era conhecido pelos cidadãos da pólis como tirania e uma das principais características do tirano era governar por meio da pura violência[22].

Não havia, portanto, na experiência política grega efetiva uma relação em que o elemento coercitivo repousasse na relação mesma e que implicasse simultaneamente obediência e liberdade. Foi isso que Platão e Aristóteles tentaram introduzir na vida pública da pólis e, para tanto, foram buscar exemplos das relações extraídas da administração doméstica e da vida familiar gregas[23]. Foi após a morte de Sócrates que Platão começou a descrer da democracia, passando a considerar a persuasão insuficiente para guiar os homens, buscando então algo que se prestasse a compeli-los sem o uso de meios externos de violência[24].

Para Arendt, o contexto no qual o pensamento grego se acerca mais estreitamente do conceito de autoridade é “na República, de Platão, onde ele confrontou a realidade da pólis com um utópico governo da razão na pessoa do rei-filósofo[25]”, cujo poder coercitivo repousaria não na pessoa do rei, mas nas ideias que são percebidas pelo filósofo[26]. A verdade do filósofo, porém, não possui a mesma validade na “esfera dos assuntos humanos que o filósofo tivera que abandonar para percebê-la[27]”. Há, pois, uma “dicotomia entre o ver a verdade em solidão e isolamento e o ser capturado nas conexões e relativismos dos negócios humanos[28]”.

A perda de vista dessa dicotomia esconde, muitas vezes, uma vontade de domínio que se disfarça sob um manto pedagógico. Foi sob esse manto que o pensamento político platônico influenciou boa parte da teoria política ocidental. Platão não apenas “pretendeu introduzir uma espécie de autoridade no manejo dos negócios públicos e na vida da pólis[29]” como também tentou fazer com que essa autoridade política adquirisse um caráter educacional, sobrepondo ao reino da política o modelo educacional por meio da autoridade.

Não foi, porém, na Grécia, que a palavra e o conceito de autoridade se estabeleceram, mas em Roma, assentando-se na tradição e na religião, perfazendo a tríade que se sustentava na experiência da fundação romana. Com o declínio do Império, a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Católica, que assumiu a tríade religião, autoridade e tradição. Uma vez que a Igreja adotara a distinção romana entre autoridade e poder, reivindicando para si a primeira,[30] a posterior separação entre Igreja e Estado teve por inconveniente implicar a perda, no âmbito político, do “elemento que, pelo menos na História ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e permanência[31]”.

O famoso declínio do ocidente ou a crise do mundo atual é interpretado por Hannah Arendt como “declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político[32]”. As revoluções da época moderna seriam, por seu turno, “gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza[33]”.

Com exceção da Revolução Americana, todas as revoluções, desde a francesa, malograram em seus objetivos, tendo terminado em restauração ou tirania. Isso indica, segundo Arendt, que a autoridade – tal como se desenvolveu na experiência romana e foi compreendida à luz da filosofia política grega – não se reestabeleceu em lugar nenhum e que precisamos lidar com o fato de que vivemos hoje em uma esfera política sem autoridade, confrontados com os problemas elementares da convivência humana “sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, auto evidentes[34]”.

Notas

[1] ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. p.129

[2] Idem. p.129

[3] Idem. p.128

[4] Idem. p.128

[5] Idem. p.130

[6] Idem. p.53

[7] Idem. p.54

[8] Idem. p.54

[9] Idem. p.54

[10] Idem. p. 55

[11] Idem. p.56

[12] Idem. p.53

[13] Idem. p.139

[14] Idem. p.139

[15] Idem. p.137

[16] Idem p.133-134

[17] Idem p.134

[18] Idem p.134

[19] Idem p.142

[20] Idem p.142

[21] Idem. p.82

[22] Idem. p. 143

[23] Idem. p. 143

[24] Idem. p. 147

[25] Idem. p. 145

[26] Idem. p. 149

[27] Idem. p.155

[28] Idem. p.156

[29] Idem. p.159

[30] Idem. p.169

[31] Idem. p. 170

[32] Idem. p. 185

[33] Idem. p. 185

[34] Idem. p. 187

A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte II)

Para ler a parte I, clique aqui.

Os sofistas, a política e o humanismo de Protágoras

O problema do caráter natural ou convencional daquilo que é considerado justo ou injusto é abordado pela maioria dos sofistas, embora a resposta dada a essa questão não seja sempre a mesma. É quase lugar comum a afirmação de que os sofistas teriam contraposto a lei à natureza, mas apenas Hípias e Antifonte estabeleceram explicitamente essa contraposição[1].

Hípias desvaloriza a lei na medida em que esta se afasta da natureza. Para ele, a natureza une os homens, ao passo que a lei frequentemente os divide. Dessa distinção entre lei natural e lei posta pelos homens, ele tira conclusões importantes que apontam para um ideal cosmopolita e igualitário que será desenvolvido posteriormente no período helenista. Hípias mostra, por exemplo, que as leis discriminatórias que separam os cidadãos de uma cidade e outra ou que dividem os cidadãos dentro de uma mesma cidade não fazem sentido se tomarmos por base a natureza, que iguala todos. Fundamentando-se também na distinção entre natureza e lei, Antifonte radicaliza ainda mais tais concepções, afirmando que gregos e bárbaros são por natureza absolutamente iguais e rejeitando, por conseguinte, discriminações baseadas nas origens[2]:

“O “iluminismo” sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da pólis, mas também o mais radical preconceito comum a todos os gregos acerca da própria superioridade em relação aos outros povos: todo cidadão de qualquer cidade é igual ao da outra e todo homem de qualquer classe é igual ao da outra, porque por natureza todos os homens são iguais entre si.”[3]

Philippe Nemo destaca como característica geral entre os sofistas a consciência de que o nomos “deve ser libertado do jugo da tradição e da sacralidade; que ele pode ser alterado pelos homens, seja criando-o arbitrariamente, seja, ao contrário, modificando-o para aproximá-lo de um padrão ideal[4]”. Werner Jaeger, por sua vez, destaca como aspecto comum a todos os sofistas “o fato de serem mestres da areté política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la[5]”. Enquanto uns, como Górgias, ensinavam apenas a retórica, outros, como Protágoras, iam além de uma educação meramente formal do entendimento e estimulavam o desenvolvimento da totalidade das forças espirituais: “a poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes dessa terceira forma de educação sofística[6]”.

A educação universal almejada por Protágoras é uma educação política, uma vez que, nesses tempos clássicos, a ideia de uma paideia, de uma alta formação é inseparável da ideia de Estado e sociedade[7]. Essa educação para o Estado significa, para Protágoras, educação para a justiça[8].

Vimos que no séc. V Atenas entrava em sua era de ouro, sob a liderança de Péricles, atraindo de toda a Grécia os que se destacavam por serem conhecedores e bons intérpretes das leis. Dentre estes estava Protágoras que, em 444.a.C, já havia sido encarregado por Péricles de redigir a legislação de uma das colônias gregas.

Reconhecido e admirado não apenas por Péricles, mas também por ilustres filósofos da época, Protágoras se ocupa principalmente com aquilo que torna possível a sociedade política e a sua conservação, além de buscar ensinar o decoro e a justiça, virtudes necessárias para que a pólis possa existir da melhor maneira possível.

Protágoras entende a justiça como aquilo que é útil à pólis e o mais útil é a sua conservação, sem a qual não pode existir o cidadão. Não se trata, portanto, de pensar uma justiça absoluta e transcendente, mas uma justiça concernente ao âmbito de uma realidade fenomênica, que se apresenta e se constitui na pólis. Essa realidade com a qual Protágoras se ocupa é a realidade política, que também é a região da doxa, da opinião, donde a importância da lógica, do argumento bem encandeado, ferramentas que os sofistas manejavam muito bem. A virtude política, que torna possível e boa a vida em comunidade, está vinculada à sua utilidade para a própria pólis.

No âmbito da política ou da jurisprudência, a justiça seria alcançada não pelo conhecimento absoluto almejado pela filosofia, mas por uma convergência momentânea de pontos de vista contraditórios. A política, estando mais circunscrita ao âmbito da persuasão que ao da busca da verdade, encontra na retórica seu instrumento. Com a arte da retórica, os sofistas ensinavam a tornar forte o argumento mais fraco, municiando seus discípulos para um torneio de argumentos e contra-argumentos, ensinando-os a crítica e a persuasão.

Com a sua doutrina do homem-medida, Pânton chremáton metron estin ánthropos (“O homem é a medida de todas as coisas”), Protágoras introduz o humanismo no pensamento grego: não são mais o cosmos ou os deuses que estabelecem as leis e os limites, mas o próprio homem.

A interpretação dessa famosa sentença de Protágoras requer alguma cautela. Ao apresentá-la no diálogo Teeteto, Platão a reduz a um relativismo gnosiológico (“o que é para mim é para mim, o que é para ti é para ti.”) e o homem-medida acaba sendo apresentado como o indivíduo, embora não se possa depreender do próprio Protágoras que ele deva ser tomado em outro sentido que não o mais genérico. Segundo alguns especialistas, a particularização do conceito homem no referido diálogo teria sido exposta no interesse das hipóteses metafísicas e teológicas que Platão queria demonstrar.

Essa ressalva é importante porque tê-la em mente possibilita mitigar ou moderar o relativismo de Protágoras, ressaltando os seus aspectos positivos e a importância política e pedagógica dessa valorização do homem. Na política, importa a doxa, a opinião dos cidadãos na medida em que formam consensualmente decisões úteis para a comunidade. O que Protágoras se propõe a ensinar como sendo uma espécie de techné política é a capacidade de conhecer o que é bom – ou seja, o que é útil para a pólis – e de persuadir os cidadãos fazendo com que aquilo que é bom também pareça bom e justo para todos.

Protágoras desenvolve uma pedagogia em consonância com o seu relativismo. O seu ensino focaliza as virtudes necessárias ao bem comum. A realidade que ele busca conhecer e ensinar não é a realidade metafísica do ser, mas a realidade humana, criada pelo homem e transformada por ele. Essa transformação se faz pela educação, ou melhor, por uma paideia, uma formação integral que envolve mente e corpo. A transformação social que assegura a manutenção e o progresso da pólis passa pela formação dos indivíduos segundo o ideal do cidadão.

Essa formação deve ser universal. Os sofistas têm o mérito de iniciar a transição de uma educação privada, limitada à nobreza, para uma educação generalizada, aberta a todos os cidadãos. Com eles, a antiga paidéia aristocrática aproxima-se da moderna educação urbana. Embora o ideal de formação aristocrática baseada na areté guerreira e heroica seja substituído pela areté política, esse novo ideal de formação é extremamente abrangente, implicando um conjunto de exigências física e espirituais.

O posterior conflito pedagógico de Platão com Protágoras se dará em dois níveis. O primeiro é político: Platão tinha uma concepção aristocrática de ensino, enquanto Protágoras tinha uma concepção democrática[9]; o segundo é teórico-filosófico: a sabedoria que sustenta o projeto platônico é de base ontológica, enquanto a sabedoria que sustenta o projeto de Protágoras e dos sofistas em geral é empírica e pragmática. Para quem sente frio, conseguir um agasalho é mais importante do que inquirir sobre a essência do calor e do frio. Há problemas inerentes à vida comum que precisam ser abordados com um tipo de sabedoria prática.

A sofística faz parte de uma tradição tanto de valorização quanto de dessacralização do logos: “O logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento da alma e da cidade[10]”. O sábio sofista é uma espécie de médico: assim como o médico se vale de um medicamento para melhorar o corpo de um homem doente, o sofista se vale das palavras para cuidar um mau estado da alma dos cidadãos. Por meio de discursos eloquentes, o sofista consegue trocar opiniões más e nocivas por opiniões benéficas e úteis, melhorando assim a própria pólis.

Note-se que não se trata de substituir a doxa por uma episteme, como pretenderá Platão. O que se almeja não é substituir a opinião pela verdade, mas uma opinião perniciosa por outra opinião mais sadia. Assim como a recuperação da saúde do corpo pode se dar por métodos radicais (incisões, ablações, cauterizações) ou métodos menos traumáticos (dietas, medicamentos), também a recuperação ou a manutenção da saúde do corpo social pode se dar por métodos violentos (repressões, insurreições, revoluções) ou por métodos lentos e graduais (por meio da persuasão discursiva). A educação sofística transforma a alma do aluno para melhor através do logos e essa transformação se mostra útil, vantajosa e benéfica para a pólis porque predispõe os ouvintes ao acordo necessário para a vida em comunidade.

A política é uma questão de logos. É a controvérsia que possibilita o triunfo da opinião mais vantajosa, que emerge como consenso momentâneo do choque de uma pluralidade de ideias e de opiniões dissonantes. O logos se confunde com a arte política e a polis se constitui na retórica. O que o homem-medida de Protágoras proclama é que a medida do homem está na palavra, e que a vida política encontra nela seu fundamento:

“Polis, logos, sofística: o caráter eminentemente político da sofística é, antes de tudo, uma questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Péricles e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega – que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porque falam, a mesma que Jacob Burckhardt chamará de “o sistema mais tagarela de todos” – teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.”[11]

(continua…)

[1] REALE, História da Filosofia V. I São Paulo: Paulus Editora; 2017. p.79

[2] REALE, p.79

[3] REALE, p.79-80

[4] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, p.104

[5] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego, p. 343

[6] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego p.342

[7] Ibid. p.351

[8] Ibid.p.374

[9] “O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a virtude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente “melhores”, sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, enfim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que democracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística – no final das contas, espantosamente moderna – de desunir ética e política, assegurando, simultaneamente, a democracia.” (CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. São Paulo: Ed. 34, 2005 p.69)

[10] CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66

[11] CASSIN, Bárbara. CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66