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“Allahu Akbar ”: o grito macabro que amedronta o mundo

“Em _____, um grupo de ____homens fortemente armados e vestidos de preto entrou em um _____ em _______ e matou _____ pessoas. Os atacantes foram filmados gritando “Allahu akbar!”. Em entrevista coletiva à imprensa, o presidente _____ disse: “Condenamos esse ato criminoso de extremistas e sua tentativa de justificar seus atos violentos em nome de uma religião pacífica não terá êxito. Condenamos igualmente aqueles que queiram usar essa atrocidade como pretexto para crimes de ódio islamofóbicos”.

É assim que começa o livro Herege: Por que o Islã precisa de uma reforma imediata, da ex-muçulmana, ex-ateia e agora cristã, Ayaan Hirsi Ali. A lacuna no nome do lugar, no número de assassinos e no de vítimas deve-se à grande quantidade de casos semelhantes. O leitor pode preencher as lacunas com o caso mais recente do noticiário.

Após relembrar alguns atentados, a autora escreve que há mais de treze anos vem defendendo um argumento simples em resposta a atos terroristas como estes: “Afirmo que é tolice insistir, como fazem habitualmente nossos líderes, que os atos violentos dos islamitas radicais podem ser dissociados dos ideais religiosos que os inspiram. Temos de reconhecer que eles são movidos por uma ideologia política, uma ideologia com raízes no próprio islã, no livro santo do Alcorão e na vida e ensinamentos do profeta Maomé descritos no hadith.”

A ex-muçulmana diz, com todas as letras, aquilo que os progressistas ocidentais e seus líderes insistem em negar: “Deixo claro o meu ponto de vista nos termos mais simples possíveis: o islamismo não é uma religião pacífica.”

Na contramão das susceptibilidades multiculturalistas que se melindram com esse tipo de argumento “insensível”, Hirsi Ali expõe em seu livro “a ideia de que a violência islâmica não tem raízes em condições sociais, econômicas ou políticas — e nem mesmo em erro teológico —, e sim nos textos fundamentais do próprio islamismo.” Por defender isso, ela foi silenciada, execrada e humilhada não só por muçulmanos, mas também por alguns militantes progressistas e apologistas ocidentais do Islã.

Por inúmeras razões, parte do Ocidente está mais preparado para ser subjugado pelo Islã e padecer sob a espada de Maomé do que para aceitar essa afirmação. Prova disso é que as declarações de Hirsi Ali suscitaram críticas tão veementes que parecia ter sido ela a autora de atos de violência: “pois hoje parece ser crime falar a verdade sobre o islã”, explica Ali. “´Discurso de ódio´é o termo moderno para heresia. E no clima atual, qualquer coisa que faça os muçulmanos se sentirem incomodados é rotulada de ódio.”

Não cabe aqui nesse contexto fazer uma resenha do referido livro, o qual indico como uma leitura atual e importante. Apenas citei a sua tese inicial à guisa de introdução para comentar o último atentado que ocorreu em Paris, em 02 de dezembro, nas proximidades da torre Eiffel.

Um homem de 26 anos matou com uma faca um jovem turista germano-filipino e depois atacou mais duas pessoas com um martelo. Assim como os terroristas do Hamas ao metralharem os jovens da festa rave em Israel e assim como tantos outros terroristas, o assassino Armand Rajabpour-Miyandoab gritou Allahu Akbar antes de esfaquear sua vítima. 

Mas o nome verdadeiro do assassino não é Armand. Um documento, apresentado como extrato do diário oficial de 22 de março de 2002, contendo o decreto de naturalização de membros da família do agressor, circulou amplamente no X (antigo Twitter). Neste documento, o homem é referido como Iman Rajabpour-Miyandoab. Uma fonte policial confirmou à imprensa que o primeiro nome do terrorista foi mudado em 2003, quando ele tinha seis anos.

Iman ou Armand, é filho de iranianos, converteu-se ao Islã na juventude e já planejou um ataque terrorista em 2016, pelo qual foi condenado a cinco anos de prisão. O agressor francês de origem iraniana estava ligado a vários terroristas, incluindo os assassinos de Samuel Paty (um professor morto em 16 de outubro de 2020 perto do colégio Conflans-Sainte) e de Jacques Hamel (padre que teve a garganta cortada no dia 26 de julho de 2016, ao final de uma missa diante de três freiras e um casal de paroquianos). 

Armand também manteve contacto com um jihadista francês que partiu para a Síria e era antigo membro do grupo Forsane Alizza, célula terrorista dissolvida em 2012, que defendia a jihad armada e queria “estabelecer um califado” na França.

Nesse último atentado insere-se também o contexto da guerra Israel-Hamas. Segundo o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, além de gritar “Allahu akbar”, o assassino disse à polícia não tolerar mortes de muçulmanos em Gaza.

Uma reportagem do jornal Le Figaro fez um levantamento: o turista alemão morto em Paris é a 274ª vítima de um ataque islâmico, desde 2012 na França, período no qual ocorreram 26 ataques islâmicos fatais, oito deles após 2020. 

Eis a lista macabra: 


2012: 3 ataques fatais (7 mortos)
2015: 6 ataques fatais (150 mortos)
2016: 3 ataques fatais (89 mortos)
2017: 2 ataques fatais (3 mortes)
2018: 3 ataques fatais (10 mortos)
2019: 1 ataque fatal (4 mortos)
2020: 4 ataques fatais (7 mortes)
2021: 1 ataque fatal (1 morte)
2022: 1 ataque fatal (1 morte)
2023: 2 ataques fatais (2 mortes)

A mídia francesa vem, compreensivelmente, dando grande repercussão ao ocorrido. O diretor de redação do jornal Le figaro, Vincent Trémolent de Villers, escreveuem editorial de 03 de dezembro: 

“A França é um país onde existe o risco de morrer por uma facada a qualquer hora, a qualquer hora, em qualquer lugar. […] A frouxidão migratória, a desintegração cultural, a delinquência sistêmica, o jihadismo atmosférico e a fraqueza judicial estão interligados. Nesta França, o carrasco lamenta-se como vítima e a vítima, dano colateral do grande projeto multicultural, é rapidamente esquecida. Quem se lembra das jovens cujas gargantas foram cortadas há seis anos na estação Saint Charles? Ou do homem assassinado por um refugiado sudanês enquanto abria a janela em total confinamento?” 

A preocupação, porém, do coordenador do partido de extrema esquerda, La France insoumise, Manuel Bompard, não é evitar novos atentados terroristas islâmicos, mas evitar que se dê uma interpretação inadequada a eles: “Vejo claramente que, por exemplo, a questão da loucura deste indivíduo parece estar completamente retirada de questão e, no entanto, parece-me que este é um dos assuntos que terá de ser examinado após esta tragédia”, registrou o coordenador insoumise.

Para Bompard, o ataque com faca que custou a vida a um turista alemão em Paris foi apenas o ato de “uma pessoa claramente desequilibrada” para o qual não se pode “dar significado político geral.” 

Jean-Luc Mélenchon, líder do La France insoumise, também manteve suas considerações limitadas ao perfil psiquiátrico do assassino, sem mencionar as suas motivações terroristas. Tratar-se ia apenas de um homem com distúrbios psiquiátricos que interrompeu seu tratamento medicamentoso: “É hora de percebermos as consequências do colapso do sistema psiquiátrico! Cuidados, monitoramento e confinamento médico são urgentes para diminuir o dano deste tipo de pessoa”, acrescentou o três vezes candidato presidencial. 

Pouco antes do ataque o agressor, que consta na lista policial de radicalização islâmica, assumiu a responsabilidade pelo ataque evocando em um vídeo as notícias, o governo e o assassinato de muçulmanos inocentes. Na hora do assassinato ele gritou “Allahu Akbar”. Mesmo assim, uma vertente política tenta desconectar o crime da questão islâmica. 

Voltemos ao livro de Ayaan Hirsi Ali, escrito em 2015. Deixarei que ela, que conhece o islamismo muito melhor do que eu, conclua esse artigo:

“Já faz quase uma década e meia que temos políticas e pronunciamentos baseados na suposição de que o terrorismo e o extremismo podem e devem ser diferenciados do islã. Sempre na esteira de ataques terroristas em todo o mundo, líderes ocidentais apressam-se a declarar que o problema nada tem a ver com o islã propriamente dito. Porque o islamismo é uma religião pacífica. 

Mas e se essa premissa for totalmente errada? Porque não são apenas a Al-Qaeda e o EI que mostram a face violenta da fé e da prática islâmica. É também o Paquistão, onde qualquer declaração que critique o Profeta ou o islã é considerada blasfêmia e punível com a morte. É a Arábia Saudita, onde igrejas e sinagogas são proibidas, e onde a decapitação é uma forma legítima de punição, tanto assim que em agosto de 2014 houve quase uma decapitação por dia. É o Irã, onde o apedrejamento é uma punição aceitável, e os homossexuais são enforcados por seu “crime”. É Brunei, onde o sultão está reinstituindo a lei islâmica da sharia e a pena capital para a homossexualidade. […]

Atualmente ainda tentamos argumentar que a violência é obra de um punhado de extremistas lunáticos. Recorremos a metáforas médicas, tentando definir o fenômeno como algum tipo de corpo estranho no meio religioso em que ele se propaga. E fingimos acreditar que temos extremistas tão perversos quanto os jihadistas.”

Foto de Taylor Brandon na Unsplash

Israel, Hamas e o crepúsculo do Ocidente

Para mães palestinas que seguram seus filhos feridos não importa a razão de ser do ataque sofrido, para o pai que teve sua família dizimada por terroristas cruéis não importa o motivo do ataque, para os inúmeros reféns que se encontram subjugados e torturados não há barbaridade maior do que a que sofrem. Por qualquer ângulo que se olhe, o martírio de inocentes é injustificável e intolerável. O que deveria causar revolta e indignação é que se tente justificar a crueldade e a barbaridade por floreios retóricos que tomam por base uma argumentação histórica de um conflito milenar.

O mal, quando emerge sob o manto da reivindicação da justiça, é o mal dissimulado e insidioso, é o mal dos hipócritas e dos covardes. E há mal moral enraizado na mente dos que supostamente militam pela paz.

Os pacifistas que fecham os olhos para as atrocidades cometidas contra os seres humanos quando tais atrocidades ferem não aqueles cuja subjugação oferece a bandeira adequada para a sua militância doentia, mas aqueles que supostamente seriam os opressores que a sua ideologia resolveu demonizar são, na verdade, pessoas sem bussola moral, sem integridade e sem equilíbrio para lidar politicamente com uma situação tão delicada como a que o mundo agora vivencia após o atentado terrorista do Hamas.

Não basta clamar por um cessar fogo sem reconhecer que as reivindicações de Israel, como Estado atacado, são legítimas; não adianta apontar os civis mortos no ataque em Gaza sem esclarecer que tais civis são feitos de escudo pelos terroristas que se escondem nos túneis subterrâneos; não serve posar de bom-moço e pedir a paz mundial sem reconhecer que essa paz é reiteradamente ameaçada por déspotas como Vladimir Putin que hipocritamente se coloca no tabuleiro da guerra do Oriente Médio esperando a oportunidade de oferecer seu poderio bélico a todos aqueles que se alinhem à sua insânia expansionista e possam servir aos seus interesses.

Os jovens que se arvoram defensores da liberdade e da igualdade deveriam estar atentos e temerosos com a expansão autocrática contra as democracias liberais, mas, paradoxalmente, o que vemos são estudantes e professores universitários vociferando contra Israel em nome de uma abstração chamada “causa palestina”.

Qual é, afinal, a causa palestina? Quem está travando os tratados de paz senão os próprios fundamentalistas que minam todas as negociações possíveis e espalham o terror para evitar a concórdia? São os terroristas do Hamas que mantêm a população de Gaza subjugada e exposta para que o ódio recrudesça no coração de todos.

Por que a ONU não se interessou em condenar o feroz ataque perpetrado pelos terroristas antes de clamar pela paz? Por que a Assembleia Geral da ONU aprovou um projeto de resolução que pede uma pausa segundo o critério dos Estados árabes alinhados ao que há de mais retrógrado em termos de Direitos Humanos, desconsiderando a decisão coletiva das sociedades livres para as quais Israel tem o direito, senão o dever, de combater e eliminar o grupo terrorista que o atacou? O que faz com que uma instituição como a ONU, que deveria ser um ponto de dissuasão de conflitos, se torne um reprodutor de discursos hipócritas e demagógicos que não aponta com clareza o mal e que foge à responsabilidade de combatê-lo? São respostas difíceis porque talvez a ONU seja apenas o reflexo institucional de um cenário global de ambiguidade moral, de falta de critérios, de perda de prumo e de relativismo doentio.  

O secularismo, tão aclamado por progressistas e materialistas, parece ter levado ao seu oposto: a submissão ao que há de mais radical e primitivo em termos de religião. Por que o Islã não pode se curvar à política liberal do Ocidente, mas a política liberal do Ocidente precisa se curvar ao Islã? Por que o fanatismo de um povo que clama pelo extermínio dos judeus está sendo tolerado e incorporado pela cultura livre que o acolhe? O que significa a place de la République tomada por muçulmanos e simpatizantes gritando “Allah Akbar” após uma carnificina contra os judeus senão o atestado de submissão daquela que foi outrora a pátria dos Direitos do Homem e do Cidadão?

O problema é mais filosófico do que político. O iluminismo, o materialismo, o secularismo, na sua ânsia de renegar o cristianismo e seu legado moral acabou abrindo espaço para outra religião, não compatível com as leis e os costumes ocidentais. O esforço do Ocidente para trocar o cristianismo pelo ateísmo de Estado e virar as costas para sua tradição e para sua história religiosa fragilizou-o sobremaneira.

O niilismo decorrente da falta de raízes permitiu a proliferação de teorias absurdas e aberrantes tidas hoje como respeitáveis e as universidades dissolveram-se no caos do imoralismo que busca antes transgredir do que formar. Sob o nome pomposo de “decolonização”, professores militantes conseguiram fomentar um desprezo pelo que chamam de “eurocentrismo”, que nada mais é que a referência judaico-cristã da história. Movidos por ressentimento e vitimismo, exigem uma retratação em nome de uma suposta marginalização e costumam desprezar os clássicos por se acharem portadores de uma grande verdade atual. Com tudo isso, fizeram da Filosofia uma mera excrescência ideológica na qual se pavoneiam com floreios linguísticos.

Por pouco estudo que se tenha, por pouco que se conheçam os fatos, por simplória que seja a mente de um indivíduo é gritante a iniquidade que há em se justificar atrocidades em nome de uma causa política. O uso da violência no seu aspecto mais bestial não pode ser tolerado e muito menos aclamado. Os intelectuais da extrema esquerda que tratam Israel como “Estado terrorista” e o acusam de genocídio enquanto silenciam sobre a causa original da guerra em curso são ideólogos que falseiam a história.

Nesse crepúsculo do Ocidente haveremos ainda de encontrar vozes lúcidas que renegarão a perfídia. Essas vozes serão muitas vezes silenciadas e perseguidas. Mas elas ressoarão no fundo das consciências momentaneamente obnubiladas pela histeria de um mundo sem rumo e sem fé.

Israel x Hamas: direito de defesa com proteção aos civis

Há uma meta a ser cumprida na guerra Israel-Hamas: a eliminação do grupo terrorista que que invadiu Israel, exterminou e sequestrou civis. Ceder agora é ser passivo diante da monstruosidade perpetrada, é condescender com a barbárie.  

O direito de resposta de Israel à ignomínia à qual seu povo foi exposto é inegável. Não há corrente do Direito Internacional que não reconheça a legitimidade da resposta, uma vez que as fronteiras do país atacado de forma vil e selvagem estão expostas aos terroristas, que não respeitam leis ou tratados.

O direito de defesa pressupõe, no entanto, o respeito às normas internacionais que regem as relações entre os povos. Os civis devem ser protegidos tanto quanto os combatentes do Hamas devem ser alcançados. A estratégia para isso deve ser a entrada em Gaza por terra, uma vez que o bombardeio aéreo indiscriminado daria vitória a Israel, mas à custa de muitas vidas inocentes.

A invasão por terra não será fácil; haverá muitas baixas israelenses. Ou seja, Israel exporá a vida dos seus filhos para resguardar a vida de civis palestinos. Como isso pode ser moralmente equivalente às atrocidades perpetradas pelo Hamas?

Não se trata aqui de guerra comum, onde duas nações se enfrentam por questões econômicas e geopolíticas, mas de conflito no qual há um abismo entre a bestialidade de um ataque terrorista deliberado, com grau de crueldade inimaginável, e a resposta de guerra a ele.

Ambos os eventos são traumáticos, ambos levam ao luto e ao sofrimento, mas um responde à agressão iníqua e está respaldado pelo direito e pelas leis, outro rege uma orquestra demoníaca de vozes enfurecidas que berram contra o fim de Israel e o extermínio dos judeus.

Uma vez nos calamos e demoramos a retaliar. Uma vez esperamos para ver até onde o mal poderia ir. A resposta veio como a máquina infernal da SS, com seus fanáticos enfileirados; a resposta veio com os campos de concentração; a resposta foi a morte de milhões de inocentes. Milhões de judeus.

Não nos cabe agora repreender Israel pelos seus erros no antigo problema com os palestinos. Não cabe porque esse é um problema diplomático, que só poderá ser resolvido se houver diplomacia, algo impossível em um Estado islâmico, uma teocracia na qual o pensamento mundial deve se curvar a Allah e aos seus fiéis.

O mundo ocidental está brincando com o risco da sua própria aniquilação. A impressão que dá é que luta nas ruas, universidades e redes sociais para ser subjugado por um poder despótico e cruel.

O movimento político-ideológico que sustenta o Hamas tem ramificações enormes, por isso a mídia ainda não se colocou formalmente ao lado de Israel, banindo de seus quadros aquele que manifeste inclinações antissemitas e favoráveis aos terroristas. Mas é imperioso que emissoras e redações condenem formal e explicitamente um discurso cujo resultado já vimos no passado.

O holocausto foi possível porque a máquina de propaganda nazista foi eficaz, porque a aquilo que há de pior na espécie humana foi catalisado por líderes através do imenso poder da propaganda.

Os que hoje silenciam frente ao horror do atentado contra os israelenses, silenciariam na terrível noite dos cristais; os que hoje comemoram o que consideram uma façanha do Hamas, comemorariam os expurgos de Hitler. A desumanidade quando vista e não condenada abre espaço para desumanidades maiores e cada vez mais aberrantes.

Não há que se negar a boa fé e o senso de justiça dos que verdadeiramente almejam a paz entre os dois povos, mas há que se considerar que, uma vez que o mal tomou o caminho deliberado de negá-la, o bem não pode silenciar e esconder-se. Trata-se de uma resposta humana, dentro da humana falibilidade.

O mundo não é o paraíso celeste de espíritos redimidos. O mundo é o que é: um lugar de lutas e aprendizados, expiações e provas, dores e resgates. É neste quadro que devemos nos mover. E quando a guerra começa é preciso saber para que lado ir. O meu lado é o da civilização.

Foto: Mahmud Hams/AFP

Ideologia e Terror: Israel sob Ataque

Não há justificativa moral ou política para um ato de crueldade; não há teoria que tenha legitimidade quando tenta se impor pela violência e pelo mal.

É preciso que cada cidadão reflita a propósito de sua visão de mundo e de suas convicções, que se questione se aquilo que defende é digno ou iníquo; é preciso que a consciência de cada um esteja desperta para que a brutalidade, a insânia, a perversidade que atravessa o mundo nessa hora sintomática não ponham a perder os esforços daqueles que querem efetivamente alcançar a paz e a fraternidade entre os homens.

O apoio a uma causa política não pode ser motivo de morticínio e a adesão a determinado programa ideológico não se coaduna com a tentativa de aniquilação de um povo. Não é razoável, sob nenhuma ótica dentro dos preceitos éticos fundamentais, que se apoie barbaridades como a execução sumária de civis inocentes, o sequestro de mulheres, crianças e idosos e toda a selvageria que caracteriza os atos dos fundamentalistas islâmicos.

Esses extremistas, porém, encontram nos hipócritas e nos covardes o eco necessário para as suas incursões demoníacas e perversas.

Todos aqueles que, tendo um papel social a cumprir, optam por corroborar com o mal, emprestando sua fama, seu poder ou sua influência a causas desgraçadas como a do terrorismo respondem, de algum modo, por esses crimes.

Não se trata de favorecer uma ou outra narrativa, mas de rechaçar uma delas em absoluto: aquela que relativiza a vida humana, que bestializa o homem, que atenta contra a dignidade e que fere a sensibilidade de quantos ainda não estão embotados pela ideologia nefasta que professam de maneira inconsequente.

O mal moral existe, está bem visível e requer condenação. Não se pode relativizá-lo.

Isso não equivale a aderir ao governo atual de Israel ou negar valor à luta palestina, equivale a resguardar a consciência moral, que não transige com o terror.

O ser humano livre é aquele capaz de pensar e sentir. Se você não sentiu dor e indignação diante dos relatos do horror perpetrado contra os civis inocentes em Israel, uma parte da sua alma adoeceu. E você está procurando a cura no lugar errado.

Autoridade e autoritarismo, segundo Hannah Arendt

A autoridade, explica Hannah Arendt, é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Isso se dá porque ela sempre exige obediência. Contudo, “a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou.[1]” A autoridade se contrapõe não apenas à coerção pela força, mas também à persuasão através de argumentos: “onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso[2]”. É na hierarquia, cuja legitimidade é reconhecida tanto por aquele que manda quanto por aquele que obedece, que a autoridade se assenta.

No ensaio O que é autoridade?, Arendt delimita o conceito em questão a fim de possibilitar a sua contraposição à estrutura de governo totalitária, que se erigiu também como uma resposta à crise da autoridade. Longe de confundir autoritarismo com autoridade legítima ou governos autoritários com regimes totalitários, suas reflexões acerca do tema têm por objetivo depurar os conceitos a fim de que as análises alcancem o fenômeno do totalitarismo na sua peculiaridade e distinção. Na sua interpretação, o desenvolvimento de formas totalitárias de governo relaciona-se, em algum grau, com “o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais[3]”.

A crise de autoridade a que ela se refere não se limita à perda de prestígio do governo ou do sistema de partidos, mas de algo anterior, que se espalha “em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural[4].” Além disso, essa perda da autoridade não pode ser analisada como fenômeno isolado, uma vez que se trata apenas da “fase final, embora decisiva, de um processo que, durante séculos, solapou basicamente a religião e a tradição[5].”

Essa crise maior, não apenas da autoridade, mas da religião, da tradição e da própria razão, tornou-se patente na contemporaneidade, principalmente através das críticas de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, pensadores que “desafiaram os pressupostos básicos da religião tradicional, do pensamento político tradicional e da metafísica tradicional invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.[6]” Responsabilizar, porém, os pensadores rebeldes do século XIX pelas catástrofes do século XX seria “ainda mais perigoso que injusto[7]”, pois “as implicações manifestas no evento concreto da dominação totalitária vão muito além das mais radicais e ousadas ideias de quaisquer desses pensadores[8]”. É preciso, ao contrário, reconhecer-lhes a grandeza por “terem percebido o seu mundo como um mundo invadido por problemas e perplexidades novas com as quais nossa tradição de pensamento era incapaz de lidar[9]”.

Kierkegaard, Marx e Nietzsche, segundo Hannah Arendt, “situam-se no fim da tradição, exatamente antes de sobrevir a ruptura”.[10] Eles radicalizaram a abordagem ao passado pelo fio da continuidade histórica, questionando a tradicional hierarquia conceitual que dominara a filosofia ocidental desde Platão e que Hegel dera por assegurada, sendo “para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse[11]”, mas não podem, por isso, responder pela brutal quebra que houve em nossa história: “esta brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia cristalizaram em uma nova forma de poder e de dominação[12]”.

Tendo por pano de fundo a sua crítica à noção linear de História típica da modernidade, Arendt aponta certas fragilidades nos argumentos de liberais e conservadores quando estes abordam a dicotomia autoridade versus liberdade. Liberalismo e conservadorismo seriam, segundo ela, “a expressão política da consciência histórica do derradeiro estágio da época moderna”[13] e procederiam “sob a implícita suposição de que as distinções não são importantes”. O uso que ambas as vertentes fazem dos conceitos de história, progresso e decadência responderiam pela incapacidade de distinguir, atestando seu pertencimento a uma época na qual tais conceitos “começaram a perder sua clareza e plausibilidade por terem perdido seu significado na realidade público-política sem perderem inteiramente sua importância”.[14] Liberalismo e conservadorismo teriam mostrado, em conjunto, que estivemos diante de um retrocesso simultâneo tanto da liberdade quanto da autoridade, mas, por se manterem dentro das categorias de uma filosofia da história, foram insuficientes na interpretação do fenômeno totalitário, o qual analisaram não na sua essência e originalidade, como evento qualitativamente distinto, mas sim como mera medida de distanciamento daquilo que traziam como expectativa:

“O liberalismo mede um processo de refluxo da liberdade, enquanto o conservadorismo mede um processo de refluxo da autoridade; ambos denominam de totalitarismo o resultado final esperado e veem tendências totalitárias onde quer que um ou outro esteja presente[15].”

A crítica de Arendt, portanto, não se limita ao liberalismo e ao conservadorismo enquanto tais, mas à falta de sutileza das ciências sociais, políticas e históricas como um todo. O filósofo (no caso, a filósofa) vê diferenças de natureza onde o pesquisador comum enxerga apenas diferenças de grau. Por partir do pressuposto de que há uma constância do progresso na direção da liberdade organizada, as teorias liberais olham cada desvio desse rumo como um mero processo reacionário e perdem de vista as nuances de cada forma de governo, desconsiderando as diferenças entre elas:

“Isso faz com que passem por alto a diferença de princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total eliminação da espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários, por intermédio dos seus diversos métodos de condicionamento. O escritor liberal, preocupado antes com a história e o progresso da liberdade que com as formas de governo, vê aqui apenas diferenças de grau, e ignora que o governo autoritário empenhado na restrição à liberdade permanece ligado aos direitos civis que limita, na medida em que perderia sua própria essência se os abolisse inteiramente – isto é, transformar-se-ia em tirania[16].”

Aqui se torna patente a importância do rigor conceitual: autoritarismo não pode ser confundido com totalitarismo. Por trás da confusão liberal inclinada a ver tendência totalitária em toda limitação autoritária jaz, segundo Arendt, a “confusão mais antiga de autoridade com tirania e de poder legítimo com violência[17]”. É preciso, pois, salientar as distinções:

“A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. Seus atos são testados por um código que […] não foi feito pelos detentores efetivos do poder. A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior ao seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado[18].”

As distinções entre sistemas tirânicos, autoritários e totalitários propostas por Arendt são a-históricas e antifuncionais. Elas implicam que, no mundo moderno, a autoridade desapareceu tanto no mundo livre quanto nos chamados sistemas autoritários e que a liberdade “está sob ameaça em toda parte, mesmo nas sociedades livres, tendo sido, porém, abolida radicalmente apenas nos sistemas totalitários, e não nas tiranias e nas ditaduras[19]”.

A autoridade, explica Hannah Arendt, não se acha necessariamente presente em todos os organismos políticos. Tanto a palavra (auctoritas) quanto o conceito são de origem romana e não estiveram presentes nem na língua grega nem nas várias experiências políticas da história grega[20]. A experiência da pólis, como se sabe, era baseada no logos, na doxa, na consideração do mundo comum a partir de diversos pontos de vista: “Em um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, tais como apresentados aos cidadãos de Atenas pelos sofistas, o grego aprendeu a intercambiar seu próprio ponto de vista, sua própria opinião com os seus concidadãos[21]”.  O governo absoluto, por sua vez, era conhecido pelos cidadãos da pólis como tirania e uma das principais características do tirano era governar por meio da pura violência[22].

Não havia, portanto, na experiência política grega efetiva uma relação em que o elemento coercitivo repousasse na relação mesma e que implicasse simultaneamente obediência e liberdade. Foi isso que Platão e Aristóteles tentaram introduzir na vida pública da pólis e, para tanto, foram buscar exemplos das relações extraídas da administração doméstica e da vida familiar gregas[23]. Foi após a morte de Sócrates que Platão começou a descrer da democracia, passando a considerar a persuasão insuficiente para guiar os homens, buscando então algo que se prestasse a compeli-los sem o uso de meios externos de violência[24].

Para Arendt, o contexto no qual o pensamento grego se acerca mais estreitamente do conceito de autoridade é “na República, de Platão, onde ele confrontou a realidade da pólis com um utópico governo da razão na pessoa do rei-filósofo[25]”, cujo poder coercitivo repousaria não na pessoa do rei, mas nas ideias que são percebidas pelo filósofo[26]. A verdade do filósofo, porém, não possui a mesma validade na “esfera dos assuntos humanos que o filósofo tivera que abandonar para percebê-la[27]”. Há, pois, uma “dicotomia entre o ver a verdade em solidão e isolamento e o ser capturado nas conexões e relativismos dos negócios humanos[28]”.

A perda de vista dessa dicotomia esconde, muitas vezes, uma vontade de domínio que se disfarça sob um manto pedagógico. Foi sob esse manto que o pensamento político platônico influenciou boa parte da teoria política ocidental. Platão não apenas “pretendeu introduzir uma espécie de autoridade no manejo dos negócios públicos e na vida da pólis[29]” como também tentou fazer com que essa autoridade política adquirisse um caráter educacional, sobrepondo ao reino da política o modelo educacional por meio da autoridade.

Não foi, porém, na Grécia, que a palavra e o conceito de autoridade se estabeleceram, mas em Roma, assentando-se na tradição e na religião, perfazendo a tríade que se sustentava na experiência da fundação romana. Com o declínio do Império, a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Católica, que assumiu a tríade religião, autoridade e tradição. Uma vez que a Igreja adotara a distinção romana entre autoridade e poder, reivindicando para si a primeira,[30] a posterior separação entre Igreja e Estado teve por inconveniente implicar a perda, no âmbito político, do “elemento que, pelo menos na História ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e permanência[31]”.

O famoso declínio do ocidente ou a crise do mundo atual é interpretado por Hannah Arendt como “declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político[32]”. As revoluções da época moderna seriam, por seu turno, “gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza[33]”.

Com exceção da Revolução Americana, todas as revoluções, desde a francesa, malograram em seus objetivos, tendo terminado em restauração ou tirania. Isso indica, segundo Arendt, que a autoridade – tal como se desenvolveu na experiência romana e foi compreendida à luz da filosofia política grega – não se reestabeleceu em lugar nenhum e que precisamos lidar com o fato de que vivemos hoje em uma esfera política sem autoridade, confrontados com os problemas elementares da convivência humana “sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, auto evidentes[34]”.

Notas

[1] ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. p.129

[2] Idem. p.129

[3] Idem. p.128

[4] Idem. p.128

[5] Idem. p.130

[6] Idem. p.53

[7] Idem. p.54

[8] Idem. p.54

[9] Idem. p.54

[10] Idem. p. 55

[11] Idem. p.56

[12] Idem. p.53

[13] Idem. p.139

[14] Idem. p.139

[15] Idem. p.137

[16] Idem p.133-134

[17] Idem p.134

[18] Idem p.134

[19] Idem p.142

[20] Idem p.142

[21] Idem. p.82

[22] Idem. p. 143

[23] Idem. p. 143

[24] Idem. p. 147

[25] Idem. p. 145

[26] Idem. p. 149

[27] Idem. p.155

[28] Idem. p.156

[29] Idem. p.159

[30] Idem. p.169

[31] Idem. p. 170

[32] Idem. p. 185

[33] Idem. p. 185

[34] Idem. p. 187

A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte II)

Para ler a parte I, clique aqui.

Os sofistas, a política e o humanismo de Protágoras

O problema do caráter natural ou convencional daquilo que é considerado justo ou injusto é abordado pela maioria dos sofistas, embora a resposta dada a essa questão não seja sempre a mesma. É quase lugar comum a afirmação de que os sofistas teriam contraposto a lei à natureza, mas apenas Hípias e Antifonte estabeleceram explicitamente essa contraposição[1].

Hípias desvaloriza a lei na medida em que esta se afasta da natureza. Para ele, a natureza une os homens, ao passo que a lei frequentemente os divide. Dessa distinção entre lei natural e lei posta pelos homens, ele tira conclusões importantes que apontam para um ideal cosmopolita e igualitário que será desenvolvido posteriormente no período helenista. Hípias mostra, por exemplo, que as leis discriminatórias que separam os cidadãos de uma cidade e outra ou que dividem os cidadãos dentro de uma mesma cidade não fazem sentido se tomarmos por base a natureza, que iguala todos. Fundamentando-se também na distinção entre natureza e lei, Antifonte radicaliza ainda mais tais concepções, afirmando que gregos e bárbaros são por natureza absolutamente iguais e rejeitando, por conseguinte, discriminações baseadas nas origens[2]:

“O “iluminismo” sofístico dissolveu aqui não só os velhos preconceitos de casta da aristocracia e o tradicional fechamento da pólis, mas também o mais radical preconceito comum a todos os gregos acerca da própria superioridade em relação aos outros povos: todo cidadão de qualquer cidade é igual ao da outra e todo homem de qualquer classe é igual ao da outra, porque por natureza todos os homens são iguais entre si.”[3]

Philippe Nemo destaca como característica geral entre os sofistas a consciência de que o nomos “deve ser libertado do jugo da tradição e da sacralidade; que ele pode ser alterado pelos homens, seja criando-o arbitrariamente, seja, ao contrário, modificando-o para aproximá-lo de um padrão ideal[4]”. Werner Jaeger, por sua vez, destaca como aspecto comum a todos os sofistas “o fato de serem mestres da areté política e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la[5]”. Enquanto uns, como Górgias, ensinavam apenas a retórica, outros, como Protágoras, iam além de uma educação meramente formal do entendimento e estimulavam o desenvolvimento da totalidade das forças espirituais: “a poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes dessa terceira forma de educação sofística[6]”.

A educação universal almejada por Protágoras é uma educação política, uma vez que, nesses tempos clássicos, a ideia de uma paideia, de uma alta formação é inseparável da ideia de Estado e sociedade[7]. Essa educação para o Estado significa, para Protágoras, educação para a justiça[8].

Vimos que no séc. V Atenas entrava em sua era de ouro, sob a liderança de Péricles, atraindo de toda a Grécia os que se destacavam por serem conhecedores e bons intérpretes das leis. Dentre estes estava Protágoras que, em 444.a.C, já havia sido encarregado por Péricles de redigir a legislação de uma das colônias gregas.

Reconhecido e admirado não apenas por Péricles, mas também por ilustres filósofos da época, Protágoras se ocupa principalmente com aquilo que torna possível a sociedade política e a sua conservação, além de buscar ensinar o decoro e a justiça, virtudes necessárias para que a pólis possa existir da melhor maneira possível.

Protágoras entende a justiça como aquilo que é útil à pólis e o mais útil é a sua conservação, sem a qual não pode existir o cidadão. Não se trata, portanto, de pensar uma justiça absoluta e transcendente, mas uma justiça concernente ao âmbito de uma realidade fenomênica, que se apresenta e se constitui na pólis. Essa realidade com a qual Protágoras se ocupa é a realidade política, que também é a região da doxa, da opinião, donde a importância da lógica, do argumento bem encandeado, ferramentas que os sofistas manejavam muito bem. A virtude política, que torna possível e boa a vida em comunidade, está vinculada à sua utilidade para a própria pólis.

No âmbito da política ou da jurisprudência, a justiça seria alcançada não pelo conhecimento absoluto almejado pela filosofia, mas por uma convergência momentânea de pontos de vista contraditórios. A política, estando mais circunscrita ao âmbito da persuasão que ao da busca da verdade, encontra na retórica seu instrumento. Com a arte da retórica, os sofistas ensinavam a tornar forte o argumento mais fraco, municiando seus discípulos para um torneio de argumentos e contra-argumentos, ensinando-os a crítica e a persuasão.

Com a sua doutrina do homem-medida, Pânton chremáton metron estin ánthropos (“O homem é a medida de todas as coisas”), Protágoras introduz o humanismo no pensamento grego: não são mais o cosmos ou os deuses que estabelecem as leis e os limites, mas o próprio homem.

A interpretação dessa famosa sentença de Protágoras requer alguma cautela. Ao apresentá-la no diálogo Teeteto, Platão a reduz a um relativismo gnosiológico (“o que é para mim é para mim, o que é para ti é para ti.”) e o homem-medida acaba sendo apresentado como o indivíduo, embora não se possa depreender do próprio Protágoras que ele deva ser tomado em outro sentido que não o mais genérico. Segundo alguns especialistas, a particularização do conceito homem no referido diálogo teria sido exposta no interesse das hipóteses metafísicas e teológicas que Platão queria demonstrar.

Essa ressalva é importante porque tê-la em mente possibilita mitigar ou moderar o relativismo de Protágoras, ressaltando os seus aspectos positivos e a importância política e pedagógica dessa valorização do homem. Na política, importa a doxa, a opinião dos cidadãos na medida em que formam consensualmente decisões úteis para a comunidade. O que Protágoras se propõe a ensinar como sendo uma espécie de techné política é a capacidade de conhecer o que é bom – ou seja, o que é útil para a pólis – e de persuadir os cidadãos fazendo com que aquilo que é bom também pareça bom e justo para todos.

Protágoras desenvolve uma pedagogia em consonância com o seu relativismo. O seu ensino focaliza as virtudes necessárias ao bem comum. A realidade que ele busca conhecer e ensinar não é a realidade metafísica do ser, mas a realidade humana, criada pelo homem e transformada por ele. Essa transformação se faz pela educação, ou melhor, por uma paideia, uma formação integral que envolve mente e corpo. A transformação social que assegura a manutenção e o progresso da pólis passa pela formação dos indivíduos segundo o ideal do cidadão.

Essa formação deve ser universal. Os sofistas têm o mérito de iniciar a transição de uma educação privada, limitada à nobreza, para uma educação generalizada, aberta a todos os cidadãos. Com eles, a antiga paidéia aristocrática aproxima-se da moderna educação urbana. Embora o ideal de formação aristocrática baseada na areté guerreira e heroica seja substituído pela areté política, esse novo ideal de formação é extremamente abrangente, implicando um conjunto de exigências física e espirituais.

O posterior conflito pedagógico de Platão com Protágoras se dará em dois níveis. O primeiro é político: Platão tinha uma concepção aristocrática de ensino, enquanto Protágoras tinha uma concepção democrática[9]; o segundo é teórico-filosófico: a sabedoria que sustenta o projeto platônico é de base ontológica, enquanto a sabedoria que sustenta o projeto de Protágoras e dos sofistas em geral é empírica e pragmática. Para quem sente frio, conseguir um agasalho é mais importante do que inquirir sobre a essência do calor e do frio. Há problemas inerentes à vida comum que precisam ser abordados com um tipo de sabedoria prática.

A sofística faz parte de uma tradição tanto de valorização quanto de dessacralização do logos: “O logos dos sofistas não é um organon, um instrumento necessário para mostrar ou demonstrar o que é, mas um pharmakon, um remédio para o melhoramento da alma e da cidade[10]”. O sábio sofista é uma espécie de médico: assim como o médico se vale de um medicamento para melhorar o corpo de um homem doente, o sofista se vale das palavras para cuidar um mau estado da alma dos cidadãos. Por meio de discursos eloquentes, o sofista consegue trocar opiniões más e nocivas por opiniões benéficas e úteis, melhorando assim a própria pólis.

Note-se que não se trata de substituir a doxa por uma episteme, como pretenderá Platão. O que se almeja não é substituir a opinião pela verdade, mas uma opinião perniciosa por outra opinião mais sadia. Assim como a recuperação da saúde do corpo pode se dar por métodos radicais (incisões, ablações, cauterizações) ou métodos menos traumáticos (dietas, medicamentos), também a recuperação ou a manutenção da saúde do corpo social pode se dar por métodos violentos (repressões, insurreições, revoluções) ou por métodos lentos e graduais (por meio da persuasão discursiva). A educação sofística transforma a alma do aluno para melhor através do logos e essa transformação se mostra útil, vantajosa e benéfica para a pólis porque predispõe os ouvintes ao acordo necessário para a vida em comunidade.

A política é uma questão de logos. É a controvérsia que possibilita o triunfo da opinião mais vantajosa, que emerge como consenso momentâneo do choque de uma pluralidade de ideias e de opiniões dissonantes. O logos se confunde com a arte política e a polis se constitui na retórica. O que o homem-medida de Protágoras proclama é que a medida do homem está na palavra, e que a vida política encontra nela seu fundamento:

“Polis, logos, sofística: o caráter eminentemente político da sofística é, antes de tudo, uma questão de logos, termo em que o grego liga, como se sabe, na maneira de relacionar as coisas entre si, o fato de pensar e o de falar. Os sofistas certamente não teriam existido sem essa cidade por excelência que é a Atenas de Péricles e a multidão reunida em que são recrutados seus ricos alunos. Mas tampouco a cidade grega – que Aristóteles continuará a definir como composta de animais mais políticos do que outros simplesmente porque falam, a mesma que Jacob Burckhardt chamará de “o sistema mais tagarela de todos” – teria existido, no melhor ou no pior dos casos, sem esses estrangeiros ruidosos.”[11]

(continua…)

[1] REALE, História da Filosofia V. I São Paulo: Paulus Editora; 2017. p.79

[2] REALE, p.79

[3] REALE, p.79-80

[4] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, p.104

[5] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego, p. 343

[6] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego p.342

[7] Ibid. p.351

[8] Ibid.p.374

[9] “O paradoxo inerente ao ensino de Protágoras, bem como a seu mito, aparece então muito claramente: todos na cidade ensinam a virtude, como todos ensinam a falar grego, e todos conhecem tudo isso; no entanto, há alunos mais dotados do que outros e professores que, como Protágoras, cobram por isso. Todos, sem exceção, participam do político assim como falam: o mito de Protágoras é simplesmente o mito fundador da democracia. Mas alguns são diferencialmente “melhores”, sendo reconhecidos como tal e devendo ser escutados: é, enfim, um mito fundador da aristocracia. Donde se constata que democracia e aristocracia são ligadas pela pedagogia, pela paideia. Mas o fato de escolher ser um mestre pago ao invés de um filósofo-rei que subjuga talvez seja a maneira propriamente sofística – no final das contas, espantosamente moderna – de desunir ética e política, assegurando, simultaneamente, a democracia.” (CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. São Paulo: Ed. 34, 2005 p.69)

[10] CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66

[11] CASSIN, Bárbara. CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico: sofística, filosofia, retórica, literatura. p.66

A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte I)

Atenas é a última das grandes cidades gregas a aparecer na história, portanto, o Estado jurídico ático pressupõe um longo processo de evolução que esboçaremos sucintamente aqui, ressaltando os pontos mais relevantes para a tradição democrática, liberal e humanista que pretendemos expor e defender.

Justiça, lei e ordem

Embora A República de Platão e a Política de Aristóteles sejam comumente referidas como as primeiras grandes obras a teorizarem a política, é preciso considerar que a própria cidade grega clássica (a pólis, de onde provém o termo política) antecede esses escritos, que são, na verdade, reflexões tardias acerca da singular formação política grega, cujo processo se desenvolveu entre o fim da idade média grega até a época de Sócrates e dos sofistas.

Não se trata apenas de um desenvolvimento político, mas do desenvolvimento cultural e do refinamento espiritual grego, que tem no surgimento da polis e da política uma de suas etapas e de suas culminâncias. Esse processo de evolução confunde-se com a consolidação da justiça (díke) como o mais alto ideal a ser buscado, como a areté (virtude) por excelência.

Na obra Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, Philippe Nemo divide didaticamente esse processo da formação política grega em três etapas: a primeira seria a legitimação das noções de justiça (themis, dikè) e ordem social (eunomia) por meio do aparecimento e da valorização de tais noções nas obras de Homero e Hesíodo; a segunda seria a tomada de consciência de que a justiça só pode ser garantida por intermédio de uma lei (nomos) igual para todos (isonomia) que deve ser escrita, e a terceira etapa seria a conscientização de que a própria lei pode ser tirânica e que, por isso, deve poder ser criticada, passando a possibilidade dessa crítica pela distinção entre natureza (physis) e convenção (nomos)[1].

A nova moral grega começa a se delinear na obra de Homero: “embora Homero ainda sustente o ideal de destreza guerreira como a mais alta medida de valor da personalidade humana, na Odisseia já se percebe uma elevada estima pelas virtudes espirituais[2]”. Nessa obra, já existe, por exemplo, a noção de que os julgamentos proferidos podem ser corrompidos, donde a importância de um senso de justiça, virtude atribuída ao personagem Ulysses.

Embora houvesse, na Grécia arcaica, uma administração da justiça, não havia leis públicas fixas, muito menos escritas. Esse antigo estado de coisas está descrito da obra de Homero, como bem nos explica Werner Jaegar na sua obra Paideia: a formação do homem grego, no capítulo intitulado “O estado jurídico e seu ideal de cidadão”. Enquanto themis é a justiça decretada por um Deus ou por um rei, díke é um veredito que se opõe à hybris (aquilo que é desregrado ou perverso):

“É com outro termo que se designa, em geral, o direito: thémis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e thémis. Thémis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei.” Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio saber. O conceito de díke não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto thémis.”[3]

No período da pólis, posterior aos tempos homéricos, esse significado técnico da díke será alargado, relacionando-se mais ao elemento normativo que se encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas:

“Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hýbris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao direito. Enquanto thémis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade, e à sua validade, díke significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra díke se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como thémis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à díke tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.”[4]

Jaeger destaca ainda que, na acepção mais ampla, a palavra díke trazia consigo, na sua origem, o sentido de igualdade, e que foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de díke, que se consolidou a medida justa para a atribuição do direito, dando início a uma evolução política que, por extensão sucessiva da ideia de igualdade, levaria à instauração da democracia:

“Esse matiz de igualdade na palavra díke mantém-se no pensamento grego através de todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado jurídico democrático, opunha-se abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos homens.”[5]    

A democracia enquanto governo do povo ou das massas não deriva necessariamente da exigência da igualdade de direitos e de leis escritas, mas o Estado de direito sim. O que hoje chamamos de Estado democrático de direito ou democracia liberal tem início, no Ocidente, com uma consciência jurídica na qual os ideais de liberdade e igualdade mesclam-se de um modo quase indiscernível. Essa vontade de justiça que está na origem da nossa formação cultural e política desenvolve-se na vida comunitária da pólis e “converte-se numa nova força formadora do homem, análoga ao ideal cavaleiresco do valor guerreiro nos primeiros estágios da cultura aristocrática[6]”. Esse novo ideal humano da pólis antiga é aceito pela filosofia do século IV a.C., sendo a antiga cidade-estado, segundo Jaeger, o primeiro estágio na caminhada do ideal humanista e a raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles.

Se a obra de Homero tergiversa entre uma moral arcaica e uma moral pré-cívica, a obra de Hesíodo surpreende – do ponto de vista da contraposição à moral aristocrática da Grécia arcaica e guerreira – ao expor, em Os trabalhos e os dias, uma grande valoração do trabalho, da paz e da justiça.

A justiça e o trabalho se complementam: Zeus, que condenou o homem ao trabalho, concedeu-lhe também a justiça para que trabalhe em paz[7], sendo o próprio trabalho indutor da justiça. Hesíodo afirma, na referida obra, que existem duas formas de luta: uma negativa, destrutiva, praticada pelos aristocratas, e outra positiva, que direciona a mesma força vital para o trabalho, sendo o motor de uma competição sadia e de uma concorrência fecunda; o trabalho, a produção e a emulação que a impulsionam seriam uma espécie de remédio para as querelas civis e as guerras[8]. A mensagem que brilha, portanto, nos versos de Hesíodo é a de que o reino do direito deve suplantar o reino da força e que a sociedade não deve se apoiar sobre a violência e a hýbris. Por mais que prevaleça o direito do mais forte, o ideal de um Estado de Direito se delineia:

“Vimos que foi a ideia do direito que deu ao ansioso pensamento do homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos de violentas alterações da ordem social econômica, motivadas pelas tentativas de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro a apelar para a divina proteção da Díke, na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade contra a maldição da hýbris e designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus.”[9]    

O período que vai do reaparecimento da escrita até o estabelecimento da democracia em Atenas, sob Clístenes, convencionalmente chamado de Arcaico (750 – 500 a.C.), marca a consolidação da pólis e daquilo que muitas vezes foi chamado “milagre grego.” Essa evolução de Atenas começa, de certa forma, com o arconte Drácon. Isso porque, embora tenha editado leis severas (“draconianas”), tais leis foram supostamente estabelecidas no intuito de reestabelecer a ordem e pôr fim a um conflito social, refreando a vingança após um massacre relacionado a um golpe de Estado de Cilón. Para Jaeger, porém, as proverbiais leis draconianas significaram “mais uma consolidação das relações recebidas que um rompimento com a tradição[10]”. De todo modo, importa notar que essas leis foram escritas, tendo sido decidido que elas seriam aplicadas a todos indistintamente, o que representa um primeiro passo em direção ao ideal de isonomia.

Sólon, por sua vez, vai além de Drácon ao empreender uma codificação escrita das leis e abala o status vigente ao defender que nem a origem social nem as relações hereditárias definem os direitos. Embora os direitos ainda estejam relacionados à riqueza, a mudança não deixa de ser um progresso considerável.

Sólon foi um dos chamados “sete sábios” pela tradição. Esses sábios contribuíram vivamente para a organização da pólis e para a difusão de um pensamento laico e racional. Esses legisladores e pensadores políticos foram contemporâneos dos primeiros filósofos gregos, os chamados filósofos da physis. O próprio Thales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, foi também um desses sete sábios. Trata-se, portanto, de um momento singular de efervescência cultural e espiritual no qual se buscou apreender tanto as leis do universo quanto as leis sociais. A própria ideia de lei é a marca desse momento. O mundo não é caos, é cosmos, ou seja, ele é perpassado por uma racionalidade que o ordena, por uma lei que não é simplesmente a imposição de uma potência sagrada antropomórfica, mas é uma justiça racional:

“Sólon concebe claramente a ideia de uma legalidade intrínseca da vida social. Convém recordar que na Jônia Tales e Anaximandro, filósofos da natureza milesianos, ensaiavam por essa época as primeiras passadas na ousada senda do conhecimento de uma lei estável do devir eterno da natureza. Aqui como lá, trata-se do mesmo impulso para uma concepção intuitiva de uma ordem imanente no curso da natureza e da vida humana e, portanto, de um sentido e de uma norma interna da realidade.”[11]

Com as novas condições da vida social na polis, forma-se o cidadão como um novo tipo de homem, moldado a partir de uma moral mais refinada na qual o autodomínio, a moderação, a temperança, em uma palavra, a sophrosine passa a ser buscada como uma das principais virtudes. O ideal da justa medida se sobressai e, com ele, a evidência da necessidade da lei. A justiça (dikè) espelha uma lei comum superior que garante o acordo e harmonia entre as partes.

Sólon tem um papel fundamental na defesa desse novo ideal, aproximando dikè sophrosyne e apresentando a obediência à lei como a atitude mais compatível com os seres racionais que somos. Já se pode falar aqui de uma ideia fundamental para o pensamento político ocidental, de um modo geral, e para o liberalismo, de modo particular: o aparecimento da lei como forma de estabelecer harmonia entre os homens não por imposição arbitrária, mas como forma legítima e consensualmente aceita de garantir a segurança e a prosperidade dos cidadãos. Aqui cabe a apresentação de uma interessante anedota destacada por Plutarco:

“Um amigo de Sólon […] vendo-o redigir as leis gargalhou e objetou que simples textos não podem nada contra as injustiças e a ambição dos cidadãos. ‘Esses textos são como teias de aranha: retêm os fracos e os pequenos que ficam presos nela, mas sob os pés dos ricos e poderosos elas se rompem’. Sólon respondeu a isso dizendo: os homens mantêm os contratos que nenhuma das duas partes têm interesse em violar e eu, de minha parte, adapto as leis aos cidadãos de modo a lhes fazer ver que é melhor praticar a justiça do que a ilegalidade”.[12]

Sólon pautou sua atuação político-legislativa pela crença na força transcendente da justiçaEmbora as ideias relacionadas ao direito e à lei que ele propagava e defendia já prevalecessem na vida pública da Jônia, o entusiasmo poético com o qual ele as difundiu moldou para as gerações vindouras um novo tipo de homem, um novo ideal a ser buscado:

“Também Sólon fundamenta sua crença política na força de Díke, cuja imagem descreve com visível coloração hesiódica. […]Sólon não redescobriu as ideias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo: limitou-se a desenvolvê-las. Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível na ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a hýbris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm, cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.”[13]

A ideia de lei traz consigo o ideal de igualdade, que se desenvolve progressivamente com Sólon, Clístenes e Péricles. Em Sólon a defesa da igualdade guarda o tom aristocrático: seu foco é igualdade diante da lei (isonomia) e não um igualitarismo radical (isomoiria). Ele sabe que a radical igualdade reclamada muitas vezes pelo povo só poderia ser obtida por meio de uma tirania, que transformaria os cidadãos em escravos. São as reformas políticas de Clístenes que democratizarão a igualdade para além da isonomia, ampliando a participação do demos nos processos decisórios da pólis, estabelecendo que todos os cidadãos poderiam participar igualmente das decisões e das nomeações políticas (seja por voto ou sorteio aleatório):

Com Clístenes, a pólis acaba se tornando um universo homogêneo, sem status hierárquicos, onde todos os cidadãos sucedem-se regularmente nos lugares de comando e obediência e pensam em si mesmos definitivamente como iguais em dignidade, juízes igualmente competentes de uma verdade racional e de uma lei que não expressa a vontade ou o privilégio de ninguém, mas são uma realidade objetiva que se impõe a todos[14].

Na época da Guerra do Peloponeso, Péricles retomará aspectos da democracia reformada por Clístenes e a luta contra o partido oligárquico, minoria que se apresentava como kaloi kagotoi (bela e boa) e que se contrapunha ao povo[15]. A fim de fortalecer o poder do demos, Péricles aprimora procedimentos políticos, criando, por exemplo, o misthós, retribuição pecuniária paga aos cidadãos atenienses mais pobres que exercessem funções públicas: é o esboço do nosso moderno aparelho de Estado[16].

Mesmo entre pensadores de pendor mais aristocrático, a noção de lei acaba ganhando aderência. Mas, junto à aceitação e defesa da lei, advém também alguns questionamentos: a lei tem caráter absoluto ou relativo? Ela está sempre em consonância com a justiça ou a justiça a transcende? O primeiro grande historiador grego, Heródoto, tendo desenvolvido suas pesquisas por muito tempo através de diversos países, verificou que os costumes e as leis que regem uma sociedade não têm a mesma fixidez e imutabilidade das leis naturais. Está posta, portanto, em Heródoto, a distinção entre physis e nomos que atingirá seu apogeu na segunda metade do século V com Protágoras e outros sofistas:

“Estava surgindo uma nova geração que começava a perceber que o nomos poderia ser uma tirania, uma série de costumes e convenções impostas aos homens que pode nem sempre querer conformar-se a ela. Após um “olhar circular” em todos os países conhecidos, pode-se preferir os costumes dos outros e ter dúvidas sobre a validade dos seus próprios costumes. O espírito crítico, mesmo revolucionário, é despertado por esta consciência decisiva, amplificada pelos sofistas.”[17]

(continua…)

[1] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. Paris : Quadrige/PUF, 1998. p.38

[2] ROCHAMONTE. C. Introdução à Filosofia política: democracia e liberalismo. São Paulo: Edições 70, 2022. p.21

[3] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p.134

[4] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.135

[5] Ibid. p.135

[6] Ibid. p.138

[7] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. p.51

[8] Ibid. p. 50-51

[9] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178

[10] Ibid. p.175

[11] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.180

[12] PLUTARCO. Vida de Sólon. Apud NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. P. 79

[13] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178

[14] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.84

[15] Idem.p.92

[16] Segundo Aristóteles (Constituição de Atenas), o Estado ateniense sob Péricles acabou apoiando com fundos públicos mais de 20.000 funcionários.

[17] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.103

Rousseau: vontade geral e democracia totalitária

Jean-Jacques Rousseau é um escritor de bela e eloquente retórica, de estilo cativante e ideias instigantes; como filósofo, porém, é controverso, contraditório, politicamente com ideias ora vistas como de direita (anti-intelectualismo, culto da natureza e da força, ódio ao progresso, etc.) ora de esquerda (igualitarismo, economia dirigida pelo Estado, racionalidade construtivista, etc.), sendo ora apropriado pela tradição democrática e liberal, ora apontado como adversário dessa mesma tradição. Nesse artigo pretendemos mostrar, sob o respaldo do texto de Philippe Nemo em sua Histoire des idées politiques aux temps moderne et contemporains, que ele é realmente um adversário dessa tradição democrática, liberal e pluralista que defendemos e que a interpretação que melhor lhe convém é a que o coloca como precursor do jacobinismo, da mentalidade antiliberal, como um expoente da literatura utópico-revolucionária e antidemocrática.

Em textos anteriores, temos insistido na relação da tradição liberal com a própria Paidéia grega e seu momento de formação do estado jurídico ateniense, lendo assim uma espécie de direcionamento humanista da história ocidental que sofreu, não obstante, inúmeros desvios e ataques que fizeram com que o dinamismo da sociedade aberta recrudescesse sob a inspiração de ideias autoritárias e/ou totalitárias que germinaram em momentos terríveis da nossa história.

Pois bem, em um texto conhecido como Prosopopéia de Fabricius, que faz parte do seu Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau reprova nos romanos o terem sucumbido aos encantos da Paidéia grega. Entre Esparta, protótipo de Estado forte, totalitário, belicoso e disciplinar e Atenas, berço da nossa civilização, protótipo do Estado constitucional e das democracias liberais, Rousseau escolhe o primeiro, em consonância com a apologia da força daqueles que “sabem fazer” em detrimento daqueles que só “sabem dizer”.

O referido discurso consiste da resposta elaborada por Rousseau à seguinte questão proposta em concurso pela Academia de Dijon: “O reestabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?” Rousseau responde negativamente e ainda afirma que, ao contrário, as artes e as ciências (que aqui simbolizam o progresso) corromperam os costumes. A civilização seria, pois, prejudicial, causa de ruína da felicidade primitiva dos homens. O homem saído das mãos da natureza, o bon sauvage, seria superior ao homem civilizado. “Escolhendo a natureza contra a civilização, explica Philippe Nemo, Rousseau tomou partido pelo cinismo; escolhendo Esparta contra Atenas, ele tomou partido por aquilo que Karl Popper chama ‘sociedade fechada[1].’”

Alguns anos depois, Rousseau acha por bem responder a uma nova questão posta pela Academia de Dijon, dessa vez acerca da origem da desigualdade entre os homens e se ela é autorizada pela lei natural. A resposta será o seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, no qual expõe as hipóteses de que no estado de natureza não havia desigualdades, as quais se estabelecem somente a partir do momento em que o homem, tornando-se social, adota a propriedade. Rousseau explica ainda que essa desigualdade se retroalimenta até criar as sociedades hierarquizadas, concluindo então que tal situação é manifestamente contrária à lei natural.

Ao buscar o homem puro, natural, Rousseau encontra nele dois traços essenciais: o amor de si (amour de soi) e a piedade (pitié), que podem ser entendidos como a preocupação com a autoconservação e a repugnância em ver um semelhante sofrer. Não obstante o fato de reconhecer a piedade como um sentimento natural, Rousseau não reconhece no homem natural a inclinação à sociabilidade. Assim como Maquiavel e Hobbes, e em contradição com o pensamento tradicional de Aristóteles ou dos estoicos a esse respeito, o filósofo genebrino interpreta o ser humano como não tendo capacidade nem vontade de formar laços sociais baseados em um sentimento inato de justiça.

Nota-se, pois, que a antropologia rousseauniana, apesar da formulação do bom sauvage, contém aspectos pessimistas, dentre os quais a paradoxal compreensão da liberdade ou da perfectibilidade humana como falibilidade[2], uma vez que ela estaria fundada sobre as paixões e não sobre a razão, sendo ela motivo de grandes infortúnios para a espécie humana.

O homem natural imaginado por Rousseau é algo próximo a um animal. Ele tem necessidade (besoin) e não desejos (désir); ele nem se presta à depravação de pensar: “Quase ouso garantir que o estado de reflexão é um estado não natural e que o homem que medita é um animal depravado.[3] Desprovido de desejos, ele pode viver em paz e em estabilidade, o que torna difícil a explicação da motivação da passagem do estado de natureza para a sociedade civil, que Rousseau empreenderá, porém, com críticas à teoria de Hobbes.

Para Rousseau, a luta de todos contra todos de que fala Hobbes não se deve à luta pela subsistência, mas à luta pela proeminência, paixão que não existiria no estado de natureza, mas teria sido criada pela sociedade. No estado de natureza mesmo, os homens não conheceriam a guerra. Se, para Hobbes, não havia, no estado de natureza, nem justo nem injusto, para Rousseau não havia ali nenhum tipo de relação moral: nem vício nem virtude. O bom selvagem é como a besta loura pensada por Nietzsche em A genealogia da moral – é um ser amoral que pode expressar uma força bruta, mas o expressa com inocência[4].

Não havendo nenhuma lógica imanente ao seu pensamento (como era o caso da “guerra de todos contra todos” postulada por Hobbes) que justificasse a saída do homem do estado de natureza, Rousseau começa a conjecturar ou inventar eventos que teriam conduzido a essa passagem. Sua primeira conjectura tornou-se antológica e expressa com bastante força sua opinião negativa em relação à propriedade privada:

“O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer ‘isto é meu’ e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem a esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém[5]’“.

A partir daí, a teoria do primeiro contrato social de Rousseau, aquele que estaria na origem da sociedade civil, é concebida como uma astúcia, como um artifício imaginado pelos ricos e realizado para sua própria vantagem; um contrato que apresenta as leis como sendo iguais para todos quando, em realidade, só aproveitaria aos poderosos e aos ambiciosos:

“Todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade […] Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o género humano ao trabalho, à servidão e à miséria[6]”.

Pouco importa se se trata de monarquia, aristocracia ou democracia. Para Rousseau, todos esses regimes tradicionalmente apresentados pela ciência política não passam de variantes do mesmo contrato social que favorece os poderosos[7]. É aí que se explicita a inclinação revolucionária do pensamento de Rousseau: é necessário mudar esse estado social através de um novo contrato (nouveau contrat), dessa vez legítimo porque fundado na Vontade Geral.

No artigo Économie politique (1755) que escreveu para a Enciclopédia de Diderot, Rousseau apresenta-nos algumas funções do Estado, dentre as quais destaca-se a educação doutrinária e a direção da economia. Para “fazer reinar a virtude” que, para Rousseau, é a conformidade das vontades particulares à Vontade Geral, a educação deve ser retirada dos pais[8]. A obediência atual dos cidadãos ao Estado não seria suficiente; far-se-ia necessário preparar a obediência futura por meio de uma educação na qual as crianças devem ser constantemente sugestionadas a desprezarem seu próprio eu e a se submeterem ao todo, habituando-se a só enxergarem o indivíduo através das suas relações com o Estado, percebendo sua própria existência como parte dele[9]. Rousseau também advoga para o Estado a direção política da economia. Tendo o dever de cuidar da subsistência dos cidadãos, o Estado deve dirigir a economia no sentido de criar uma igualdade de condições.

É na obra Do contrato social (1762) que encontraremos o quadro constitucional que operacionaliza esse Estado revolucionário[10]. Nesse livro, Rousseau expõe uma teoria de Estado na direção de uma democracia totalitária de pendor coletivista, onde é acentuado o poder coercitivo do Estado sobre os indivíduos, legitimado por esse filósofo enquanto expressão daquilo que chamou de a “Vontade Geral.”

É na explicação cheia de aporias desse conceito que o texto de Rousseau, normalmente fluido, se faz mais áspero. A Vontade Geral, explica Rousseau, não é necessariamente a vontade de todos. A vontade de todos é apenas a soma das vontades particulares, enquanto a vontade geral olha para o bem comum. A vontade geral do povo não é, pois, a vontade coletivamente expressa nas assembleias populares, mas a soma das diferenças das vontades que se autodestroem[11].

O paradoxo sustentado por Rousseau é o de que, ao me forçar a obedecer ao interesse geral, eu me forço a ser livre. Isso se daria porque a minha vontade particular é baseada nas minhas paixões e estas me cegam, fazendo com que eu pense que quero algo além do que quer o Estado. Ao descobrir, porém, a Vontade Geral, eu a reconheço como minha verdadeira vontade, dando, a partir de então, meu assentimento a tudo o que o Estado quer.[12] Mesmo que a vontade geral esteja bastante distante da minha vontade inicial, ela está sempre certa e tende sempre para a utilidade pública. Philippe Nemo nos chama atenção ainda para a incompatibilidade do pensamento de Rousseau com o pluralismo próprio da tradição democrática-liberal:

“Rousseau é fundamentalmente um inimigo de disputas e sutilezas, fruto da civilização. As pessoas que se adaptam aos seus desejos são os bravos camponeses suíços que querem coisas simples e são unânimes em decidir as raras mudanças necessárias em suas leis. Eles nem são sutis o suficiente, diz Rousseau ternamente, para ser enganado. Com eles, é fácil determinar a vontade geral. Rousseau assim confirma sua condenação do pluralismo”[13].

Do exposto conclui-se, como foi dito de início, o caráter antiliberal e antidemocrático de Jean Jacques Rousseau. A noção de vontade geral é incompatível com a ideia de democracia formulada no contexto da Grécia antiga, no qual as mais diversas ideias eram consideradas e debatidas na Ágora por homens livres e intelectualmente maduros. A compreensão de que a verdade, a justiça ou o que é melhor para o bem comum sejam algo muito mais complexo e heterogêneo do que o resultado da unanimidade homogênea de caracteres simplórios cuja vontade se anula perante o Estado é um ponto crucial das democracias liberais, cuja delicadeza, grandeza e fragilidade consiste justamente na sustentação dinâmica do tênue equilíbrio das razões e vontades individuais que não se anulam, mas colaboram e cooperam para uma sociedade saudável e capaz de progredir.

Além disso, segundo Philippe Nemo, há no pensamento de Rousseau uma espécie de “soteriologia milenarista laica[14]”, que se expressa no anelo por um retorno ao paraíso perdido do bom selvagem. Seu pensamento aureola-se assim, segundo o autor, do caráter cripto-religioso e fanático próprio das ideologias de esquerda. De resto, cumpre notar que o pensamento de Rousseau se inclina para outro aspecto bastante característico das sociedades fechadas: a “perfeita identidade entre coesão política e coesão religiosa”, identidade essa que foi abalada quando “os judeus inventaram um monoteísmo estrito que era incompatível com a existência das religiões nacionais[15]”; abalo esse que foi agravado em seguida pelo Cristianismo. Ou seja, a divisão entre um poder espiritual com vocação universal e um poder temporal como vocação nacional, fragilizou, segundo Rousseau, a unidade do Estado, sendo necessário pôr fim a tal separação por meio de uma “profissão de fé puramente civil” que enunciará os sentimentos de sociabilidade do bom cidadão. A despeito da auréola do novo dogma da religião civil, ela seria sancionada pelo braço secular do Estado, tal qual, alguns anos depois, Robespierre tentou fazer para impor à base de guilhotina o culto da deusa razão.

[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains: Quadrige/PUF, 2002, Paris. p.806

[2] Idem p.809

[3] “J’ose presque assurer que l’état de réflexion est un état contre nature, et que
l’homme qui médite est un animal dépravé” (ROUSSEAU, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes).

[4] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.812

[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes

[6] Idem.

[7] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.817

[8] “On doit d’autant moins abandonner aux lumièçes et aux préjugés des pères l’éducation de leurs enfants, qu’elle importe à l’Etat encore plus qu’aux pères; car selon le cours de la nature, la mort du père lui dérobe souvent les derniers fruits de cette éducation, mais la patrie en sent tôt ou tard les effets.” (ROUSSEAU. L´article Economie Politique de L´Encyclopedie”)

[9] Idem. p.818

[10] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.819

[11] « Il y a souvent de la difference entre la volonté de tous et la volonté générale ; celle-ci ne regarde qu’à l’intérêt commun, l’autre regarde à l’intérêt privé, et ce n’est qu’une somme de volontés particulières: mais ôtez de ces mêmes volontés les plus et les moins qui s’entre-détruisent, reste pour somme des différences la volonté générale» (ROUSSEAU, Le contrat social – 1762)

[12] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains. p.830

[13] Idem. p.833

[14] Idem. p.817

[15] Idem p.839

“Liberalismo e democracia” de Norberto Bobbio

Apesar da existência atual de regimes denominados democracias liberais, o problema da relação entre liberalismo e democracia, explica Norberto Bobbio, é muito complexo. Tais termos se referem às “duas exigências fundamentais das quais nasceram os Estados contemporâneos nos países econômica e socialmente mais desenvolvidos: a exigência, de um lado, de limitar o poder e, de outro, de distribuí-lo[1]”.

Enquanto o liberalismo é uma “concepção na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado social”, a democracia é uma forma de governo na qual o poder “não está nas mãos de um só ou de poucos, mas da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia[2].”

O pressuposto do liberalismo, o que fundamenta a sua exigência de limitação do poder do Estado, é a doutrina dos direitos do homem, elaborada pela escola do direito natural (jusnaturalismo)[3], segundo a qual existem leis naturais que independem da vontade humana e que precedem à formação do grupo social. Essa doutrina está na base das Declarações dos Direitos proclamadas tanto na Revolução Americana (1776) quanto na Revolução Francesa (1789). O Estado de direito, corolário do liberalismo, busca regular os poderes públicos com base na constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, “a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, verdadeiros direitos positivos.[4]

O utilitarismo de Jeremy Bentham, no entanto, pôs o liberalismo sobre um fundamento diferente. Ao invés de fundar a restrição do poder público sobre a existência de direitos naturais, como o fizera a secular tradição do jusnaturalismo, o “princípio de utilidade” de Bentham estabelece que os limites do poder dos governantes derivam “da consideração objetiva de que os homens desejam o prazer e rejeitam a dor e que a melhor sociedade é aquela que consegue obter o máximo de felicidade para o maior número de seus componentes.[5]” Segundo Bobbio, “essa passagem do jusnaturalismo para o utilitarismo assinala, para o pensamento liberal, uma verdadeira crise de fundamentos[6].” John Stuart Mill, que foi liberal e utilitarista, levou adiante essa perspectiva de Bentham.

Mill foi ao mesmo tempo liberal e democrata e considerava o governo representativo como o “desenvolvimento natural e consequente dos princípios liberais”. Um aspecto peculiar do seu pensamento democrático foi a defesa do voto plural, por meio do qual os mais instruídos teriam voto com um peso maior. Sua ideia era que o ensino universal deveria preceder o sufrágio universal, o que diminuiria os riscos de degradação da democracia pelo populismo.

É importante notar que, embora existam as democracias liberais, um Estado liberal não é necessariamente democrático nem um governo democrático implica necessariamente um estado liberal.[7] As democracias liberais são, na verdade, o resultado da combinação gradual dos ideias liberais com o método democrático. Essa combinação é salutar pois, segundo Bobbio, existem boas razões para crer que “o método democrático seja necessário para salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que estão na base do Estado liberal” e que “a salvaguarda desses direitos seja necessária para o correto funcionamento do método democrático[8].” Bobbio constata ainda que “hoje, apenas os Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os estados autoritários do mundo são, ao mesmo tempo, antiliberais e antidemocráticos[9]”.

Mas a democracia só pode ser considerada um complemento natural do estado liberal no seu aspecto político, que concerne ao sufrágio universal e às regras do jogo do poder. De fato, o sufrágio universal não é linha de princípio contrária ao liberalismo, mas sim complementar, uma vez que “os direitos políticos são um complemento natural dos direitos de liberdade e dos direitos civis[10]” e “o melhor remédio contra o abuso de poder de qualquer forma é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis.[11]” Com respeito, porém, “aos vários significados possíveis de igualdade, liberalismo e democracia estão destinados a não se encontrar.”[12]

O tipo ou o significado de democracia que está historicamente ligado à formação do estado liberal é a chamada democracia formal ou procedimental e não a democracia substancial, uma vez que aquela “põe maior evidência no conjunto das regras cuja observância é necessária para que o poder político seja efetivamente distribuído entre a maior parte dos cidadãos[13]” e esta põe ênfase no ideal de igualdade.

Ambos os significados de democracia, explica Norberto Bobbio, são historicamente legítimos, devendo-se salientar que, caso se opte por assumir a concepção substancial, que põe ênfase no ideal de igualdade, o problema das relações entre liberalismo e democracia torna-se muito complexo, pois, quando se estendem à esfera econômica, “liberdade e igualdade são valores antitéticos, no sentido de que não se pode realizar plenamente um sem limitar fortemente o outro.[14]” A incompatibilidade está também no fato de que:

“Libertarismo e igualitarismo fundam suas raízes em concepções do homem e da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista a liberal; totalizante, harmônica e monista a igualitária. Para o liberal, o fim principal é a expansão da personalidade individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da personalidade mais pobre e menos dotada; para o igualitário, o fim principal é o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade dos singulares.” [15]

Há, porém, um tipo de igualdade que, segundo Bobbio, é não apenas compatível com o liberalismo, mas por ele solicitada, “é a igualdade na liberdade: o que significa que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros.” Trata-se, na verdade, da fórmula clássica da liberdade sob o império da lei. O estado liberal, portanto, é o Estado de direito, ou seja, aquele no qual os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais), refletindo “a velha doutrina – associada aos clássicos e transmitida através das doutrinas políticas medievais – da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens[16].”

Se, do ponto de vista da limitação dos poderes, o Estado liberal é um Estado de direito, do ponto de vista de suas funções o Estado liberal se pretende um Estado mínimo, cabendo notar, porém, que “pode ocorrer um Estado de direito que não seja mínimo (por exemplo, o Estado social contemporâneo) e pode-se também conceber um Estado mínimo que não seja um estado de direito.[17]

De todo modo, na perspectiva liberal, o Estado é concebido como um mal necessário e, enquanto mal, deve se intrometer o menos possível na esfera de ação dos indivíduos, sendo os mecanismos constitucionais o obstáculo erguido contra o exercício arbitrário e ilegítimo do poder. Dentre esses mecanismos, Bobbio cita como mais importantes 1) o controle do poder executivo pelo poder legislativo (ou seja, do governo pelo parlamento); 2) eventual controle do parlamento no exercício do poder legislativo por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político[18].

O processo de formação do Estado liberal confunde-se ainda com a progressiva emancipação da sociedade civil em relação ao Estado e o progressivo alargamento da esfera de liberdade do indivíduo, principalmente na esfera religiosa e econômica. O que marca mais profundamente a concepção liberal do Estado é a contraposição às várias formas de paternalismo. Bobbio chama atenção para o fato de que, embora muitos foquem na crítica exclusivamente econômica…

“O primeiro liberalismo nasce com uma forte carga ética, com a crítica ao paternalismo, tendo a sua principal razão de ser na defesa da autonomia da pessoa humana. Sob este aspecto, Humboldt vincula-se a Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith, que de resto antes de ser um economista foi um moralista, a liberdade tem um valor moral.” [19]

Kant, na sua obra Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784), expressa a ideia de que o antagonismo é fecundo e induz ao progresso. A natural e contrastante variedade dos caracteres e das disposições, o antagonismo e a concorrência que essa heterogeneidade provoca, seria um meio utilizado pela natureza para realizar o desenvolvimento de todas as suas tendências. A intervenção do Estado para além das tarefas básicas que lhe são cabíveis sufoca esse florescimento social, dificultando o progresso técnico e moral da humanidade.

Embora liberais costumem enfatizar mais o valor do indivíduo do que os democratas, Bobbio explica que “ambos repousam sobre uma concepção individualista de sociedade[20]” no sentido de se contraporem a uma concepção organicista (holista) que “considera o Estado como um grande corpo composto por partes que concorrem para a vida do todo e, portanto, não atribui autonomia aos indivíduos uti singuli”. A diferença estaria, porém, no fato de que o interesse individual que o liberalismo se propõe a defender não é o mesmo daquele que é protegido pela democracia ou, dito de outra forma, as relações do indivíduo com a sociedade são vistas de modo distinto pelo liberalismo e pela democracia, sendo as principais diferenças as seguintes:

O liberalismo extrai o singular do corpo orgânico da sociedade e o faz viver nos perigos da luta pela sobrevivência, enquanto a democracia reúne o indivíduo aos seus semelhantes para que a sociedade seja recomposta não como um todo orgânico, mas como uma associação de indivíduos livres; o liberalismo reivindica a liberdade individual contra o Estado tanto na esfera espiritual quanto na esfera econômica e faz do singular o protagonista de toda a atividade que se desenrola fora do Estado, enquanto a democracia faz do singular o protagonista de uma forma diversa de Estado na qual as decisões coletivas são tomadas pelos cidadãos e seus representantes; o liberalismo evidencia a capacidade do indivíduo de se autoformar e vê nele um microcosmo ou uma totalidade completa em si mesma, enquanto a democracia reconcilia o indivíduo com a sociedade e exalta a sua capacidade de superar o isolamento; o liberalismo tem por efeito a redução ao mínimo do poder público, enquanto a democracia busca expedientes capazes de permitir a instituição de um poder comum não tirânico, reconstituindo assim o poder público como soma de poderes particulares[21].

Convém notar que, a despeito das diferenças, “a relação entre liberalismo e democracia nunca foi de antítese radical[22]”, mas a relação entre liberalismo e socialismo sim. O “pomo da discórdia” entre ambos, explica Bobbio, é a liberdade econômica, “que pressupõe a defesa ilimitada da propriedade privada[23]”, vista pelos socialistas como fonte principal da desigualdade entre homens, conforme apregoado por Rousseau.

A necessidade de se contrapor ao avanço do socialismo e seu programa de economia planificada e coletivização dos meios de produção fez com que a doutrina liberal se concentrasse cada vez mais na pauta econômica, em defesa da economia de mercado e da livre iniciativa. Esse fenômeno fez com que o liberalismo se identificasse cada vez mais como uma doutrina meramente econômica, o que costuma ser chamado de liberismo[24].

Por outro lado, foi justamente o aparecimento, no século XX, dos Estados totalitários, que possibilitou uma gradual convergência entre a tradição liberal e a democrática. Os regimes nem liberais nem democráticos tornaram histórica e politicamente irrelevantes as diferenças originárias, possibilitando a sedimentação da tradição democrática liberal.

Ciente dos contrastes entre liberalismo e democracia, Norberto Bobbio defende “soluções de compromisso” para o que julga um “contraste benéfico” entre duas concepções de liberdade: a dos liberais (a liberdade negativa, que exige de um Estado que governe o mínimo possível) e a dos democratas (a liberdade positiva, que almeja um estado no qual o governo esteja o máximo possível nas mãos dos cidadãos).

Se os liberais, pondera o filósofo, aceitarem a “democracia como método ou como conjunto das regras do jogo” e os democratas atentarem para o “estabelecimento permanente dos limites em que podem ser usadas aquelas regras”, liberalismo e democracia poderão passar “de irmãos inimigos a aliados[25].”

[1] BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 200 p.8

[2] P.8

[3] p.11

[4] p.18

[5] p.63

[6] p.64

[7] p.7

[8] p.43

[9] p. 44

[10]p.44

[11]p.45

[12] P.42

[13] P.37

[14] p.39

[15] P.39

[16] p.18

[17] P.17

[18] p.19

[19] p.27

[20] P.45

[21] P.47-48

[22] P.79

[23] P.80

[24] P.86

[25] P.97

Karl Popper: racionalismo crítico e democracia

Embora Karl Popper (1902-1994) tenha se notabilizado mais como filósofo da ciência do que como pensador político, a contundência das suas críticas contra os teóricos que considerou inimigos da sociedade aberta (dentre os quais Platão, Hegel e Marx), bem como sua defesa dos valores democráticos, liberais e humanitários, fazem dele um autor incontornável para os que defendem uma sociedade livre e plural.

Suas principais contribuições à teoria política encontram-se nas obras A sociedade aberta e seus inimigos e A miséria do historicismo, mas convém notar que sua percepção metodológica das ciências sociais relaciona-se com sua concepção geral de método científico, de modo que as referidas obras “não são um desvio do seu itinerário intelectual, porque é dos princípios de sua epistemologia que ele deduz os argumentos em favor da democracia liberal[1].” Sendo assim, pelo menos as teses principais do seu racionalismo crítico precisarão ser consideradas para uma compreensão adequada da sua visão política.

Para Popper, o conhecimento científico é hipotético e conjectural, ou seja, não se baseia na indução, mas na formulação de hipóteses que devem poder ser falsas para poderem ser tomadas momentaneamente por verdadeiras. Não se trata aqui de mero jogo de palavras, mas de uma sucinta apresentação do seu famoso critério de falsificabilidade, segundo o qual, das hipóteses aventadas como tentativas de soluções para determinados problemas, devem poder ser extraídas consequências passíveis de serem refutadas (falsificadas) pelos fatos; caso contrário, não se trataria de teoria científica.

A verdade é incerta e está em contínuo processo de descoberta ou apreensão; ela não se cristaliza em certezas ideológicas e dogmáticas. Se o critério científico de uma teoria depende da sua possibilidade de ser refutada, ou seja, da capacidade de se sustentar em meio a argumentos, observações e experiências contrárias, parece claro que esse critério só terá sentido em um contexto social no qual as teorias possam ser livremente criticadas. Não foi à toa, portanto, que a filosofia/a ciência surgiram na Grécia ao mesmo tempo que a democracia: “se os gregos inventaram simultaneamente a ciência e a democracia, não foi, para Popper, um acaso, mas o fruto de uma única e mesma evolução decisiva para o espírito, de uma mesma libertação em relação aos modos de pensamento mágico-arcaico e unanimistas das sociedades tribais anteriores[2]”.

Embora não seja o escopo deste artigo detalhar as sutilezas inerentes à sua epistemologia, é importante atentar para a concepção de racionalidade e verdade sobre a qual ela repousa. Para Popper, o acesso à verdade é essencialmente negativo e a razão humana é concebida como inapta a qualquer tipo de conhecimento absoluto e totalizante: “A abordagem do racionalismo crítico permite aceder a um corpus sempre mais vasto e profundo de conhecimento científico verdadeiro, porém acessível sob o modo de uma incerteza congênita[3]”. Nosso maior problema não são os limites da razão, mas, pelo contrário, seu uso dogmático. No âmbito social e político, Popper denunciará as formas de organização ligadas ao dogmatismo, ao mesmo tempo em que defenderá aquelas ligadas ao pluralismo e à liberdade.

A tese fundamental desenvolvida por Popper no ensaio “A miséria do historicismo” é, conforme suas próprias palavras: “a de que a crença no destino histórico é pura superstição e de que não há como prever, com os recursos do método científico ou de qualquer outro método racional, o caminho da história humana[4].” Para refutar o historicismo, Popper argumenta basicamente que “o curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento humano”, mas que “não é possível predizer, através de recurso a métodos racionais ou científicos, a expansão futura de nosso conhecimento científico[5]”, portanto “não é possível prever o futuro curso da história humana[6]”, o que significa que “não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico a servir de base para a predição histórica[7].” Sua argumentação refuta, portanto, a “possibilidade de predizer desenvolvimentos históricos na medida em que possam estes ver-se influenciados pela expansão do conhecimento humano[8].”

Seria um erro metodológico a pretensão de uma compreensão total, abrangente e definitiva das coisas, uma vez que as teorias só captam aspectos seletivos da realidade, além de serem infinitas em número e sempre passíveis de refutação. Contrária a essa constatação é a concepção denominada por Popper de holismo, segundo a qual “seria possível captar intelectualmente a totalidade de um objeto, de um acontecimento, de um grupo político ou de uma sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, ou melhor, político, transformar a sociedade[9].”

Historicismo e holismo seriam, pois, segundo Popper, suportes teóricos das ideologias totalitárias. Tanto a filosofia histórica do racismo ou do fascismo (à direita) quanto a filosofia histórica marxista (à esquerda) seriam versões modernas do historicismo denunciado por ele. Segundo Popper, cada um desses movimentos “retornam diretamente à filosofia de Hegel[10]” que, por sua vez, segue certos filósofos antigos. Se lembrarmos que Hegel, como expoente maior do idealismo alemão, representa a culminância de uma filosofia dogmática centrada na noção de absoluto e de racionalidade do real, compreenderemos melhor a relação entre epistemologia e política e como uma concepção mais prudente quanto às possibilidades da razão e mais cética quanto ao conhecimento humano vincula-se a uma perspectiva política mais liberal, sendo, portanto, um dos pressupostos teóricos necessários para a defesa das sociedades abertas.

Um dos aspectos mais controversos da abordagem de Popper é a vinculação de Platão ao totalitarismo feita a partir de uma exegese com viés mais sociológico e metodológico do que metafísico e centrada principalmente na obra A República. Embora advirta o leitor de A sociedade aberta e seus inimigos de que “não espere uma exposição de toda a filosofia platônica ou o que pode ser chamado um completo e justo tratamento do platonismo[11]”, não deixam de ser surpreendentes, para não dizer chocante, algumas de suas afirmações peremptórias como: “o programa político de Platão é puramente totalitário[12]” ou “minha tese de que suas exigências políticas (de Platão) são puramente totalitárias e anti-humanitárias precisa ser defendida[13].”

Além de vincular a filosofia platônica ao historicismo, Popper também classifica Platão como um dos criadores da teoria orgânica do estado[14]relacionando ainda o holismo de sua doutrina (do grego holos, todo. Ênfase sobre a unicidade e totalidade do Estado) à nostalgia do coletivismo tribal das sociedades fechadas[15]. Popper afirma que Platão, na República, “usou a palavra justo como sinônimo daquilo que é do interesse do estado melhor.[16]” Segundo sua interpretação, “a ele (Platão) só importa o coletivo como um todo e a justiça, para ele, nada mais é do que a saúde, unidade e estabilidade desse todo coletivo[17]”, o que o leva, por conseguinte, a afirmar que “a exigência platônica de justiça deixa seu programa no mesmo nível do totalitarismo.[18]

Ora, a noção de justiça que Popper pretende defender e que acusa Platão de ter desprezado ou mesmo odiado é a noção de isonomia, de igualdade diante da lei, que Popper também chama de teoria igualitária. Resta evidente, embora não seja supérfluo salientar, que esse igualitarismo louvado por Popper deve ser entendido dentro da perspectiva liberal clássica de ausência de privilégios e da tradição que remete à Péricles, Eurípedes, Hípias, Heródoto, Antístenes e Licofronte[19], nada tendo a ver com o igualitarismo radical de viés socialista, sendo antes a “exigência de que o nascimento, as ligações de família ou a riqueza não influenciem aqueles que administram a lei para os cidadãos[20]”.

Contra essa tradição erigia-se, segundo Popper, o princípio de justiça de Platão a requerer “privilégios naturais para líderes naturais[21]”, princípio esse que seria incompatível e hostil em relação ao individualismo[22], tido por Popper como “a grande revolução espiritual que conduziria à queda do tribalismo e à ascensão da democracia.[23]” Para estupefação do leitor, Popper chega a afirmar, em relação a Platão, que “nunca houve homem mais empenhado em sua hostilidade para com o indivíduo[24]” e que, “no campo da política, o indivíduo é, para Platão, o mal em pessoa.[25]

Uma das acusações lançadas por Popper contra Platão é a de identificar “todo altruísmo com o coletivismo e todo individualismo com o egoísmo.[26]” Contra isso, Popper faz notar a pertinência do uso do termo “individualismo” apenas como oposto a coletivismo, uma vez que seria plenamente possível um individualista (isto é, um anti-coletivista) ser altruísta, ou seja, alguém capaz de “fazer sacrifícios a fim de ajudar outros indivíduos.[27]” Individualismo, portanto, segundo Popper, não é necessariamente sinônimo de egoísmo, mas Platão os teria identificado a fim de ter nessa identificação uma “poderosa arma para defender o coletivismo, assim como para atacar o individualismo[28]”.

Embora não estejamos cem por cento de acordo com a interpretação de Popper segundo a qual Platão veria no individualismo um inimigo odioso a ser combatido, concordamos plenamente com a sua consideração acerca da relevância do individualismo e do altruísmo para a formação da civilização ocidental e para o desenvolvimento moral do homem.

Segundo Popper, a hostilidade de Platão em relação ao individualismo é anti-humanitária e anti-cristã[29], sua teoria sobre o estado é totalitária[30] e seu código moral é “estritamente utilitário.[31]” Desconsiderando o fato de que raros são os platonistas dispostos a endossar semelhante exegese, cumpre notar que as característica atribuídas por Popper ao pensamento de Platão descrevem justamente a sociedade fechada em contraposição à qual depreendem-se as características da sociedade aberta.

O código moral utilitário ou a razão de estado que Popper atribui a Platão é uma característica fundamental das sociedades fechadas ou dos regimes totalitários: “o totalitarismo não é simplesmente amoral. É a moralidade da sociedade fechada, do grupo, da tribo; não é o egoísmo individual, é o egoísmo coletivo[32]”. Na sociedade aberta, em contrapartida, deve prevalecer a teoria humanitária da justiça, que exige tanto o princípio igualitário (enquanto proposta de eliminação dos privilégios naturais) quanto o estabelecimento da proteção da liberdade dos cidadãos como tarefa e objetivo do estado.[33]

Outra abordagem de Popper que possibilita, por contraposição, a apreensão de aspectos importantes da sociedade aberta, plural e democrática que ele defende é a sua crítica à ênfase dada por Platão ao problema de “quem deve governar”, o que desviaria o problema das instituições para as questões pessoais. Tal ênfase tomaria como o mais urgente dos problemas a escolha dos líderes naturais e de como adestrá-los para a liderança[34], corrompendo, com isso, a prática educacional[35]. Talvez haja também nessa crítica de Popper a Platão um laivo de anacronismo, uma vez que a distinção entre o elemento pessoal e o institucional é uma conquista moderna. De todo modo, a exigência de tal distinção é legítima no âmbito da defesa de uma sociedade aberta e a argumentação de Popper a esse respeito é bastante sensata.

A relevância que Popper dá às instituições mostra que sua concepção de democracia é a mais compatível possível com a perspectiva liberal. A questão liberal é menos acerca de quem governa e mais acerca de como governa; é menos acerca do caráter do governante e mais acerca da qualidade das instituições, embora deva-se atentar para a impossibilidade de um institucionalismo puro. Assim sendo, Popper acatará, em parte, a crítica de Platão à democracia quando o filósofo grego sugere a fragilidade desse regime para evitar o surgimento do tirano, mas o faz sobretudo para se distanciar do entendimento reducionista e perigoso de democracia como sendo simplesmente o governo da maioria.

O princípio democrático não é, segundo Popper, o de que a maioria deve governar, mas é o princípio “de que diversos métodos igualitários para o controle democrático, tais como o sufrágio universal e o governo representativo, devem ser considerados como simplesmente salvaguardas institucionais, de eficácia comprovada pela experiência, contra a tirania[36].”Ao definir democracia – em contraposição à tirania ou ditadura – como “governos dos quais podemos nos livrar sem derramamento de sangue[37]”, Popper refuga o paradoxo democrático do tirano desejado pela maioria.

A defesa das instituições liga-se, em Popper, ao seu reformismo, à compreensão de que a democracia é imperfeita, mas perfectível. Não convém condená-la pelos seus defeitos, mas sim aperfeiçoá-la gradativamente, reconhecendo nela a virtude de um regime que “fornece o arcabouço institucional para a reforma das instituições políticas[38]” e que “torna possível a reforma das instituições sem usar de violência e, portanto, o uso da razão na formulação de novas instituições e no reajustamento das antigas.[39]

Esse modo de compreender a evolução política da sociedade e de agir em benefício dela é chamado por Popper de mecânica gradual, em oposição à perspectiva nefasta intitulada por ele de mecânica utópica.[40] A perspectiva utópica determina um “alvo político definitivo ou o estado ideal, antes de empreender qualquer ação prática.”[41] Para realizar seu estado ideal, o político utópico lança mão de “um projeto de sociedade como um todo; e isso exige o forte regime centralizado de uns poucos, o qual, portanto, é possível de conduzir a uma ditadura[42].”

A mecânica gradual “adotará o método de pesquisar e combater os maiores e mais prementes males da sociedade, em vez de buscar seu maior bem definitivo e combater por ele[43].” Trata-se, para Popper, de uma perspectiva “metodologicamente sadia[44]” ou, ainda, do “único método de aperfeiçoar as coisas que até agora obteve êxito em qualquer tempo e em qualquer lugar[45].”

Entre a mecânica gradual e a mecânica utópica tem-se “a diferença entre um método razoável de aperfeiçoar o quinhão do homem e um método que, se realmente experimentado, pode facilmente levar a um intolerável acréscimo de sofrimento humano”[46]. A crítica popperiana em relação àquilo que chamou de mecânica utópica não deve, porém, como alerta o próprio filósofo, ser compreendida como simples crítica ao estabelecimento de um ideal; trata-se, antes, da crítica à tentativa de engenharia social.

Popper chama atenção nesse contexto para a peculiaridade do pensamento de Karl Marx, que critica o utopismo, denunciando “a fé num planejamento racional das instituições sociais como inteiramente antirrealista[47]”, mas o faz por adotar uma visão radicalmente historicista, segundo a qual “a sociedade deve crescer de acordo com as leis da história e não de acordo com os nossos planos racionais[48]”, asseverando que tudo o que podemos fazer é “diminuir as dores do parto desse processo histórico[49].”

Apesar de Marx se opor a toda mecânica social, inclusive a utópica, Popper afirma que há algo no utopismo a que Marx não se opõe: “sua tentativa de lidar com a sociedade como um todo, não deixando pedra por virar. É a convicção de que se tem que ir até a própria raiz do mal social, de que nada menos do que a completa erradicação do sistema social prejudicial bastará[50]”.

A esse radicalismo que sonha com uma “revolução apocalíptica[51]”, Popper atribui uma certa dose de entusiasmo estético: o que se busca não é construir um mundo “um pouco melhor e mais racional que o nosso[52]”, mas um mundo que seja livre de toda a feiúra do mundo anterior: “não um estofo maluco, um velho traje mal remendado, mas uma veste inteiramente nova, um mundo realmente belo[53].”

Mais uma vez, não se trata de condenar a busca de um ideal de um mundo belo, mas de apontar para a necessidade de refrear esse idealismo “pela razão, por um sentimento de responsabilidade, por um impulso humanitário de prestar ajuda. De outro modo, será um entusiasmo perigoso, possível de se desenvolver em alguma forma de neurose ou histeria”[54]. Aos utopistas que exigem sempre medidas de amplo alcance, Popper contrapõe simplesmente a razoabilidade, o bom senso: “não é razoável admitir que uma reconstrução completa de nosso mundo social conduzirá imediatamente a um sistema capaz de funcionar[55].”

[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques aux temps modernes et contemporains. Paris : Quadrige/PUF, 2002. p.1311

[2] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques aux temps modernes et contemporains. p.1313

[3] Idem p.1312

[4] POPPER, K. A miséria do historicismo. São Paulo: EDUSP, 1980. p.4

[5] Idem p.5

[6] Idem p.5

[7] Idem p.5

[8] Idem p.5

[9] REALE, Giovani. História da Filosofia VII p.150

[10] Idem. p.24

[11] POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Volume 1 p.48

[12] Idem p.184

[13] Idem p.103

[14] Idem p.95

[15] Idem p.94

[16] Idem p.103

[17] Idem p.121

[18] Idem p.104

[19] Idem p.110

[20] Idem p.109

[21] Idem p.110

[22] Idem p.120

[23] Idem p.116

[24] Idem p.118

[25] Idem p.118

[26] Idem p.116

[27] Idem p.115

[28] Idem p.116

[29] Idem p.119

[30] Idem p.121

[31] Idem p.122

[32] Idem p.123

[33] Idem p.109

[34] Idem p.141

[35] Idem p.143

[36] Idem p.141

[37] Idem p.140

[38] Idem p.142

[39] Idem p.142

[40] Idem p. 172

[41] Idem p.173

[42] Idem p.175

[43] Idem p.174

[44] Idem p.173

[45] Idem p.174

[46] Idem p.174

[47] Idem p. 179

[48] Idem p. 180

[49] Idem p. 180

[50] Idem p. 180

[51] Idem p. 180

[52] Idem p. 180

[53] Idem p. 180

[54] Idem p. 180

[55] Idem P.183