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Márcio Coimbra

Sobre Márcio Coimbra

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia. Presidente do Conselho da Fundação da Liberdade Econômica e Coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal.

Legado de Mandela

Aqueles que estudam ou já visitaram a África do Sul entendem o papel central de Nelson Mandela na reconstrução do país. Recém-saído do terrível modelo do apartheid, que vigorou durante décadas, o território poderia passar por um terrível conflito, algo como uma guerra civil, porém, a habilidade política de seus líderes e a ponderação, equilíbrio e sensibilidade de Mandela fizeram com que o país trilhasse um caminho virtuoso de entendimento e reconciliação.

Nações partidas por quaisquer motivos precisam lembrar dos valores que os unem e partir para duas palavras essenciais que fizeram de Mandela um estadista, alguém que não pensava na próxima eleição, mas nas próximas gerações: perdão e reconciliação. O caminho escolhido para liderar o país jamais passou pela raiva ou vingança, mas pelo sentimento de união capaz fazer com que as diferenças fossem vencidas.

O Brasil passa há tempos por outro caminho, algo que transita pela raiva e pelo ressentimento, com claras pitadas de vingança em ambos os lados do espectro político. Uma posição infantil que apenas apequena nossa nação e torna a adoção de soluções comuns um objetivo praticamente intransponível. Parece que depois de um elogiado processo de redemocratização que teve como ponto central a adoção do instituto da anistia, nosso país retrocedeu no caminho do amadurecimento democrático.

Atualmente valem mais as diferenças do que o diálogo, e a política se tornou um jogo no qual busca-se a qualquer custo a retribuição pessoal dos dissabores do passado. Neste tabuleiro, está em desvantagem aquele grupo fora do poder e a alternância destes no espectro político faz com que vivamos um duelo que serve apenas aqueles que bebem na fonte do ódio e da polarização.

Em 1990, Mandela deixava a prisão depois de 27 anos e ao invés de se vingar da injustiça sofrida, fez a opção de perdoar seus algozes como forma de criar um sentimento de reconciliação na África do Sul. Ele dizia que “se você quer fazer as pazes com seu inimigo, você tem que trabalhar com ele. Em seguida, ele irá tornar-se seu parceiro”. É possível fazer política por meio do ódio ou da reconciliação. Depende apenas de quem exerce o poder.

O Brasil está passando pela polarização, mas também pela opção do entendimento na última década e a escolha de ambos os lados têm sido um caminho oposto daquele percorrido por Mandela. Como vimos, quando o esforço passa pela reconciliação, o tecido social se reconstrói, a nação avança e progride. Quando o caminho fica preso nas diferenças e no discurso de ódio, apenas os políticos ganham. Turbinam seus votos, porém entregam o país ao caos.

Há tempos escrevo que a polarização é o grande mal que assola nosso país, que nos impede de avançar e construir as bases de uma grande nação. Mais do que isso, vem empurrando o Brasil para uma deterioração de sua democracia, nos fazendo flertar com os extremos e o risco de quebra institucional, estabelecendo parcerias com países que violam diretos e garantias fundamentais. A liderança que precisamos passa por alguém capaz de unir o país apesar das diferenças. O legado de Mandela é a maior prova que o perdão e a reconciliação são a única forma de unir um país, liderar e construir uma verdadeira nação.

Verdadeiro Embate

O debate político polarizado tornou-se parte do cotidiano dos brasileiros. Embates entre aqueles que se identificam com a esquerda e outros com a direita, potencializados pela disputa entre Bolsonaro e Lula, passaram a definir amizades, convivência em família e até posições de emprego. Perturbados pela obediência cega aos líderes que pautam o debate nacional, a maioria se esquece que a disputa entre esquerda e direita passa longe daquilo que realmente pauta o real desafio político do mundo na atualidade.

Estamos falando de duas frentes. De um lado estão as autocracias, regimes autoritários e totalitários e de outro situam-se as democracias. Em ambos existem vértices da direita e da esquerda, sendo ineficaz nos dias de hoje classificar-se desta forma simplista, uma vez que a direita autocrática dialoga sem rodeios com a esquerda autoritária e ambos estão muito longe da direita e da esquerda liberais. Em resumo, estar na direita ou na esquerda não faz com que alguém seja necessariamente um partidário da democracia.

Esta lógica já foi explicada por David Nolan em 1969. Seu diagrama é traçado com base em dois eixos centrais: liberdade econômica e liberdade individual. O gráfico também é dividido em cinco tendências políticas: direita, esquerda, centro, liberal e totalitário. Ali conseguimos perceber, por exemplo, que regimes autocráticos de direita estão muito mais próximos dos autoritários de esquerda do que da direita liberal. Ao mesmo tempo, vemos que estes estão muito mais próximos da esquerda liberal do que se imagina. A concepção do diagrama é didática, simples e objetiva.

Diante disso podemos enxergar com mais clareza o jogo geopolítico que se impôs no tabuleiro atual. Estamos diante de um alinhamento entre autocracias e autoritários de um lado, sejam de esquerda ou direita, da mesma forma que do outro lado há um grupo coeso de democracias que incluem governos de esquerda e direita. Isso explica por que reduzir a divisão entre dois polos tradicionais pode gerar confusão e erros de avaliação que turvam a leitura política de muitos brasileiros.

Esta lógica explica a aproximação do Brasil com a Rússia de Putin, seja em um governo com viés de direita, assim como de esquerda, ou seja, com Bolsonaro e Lula. O mesmo raciocínio explica o fascínio da nova direita brasileira com Viktor Orbán na Hungria e Nayib Bukele em El Salvador, assim como nossa esquerda se encanta com a China de Xi Jinping e alivia a pressão sobre Cuba, Nicarágua e Venezuela, dirigidas pelos ditadores Miguel Díaz-Canel, Daniel Ortega e Nicolás Maduro.

Fato é que falta de alinhamento do Brasil com países democráticos é a principal perda de nossa nação em tempos recentes. Seja pelo caminho da esquerda ou da direita, o resultado tem sido o mesmo, ou seja, aproximação com autocracias, teocracias, regimes autoritários e até mesmo totalitários. Algo que se traduz em uma lástima para um país que se enxerga como uma democracia.

O verdadeiro embate atual está posto com base em nações que possuem compromissos democráticos e aquelas que decidiram seguir o caminho das autocracias. Em ambos, veremos nomes da esquerda e da direita. Deveríamos parar de nos preocupar com o acessório e passar a avaliar aquilo que é essencial.

Democracia e Investimento

O investimento direto estrangeiro se tornou importante diante de um mundo cada vez mais conectado e com economias interdependentes. Além de financiar ações seminais em áreas como inovação e desenvolvimento, é responsável por impulsionar setores essenciais da economia na construção de comunidades com enorme diferencial competitivo. Isto se torna ainda mais importante em países como o Brasil, que possuem forte déficit de poupança interna e se tornaram dependentes de capital externo para realização de investimentos

Ao mesmo tempo, com um Estado que direciona 92% dos recursos do setor público para custeio, fica claro que o governo brasileiro possui capacidade estatal de investimento limitada e muito menor do que as necessidades de nossa economia. Isto explica por que mais de 65% das obras do PAC são realizadas com dinheiro da iniciativa privada. 

Esta é a razão pela qual o governo brasileiro trabalha constantemente para atração de investimento direto estrangeiro para a ampliação de nossa economia. Nesta disputa externa em busca por recursos internacionais, diversos fatores surgem como elementos essenciais que atraem capital de qualidade. Entre eles podemos citar um ambiente regulatório confiável, judiciário independente, contas públicas equilibradas, moeda e regras estáveis, liberdades individuais asseguradas e democracia consolidada, ou seja, uma trilha virtuosa que assegure o retorno dos investimentos.

Ao mesmo tempo que existem recursos de qualidade que exigem este arcabouço de virtudes, também existem investimentos predatórios, de mais fácil atração e que não exigem este ambiente de estabilidade. São perigosos porque trafegam em modelos corruptos, exigem contrapartidas e carregam armadilhas de dependência política, financeira, econômica e social.

Com base neste risco, muitos países desenvolvidos vêm trabalhando modelos de defesa contra investimentos predatórios. Como consequência, a União Europeia viu uma diminuição muito significativa do investimento predatório a partir de 2022. Ali existem iniciativas de adoção e atualização de mecanismos de análise de investimentos diretos estrangeiros existentes. A Itália, por exemplo, retirou-se das iniciativas chinesas da Nova Rota da Seda por considerar o modelo perigoso para seu interesse nacional. 

Em Portugal, desde 2014, se estabelece o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir segurança da defesa nacional e do aprovisionamento do país em serviços fundamentais. O governo pode opor-se a qualquer transação da qual resulte, direta ou indiretamente, a aquisição de controle de terceiros à UE sobre ativos estratégicos nos setores de energia, transportes e comunicações.

O Brasil deveria seguir o mesmo caminho, especialmente por se alinhar atualmente com países que optaram pelo investimento predatório, como os membros do BRICS. Nosso país deveria optar pelos investimentos de qualidade, com recursos de origem conhecida e limpa, ao mesmo tempo que realiza reformas que tornem o país receptivo àquelas democracias que visam parcerias longas, sadias e focadas na construção de um país forte e próspero. Devemos trabalhar na atração de investimentos diretos estrangeiros de qualidade, sob pena de nos tornarmos reféns de um modelo que pode aprisionar nossa economia e nossa sociedade.

Método Putin

Ao mesmo tempo que a agressão russa contra a Ucrânia completa dois anos, o Kremlin se prepara para mais uma eleição presidencial, aquela que pode entregar mais um mandato presidencial para Vladimir Putin, no comando desde 1999. Ele já ocupa o poder por 25 anos e em breve deve se tornar o líder com mais tempo na condução do país, ultrapassando a marca de Josef Stalin, que esteve no Kremlin de 1922 até 1953.

O ex-diretor da FSB, Serviço Federal de Segurança, assumiu o cargo de Primeiro-Ministro aos 47 anos, em 1999, sendo eleito em sequência para a presidência da Rússia. Reeleito em 2004, ficou no comando do país até 2008, quando voltou a ser Primeiro-Ministro. Retornou para presidência em 2012 e renovou o mandato em 2018. Em 2021 sancionou emendas constitucionais que permitem uma extensão de sua presidência até 2036, quando terá 84 anos. Um verdadeiro czar.

Sob seu comando, a Rússia iniciou aproximação com o ocidente, especialmente com europeus e americanos, trabalhando para transformar a imagem de seu país ao redor do mundo. Apesar de todos saberem dos métodos e práticas usadas para sua manutenção no poder, os canais que tornavam a Rússia parte da estabilidade do cenário exterior sempre foram mais fortes, atraindo inclusive eventos esportivos de altíssima envergadura, como Jogos Olímpicos de inverno, corridas de Fórmula 1, torneios de tênis e uma Copa do Mundo.

Porém, a Rússia possuía várias faces. O regime levava antigos líderes ocidentais para sua área de influência com altos salários nas empresas de oligarcas, ao mesmo tempo que fortalecia sua tutela em antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. Ainda exercia influência nos conflitos da África e Oriente Médio, como no caso da Síria. Entretanto, nada que colocasse os interesses do Kremlin em colisão direta com o ocidente.

Porém, tudo indica que ali havia um método calculado e a invasão da Ucrânia jogou luz sobre o tabuleiro. O Kremlin acreditava que a reação seria similar aquela ocorrida diante da invasão da Criméia, ou seja, praticamente nula e que a capital ucraniana cairia em pouco tempo. A guerra, entretanto, se arrasta por dois longos anos, sem sinais de término, que além de destruir a Ucrânia, arrasou com a imagem da Rússia no exterior.

Isto fez com que Putin se aproximasse ainda mais da esfera autocrática e totalitária, cortando os vínculos com o ocidente a passando a cerrar fileiras com países como China, Irã, Coreia do Norte e demais nações do seu âmbito de influência, especialmente no BRICS, que se tornou o novo fórum onde orbitam nações que vivem ou flertam com regimes autoritários. Isolado do ocidente, o Kremlin sentiu-se livre para romper com qualquer traço de democracia ou liberdade que ainda restava em seu território.

O resultado será mais uma eleição vencida por ampla maioria. O método é conhecido, ou seja, manter amplo controle dos meios de comunicação, passando pela restrição de protestos, prisões e chegando à perseguição e morte de críticos ao regime, bem como o impedimento de candidaturas oposicionistas. A Rússia, que flertou com a liberdade e a democracia, vem retrocedendo de forma consistente e preocupante. Tudo indica que para ultrapassar o período de Stalin no Kremlin, Vladimir Putin continuará a recrudescer o regime e seguirá se inspirando nos infelizes métodos do seu mais longevo antecessor.

Más Companhias

Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Democracia Ferida

Vivemos em uma jovem democracia, estabelecida tal como conhecemos em 1985, com uma Constituição promulgada em 1988 e a primeira eleição presidencial pós-regime militar ocorrendo em 1989. Até lá nenhum pleito presidencial brasileiro havia contado com a participação de mais de 20% da população e desde então vivemos o mais longo período de estabilidade democrática de nossa história. Antes disso, somente dois líderes eleitos pelo voto popular para a Presidência completaram o mandato: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek.

Porém, a democracia não vive um período de grande popularidade ao redor do mundo, algo que se debruça também sobre o Brasil. Atualmente apenas 62% dos brasileiros têm opinião positiva sobre a democracia liberal, segundo pesquisa AtlasIntel. A sondagem também aponta 20% de opinião positiva sobre o comunismo, 13% sobre ditadura militar e 4% sobre fascismo – todos regimes de exceção. Enquanto isso, o Latinobarómetro indica dados mais alarmantes, ou seja, que existe apenas 46% de apoio à democracia em nosso país.

O Brasil já passou por nove golpes de Estado desde nossa independência. Empilham-se outros fracassados, onde insere-se o mais recente descoberto pela Polícia Federal. Considerando que estamos na América Latina, um território propício para movimentos golpistas, a tentativa não soa como novidade. Entre 1907 e 1966 a região passou por 20 golpes de Estado. Da segunda metade do século XX até hoje foram 34. Nosso 31 de março de 1964 faz parte desta estatística.

Fato é que o desgaste da democracia ao redor do mundo chegou ao Brasil e nossas instituições indicam que carecem de confiança da população neste período delicado. Vejam estes dados. Apenas 11% dos brasileiros avaliam positivamente o trabalho do Senado e 8% da Câmara dos Deputados. A aprovação do STF caiu para 17% no final de 2023 e diante da falta de confiança no trabalho da imprensa, 41% dos brasileiros evitam o consumo de notícias e de conteúdo jornalístico – número que supera a média mundial, de 36%. Estamos diante de um barril de pólvora.

Estes dados mostram que a mais recente tentativa de golpe em nosso país deixou de se concretizar por incompetência dos atores envolvidos no enredo, porém, é importante lembrar, poderia encontrar respaldo popular diante da enorme falta de confiança da população nas instituições. Isto evidencia uma democracia fraca, altamente manipulável e capaz de pender diante de arroubos autoritários tanto para a direita, quanto para a esquerda. Em resumo, um sistema à espera de um oportunista.

Vivemos um período de enorme desgaste da democracia como sistema de organização política e econômica com uma população cansada de esperar por melhorias prometidas pela abertura. Neste vácuo, ressurge a ilusão de retorno de nossos militares ao poder, os mesmos que entregaram um país destruído depois de duas décadas no comando do país. De um lado, o brasileiro precisa entender que a democracia é uma construção que precisa andar de mãos dadas com a economia de mercado, império da lei, responsabilidade e combate à corrupção. De outro, se nossa classe política e econômica, não entender seu papel, em breve pode se tornar vítima da própria ambição e tornar nosso país uma republiqueta refém de um populista.

Bukelecracia

A reeleição de Nayib Bukele eram favas contadas. O Presidente do menor país da América Central, El Salvador, possui uma das mais altas taxas de aprovação do mundo. Seu governo possui mais de 80% de popularidade e tudo indica que tenha sido reeleito com uma margem ainda maior. Ele é o primeiro líder a ser reconduzido no país em oito décadas. Sua fama ainda elegeu uma maioria avassaladora no parlamento.

A popularidade de Bukele está presente no cotidiano dos cidadãos de El Salvador. O país foi durante muito tempo refém das gangues e já teve a mais alta taxa de criminalidade do mundo. Hoje possui níveis suecos. Em 2015, 106 pessoas foram mortas a cada 100 mil habitantes, hoje este número despencou para 2,4.

Fato é que a população em sua esmagadora maioria estava disposta a ceder parcela de sua liberdade em troca de segurança, especialmente diante da situação de caos e pânico vivida pelo país ao longo dos anos. O método Bukele, porém, é polêmico. Hoje, o país vive sem delinquência, porém, com parte de seus direitos ceifados e desde 2022 vive em um estado de exceção que vem sendo prorrogado sucessivamente.

A deterioração democrática iniciou com o fortalecimento e concentração de poder em torno de Bukele e seu partido, o Nuevas Ideas. Em 2021 foi alcançada maioria absoluta nas eleições para a Assembleia Legislativa. Em ato contínuo, parlamentares aprovaram a destituição do procurador-geral de El Salvador e todos os cinco membros da Câmara Constitucional da Suprema Corte.

O preço pago pela população para ter segurança foi alto. O modelo em vigência restringe liberdade de reunião, inviolabilidade de comunicações e correspondências, além de autorizar prisões sem ordem judicial. El Salvador é o país que mais encarcera no mundo como proporção da população. A deterioração democrática do país já foi detectada pelos índices internacionais. Na comparação dos indicadores de democracia liberal (V-Dem) só não está pior do que Venezuela, Nicarágua e Cuba.

El Salvador se tornou uma autocracia eleitoral, assim como tantas outras ao redor do mundo, uma vez que subverte os limites do regime democrático – que está muito além de resultados eleitorais. Seja pelo caminho da esquerda ou direita, a deterioração do Estado de Direito é aquilo que expõe a fraqueza institucional de uma nação e El Salvador vem preenchendo todos os requisitos neste sentido.

Uma população que viveu décadas refém dos bandidos e optou por ceder sua liberdade em troca de segurança, em breve poderá estar diante de um desafio: o que fazer se a autocracia de Bukele começar a cobrar um preço alto demais e a segurança prometida por seu governo se tornar uma solução apenas temporária. Mais do que isso. Se Bukele for o único fiador da segurança, a população estará disposta a viver em uma ditadura? São questões que em breve podem se debruçar sobre os salvadorenhos, porém, com uma resposta que já foi dada por Benjamin Franklin em 1776: “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade, nem segurança”.

Alerta Transparente

Nos útimos anos o Brasil viveu enormes retrocessos que começam a aparecer em rankings internacionais. O mais recente é o Índice de Percepção da Corrupção produzido pela Transparência Internacional. Nosso país caiu 10 posições e agora é considerado o 104º país mais corrupto do mundo com nota 36 de uma escala que vai de zero (mais corrupto) a 100 (mais íntegro).

O Índice de Percepção da Corrupção é o principal indicador de corrupção no mundo. Produzido pela Transparência Internacional desde 1995, avalia 180 países e territórios. Como parâmetro, o Brasil está abaixo da média global de 43 pontos, abaixo da média regional para Américas (também de 43 pontos) e inclusive abaixo da média dos países que compõe a formação original do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com 40 pontos. A comparação se torna incômoda sob qualquer aspecto.

A situação fica ainda mais constrangedora quando é realizada com integrantes do G20, composto pelas 19 principais economias do mundo, mais a União Africana e a União Europeia, com 53 pontos e com membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) com 66 pontos. Isto significa que quanto mais a comparação leva em conta países democráticos e desenvolvidos, a distância aumenta.

Quando olhamos para o Brasil, a Transparência Internacional manteve distância da polarização política nacional, apontando tanto o governo Bolsonaro, quanto o atual governo Lula, como despreparados a lidar com o tema. Segundo o Índice, os anos em que Bolsonaro esteve na Presidência da República, entre 2019 e 2022, deixaram a lição de como, em um curto período, os marcos legais e institucionais anticorrupção, que levaram décadas para ser construídos, podem ser destruídos, com reflexos negativos claros em nossa democracia.

O primeiro ano de Lula deixa a lição de como é ou ainda será desafiador o processo de reestruturação. O Índice de Percepção da Corrupção avalia três linhas de defesa contra a corrupção, nas áreas judicial, política e social e destaca a situação crítica do controle jurídico da corrupção por causa da falta de independência do sistema de Justiça. Desmonte de operações, anulação de provas e a inobservância da lista tríplice em indicações ao judiciário também mostraram que as instituições brasileiras retrocederam em manter pilares republicanos independentes.

Para além disso, é apontado que a declaração de inconstitucionalidade do orçamento secreto “não impediu o Congresso e o governo Lula de encontrarem rapidamente um arranjo que preservasse o mecanismo espúrio de barganha, que manteve vivos velhos vícios aperfeiçoados durante a gestão Bolsonaro”. Na visão do organismo, independente do governo, os mecanismos políticos que alimentam corrupção e falta de transparência permanecem intocados e resultam na piora do índice brasileiro.

Ao nos nivelar com autocracias do BRICS e nos afastarmos da boa governança de países democráticos da OCDE, o Brasil faz uma opção equivocada que se reflete nos índices internacionais. Isto afeta os investimentos estrangeiros, estabilidade institucional e o fortalecimento de nossa democracia. O aviso da Transparência Internacional deveria servir de alerta. Retroceder é um péssimo caminho para nosso país.

Perigoso Dragão Vermelho

A grande expansão chinesa pelo mundo possui rumo nítido e objetivos que estão muito além da economia, com claros desdobramentos políticos por onde passa. Esta iniciativa tomou forma muito bem definida pela estratégia da “Nova Rota da Seda” implementada pelo governo de Xi Jinping. O investimento chinês que roda o mundo, entretanto, vem se adequando aos objetivos políticos de Pequim e estes desdobramentos chegaram até a América Latina.

Fato é que o líder chinês possui um tipo de liderança e visão da China diferente de seus antecessores, Hu Jintao e Jiang Zemin, mais cautelosos e menos audazes que Xi Jinping. Em seu governo, o país vem exercendo um imperialismo ativo e contundente, usando a economia como arma de dependência e pressão política no médio e longo prazo. Os países que fizeram a opção pela aliança com Pequim têm agora uma fatura a pagar.

Este movimento está muito claro quando olhamos para a América Latina, que assiste o redirecionamento dos interesses chineses na região. A perda de relevância dos projetos de infraestrutura ocorreu à medida que o foco se modificou para aquilo que é chamada de “nova infraestrutura”, resultando na diminuição dos aportes. Estamos falando de uma mudança profunda de foco e valor no investimento direto estrangeiro chinês.

Esta nova frente, que necessita de menor investimento, engloba setores como fintechs, telecomunicações e transição energética. Se o investimento anterior supria os gargalos da demanda de commodities para oriente, agora o objetivo é contribuir em canais críticos para a estratégia de crescimento econômico da China. Uma reprodução pura e simples de um pacto colonial com vistas a fortalecer as musculaturas da metrópole.

Os números deixam isso muito claro. Depois de um financiamento inicial e a criação de uma lógica de dependência política e econômica, o aporte entra em declínio. O investimento direto estrangeiro (IDE) da China na América Latina saiu de US$ 14,2 bilhões por ano entre 2010 e 2019, caiu para uma média de US$ 7,7 bilhões de 2020 a 2021 e depois para US$ 6,4 bilhões em 2022.

A China possui método e vem moldando as economias por onde passa seu investimento com o objetivo de atender suas demandas. Os próximos passos para a América Latina passam pelos investimentos da BYD e GWM focadas na eletrificação da frota brasileira, compra de linhas de transmissão de energia (já vencida pela chinesa State Grid), aquisição de ativos de lítio pela Tianqi Lithium no Chile e expansão da Huawei e outras empresas chinesas na região em data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G. Enquanto isso, o México, tornou-se base doméstica de empresas chinesas com objetivo de obter acesso privilegiado ao mercado norte-americano.

O grande dragão vermelho mostrou suas garras e a ressaca econômica proporcionada pela festa de seus investimentos tem sido duríssima para muitas nações. Altas taxas de dívida, vulnerabilidade e dependência. Um sino-fenômeno que ocorreu da Grécia ao Paquistão, passando por Malásia e Gana, chegando até a América Latina. Uma reedição de um perigoso sistema colonial que visa tão somente atender a estratégia de desenvolvimento da China e a visão de mundo autocrática desenhada por Xi Jinping.

Foto: Camille Delbos/Getty Images

Geopolítica Comercial

As rotas de transporte marítimo são essenciais para o comércio exterior, responsáveis pelo transporte de commodities e também bens de valor agregado ao redor do mundo. Para esta circulação de mercadorias ser eficiente, certos pontos de passagem são considerados vitais, como os canais do Panamá, Suez e Kiel e os estreitos de Bósforo, Gibraltar, Singapura e Ormuz. São as chamadas pedras basilares da navegação, pois sua importância estratégica é crucial para a comunicação marítima internacional.

O mais recente conflito no Oriente Médio levou a desdobramentos perigosos que afetam o trânsito em um dos canais mais importantes do mundo, o chamado Canal de Suez, que realiza a ligação do Mar Vermelho com o Mediterrâneo, localizado no Egito. Embarcações estão sendo atacadas por rebeldes Houthis do Iêmen, estacionados no estreito de Babelmândebe, fronteira do Mar Vermelho com o Golfo de Aden, entrada para o Oceano Índico, que divide o país dos vizinhos Djibouti e Eritréia e a África da Ásia.

Segundo a The Economist 80% do comércio mundial em volume e 50% em valores é transportado pela frota de 105 mil navios porta-contêineres, petroleiros e cargueiros convencionais e o Canal de Suez é responsável por 10-15% do comércio mundial, incluindo as exportações de petróleo, e por 30% dos volumes globais de transporte de contêineres. Isto significa que qualquer instabilidade na região com reflexos nas rotas comerciais pode levar a sérios desdobramentos nas cadeias de abastecimento globais.

Seis das 10 maiores empresas de transporte de carga – como Maersk, MSC, Hapag-Lloyd, CMA CGM, ZIM e ONE – estão evitando em grande parte ou completamente o Mar Vermelho devido à ameaça dos Houthi.  O Banco Mundial alertou que a interrupção das principais rotas marítimas estava “corroendo a folga nas redes de abastecimento e aumentando a probabilidade de ‘estrangulamentos’ inflacionários”. A instabilidade já entrou nos custos globais, porém, seus reflexos podem ainda se expandir.

A crise no Iêmen é grave. Os conflitos já mataram mais de 400 mil pessoas, seja na guerra interna ou mesmo de fome. A disputa é política/religiosa e os Houthis xiitas recebem apoio do Irã, enquanto os sunitas são apoiados pelos vizinhos sauditas. Os Houthis, uma mescla de rebeldes com terroristas, intensificaram suas ações atingindo as cadeias de comércio global com apoio de Teerã em um suposto movimento de apoio ao Hamas. Na verdade, é um grupo que usa a chamada causa palestina para ampliar sua força, poder e apoios na região, assim como vários outros. Da mesma forma como o Hezbollah, tornou-se um mero fantoche que opera sob a orientação dos iranianos.

As rotas de transporte marítimo são essenciais no modelo econômico global. A liberdade de navegação pelos estreitos internacionais é de fundamental importância estratégica para a livre circulação de mercadorias e bens ao redor do planeta, reconhecida pelo Direito Internacional em Convenção das Nações Unidas. A estratégia de usar os Houthis e um país miserável e destruído pela guerra, o Iêmen, como peões contra o Ocidente é apenas mais um capítulo da reorganização de forças da geopolítica global estabelecida por uma rede de países autocráticos, teocráticos e antidemocráticos na construção de uma nova arquitetura internacional. Estamos diante do mais perigoso e desafiador movimento geopolítico desta geração.