Todos os posts de Márcio Coimbra

Márcio Coimbra

Sobre Márcio Coimbra

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia. Presidente do Conselho da Fundação da Liberdade Econômica e Coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal.

Democracia Ferida

Vivemos em uma jovem democracia, estabelecida tal como conhecemos em 1985, com uma Constituição promulgada em 1988 e a primeira eleição presidencial pós-regime militar ocorrendo em 1989. Até lá nenhum pleito presidencial brasileiro havia contado com a participação de mais de 20% da população e desde então vivemos o mais longo período de estabilidade democrática de nossa história. Antes disso, somente dois líderes eleitos pelo voto popular para a Presidência completaram o mandato: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek.

Porém, a democracia não vive um período de grande popularidade ao redor do mundo, algo que se debruça também sobre o Brasil. Atualmente apenas 62% dos brasileiros têm opinião positiva sobre a democracia liberal, segundo pesquisa AtlasIntel. A sondagem também aponta 20% de opinião positiva sobre o comunismo, 13% sobre ditadura militar e 4% sobre fascismo – todos regimes de exceção. Enquanto isso, o Latinobarómetro indica dados mais alarmantes, ou seja, que existe apenas 46% de apoio à democracia em nosso país.

O Brasil já passou por nove golpes de Estado desde nossa independência. Empilham-se outros fracassados, onde insere-se o mais recente descoberto pela Polícia Federal. Considerando que estamos na América Latina, um território propício para movimentos golpistas, a tentativa não soa como novidade. Entre 1907 e 1966 a região passou por 20 golpes de Estado. Da segunda metade do século XX até hoje foram 34. Nosso 31 de março de 1964 faz parte desta estatística.

Fato é que o desgaste da democracia ao redor do mundo chegou ao Brasil e nossas instituições indicam que carecem de confiança da população neste período delicado. Vejam estes dados. Apenas 11% dos brasileiros avaliam positivamente o trabalho do Senado e 8% da Câmara dos Deputados. A aprovação do STF caiu para 17% no final de 2023 e diante da falta de confiança no trabalho da imprensa, 41% dos brasileiros evitam o consumo de notícias e de conteúdo jornalístico – número que supera a média mundial, de 36%. Estamos diante de um barril de pólvora.

Estes dados mostram que a mais recente tentativa de golpe em nosso país deixou de se concretizar por incompetência dos atores envolvidos no enredo, porém, é importante lembrar, poderia encontrar respaldo popular diante da enorme falta de confiança da população nas instituições. Isto evidencia uma democracia fraca, altamente manipulável e capaz de pender diante de arroubos autoritários tanto para a direita, quanto para a esquerda. Em resumo, um sistema à espera de um oportunista.

Vivemos um período de enorme desgaste da democracia como sistema de organização política e econômica com uma população cansada de esperar por melhorias prometidas pela abertura. Neste vácuo, ressurge a ilusão de retorno de nossos militares ao poder, os mesmos que entregaram um país destruído depois de duas décadas no comando do país. De um lado, o brasileiro precisa entender que a democracia é uma construção que precisa andar de mãos dadas com a economia de mercado, império da lei, responsabilidade e combate à corrupção. De outro, se nossa classe política e econômica, não entender seu papel, em breve pode se tornar vítima da própria ambição e tornar nosso país uma republiqueta refém de um populista.

Bukelecracia

A reeleição de Nayib Bukele eram favas contadas. O Presidente do menor país da América Central, El Salvador, possui uma das mais altas taxas de aprovação do mundo. Seu governo possui mais de 80% de popularidade e tudo indica que tenha sido reeleito com uma margem ainda maior. Ele é o primeiro líder a ser reconduzido no país em oito décadas. Sua fama ainda elegeu uma maioria avassaladora no parlamento.

A popularidade de Bukele está presente no cotidiano dos cidadãos de El Salvador. O país foi durante muito tempo refém das gangues e já teve a mais alta taxa de criminalidade do mundo. Hoje possui níveis suecos. Em 2015, 106 pessoas foram mortas a cada 100 mil habitantes, hoje este número despencou para 2,4.

Fato é que a população em sua esmagadora maioria estava disposta a ceder parcela de sua liberdade em troca de segurança, especialmente diante da situação de caos e pânico vivida pelo país ao longo dos anos. O método Bukele, porém, é polêmico. Hoje, o país vive sem delinquência, porém, com parte de seus direitos ceifados e desde 2022 vive em um estado de exceção que vem sendo prorrogado sucessivamente.

A deterioração democrática iniciou com o fortalecimento e concentração de poder em torno de Bukele e seu partido, o Nuevas Ideas. Em 2021 foi alcançada maioria absoluta nas eleições para a Assembleia Legislativa. Em ato contínuo, parlamentares aprovaram a destituição do procurador-geral de El Salvador e todos os cinco membros da Câmara Constitucional da Suprema Corte.

O preço pago pela população para ter segurança foi alto. O modelo em vigência restringe liberdade de reunião, inviolabilidade de comunicações e correspondências, além de autorizar prisões sem ordem judicial. El Salvador é o país que mais encarcera no mundo como proporção da população. A deterioração democrática do país já foi detectada pelos índices internacionais. Na comparação dos indicadores de democracia liberal (V-Dem) só não está pior do que Venezuela, Nicarágua e Cuba.

El Salvador se tornou uma autocracia eleitoral, assim como tantas outras ao redor do mundo, uma vez que subverte os limites do regime democrático – que está muito além de resultados eleitorais. Seja pelo caminho da esquerda ou direita, a deterioração do Estado de Direito é aquilo que expõe a fraqueza institucional de uma nação e El Salvador vem preenchendo todos os requisitos neste sentido.

Uma população que viveu décadas refém dos bandidos e optou por ceder sua liberdade em troca de segurança, em breve poderá estar diante de um desafio: o que fazer se a autocracia de Bukele começar a cobrar um preço alto demais e a segurança prometida por seu governo se tornar uma solução apenas temporária. Mais do que isso. Se Bukele for o único fiador da segurança, a população estará disposta a viver em uma ditadura? São questões que em breve podem se debruçar sobre os salvadorenhos, porém, com uma resposta que já foi dada por Benjamin Franklin em 1776: “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade, nem segurança”.

Alerta Transparente

Nos útimos anos o Brasil viveu enormes retrocessos que começam a aparecer em rankings internacionais. O mais recente é o Índice de Percepção da Corrupção produzido pela Transparência Internacional. Nosso país caiu 10 posições e agora é considerado o 104º país mais corrupto do mundo com nota 36 de uma escala que vai de zero (mais corrupto) a 100 (mais íntegro).

O Índice de Percepção da Corrupção é o principal indicador de corrupção no mundo. Produzido pela Transparência Internacional desde 1995, avalia 180 países e territórios. Como parâmetro, o Brasil está abaixo da média global de 43 pontos, abaixo da média regional para Américas (também de 43 pontos) e inclusive abaixo da média dos países que compõe a formação original do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com 40 pontos. A comparação se torna incômoda sob qualquer aspecto.

A situação fica ainda mais constrangedora quando é realizada com integrantes do G20, composto pelas 19 principais economias do mundo, mais a União Africana e a União Europeia, com 53 pontos e com membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) com 66 pontos. Isto significa que quanto mais a comparação leva em conta países democráticos e desenvolvidos, a distância aumenta.

Quando olhamos para o Brasil, a Transparência Internacional manteve distância da polarização política nacional, apontando tanto o governo Bolsonaro, quanto o atual governo Lula, como despreparados a lidar com o tema. Segundo o Índice, os anos em que Bolsonaro esteve na Presidência da República, entre 2019 e 2022, deixaram a lição de como, em um curto período, os marcos legais e institucionais anticorrupção, que levaram décadas para ser construídos, podem ser destruídos, com reflexos negativos claros em nossa democracia.

O primeiro ano de Lula deixa a lição de como é ou ainda será desafiador o processo de reestruturação. O Índice de Percepção da Corrupção avalia três linhas de defesa contra a corrupção, nas áreas judicial, política e social e destaca a situação crítica do controle jurídico da corrupção por causa da falta de independência do sistema de Justiça. Desmonte de operações, anulação de provas e a inobservância da lista tríplice em indicações ao judiciário também mostraram que as instituições brasileiras retrocederam em manter pilares republicanos independentes.

Para além disso, é apontado que a declaração de inconstitucionalidade do orçamento secreto “não impediu o Congresso e o governo Lula de encontrarem rapidamente um arranjo que preservasse o mecanismo espúrio de barganha, que manteve vivos velhos vícios aperfeiçoados durante a gestão Bolsonaro”. Na visão do organismo, independente do governo, os mecanismos políticos que alimentam corrupção e falta de transparência permanecem intocados e resultam na piora do índice brasileiro.

Ao nos nivelar com autocracias do BRICS e nos afastarmos da boa governança de países democráticos da OCDE, o Brasil faz uma opção equivocada que se reflete nos índices internacionais. Isto afeta os investimentos estrangeiros, estabilidade institucional e o fortalecimento de nossa democracia. O aviso da Transparência Internacional deveria servir de alerta. Retroceder é um péssimo caminho para nosso país.

Perigoso Dragão Vermelho

A grande expansão chinesa pelo mundo possui rumo nítido e objetivos que estão muito além da economia, com claros desdobramentos políticos por onde passa. Esta iniciativa tomou forma muito bem definida pela estratégia da “Nova Rota da Seda” implementada pelo governo de Xi Jinping. O investimento chinês que roda o mundo, entretanto, vem se adequando aos objetivos políticos de Pequim e estes desdobramentos chegaram até a América Latina.

Fato é que o líder chinês possui um tipo de liderança e visão da China diferente de seus antecessores, Hu Jintao e Jiang Zemin, mais cautelosos e menos audazes que Xi Jinping. Em seu governo, o país vem exercendo um imperialismo ativo e contundente, usando a economia como arma de dependência e pressão política no médio e longo prazo. Os países que fizeram a opção pela aliança com Pequim têm agora uma fatura a pagar.

Este movimento está muito claro quando olhamos para a América Latina, que assiste o redirecionamento dos interesses chineses na região. A perda de relevância dos projetos de infraestrutura ocorreu à medida que o foco se modificou para aquilo que é chamada de “nova infraestrutura”, resultando na diminuição dos aportes. Estamos falando de uma mudança profunda de foco e valor no investimento direto estrangeiro chinês.

Esta nova frente, que necessita de menor investimento, engloba setores como fintechs, telecomunicações e transição energética. Se o investimento anterior supria os gargalos da demanda de commodities para oriente, agora o objetivo é contribuir em canais críticos para a estratégia de crescimento econômico da China. Uma reprodução pura e simples de um pacto colonial com vistas a fortalecer as musculaturas da metrópole.

Os números deixam isso muito claro. Depois de um financiamento inicial e a criação de uma lógica de dependência política e econômica, o aporte entra em declínio. O investimento direto estrangeiro (IDE) da China na América Latina saiu de US$ 14,2 bilhões por ano entre 2010 e 2019, caiu para uma média de US$ 7,7 bilhões de 2020 a 2021 e depois para US$ 6,4 bilhões em 2022.

A China possui método e vem moldando as economias por onde passa seu investimento com o objetivo de atender suas demandas. Os próximos passos para a América Latina passam pelos investimentos da BYD e GWM focadas na eletrificação da frota brasileira, compra de linhas de transmissão de energia (já vencida pela chinesa State Grid), aquisição de ativos de lítio pela Tianqi Lithium no Chile e expansão da Huawei e outras empresas chinesas na região em data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G. Enquanto isso, o México, tornou-se base doméstica de empresas chinesas com objetivo de obter acesso privilegiado ao mercado norte-americano.

O grande dragão vermelho mostrou suas garras e a ressaca econômica proporcionada pela festa de seus investimentos tem sido duríssima para muitas nações. Altas taxas de dívida, vulnerabilidade e dependência. Um sino-fenômeno que ocorreu da Grécia ao Paquistão, passando por Malásia e Gana, chegando até a América Latina. Uma reedição de um perigoso sistema colonial que visa tão somente atender a estratégia de desenvolvimento da China e a visão de mundo autocrática desenhada por Xi Jinping.

Foto: Camille Delbos/Getty Images

Geopolítica Comercial

As rotas de transporte marítimo são essenciais para o comércio exterior, responsáveis pelo transporte de commodities e também bens de valor agregado ao redor do mundo. Para esta circulação de mercadorias ser eficiente, certos pontos de passagem são considerados vitais, como os canais do Panamá, Suez e Kiel e os estreitos de Bósforo, Gibraltar, Singapura e Ormuz. São as chamadas pedras basilares da navegação, pois sua importância estratégica é crucial para a comunicação marítima internacional.

O mais recente conflito no Oriente Médio levou a desdobramentos perigosos que afetam o trânsito em um dos canais mais importantes do mundo, o chamado Canal de Suez, que realiza a ligação do Mar Vermelho com o Mediterrâneo, localizado no Egito. Embarcações estão sendo atacadas por rebeldes Houthis do Iêmen, estacionados no estreito de Babelmândebe, fronteira do Mar Vermelho com o Golfo de Aden, entrada para o Oceano Índico, que divide o país dos vizinhos Djibouti e Eritréia e a África da Ásia.

Segundo a The Economist 80% do comércio mundial em volume e 50% em valores é transportado pela frota de 105 mil navios porta-contêineres, petroleiros e cargueiros convencionais e o Canal de Suez é responsável por 10-15% do comércio mundial, incluindo as exportações de petróleo, e por 30% dos volumes globais de transporte de contêineres. Isto significa que qualquer instabilidade na região com reflexos nas rotas comerciais pode levar a sérios desdobramentos nas cadeias de abastecimento globais.

Seis das 10 maiores empresas de transporte de carga – como Maersk, MSC, Hapag-Lloyd, CMA CGM, ZIM e ONE – estão evitando em grande parte ou completamente o Mar Vermelho devido à ameaça dos Houthi.  O Banco Mundial alertou que a interrupção das principais rotas marítimas estava “corroendo a folga nas redes de abastecimento e aumentando a probabilidade de ‘estrangulamentos’ inflacionários”. A instabilidade já entrou nos custos globais, porém, seus reflexos podem ainda se expandir.

A crise no Iêmen é grave. Os conflitos já mataram mais de 400 mil pessoas, seja na guerra interna ou mesmo de fome. A disputa é política/religiosa e os Houthis xiitas recebem apoio do Irã, enquanto os sunitas são apoiados pelos vizinhos sauditas. Os Houthis, uma mescla de rebeldes com terroristas, intensificaram suas ações atingindo as cadeias de comércio global com apoio de Teerã em um suposto movimento de apoio ao Hamas. Na verdade, é um grupo que usa a chamada causa palestina para ampliar sua força, poder e apoios na região, assim como vários outros. Da mesma forma como o Hezbollah, tornou-se um mero fantoche que opera sob a orientação dos iranianos.

As rotas de transporte marítimo são essenciais no modelo econômico global. A liberdade de navegação pelos estreitos internacionais é de fundamental importância estratégica para a livre circulação de mercadorias e bens ao redor do planeta, reconhecida pelo Direito Internacional em Convenção das Nações Unidas. A estratégia de usar os Houthis e um país miserável e destruído pela guerra, o Iêmen, como peões contra o Ocidente é apenas mais um capítulo da reorganização de forças da geopolítica global estabelecida por uma rede de países autocráticos, teocráticos e antidemocráticos na construção de uma nova arquitetura internacional. Estamos diante do mais perigoso e desafiador movimento geopolítico desta geração.

Oito de Janeiro

A politização de tudo no Brasil tem se tornado uma triste realidade. A polarização foi capaz de se infiltrar em todos os temas do país, passando pelas artes, esporte e tudo mais que sejamos capazes de imaginar. Não seria diferente no aniversário das ações que atingiram o coração do poder um ano atrás. Se no país do futebol tudo virava em samba, agora, no país polarização, tudo vira disputa política.

Nada retira a gravidade do que vimos um ano atrás. Estivemos diante de um atentado contra a democracia e as instituições republicanas. Porém, politizar o ato ao longo dos anos posteriores jamais nos ensinará aquilo que devemos aprender com os erros vistos e transmitidos ao vivo naquele dia. É preciso virar a página e olhar adiante, da mesma forma que precisamos sempre enxergar estas cicatrizes para que ações como aquelas jamais voltem a se repetir em nosso país.

A democracia é instrumento pelo qual são salvaguardadas nossas liberdades, desde a mais simples e singela até aquelas essenciais para o funcionamento da república. Nossas instituições são o mecanismo no qual gira nossa democracia, sendo essenciais para que não seja atacada, ferida ou destruída. Logo, agredir nossas instituições significa afrontar o mais importante pilar que sustenta uma democracia.

Vimos isso um ano atrás, quando os prédios que guardam os poderes institucionais da república foram invadidos, vandalizados e depredados, sem qualquer senso de respeito com os símbolos de nossa nação. Estivemos diante de atos que estão longe de ações de pessoas que realmente desejam mudar o país. Simplesmente um grupo de arruaceiros e vândalos que acreditam que seja possível mudar mediante a brutalidade e violência.

Fato é que o ocorrido em Brasília é sintoma que se espalhou pelo mundo mediante uma polarização estúpida e rasa que vem ditando os rumos da política em tempos recentes. Nossa capital viu se repetir aquilo que enxergamos em Washington, quando uma turba enfurecida tentou reverter o resultado eleitoral mediante uma violência explícita contra as instituições norte-americanas. A ocorrência destas ações explicita o quão doente encontram-se nossas democracias.

Enquanto houver polarização e esta disputa infantil, sem convergências e caminhos alternativos que indiquem soluções comuns, estaremos reféns de políticos rasos e uma política burra, que funciona somente para aqueles que se servem dela. Infelizmente vivemos a simples tradução de uma sociedade doente, refém de suas certezas, incapaz de ouvir ou aprender algo. Os políticos representam simplesmente a tradução disto.

Nossa democracia sobreviveu, ao contrário de outros países que sucumbiram diante dos populistas, autocracias que dizem viver em liberdade, porém se alimentam apenas de um populismo rasteiro, seja pela via da direita ou esquerda. A construção de uma real democracia passa pelo trabalho constante, demorado, muitas vezes vagaroso. Passa pela educação, normalidade institucional, combate à corrupção, supremacia das leis e limites de poder. Sem tangenciar estes valores, o Brasil poderá estar novamente diante de outro oito de janeiro, com outros atores e métodos, porém, com o mesmo objetivo.  

Clube Autocrático

O ano inicia com um novo formato do BRICS. Entram no clube fundado por China, Brasil, África do Sul, Rússia e Índia, os seguintes novos sócios: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O bloco passa a ser formado por dez países depois desta que é considerada a mais importante ampliação do grupo que opta por uma guinada autocrática, tornando-se definitivamente um fórum hostil ao movimento democrático.

O novo BRICS ou BRICS 10, como tem sido chamado em alguns fóruns internacionais, é composto em sua vasta maioria, ou seja, 80%, por países que não possuem qualquer traço democrático em suas estruturas, sendo considerados ditaduras ou autocracias.  As exceções são Brasil e África do Sul. Nenhum membro, entretanto, pode ser classificado como uma democracia liberal plena.

A avaliação é a mesma daquela realizada pelos principais órgãos que medem os níveis de democracia em escala global, como a Freedom House sediada nos Estados Unidos, Universidade de Gotemburgo na Suécia e Economist Intelligence Unit com base no Reino Unido. O cálculo geral mostra que hoje existe uma ampla maioria de ditaduras e autocracias no mundo e o número de democracias vem regredindo constantemente.

O movimento de expansão do BRICS, portanto, é a expressão clara deste movimento pelo qual passa o mundo em tempos recentes, porém, as consequências deste caminho ainda não foram medidas. Entretanto, causa ansiedade notar que nações classificadas como democracias eleitorais ou imperfeitas como o Brasil se deixem seduzir pela aliança com países que violam garantias e liberdades conquistadas ao longo da História. Nosso país deveria rumar em sentido oposto, consolidando alianças com democracias.

Dentro do BRICS 10, o Brasil agora estará ao lado de autocracias eleitorais, ou seja, aquelas que realizam eleições simplesmente protocolares como Rússia, Egito, Índia e Etiópia, onde sabemos antecipadamente os vencedores. Além destas, agora somos sócios de autocracias fechadas, países já sem qualquer pudor em aplicar uma política despótica, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Irã e China, considerados também regimes autoritários consolidados.

Em Buenos Aires houve uma correção de rumo. O novo governo fez a opção por declinar do convite do BRICS, uma vez que não acredita nos propósitos de um grupo que possui a autocracia como fator balizador e a liderança da China como farol. Os argentinos foram além e falam em diminuir a dependência do investimento chinês que tem tornado aos poucos muitos países reféns dos desejos de Pequim.

Este é o principal ponto deste clube autocrático. O BRICS está longe de ser uma iniciativa que eleva países periféricos a serem partícipes do concerto internacional. O grupo se tornou a principal base de lançamento de iniciativas, financiamento e apoio mútuo de uma política baseada em interesses que estão em confronto direto com os valores ocidentais de liberdade e democracia. Um clube que mina os esforços em prol da democracia, liberdade e soberania daqueles que rejeitam sua cartilha. Uma forma de imperialismo e dominação que de forma silenciosa vem impondo sua agenda e seus interesses em escala global.  

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal

Perigosa Rota da Seda

A empresa chinesa State Grid arrematou o principal lote no maior leilão de energia da história do Brasil. Os chineses levaram o lote de maior investimentos e complexidade, especialmente os empreendimentos que servem para transportar energia por longas distâncias e em alta tensão. O deságio da operação ainda foi de 40%. Os chineses irão construir linhas de transmissão nos estados do Maranhão, Tocantins e Goiás.

A notícia em um primeiro momento parece ser boa, uma vez que somos um país com enorme déficit de poupança interna e precisamos de capital externo para realização de investimentos. Entretanto, se torna intrigante observar o foco dos chineses pela área de energia no Brasil. O setor foi aquele que mais recebeu recursos de Pequim.

O mesmo ocorreu em outras áreas do mundo. No Paquistão um novo corredor está sendo construído com foco na interligação da economia do país com a China. Kashgar agora está ligada diretamente ao porto de Gwadar, cedido aos chineses e sob o seu controle direto pelos próximos 40 anos. A posição estratégica do porto funciona como escoamento dos produtos chineses passando pelo Paquistão.

Em troca de investimentos, a Grécia vendeu 67% do seu maior e mais estratégico porto para os chineses, que agora controlam um dos mais importantes hubs do comércio marítimo europeu. O país asiático implementou o mesmo modelo comprando dezenas de portos no mundo, sendo a proprietária de mais de uma centena deles em cerca de 67 país. Hoje, sete dos dez maiores portos do mundo estão nas mãos dos chineses.

Estas ações fazem parte da famosa e controversa estratégia chamada de “Nova Rota da Seda” que aos poucos desembarca no Brasil. Porém, nem tudo são flores na rota desenhada por Pequim. A estratégia tem sido a mesma, ou seja, oferecer investimentos e tornar os países endividados, usando este laço de “dependência” criado entre as duas nações e a dívida com Pequim como moeda de troca política no xadrez internacional.  

Os exemplos estão espalhados pelo mundo. Em Gana, a população pediu na justiça o fim da exploração da bauxita pelos chineses. O Quênia já acumula mais de 2 bilhões de dólares de dívida com Pequim. Na Malásia, o ex-premiê desviou mais de 800 milhões, deixado uma dívida de 4,5 bilhões de dólares do seu país com a China. A Argentina cedeu parte de seu território na Patagônia para a instalação de uma estação militar chinesa.

Foram estes fatos que levaram muitos países a evitar uma excessiva dependência do capital chinês, por mais atraente que possa parecer. Na verdade, o custo do negócio embutido nos acordos pode custar muito caro para a soberania das nações, tornando-as frágeis quando pressionadas pelo governo de Pequim. Além disso, o tamanho das dívidas assumidas e o tamanho da infraestrutura estratégica concentrada em empresas chinesas tornam os países vulneráveis ao interesse estrangeiro de um único país.

Apesar de já ter se tornado um país sinodependente em alguns aspectos, ainda existe tempo hábil para o Brasil reverter a dependência em setores estratégicos como tecnologia, infraestrutura e logística. É preciso aprender com os erros de outras nações e evitar dissabores que podem custar muito caro para nossa população, soberania e economia.

Milei, um libertário no poder

A vitória política de outsiders se tornou um hábito em tempos recentes, levando uma lista de pessoas com diferentes visões e propostas para o comando de muitos países. São nomes da esquerda, direita, populistas, conservadores e progressistas, porém, na Argentina foi inaugurada a chegada de uma nova vertente política ao comando de um país. O ocupante da Casa Rosada é um libertário.

A situação é tão nova e inusitada que analistas e jornalistas políticos se debatem para encaixar Milei em algum conceito. Já foi taxado de extrema-direita, conservador e até fascista, porém ninguém conseguiu ao certo defini-lo, o que expõe um preparo precário de muitos no que tange ao conhecimento de conceitos políticos, mais um triste sinal destes tempos rasos que vivemos.

A comparação com Bolsonaro é constante, uma vez que possuem estilo de comunicação calibrado para o embate com o sistema. As semelhanças, entretanto, estão apenas neste campo. Enganam-se aqueles que julgam Milei como o Bolsonaro portenho. Existe uma avenida que divide libertários do conservadorismo social, motor do bolsonarismo. Estão em polos tão distantes que podem inclusive ser considerados antagônicos.

Para além desta agenda social que separa ambos, há no argentino uma crença real na privatização e no controle dos gastos públicos, pontos que passaram longe do último governo brasileiro. Além disso, em Brasília havia uma relação umbilical entre militares e governo, baseado na crença de que os fardados são bons gestores, o que se provou uma falácia. Na Argentina, certamente não veremos posições civis nas mãos dos militares.

As relações exteriores também são ponto de divergência entre ambos. Milei convidou e recebeu em sua posse o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Bolsonaro preferiu a companhia de Putin enquanto esteve no poder, assim como faz Lula atualmente. No Brasil, ambos os presidentes deixaram o país em situação desconfortável diante das democracias mundiais quando optaram a se alinhar a autocracias. A Argentina preferiu um caminho oposto àquele trilhado por Lula e Bolsonaro.

A distância responsável da China também é um ponto de divergência. Enquanto Milei mantém uma postura cautelosa, o Brasil fez movimento oposto. Milei, ao contrário dos peronistas, não deseja transformar seu país em uma Argenchina, como dizia Sérgio Massa, candidato derrotado, porém, olhará para Pequim com ceticismo e responsabilidade, com foco na soberania de seu país. 

O libertário é essencialmente um liberal em termos econômicos e neste caminho Milei buscará soluções para a economia argentina, que se encontra em situação de agonia. A trilha a ser percorrida passa pelo controle dos gastos públicos e diminuição do tamanho do Estado, abrindo caminhos para que a economia floresça por meio da própria sociedade como motor de um país próspero. O caminho não é fácil, especialmente em um país refém dos benefícios providos pelo governo.

Em um Brasil que vive o pior dos antagonismos entre dois tipos rasos de populismo, a solução argentina joga luz em opções que estão além das definições rasas apresentadas em solo tupiniquim. Algo que significa uma ótima notícia para os argentinos.

Petróleo, Guiana e Maduro

O mais novo capítulo do avanço das autocracias sobre as democracias começou a ser desenhado nas fronteiras brasileiras. Maduro, ditador da Venezuela, ameaça avançar sobre o território do país vizinho, a Guiana, uma nação autônoma, independente e com suas fronteiras reconhecidas internacionalmente. O foco de sua cobiça está além das terras vizinhas, ou melhor, naquilo que se esconde em seu subsolo: minérios e petróleo.

Hoje, a Guiana extrai cerca de 400 mil barris por dia. Se suas fronteiras continuarem como estão hoje, esse número pode superar 1 milhão em 2027. Segundo a Exxon, a sua reserva abriga 11 bilhões de barris de petróleo — o que posicionaria o país entre os 20 maiores do mundo. Como comparação, o Brasil tem 14,8 bilhões de barris em reservas comprovadas.

A economia da Guiana baseia-se no setor primário e os principais produtos agrícolas são cana-de-açúcar, mandioca, frutas e arroz. Porém tudo mudou com a descoberta de petróleo na região. Depois de iniciada a exploração o PIB per capita da Guiana triplicou. É o país que mais cresce no mundo. Em 2022, o PIB alcançou 14,52 bilhões de dólares. O FMI estima um crescimento de 38% para 2023.

Os números falam por si e explicam a cobiça da Venezuela sobre as riquezas do vizinho. A Venezuela, entretanto, é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo. Porém, desde a tomada do poder pelo chavismo, a produção despencou com falta de investimentos, qualificação e êxodo da população para o exterior, o que levou a deterioração da infraestrutura e politização da indústria. A produção atual é de cerca de 750.000 a 800.000 barris por dia, ainda muito distante dos 3 milhões de barris por dia que faziam do país uma força global no mercado na década de 90.

A corrida pela exploração do petróleo começou em diversas partes do mundo como forma de aproveitar ainda a demanda em alta, uma vez que a transição energética deve atingir em cheio os preços em alguns anos. A Agência Internacional de Energia estima que o uso global do insumo deve ter crescimento mais lento nos próximos anos e atingir seu ápice até o final da década. Depois, deve vir uma queda, especialmente no uso como combustível, já que a adoção de carros elétricos avança em várias partes do mundo.

Ciente disso, Nicolás Maduro busca ampliar a exploração em seu país, autorizando inclusive empresas americanas a explorar o setor como aconteceu recentemente com a Chevron. Porém, 65% do petróleo venezuelano têm como destino a China, outro player interessado nos movimentos políticos de Caracas. Isto significa que a Venezuela jamais daria um passo ousado contra um país vizinho sem possuir respaldo de Pequim.

O argumento de Maduro para avançar sobre Essequibo, se baseia no argumento que o território lhe foi tirado em 1899 por uma sentença arbitral em Paris. Venezuela e Reino Unido (antigo detentor do território da Guiana) concordaram em respeitar o resultado, mediado à época pelos Estados Unidos. Hoje, depois da descoberta de petróleo, ouro, diamante e bauxita, o velho assunto volta à baila. Nada mais conveniente para Maduro, que assim busca unir o país diante de um pseudo-inimigo comum, fortalecer sua imagem e ainda pode ganhar mais uma reserva de petróleo em seu portfolio. Conveniente, porém ilegítimo, irresponsável e inconsequente.