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Foto: Roque de Sá.

O que eu disse ao relator de Liberdade de Expressão da OEA

Na última quinta-feira, participei de uma audiência fechada com o relator de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Pedro Vaca Villareal, que visitou o Brasil esta semana para produzir um relatório.

Fui ouvida como representante do Instituto Direito de Fala, que fundei para reunir pessoas em defesa da liberdade de expressão após um episódio em que eu fui cerceada. Também participaram representantes de outras organizações como Instituto Brasileiro de Direito e Religião, Instituto Millenium e Instituto Liberal, entre outros.

Cada um de nós teve 5 minutos para sua exposição verbal. Nenhum tema foi proposto ou restrito, todos falamos livremente. Também tivemos a oportunidade de enviar documentos à relatoria para embasar nossos relatos.

Podíamos fazer nossas manifestações em inglês e espanhol normalmente. Quem optasse pelo português precisaria falar pausadamente. Optei pelo inglês. Segue a tradução para o português da minha fala.

Prezado Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villareal,

Meu nome é Madeleine Lacsko. Sou jornalista há 28 anos, colunista em O Antagonista, Gazeta do Povo e UOL News, escritora, autora do livro Cancelando o Cancelamento, e fundadora do Instituto Direito de Fala. Já fui assessora da presidência do Supremo Tribunal Federal e da comissão de Direitos  Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. Fiz parte do time do Unicef que erradicou a pólio em Angola. Dedico minha carreira à defesa da liberdade de expressão e do livre debate, pilares essenciais da democracia.

Fui condenada judicialmente por um suposto ato de “transfobia”, embora este conceito não exista no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão foi fundamentada exclusivamente em uma interpretação subjetiva da linguagem, baseada na ideia de que usei uma palavra “indevida” para me referir a um influenciador transgênero.

A expressão “cara” pode ser usada informalmente de forma neutra, mas no contexto específico em que utilizei, tratava-se da forma formal e necessariamente feminina. Ou seja, sequer houve “misgendering”.

A condenação não teve como base a lei brasileira, mas ideologias que dizem buscar justiça social. Isso abre um perigoso precedente para a violação do devido processo legal.

Além disso, o julgamento partiu do pressuposto de que eu teria uma intenção maliciosa ao usar essa palavra, sem que eu sequer tenha sido ouvida pelo Judiciário. Meu último recurso está no Supremo Tribunal Federal.

Além da total ausência de base legal, esse julgamento desconsidera completamente meus direitos como mulher, jornalista e cristã. Como qualquer cidadão em uma democracia, tenho o direito de expressar minha visão sobre a pauta trans e meu conceito de mulher.

Da mesma forma, tenho o direito, como cristã, de professar minha fé, o que inclui a concepção biológica e espiritual do que é ser mulher. No entanto, esses direitos sequer foram levados em conta na decisão, que me trata como se eu não fosse sujeito de liberdade de expressão, de crença e de opinião.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião elaborou um parecer sobre o meu caso porque tem enfrentado desafios semelhantes na área de liberdade religiosa. Há uma tendência crescente de decisões judiciais que ignoram o arcabouço legal, amparando-se em conceitos fluidos que podem ser interpretados de forma arbitrária. Como alerta o parecer do IBDR: “O Judiciário, ao se afastar da legislação objetiva e basear-se em doutrinas ideológicas, coloca em risco não apenas a liberdade de expressão, mas a própria segurança jurídica”.

A tentativa de calar a imprensa não começou agora.

Lembro de um episódio emblemático há 21 anos, quando o presidente Lula tentou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times Larry Rohter por não gostar de uma reportagem.

A perseguição vai além da censura direta. No Brasil, é comum que políticos peçam a demissão de jornalistas, promovam campanhas difamatórias e incitem seguidores a hostilizar e ameaçar profissionais da imprensa e suas famílias.

O Poder Judiciário costumava ser o anteparo aos arroubos autoritários dos políticos. Há um ponto de inflexão quando se torna parte dessa engrenagem.

O marco importante é a censura direta à Revista Crusoé, em 2019, pela reportagem O Amigo do Amigo do Meu Pai, acerca de um ministro do STF. Essa decisão marca uma guinada na cultura judicial, consolidando um ambiente onde a censura se tornou ferramenta recorrente. O deputado Marcel Van Hattem já apresentou esse caso à Relatoria, e a própria Crusoé dará seu testemunho.

A censura também se estendeu ao humor. Humoristas como Léo Lins e Danilo Gentili acumulam dezenas de processos judiciais simplesmente por fazerem piadas.

O caso de Léo Lins é especialmente emblemático: ele teve um especial de stand-up banido, suas redes sociais suspensas, foi proibido de deixar o estado de São Paulo e não pode mais fazer piadas com uma lista de temas elaborada pela Justiça. Shows seus foram cancelados mais de 50 vezes porque políticos locais se sentiram ofendidos. Hoje, ele enfrenta cerca de 80 processos, sendo 20 deles criminais.

Há uma tendência crescente e preocupante. Vale ressaltar que a Justiça brasileira tem não apenas o poder de censurar, mas também de aplicar multas de milhares de dólares e bloquear automaticamente contas bancárias dos réus em punições. É um cenário que tem sido muito eficaz no incentivo à autocensura e ao silêncio. Inclusive das vozes dissonantes dentro do próprio judiciário.

Diante desse cenário, fundei o Instituto Direito de Fala. Nosso objetivo é reunir e apoiar aqueles que compreendem que a liberdade de expressão é a base para todas as outras liberdades. Sem ela, não há debate, não há pluralidade, não há avanços sociais.

O que está em jogo não é apenas minha liberdade de expressão, mas o próprio alicerce da democracia brasileira. Quando o Judiciário abandona a imparcialidade para agir como guardião de ideologias específicas, instala-se um regime onde o arbítrio se sobrepõe ao direito, e a intimidação substitui o debate.

Hoje sou eu a condenada por um crime inexistente, mas amanhã qualquer voz dissonante pode ser silenciada da mesma forma. A liberdade não é um privilégio concedido pelo Estado, é um direito inalienável de cada cidadão. Permitir que ela seja corroída pelo medo e pela censura é aceitar a morte da democracia em silêncio.

Muito obrigada

A Estrela Decadente

Parece contraditório, mas o Partido dos Trabalhadores (PT) chegou ao poder pela quinta vez depois de atravessar um longo período de declínio. 

Seu candidato a presidente foi vitorioso na eleição de 2022, não pela força do partido, mas porque o desastre do governo anterior possibilitou a formação de uma ampla frente de oposição.

Certamente, mesmo em declínio, a força político-eleitoral do PT era ainda significativa; e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo desgastado, não encontrava na oposição nenhum nome que com ele ombreasse em popularidade para enfrentar o então presidente Jair Messias Bolsonaro.

O PT e o presidente Lula não souberam, porém – passados já dois anos, metade do mandato –, aproveitar a reconquista da Presidência da República para recuperarem a força, simbolismo e prestígio que tiveram na aurora do partido. Pelo contrário, retornaram à rota de declínio. 

Todavia, se não é provável, também não é impossível que Lula seja reeleito em 2026; isto porque, se o governo Lula-PT é ruim, a oposição não deixa de ser também uma lástima. 

É tão desoladora a situação que, em lugar de um equilibrado centro-democrático, temos uma coisa chamada “centrão”, aglomerado fisiológico de parlamentares desvairados por dinheiro, o qual abocanham especialmente através de emendas secretas, semi secretas ou escandalosamente abertas.

A redemocratização

Há 45 anos – 1980 –, o Partido dos Trabalhadores nascia como uma estrela fulgurante para a esquerda brasileira, com grande força de atração e equivalente força de propulsão. 

O ambiente era propício para o surgimento de um novo partido de esquerda. A ditadura militar, ainda vigente, estava moribunda. 

Na verdade, não existia mais ditadura: a ‘Anistia Ampla, Geral e Irrestrita’ de 1979, promulgada pelo presidente General Figueiredo, tornara a redemocratização irreversível e as multidões ocupavam as ruas, sem enfrentar repressão, exigindo a realização de eleição para presidente da República, com a campanha das “Diretas já”

Se essa campanha não logrou vitória formal no Congresso Nacional, ao menos instituiu a democracia diretamente no espaço público: nas ruas, praças e botequins. Corria pelo Brasil uma verdadeira euforia democrática. 

Embora tenha derrubado a emenda das eleições diretas para presidente (emenda Dante de Oliveira), o Congresso Nacional viu-se forçado a caminhar para a eleição de um presidente da República civil, tendo o Colégio Eleitoral elegido, em janeiro de 1985, Tancredo Neves (que morreu antes da data da posse, o que levou à posse do vice-presidente eleito, José Sarney.

Lula e o PT

Gestado nesse contexto de lutas contra a ditadura militar brasileira e clima de redemocratização, o PT teve como suporte principal uma forte base sindical montada a partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, presidido pelo operário/torneiro mecânico (licenciado por acidente) Luiz Inácio da Silva (ainda sem o famoso apelido acrescido ao nome em cartório). 

A essa base vieram a se unir contingentes expressivos de diversos segmentos sociais contestatórios, com destaque para a esquerda remanescente das lutas estudantis de 1968 e guerrilheiros que sobreviveram aos “anos de chumbo”, assim como comunidades eclesiais de base da Igreja católica e o movimento estudantil, fortemente reativado por essa época.

Quando aconteceu a almejada eleição direta para presidente, em 1989, o PT já estava forte o suficiente para ir ao segundo turno. 

Leonel Brizola (PDT) era tido como favorito naquela eleição, mas cresciam o nome de Lula e de um jovem político de Alagoas, até pouco tempo nacionalmente desconhecido, chamado Fernando Collor de Mello.

Collor venceu, então, a primeira eleição presidencial pós-redemocratização, mas realizou um governo tão estúpido e desastroso que não demorou a ser afastado por impeachment. 

Como se sabe, a persistência petista levaria Lula a Presidência da República na eleição de 2002, quando derrotou José Serra (PSDB).

Petismo, lulismo e marxismo

Com a entrada trepidante de Lula no cenário nacional através da enorme repercussão das greves de fábricas no ABC paulista nos anos 1970, o fato de um operário ser alçado à condição de grande liderança fascinou a intelligentsia marxista brasileira. 

Ainda antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, um enxame desses intelectuais passou a cercar o futuro presidente do PT e doutriná-lo com o extrato do pensamento de Marx, Engels e Lênin. 

Pouco afeito à leitura, Luiz Inácio não teria como compreender muito bem a complicadíssima ciência do materialismo histórico e dialético, mas o componente do autoritarismo leninista (bolchevismo) foi bem assimilado. 

É certo que Lula desenvolveu forte simpatia, apego e estima por ditaduras de esquerda; como são os casos notórios da ditadura de Cuba (desde os tempos de Fidel Castro) e da ditadura da Venezuela (desde os tempos de Hugo Chaves), dentre outras. 

Lula não apenas nutriu simpatia por tais regimes, como também os financiou generosamente durante o exercício dos seus passados mandatos.

Fora essa paixão ideológica por ditaduras, Lula é tido e havido como um político pragmático, capaz mesmo de fazer alianças espúrias para se dar bem. 

O dono do PT

Nas pesquisas que andei fazendo para reconstituir o histórico do PT, conversei com alguns militantes dos primórdios do partido, que participaram ativamente da sua fundação em algumas cidades do Nordeste e que tiveram cargos de direção em alguns diretórios estaduais e municipais. 

Explicaram-me eles que, naqueles tempos, havia democracia interna; a democracia partidária era a tônica. 

Lula era, naturalmente, uma liderança respeitada, mas muito longe de ser o autocrata que, segundo alguns ex-petistas com quem conversei, passou a submeter o partido ao seu inteiro talante. 

Como se diz e é comum em outros partidos brasileiros: hoje o PT tem dono. 

Um dos motivos pelo qual o governo Lula vai mal é esse: ele não conta com um partido no qual possa pensar coletivamente, discutir, aprimorar projetos e ideias ou encontrar quem salutarmente o questione. A única instância de discussão de Lula parece ser ele mesmo; e agora Janja.

A corrupção petista

Nos primeiro e segundo mandatos de Lula, o governo petista atolou-se em corrupção. Nos dois mandatos de Dilma Rousseff, o governo petista atolou-se mesmo na incompetência. 

O desastre do segundo mandato de Dilma levou ao seu impeachment. E é preciso frisar bem: foi um legítimo processo de impeachment que afastou a presidente Dilma, não foi um “golpe”, como apregoa a narrativa dos inconformados petistas; do mesmo modo que não foi golpe o impeachment de Collor de Mello.

A corrupção desencadeada nos primeiros governos de Lula geraram processos que o levaram à cadeia após julgamentos referendados pelo Supremo Tribunal Federal (STF); o mesmo Supremo que viria a libertá-lo, mudando suas interpretações e permitindo sua candidatura em nova eleição.

Sem entrar na análise dessas decisões erráticas do STF, fato é que somente um líder com grande carisma e popularidade poderia voltar ao poder, pelo voto, após tamanhos descaminhos.

Todavia, parece-me que Lula e seu partido vão chegando ao fim da linha. Lula, pelos descaminhos políticos e também pela idade. E o PT porque, ao deixar-se submeter à autocracia de Lula e insistir nas ideias autoritárias de uma esquerda que fede a mofo, tende a morrer com ele.

Lula e o Centrão

Lula, hoje, enquanto lida com o seu próprio partido com menosprezo e rigor de autocrata, submete-se, no Congresso Nacional, às artimanhas e chantagens do Centrão.

Os lulistas mais devotos tentam justificar essa pusilanimidade do presidente da República diante dos abusos da ala parlamentar fisiológica com a desculpa de que, sem isso, a governabilidade perece. 

Creio que o PT de outrora, de antes do primeiro mandato corrompido de Lula, teria ocupado as ruas para sustentar seu programa de esquerda, em vez de ceder às chantagens dos congressistas oportunistas de plantão. 

A velha esquerda e a nova esquerda

De um modo geral, a forma mais destacada da política brasileira, nos últimos anos, tem sido a lacração na internet. E esse é mais um motivo do declínio de Lula e do PT: ambos são analógicos. 

Na verdade, a esquerda brasileira é, em sua maioria, velha, analógica e melancólica. Penso que, nessa condição, estão alguns dos esquerdistas mais respeitáveis (nessa categoria de respeitáveis não incluo Lula, que é só velho e analógico; penso aqui em outras personalidades). 

Simpatizo um pouco com a velha esquerda romântica, desiludida e nostálgica, que lutou contra a ditadura, mas antipatizo profundamente com a nova esquerda que hoje faz barulho nas redes sociais. 

A nova esquerda é essa turma woke, identitária, extremista, fanática, meio demente, nutrida por uma estúpida ideologia anti-ocidental.

Enfim, entendo que o PT acabou e que o lulopetismo é uma política em fase de extinção. O que não me entristece. Entristece-me, porém, não ver algo de animador no horizonte. Até o momento, não consigo ver luz no fim do túnel; nem à esquerda, nem à direita. 

A(s) política(s) externa(s) do Governo Trump2

Em 1971, Graham T. Allison, então jovem cientista político de Harvard, lançou uma obra hoje clássica para os estudos de processos decisórios de políticas públicas. Essence of Decision analisa a tomada de decisões do governo do presidente John F. Kennedy num dos mais dramáticos episódios da Guerra Fria: a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (outubro de 1962). Fotos aéreas da Inteligência dos Estados Unidos revelaram que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares apontados para o território norte-americano, a alguns quilômetros de distância, com o beneplácito do governo comunista de Fidel Castro. Naquele momento, o mundo jamais esteve tão próximo de um holocausto termonuclear.

As cúpulas burocráticas civis e militares do governo Kennedy — Departamento de Estado, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional, Estado- Maior das Forças Armadas — competiam entre si para ‘fazer a cabeça’ do presidente quanto à melhor opção para enfrentar aquele desafio da URSS: conversações diplomáticas? Bombardeio aéreo? Invasão terrestre? Bloqueio naval das águas cubanas? Kennedy optou pela última alternativa. Na sequência, o presidente do Conselho de Ministros e primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita S. Khrushchev acabou cedendo e ordenando o desmonte das plataformas de lançamento dos foguetes. E, num toma-lá-dá-cá à época não divulgado, os Estados Unidos concordaram com a retirada de mísseis da Otan apontados para a URSS..

Allison questionou a ‘falácia da composição’ subjacente ao paradigma do estudo das Relações Internacionais: o modelo do “ator racional unificado” (a União Soviética agiu assim, os Estados Unidos reagiram assado etc), como se todas as decisões emanassem de um estadista onisciente, frio, cem por cento racional, confrontando-o com dois outros. Um deles refletia a queda de braço entre os interesses das diversas organizações governamentais envolvidas; e o outro, a “política burocrática”, ora de competição, ora de cooperação, das autoridades de diferentes repartições. (Em 1999, com a colaboração de Philip Zelikow e graças à divulgação do conteúdo de arquivos diplomáticos e militares soviéticos mantidos sob sigilo absoluto até a implosão da URSS, Allison publicou uma segunda edição de Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, substancialmente revista e ampliada.

No início deste mês de fevereiro, em sua coluna para a Bloomberg, Hal Brands, docente da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais)/Universidade Johns Hopkins, Washington, D. C., e pesquisador do American Enterprise Institute, reforçou a perene validade dos insights allissonianos.

Na visão de Brands, o segundo governo Trump tem não uma, mas cinco diferentes políticas externas, cada uma delas defendida por um segmento da coalizão Republicana hoje no poder e todas dispostas a garantir que os seus pontos de vista prevaleçam no processo decisório.

Em primeiro lugar, vêm os “Falcões Globais”, liderados pelo secretário de Estado Marco Rubio e pelo assessor-chefe de Segurança Nacional Mike Waltz. Esse grupo procura se manter fiel ao desejo de Trump no sentido de renegociar as alianças estratégicas dos Estados Unidos (países membros da Otan, Japão, Taiwan, Arábia Saudita etc), mas permanece convicto de que os desafios colocados pelo ‘eixo autoritário’ Pequim/Moscou/Pyongyang/Teerã só podem ser vitoriosamente confrontados mediante a estreita colaboração com esses e outros parceiros estrangeiros.

Em segundo lugar, Brands aponta a clique dos “Guardiões da Ásia”, capitaneada por nomes como Elbridge Colby, subsecretário de Defesa, e o senador Republicano Josh Hawley, do Missouri. Eles acreditam que o risco cada vez mais eminente de uma guerra com os chineses justifica e exige o redirecionamento dos recursos militares da América, hoje concentrados na Europa (guerra Rússia X Ucrânia) e no Oriente Médio, para o Indo-Pacífico, objetivando fortalecer a proteção de Taiwan diante das cada vez mais frequentes ameaças de invasão transmitidas por Pequim; incrementar os pactos armados já existentes com Austrália e Reino Unido (Aukus) e com Japão, Austrália e Índia (Quad, ou Diálogo Quadrilateral de Segurança); bem como celebrar novas alianças com outras nações da região, igualmente temerosas do expansionismo chinês no Mar do Sul da China, a exemplo das Filipinas e do antigo inimigo, o Vietnam).

Em terceiro lugar está a turma da “América, Volte para Casa!”. O vice-presidente J. D. Vance e a diretora da Inteligência Nacional Tulsi Gabbard (ex-deputada Democrata pelo Havaí) advogam um drástico enxugamento dos gastos e compromissos militares dos Estados Unidos mundo afora em troca de mais dinheiro do orçamento federal para turbinar programas domésticos de bem-estar social (Medicare e Medicaid são dois exemplos).

Em quarto lugar, Brands identifica os “Nacionalistas Econômicos”, destacando os secretários do Tesouro (Scott Bessent) e do Comércio (Howard Lutnick). Esta clique enxerga a política externa sob o prisma dos interesses comerciais dos Estados Unidos: uso, ou ameaça do uso, de barreiras tarifárias e não tarifárias como ferramentas para a abertura de mercados aos investimentos e exportações americanos. Esse grupo se alinha com o interesse de Trump em assegurar a hegemonia dos Estados Unidos em setores sensíveis como Inteligência Artificial e recursos energéticos. Diferentemente dos “Guardiões da Ásia”, os “Nacionalistas Econômicos” privilegiam a dimensão comercial e financeira da rivalidade com a China, em detrimento da dimensão militar.

Por último, mas não em último, a “Linha-Dura do MAGA, encabeçada pelo subchefe da Casa Civil Stephen Miller, se opõe a qualquer tipo de ajuda externa e subordinam a política externa às prioridades de sua agenda doméstica: imigração ilegal, em primeiríssimo lugar.

Sempre segundo Hal Brands, as disputas entre essas cinco facções elevam o grau de imprevisibilidade da política externa e de segurança nacional. Os “Falcões Globais” batem de frente com a “Linda-Dura do MAGA”, no exemplo mais óbvio; ou então, “Nacionalistas Econômicos” e “Guardiões da Ásia” procuram solapar as iniciativas recíprocas.

Ao mesmo tempo, ele aponta zonas de convergência importantes, o que pode abrir oportunidades de alianças táticas entre facções como as dos “Falcões Globais” e dos “Guardiões da Ásia”, ou até mesmo destes com a clique da “América, Volte para Casa”, ao menos no que respeita à redução de compromissos militares na Europa e no Oriente Médio….

Ao fim e ao cabo, o professor adverte as autoridades da nova administração contra o que considera falsas e perigosas soluções, entre as quais a vulgarização dos tarifaços comerciais a ponto de uma orgia protecionista enfraquecer as relações da América com aliados preciosos. Ou então, uma pressão tão descabida sobre a Aliança Atlântica, para que esta assuma parcela maior de responsabilidade financeira na estabilização da ordem internacional, a ponto de mergulhar os Estados Unidos, superpotência indispensável, num imprevisível isolacionismo.

Foto: Sérgio Lima/Poder360 .

Crise de Identidade

Em 1988 o legislador elaborou uma carta constitucional de claro teor parlamentarista. A aposta era esperada, afinal, em 1993 o Brasil encararia um plebiscito que poderia mudar o sistema de governo. Faltou combinar com os russos, como diria Garrincha, e o eleitor optou pelo presidencialismo. O resultado foi o modelo popularmente conhecido como “presidencialismo de coalizão”, onde o Planalto fatiava o governo entre os aliados diante da necessidade de formar maioria em um sistema fragmentado.

Cerca de 30 anos antes, outra tentativa de mudança no tapetão havia sido desenhada, com a adoção do sistema parlamentar em meio ao mandato de João Goulart. O objetivo era evitar um golpe e a manutenção do mandato do Presidente, porém confiscando seus poderes, entregando-os para uma espécie de Primeiro-Ministro. Inicialmente escolhido para chefiar o governo, o mineiro Tancredo Neves acabou renunciando, o que abriu uma crise sucessória envolvendo os nomes de San Tiago Dantas, Auro de Moura Andrade e Brochado da Rocha. Instaurado em 1961, o incipiente parlamentarismo foi derrotado no referendo de 1963, devolvendo o país ao presidencialismo tradicional.

Agora uma nova tentativa volta à baila, entretanto, muito mais para normalizar uma situação de fato, do que uma iniciativa para mudar as regras do sistema. De fato, o país já vive em um modelo parlamentar. Torto, é verdade, mas parlamentar. Um movimento que começou nos anos Dilma, mas que se intensificou enquanto Bolsonaro ocupava o Planalto. Hoje, com o controle do orçamento em suas mãos, o parlamento tomou para si, indiretamente, a função de governar, ou seja, assumindo o bônus de direcionar recursos, porém, sem qualquer tipo de ônus ou desgaste.

Com o objetivo de normalizar institucionalmente esta situação, surgiu a discussão do semipresidencialismo na Câmara dos Deputados. O modelo é inspirado no sistema francês onde o Presidente, chefe de estado, é eleito pela população e o primeiro-ministro, chefe de governo, indicado pelo Presidente, depende da confiança do parlamento. Este deve liderar seu gabinete, formado pelo conselho de ministros. Neste caso, o controle do governo se divide, assim como o poder, responsabilizando o Congresso Nacional e o Presidente, que podem inclusive derrubar o Primeiro-Ministro.

Fato é que diante do atual modelo, com a autonomia do parlamento por meio das emendas, houve o sepultamento do Presidencialismo de Coalizão, uma vez que este mecanismo depende do poder do governo em manter uma maioria por intermédio da alocação de recursos. Hoje estamos diante de um novo sistema. Se 20 anos atrás, mais de 70% dos recursos repousavam sob o domínio do governo, hoje apenas 7% estão sob seu controle. O parlamento tornou-se senhor do orçamento. Formar um base de apoio do governo no Congresso Nacional da forma tradicional tornou-se impossível.

Mais do que mudar o sistema de governo, a proposta vem reconhecer e disciplinar uma mudança que de fato já ocorreu no interior do modelo político, responsabilizando seus agentes eleitos de acordo com as funções que exercem, sejam deputados, senadores e o próprio Presidente da República, atualmente um legítimo pato manco diante das atuais regras. Resolver esta crise de identidade se tornou ponto central de nosso país, que vive um sistema disfuncional, errático e desorientado, incapaz de gerar as políticas públicas e regras de controle necessárias para a condução de um governo.

O Fim da Lei da Ficha Limpa

Em algum momento é capaz que a pergunta do título tenha sido feita por alguém, vai saber. A história de acabar com a Lei da Ficha Limpa é a prova definitiva de que, enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Os políticos há anos fazem da população de bem um joguete para avançar seus próprios interesses e, dessa vez, o plano é enterrar a única ferramenta popular que realmente atrapalha a farra das emendas e a perpetuação da corrupção nos municípios brasileiros.

Desde que a Ficha Limpa entrou em vigor, políticos de todas as ideologias tentam derrubá-la. Sempre há uma desculpa conveniente: uma hora porque o Lula pode ser afetado, outra porque o Bolsonaro pode ser prejudicado. O que eles não dizem é que, ao lado desses dois nomes conhecidos, estão milhares de prefeitos, vereadores e deputados estaduais e federais com condenações que impedem suas reeleições. Tirar essa barreira significa liberar a volta dessa turma e garantir que a engrenagem da corrupção continue funcionando sem freios.

A matemática da corrupção é simples. O político eleito garante emendas para seu reduto eleitoral, direciona dinheiro para onde bem entende e, muitas vezes, esse dinheiro desaparece. Quando são pegos, perdem o direito de se candidatar de novo. Com a Ficha Limpa fora do caminho, podem voltar tranquilamente ao poder e continuar o ciclo. Isso tem nome: golpe contra o eleitor.

O cidadão comum, que acompanha política nas horas vagas, acaba caindo no engodo porque os políticos exploram sua falta de tempo e de informações. O projeto de combate à corrupção eleitoral começou em 1996, quando eu já trabalhava como repórter. Foram 14 anos de luta até a aprovação da Ficha Limpa em 2010. Desde então, não houve um só ano em que políticos não tentassem derrubar essa barreira. O motivo é óbvio: ela é um empecilho real para o esquema de corrupção em prefeituras e câmaras municipais do país inteiro.

O mais preocupante é que, desde 2013, com as manifestações de junho, o brasileiro gosta de dizer que está mais politizado. Mas há um dado que contraria essa ideia. Pouca gente sabe que, no Brasil, existem apenas quatro leis de iniciativa popular, aquelas que não vêm de políticos, mas sim do povo. São elas: a Lei da Ficha Limpa, a que criminaliza a compra de votos, a Lei Daniela Perez (que endureceu penas para assassinatos qualificados) e a que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.

Repare no ritmo: uma foi aprovada em 1994, outra em 1999, a terceira em 2005 e a última em 2010. Se seguíssemos essa lógica, teríamos uma nova em 2015 e outra em 2020. Mas, ao contrário disso, o que temos visto é um movimento inverso: em vez de a população se mobilizar para criar novas leis, ela tem se desmobilizado e caído no papo de políticos que querem revogar as leis conquistadas pelo próprio povo.

A indignação contra o Judiciário é legítima, mas ser contra abusos do TSE não significa que a solução seja colocar a raposa dentro do galinheiro. Revogar a Ficha Limpa não tem nada a ver com reequilibrar os Poderes. O objetivo é só um: garantir que políticos condenados possam continuar no poder. E estão manipulando você para que aceite isso.

O alerta aqui é simples. Você não é obrigado a acompanhar política todo dia. Mas eu sou, porque esse é o meu trabalho. E estou te dizendo: os políticos estão te enganando. Enganar alguém é fácil. Difícil é fazer essa pessoa admitir que foi enganada. Mas ainda dá tempo de enxergar o jogo. Pense: desde quando a solução para o Brasil é confiar mais em políticos? Se vamos brigar, que seja contra os políticos, e não por eles.

Donald Trump contra o consenso de Washington

O partido Republicano de Donald Trump não é, definitivamente, o partido Republicano tradicional. Aquele de Abraham Lincoln, de Theodore Roosevelt e de Ronald Reagan ficou no passado distante, substituído por outro, que preservou o nome, mas mudou de estandartes. Ao invés do primado liberal das instituições, o populismo, ao invés da abertura de mercados, o isolacionismo, ao invés da globalização, a guerra tarifária

O novo presidente americano vai na contramão do chamado “Consenso de Washington”, ideário econômico que simbolizou o triunfo da economia de mercado sobre o planejamento central e, portanto, a vitória americana na Guerra Fria. Ao longo dos anos que se seguirem ao colapso da União Soviética, os EUA fizeram da globalização um verdadeiro imperativo categórico das relações comerciais internacionais.

Em 1987, Ronald Reagan, ciente da vantagem dos Estados Unidos, fez um discurso histórico na comemoração do 750º aniversário de Berlim diante do Portão de Brandemburgo: “Secretário Geral Gorbachev, se você procurar paz, se você procurar a prosperidade para a União Soviética e Europa Oriental, se você procurar liberalização, venha aqui a este portão. Sr. Gorbachev, abra o portão. Sr. Gorbachev, derrube este muro!”, disse. Fazia referência a abertura soviética e ao modelo americano. Vaticinou a queda do muro e o colapso do regime bolchevique, que caiu de podre.

É bem provável que o conservadorismo dourado de Reagan, e sua defesa pungente de uma economia integrada fosse amplamente repudiados pela nova elite dirigente do partido Republicano, convertido agora na imagem e semelhança de Donald Trump. Ele e seus militantes mais fanáticos, ironicamente, encamparam exatamente os mesmos discursos antiglobalizantes de socialistas mundo afora.

A guerra tarifária de Trump não será boa para ninguém. Coloca em cheque as relações dos Estados Unidos com aliados históricos, alimenta a inflação global, acarreta prejuízo aos consumidores americanos, que pagarão o custo dela com alta dos preços internos, e, por fim, abre o espaço para o aumento da presença chinesa no comércio internacional. Após 38 anos da fala de Reagan em Berlim, é curioso notar que agora são os EUA que parecem se esconder atrás de um muro: o muro do protecionismo.

Trumpismo de Resultados

O estilo de Donald Trump na condução da presidência tem uma estreita relação com a forma com a qual ele sempre conduziu os seus negócios e muito pouco daquilo que é conhecido como a maneira tradicional de fazer política. Esta postura, ao mesmo tempo que causa ondas de inquietação, vem colhendo resultados, uma vez que inaugura uma nova forma de fazer política, retirada dos seus próprios manuais de negociação.

O modelo básico usado por Trump é simples, porém, jamais utilizado no tabuleiro de xadrez internacional, especialmente por alguém com habilidade de negociador no setor privado. Conseguiu aumentar as bases americanas na Groenlândia, rota utilizada pelos navios chineses, após sugerir a compra do território que pertence à Dinamarca. Em sequência, Steve Witkoff, seu enviado especial para o Oriente Médio, selou o acordo entre Hamas e Israel, produzindo o cessar-fogo e o retorno dos reféns para casa.

O foco do Presidente americano, entretanto, foi além. Anunciou que retomaria o Canal do Panamá, caso os vizinhos permanecessem em flerte contínuo com os chineses em detrimento dos interesses dos Estados Unidos. O local foi o primeiro destino de viagem do novo Secretário de Estado, Marco Rubio. O resultado foi contundente. O país decidiu não renovar o acordo da Nova Rota da Seda com Pequim tornando-se o primeiro país latino-americano a deixar a iniciativa. Um duro golpe para a China, que enxerga o país da América Central como essencial para seus esforços de influência no mundo.

Emmanuel Macron, Presidente da França, anunciou que irá dobrar seu orçamento de defesa, atingindo 110 bilhões de Euros. Trump havia anunciado que os EUA continuarão a investir na defesa da Europa, mas solicitou que os países da Otan que elevassem os gastos militares para 5% do PIB. Como vemos, sua fala já começou a produzir resultados.

Ao enviar o diplomata Richard Grenell para a Venezuela, conseguiu a libertação de seis americanos que estavam presos em Caracas. Maduro ainda concordou em receber de volta ao seu país (e fornecerá transporte para a deportação) todos os venezuelanos ilegais presos nos EUA, incluindo integrantes de gangues do “Tren de Aragua”. Em El Salvador, Marco Rubio selou um acordo com o Presidente Nayib Bukele, que passará a aceitar deportados de qualquer nacionalidade, incluindo criminosos condenados por delitos graves, em um acordo sem precedentes entre ambos os países.

Na esfera da América do Norte, Trump impôs tarifas comerciais contra Canadá e México. Isto levou o México para mesa de negociação. Claudia Sheinbaum optou por um acordo em várias frentes, incluindo envio imediato de 10.000 soldados da Guarda Nacional para fronteira, com vistas a evitar a imigração ilegal e o tráfico de drogas para os Estados Unidos, especialmente fentanil. Em contrapartida, Trump aceitou suspender as tarifas por um mês, quando as negociações devem evoluir. O Canadá seguiu o mesmo caminho.

O novo presidente americano possui objetivos claros e agenda extensa para cumprir. Está claro que deseja imprimir um papel de protagonista central ao seu país no cenário externo fazendo valer os seus interesses ao redor do globo, exercendo, sem rodeios, suas credenciais de superpotência. Para alcançar este objetivo seguirá desafiando a política tradicional e impondo seus métodos de negociador do setor privado. Estamos diante do trumpismo de resultados, que significa uma mudança profunda no modo dos Estados Unidos se relacionarem com o mundo.

O sistema venceu no Congresso. Você gostou?

No Brasil, certas frases mudam de significado dependendo de quem as usa. Se a direita dissesse que “o Brasil é dos brasileiros”, ou Trump dissesse que “a América é dos americanos” já teríamos textos indignados na imprensa, colunistas denunciando a “xenofobia estrutural” e agências de checagem decretando que se trata de um discurso de ódio. Mas e quando a frase vem do governo Lula? Aí vale tudo.

O problema começa pela intenção do governo com esse boné. Segundo o ministro Alexandre Padilha é uma resposta ao icônico boné vermelho de Donald Trump, o Make America Great Again, usado por Bolsonaro. A ideia era atacar o fato de um patriota usar símbolos de outro país. Só que, ao invés de contradizer Trump, ele apenas fez uma cópia descarada da ideia.

Pior de tudo é que a versão petista veio exatamente no mesmo tom de azul do boné dos Irmãos Metralha, uma piada pronta.

O pior é a frase, que não diz nada e, ao mesmo tempo, diz muito. Se o objetivo era adesão popular, a frase “O Brasil é dos brasileiros” foi um tiro no pé. Primeiro, porque não significa nada em termos práticos. Segundo, porque se um político de direita dissesse isso, o rótulo de xenofobia viria na hora.

Afinal, o Brasil sempre foi um dos países mais acolhedores para refugiados e imigrantes, muitos dos quais se tornaram cidadãos plenos, trabalhando, contribuindo e se integrando ao país. Agora, do nada, surge um governo que decide criar uma divisão desnecessária.

Pior ainda: essa frase é um slogan usado por partidos de extrema direita na Alemanha. Se a intenção era se bancar o antifascista ou democrata, o governo Lula conseguiu o oposto: aproximou-se do tipo de nacionalismo que, se dito pelo adversário político, seria condenado sem hesitação.

Mas talvez o verdadeiro problema esteja na mentalidade que produz esse tipo de decisão política. O governo Lula tem se especializado em criar pautas artificiais, focadas mais na estética do que na realidade. Enquanto o país enfrenta crises reais, inflação alta e um governo paralisado pelo próprio fracasso, os estrategistas do Planalto decidem gastar tempo e dinheiro com um boné que ninguém pediu.

O que impressiona é que essa estratégia continua sendo usada como se ninguém percebesse a manipulação. A velha política se mantém ativa, encenando disputas e polarizações artificiais para manter sua base mobilizada. Enquanto isso, a população lida com a economia instável e a falta de perspectiva, mas pelo menos o PT tem um boné para distrair.

O curioso é que se alguém do governo Lula resolvesse produzir um boné com a frase “O trabalho liberta”, talvez ninguém se escandalizasse. O Brasil chegou a esse ponto.

Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke

O wokismo como cultura dominante progressista chegou ao fim com a contrarrevolução de Trump, é o que escreve Benedict Neff, analista político suíço, em seu artigo no Neue Zürcher Zeitung (NZZ).

Ao analisar a chamada “revolução do senso comum”, proclamada pelo presidente americano em seu discurso inaugural, o jornalista explica: “o que ele quer dizer com isso é que existem apenas dois gêneros e que as pessoas devem falar como quiserem — “liberdade de expressão“. Parece simples. E é. O senso comum não é muito exigente.

Por uma feliz coincidência, acabo de ler um divertido e interessante texto “entrevista com o senso comum”, escrito por Luiz Felipe Pondé.

Ao ser questionado por Pondé sobre o que considerava mais importante na sua vida, o senso comum respondeu: “minha família, que meus filhos não usem drogas e Deus”. Eis a chave do imbróglio político da atualidade e o motor que impulsiona a tal polarização.

Se a esquerda raiz já atacava a família – Marx e Engels a veem apenas como uma instituição burguesa voltada para a manutenção da propriedade privada – e Deus – A religião é ópio do povo – a nova esquerda pós-moderna e pós-marxista, conceitualmente nutrida por Marcuse, Foucault, Judith Butler, etc escancara essa guerra contra os valores morais de maneira chocante para o senso comum.

Um ponto importante, abordado também por Pondé em artigo anterior ao supracitado, é que essa esquerda nutella woke pretende “criar um novo senso comum”, o que é obviamente absurdo uma vez que “o senso comum não é algo que a engenharia social, paradigma da esquerda, consegue fazer acontecer”.

Esse anseio paradoxal e impossível de criar um novo senso comum explica parcialmente o alto grau de autoritarismo da militância woke.

Aceitar que um indivíduo adulto opte por tomar hormônios e fazer uma cirurgia para mudar de sexo sem se intrometer na sua vida nem condená-lo por viver assim não é mais suficiente. Você deve acreditar que esse indivíduo realmente mudou de sexo; pensar o contrário seria indicativo de intolerância e transfobia; expressar o que você pensa e acredita acerca disso pode lhe render processo e até cadeia.

Educar as crianças para esse novo mundo onde há mais gêneros do que cores do arco-íris é fundamental nesse processo de engenharia social; se você não acha que seus filhos devem ser educados nesse fantástico mundo de Bobby, prepare-se, seu reacionário homofóbico transfóbico de extrema direita, para ter problemas com o Estado e com seus amigos mais despertos (wokes).

Foi por se contrapor duramente a essa situação distópica que Trump assegurou, mais uma vez, a sua vitória, o que é um forte indicativo, segundo o jornalista suíço do NZZ, de que o Woke como cultura ocidental dominante chegou ao fim.

Benedict Neff lembra que “o antecessor de Trump, Joe Biden, assumiu o cargo em 2021 para formar o gabinete mais diverso da história americana e seu primeiro decreto foi sobre justiça social e equidade em relação às minorias. A ideia de que a sociedade deveria se tornar mais inclusiva, diversa e sensível parecia imparável no Ocidente. Isto foi considerado um progresso por excelência”.

Pesquisas mostravam, porém, que a maioria da população (o tal senso comum) ficava cada vez mais desconfortável com as proibições de pensar e falar que inevitavelmente acompanhavam o avanço das políticas afirmativas. Mesmo assim, os democratas continuaram enfiando goela abaixo da sociedade os valores DEI (diversidade, equidade e inclusão).

Um número cada vez maior de pessoas foi entendendo que essas políticas, que retoricamente afirmavam buscar a libertação das minorias, “na verdade as limitava à sua identidade, a categorias como origem, cor da pele e gênero”.

Donald Trump está acabando com as políticas DEI. É a revolução do senso comum. O problema é que a direita populista, nacionalista, iliberal, representada por Trump não é propriamente uma direita dotada de bom senso, mas uma direita que tende, também ela, a se contrapor a algo muito comum, genuíno e espontâneo: a compaixão, por exemplo.

Dentre as suas inúmeras medidas duríssimas contra imigrantes, destaca-se como particularmente desumana o ter encerrado o status de proteção temporária (TPS, na sigla em inglês), para mais de 300 mil venezuelanos nos Estados Unidos, que devem ser deportados para voltar a sofrer os horrores da ditadura de Maduro nos próximos meses.

Ao comprar a briga contra a cultura woke, Trump conseguiu votos e apoio daqueles que já estavam exasperados com o avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista. Sob esse aspecto, Trump parece ter sido um mal necessário para frear as pretensões de uma esquerda que levou seus erros longe demais.

Considerá-lo um mal necessário para o momento, porém, é diferente de fazer dele um ícone, um ídolo, um grande símbolo da liberdade, tal como o faz a direita brasileira, que o adora como novo mito.

Foi vexatória e patética a excursão de parlamentares brasileiros de direita para os Estados Unidos, primeiro no dia da eleição, depois no dia da posse.

Mas também foi e é vergonhosa, pelo motivo oposto, a cobertura da imprensa progressista sobre qualquer coisa que diga respeito a Trump. A imprensa não preciso idolatrá-lo nem demonizá-lo, mas acompanhar com atenção e senso crítico suas decisões.

Para voltar a citar o já referido artigo do NZZ, parece que “o momento está com Trump.”

Lembra Benedict Neff que, “Para Goethe, o zeitgeist era a predominância de um lado que assumia o controle da multidão e fazia o que tinha que fazer por um tempo, enquanto o outro lado tinha que se esconder. Mas em algum momento o zeitgeist muda novamente…”

A cultura woke tende a cair em ruína sob o peso do seu próprio absurdo. Resta saber que outro erro absurdo tomará o seu lugar a fim de resistirmos também a ele.

As deportações de Trump podem minar os interesses maiores dos EUA na América Latina

À medida que o governo Trump prepara o terreno para deportar migrantes indocumentados em uma escala sem precedentes, vale a pena considerar como isso pode involuntariamente minar os interesses dos EUA nas Américas.

As deportações são uma ferramenta fundamental da política de imigração dos EUA, e os Estados Unidos removeram 271.000 migrantes indocumentados no ano fiscal de 2024, a maior alta em 10 anos. Dada a estimativa de 660.000 migrantes com antecedentes criminais ou acusações pendentes, o esforço do governo Trump para aumentar as deportações tem mérito. No entanto, a escala de deportações em consideração traz riscos substanciais.

A dura realidade é que a migração é um sintoma de uma região desestabilizada pela insegurança, e as deportações em massa podem inadvertidamente fortalecer grupos criminosos, minando os esforços dos EUA para combater o crime transnacional, conter a influência da China e pressionar regimes autoritários na região.

A migração se tornou um negócio cada vez mais lucrativo para grupos do crime organizado na América Latina, que caçam e lucram com migrantes por meio de contrabando, extorsão, tráfico sexual e recrutamento. O crescimento dramático da gangue Tren de Aragua oferece um dos exemplos mais claros de como o crime organizado se expandiu por conta da migração e como as deportações podem acelerar seu crescimento novamente.

A reportagem da InSight Crime documentou como a Tren de Aragua explorou a migração em massa de venezuelanos para a Colômbia, Peru e Chile, que começou em 2018, para se transformar de uma gangue local baseada em prisões venezuelanas em uma organização criminosa transnacional. A Tren de Aragua desenvolveu um ecossistema predatório abrangente: estabelecendo controle sobre travessias de fronteira, coordenando operações de contrabando de pessoas e forçando migrantes a atividades criminosas por meio de sequestro e coerção.

Depois de estabelecer o controle territorial por meio da exploração de migrantes, a Tren de Aragua se diversificou em outros empreendimentos criminosos, criando um ciclo auto-reforçado de criminalidade e instabilidade.

Uma dinâmica semelhante está em jogo no México, que deve receber muitos deportados de países terceiros cujos governos provavelmente não facilitarão os retornos. Os cartéis mexicanos estabeleceram controle de fato sobre a fronteira Guatemala-México, onde o tráfico de pessoas se tornou mais lucrativo do que o contrabando tradicional de drogas e armas. Os cartéis exploram migrantes por meio de extorsão, sequestro e recrutamento forçado para atividades criminosas. Além disso, os cartéis buscarão recrutar deportados — de acordo com uma estimativa, os cartéis empregam coletivamente cerca de 175.000 pessoas no México e devem recrutar de 350 a 370 novos membros por semana para compensar o desgaste devido a prisões e mortes, de acordo com um estudo do centro de pesquisa austríaco Complexity Science Hub.

O afluxo de grandes grupos de deportados, muitos deles jovens e separados de suas famílias, seria um presente para os mesmos cartéis responsáveis ​​pela crise do fentanil nos Estados Unidos.

O crime organizado já representa um dos desafios mais significativos para a América Latina. Grupos criminosos trabalham para corromper autoridades e instituições em todos os níveis de governo e, em alguns lugares, assumiram muitas funções governamentais. O crime organizado se expandiu muito além das atividades tradicionais e até mesmo tentou dominar economias legais.

A insegurança resultante é um dos principais impulsionadores da migração e estima-se que esteja reduzindo o PIB da região em 3,5% ao ano, de acordo com uma análise do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Mas os grupos criminosos podem se expandir ainda mais se conseguirem explorar as novas oportunidades trazidas pelos deportados. Por exemplo, o Departamento de Estado atualmente inclui apenas seis dos 32 estados do México em sua designação mais severa de Nível 4 “não viajar” devido à insegurança generalizada nesses estados. Com um influxo de deportados, os cartéis provavelmente seguirão rapidamente as populações deportadas para novas áreas, criando novos vetores para atividades ilícitas e espalhando níveis semelhantes de insegurança para outros estados mexicanos.

As consequências podem se estender além das preocupações com a segurança. Deportações em massa podem prejudicar relacionamentos até mesmo com governos amigos na região, minando a frente unida necessária para exercer pressão sobre o regime de Maduro na Venezuela e dificultando as parcerias que poderiam ajudar a conter a influência chinesa. A chegada de milhões de deportados corre o risco de acelerar a quebra da ordem nos países receptores, potencialmente desencadeando novas ondas de migração externa e exacerbando a instabilidade e a tensão na região.

O governo Trump tem uma oportunidade histórica de reformular as relações EUA-América Latina e abordar desafios regionais persistentes. Embora as deportações devam desempenhar um papel na restauração da segurança da fronteira, o governo deve considerar as consequências não intencionais que as deportações em larga escala podem trazer. Um foco nos objetivos estratégicos mais amplos de construir uma região mais livre, segura e próspera pode, em última análise, provar ser mais eficaz na redução dos fluxos de migração irregular.