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A pandemia e o contrato social: aprendemos a proteger as liberdades individuais?

Durante a pandemia, passamos por algo apelidado de “infodemia”, uma espécie de pandemia de informação maligna, conteúdos feitos para indignar e mexer com a saúde mental das pessoas. 

Houve muita gente que perdeu completamente a noção do que era real ou inventado, uma situação ainda mais desesperadora quando se está diante de um vírus mortal desafiando o mundo todo. 

Em toda infecção da história da humanidade houve boato, pressão econômica para evitar restrições, medo de novas soluções como as vacinas. Por que justo agora, no período mais evoluído, parecemos mais confusos que nunca com o que deveria ser mais fácil?

Antes da peste já vivíamos uma mudança de organização social, vinda da evolução tecnológica, que muda a forma de comunicação interpessoal, a credibilidade das instituições formais e o exercício do poder. Uma sociedade digital em suas fases iniciais é instável por excelência.

O tecido social foi rompido em forma de polarização tóxica em diversos países. Polarização tóxica é algo bem específico e profundamente diferente da oposição política aguerrida. 

Significa a existência de grupos que julgam a moralidade e a dignidade de um ser humano de acordo com suas crenças políticas. Dessa forma, não temos mais nações feitas de indivíduos com uma mesma identidade, direitos e liberdades.

Agora temos povos fraturados em pólos opostos que vão se fragmentando até os mais mínimos cacos, as chamadas bolhas. A divergência e a polarização não se dão por opinião ou oposição, mas pelo julgamento emocional e moral.

A lógica é de que o meu grupo é intrinsecamente bom e o outro é intrinsecamente ruim. Todas as pessoas que sejam parte do outro grupo e até as que não atacam o outro grupo têm uma agenda maléfica oculta. Por isso, é preciso não ter limites com essas pessoas, elas representam o mal.

Na política isso já é complicadíssimo. Avalie em decisões de Saúde Pública. Em um mundo ideal, essas decisões seriam ancoradas em ciência. Na realidade, acabaram arrebatadas pela enxurrada da polarização tóxica.

Se alguma personalidade progressista ligada à ciência dizia algo, precisava ser contraditada por conservadores. Se um conservador levantava um questionamento, não importa o quanto fosse pertinente, era carimbado de negacionista.

Não faz nenhum sentido, mas já estávamos numa polarização tóxica e entramos num processo dramático envolvendo uma doença mortal e desconhecida.

Como é natural do método científico, o começo da pandemia era de muitas perguntas e pouquíssimas respostas. Tive minha saúde mental beneficiada pela experiência com a erradicação da pólio em Angola em 2011. Assumi que, durante um tempo, simplesmente não saberíamos e teríamos de nos resguardar até descobrir o que fazer.

Tínhamos também um problema de cálculo de probabilidades, as individuais contra as coletivas. O coronavírus não era, como não é, uma doença com alta taxa de letalidade individual. Mas a velocidade de propagação fazia com que ele inviabilizasse todos os sistemas hospitalares.

É daí que vinha o caos e não só para as vítimas da pandemia. A teoria da “imunidade de rebanho”, tratada como coisa de negacionista chapéu de alumínio, poderia ser cogitada devido à baixa letalidade da doença. 

O problema é que, se todo mundo pegasse ao mesmo tempo, as pessoas morreriam não só de coronavírus, mas de falta de atendimento em tudo, até em parto e acidente de trânsito. No início nem dos doentes do coronavírus os hospitais davam conta porque ninguém sabia direito o que fazer.

Enquanto políticos e a imprensa entravam em debates apaixonados santificando uma hipótese de enfrentamento e demonizando outra, uma multidão trabalhou à exaustão e sem ser ouvida.

Antes da vacina já haviam sido encontrados protocolos de atendimento para maximizar a chance de vida dos casos mais graves, poucos na proporção dos contaminados e de um gigantismo assustador pelo ângulo das perdas humanas.

Vacinas foram sendo desenvolvidas, muitos pularam no barco sem pestanejar, outros ficaram apreensivos, como é natural numa situação dessas. Novamente começa um embate ideológico e moral que pouco ajudou no enfrentamento da pandemia. O vírus, quem diria, não estava nem aí para briga ideológica.

Hoje eu fui ao mercado sem máscara. Meu filho foi à escola sem máscara. Estamos os dois vacinados. Parece que esse pesadelo ocorreu em outra vida. Saberemos só daqui a algum tempo onde foram parar nossas cicatrizes que, graças a Deus, são apenas psicológicas.

Eu sempre fui favorável à autoridade absoluta dos agentes de Saúde Pública nessas questões. Na incerteza, são os que têm a expertise para decidir que política será melhor para o maior número de pessoas numa sociedade. 

Comecei a ter minhas dúvidas com a história do passaporte da vacina. Fazia sentido quando imaginávamos que, uma vez vacinada, a pessoa não transmite a doença. Ou seja, atestado de vacina significa que aquela pessoa não contamina as demais.

Nessa situação, obviamente é muito razoável que cada um faça sua cota de sacrifício pessoal da liberdade para beneficiar o direito à vida e saúde da sociedade. Daí descobriu-se que vacinados transmitem a doença. O passaporte continuou. Comecei a desconfiar.

Mas o caso é que eu sou leiga. Trabalhei o suficiente em combate a epidemia para ter a ideia exata do quanto desconheço. E o tal passaporte não me afeta. Não tenho restrições médicas para a vacina, estou vacinada, tenho o passaporte. Minha vida não muda em nada.

Nos últimos meses comecei a ver notícias de gente desistindo de empregos com concurso no serviço público por não apresentar o passaporte vacinal. Uma deputada me mostrou casos reais de pessoas que não podem tomar nem essa nem nenhuma outra vacina, apresentaram todos os laudos médicos e um burocrata decidiu que não iria aceitar. Pronto, caos na vida profissional. 

Não é uma decisão de Saúde Pública que tenha o objetivo no lugar certo: a melhor política para o melhor número de pessoas. É uma decisão que mostra o foco em uma única doença sem levar em conta as outras.

Durante um período curto, numa emergência em que não se sabe nada, com o caos e a tragédia dos corpos se acumulando nas cidades, medidas drásticas são justificáveis. Mas dois anos depois, com a maioria da população vacinada?

Falo de apenas um ponto específico porque foi este o que me chamou a atenção. Quando a nossa liberdade não é violada numa situação real, fica difícil enxergar a possível quebra do contrato social. Isso para mim, não para quem entende de Saúde Pública.

Diversos especialistas no controle de inúmeras outras doenças – sejam virais, autoimunes, cardiovasculares, tipos de câncer ou outras que demandam tratamento contínuo – têm alertado para a necessidade de colocar a Saúde Pública em primeiro lugar.

O mantra de zerar mortes por coronavírus tomou o lugar de fazer o melhor para salvar o maior número de vidas e dar ao maior número de pessoas a melhor qualidade de vida. 

O contrato social da Saúde Pública é isso. Abrimos mão de parte da nossa liberdade e ficamos sob a autoridade de especialistas. Eles vão decidir que medidas são necessárias para dar a melhor situação possível à maioria das pessoas. 

Diante dos acalorados debates diários na imprensa e nas redes sociais, parece que o foco ficou apenas em zerar mortes por coronavírus. Se for possível, seria um sonho, uma bênção.

Mas aparentemente essa possibilidade implica não evitar mortes evitáveis por várias outras doenças. Os limites impostos às pessoas acabam prejudicando tanto os tratamentos quanto a qualidade de vida. 

Esses dias, o professor de política científica da prestigiosa Universidade de Epidemiologia e Bioestatística de São Francisco, Vinay Prasad, disparou que a Saúde Pública descumpriu o contrato social e precisa de novos limites.

“Ela (a Saúde Pública) não deve culpar os juízes por tirar seu poder. Ela provou que não merecia o poder que recebeu”.

Gritar que “a ciência está certa” ou que “precisamos seguir a ciência” virou um mantra. Só que muitas vezes a ciência nem tinha provado nada e nem as pessoas seguiam a ciência.

Indivíduos podem decidir não seguir a ciência porque nem só de racionalidade é feita a experiência humana. Órgãos de imprensa podem decidir defender a ciência numa página e publicar horóscopo e previsão de videntes na outra. Autoridades de Saúde Pública têm o dever de implementar só o que a ciência realmente recomenda.

Aí temos um problema. A ciência é um método que inclui questionar, testar estratégias, rever erros, voltar atrás, tentar outras estratégias. Tudo isso validando opiniões diferentes e levando em conta que todos nós somos humanos e temos vieses. Numa realidade de polarização tóxica, como fazer isso? Não foi feito.

Vinay Prasad diz que autoridades de Saúde Pública devem ter o poder de aplicar as regras desde que tenham responsabilidade suficiente para testar se elas realmente funcionam. Voltemos ao óbvio: quem testou se o passaporte de vacina funciona?

Para uma coisa ele funciona, regular estoques. Quando você impõe restrições a quem não toma a vacina, existe mais “incentivo” para que as pessoas apressadamente deixem de lado questionamentos. O escalonamento das vacinas tende a ser mais organizado e as perdas serão menores.

Mas tem algum sentido que autoridades de Saúde Pública destituam autoridades de outras áreas com base nessa regra? Se ela valesse para preservar vidas, sim. Mas, sendo que não valem, já que vacinados também contaminam, é uma regra justa?

Vamos às máscaras. Desde o início houve polêmica, com gente usando máscara na cabeça, máscara de carnaval, apelidando de focinheira, enfim… 

Eu usei todo tipo de máscara e descobri, por amigos que trabalham diretamente com os dados, que meu sacrifício foi em vão durante boa parte da pandemia. O que me ajudou foi a sorte, não a máscara de pano, que nunca funcionou de verdade.

Comprei as máscaras que funcionavam, mais caras. Era assustador que só alguns países distribuíssem o item para quem não tinha como comprar. Distribuí para conhecidos que não tinham como comprar, mesmo sabendo que é um grão de areia no oceano.  

Ficava apavorada quando exigiam passaporte vacinal em vez de teste de coronavírus. Aí que eu botava aquela máscara super difícil de achar que veda até espíritos. Eu não quero saber se a pessoa tomou vacina ou não, problema dela. O que me interessa é se tem possibilidade de me passar doença. Depois soubemos que nem isso é 100% garantido.

Estamos com uma geração de crianças que passou dois anos trancada em casa fazendo aulas online. Qual será o preço disso? Pergunto porque realmente não sei. Se soubesse, seria possível compreender o cálculo custo-efetividade de uma medida tão drástica. Mas ele foi feito só com o fígado.

Um ponto levantado por Vinay Prasad que me entristece particularmente é o das visitas hospitalares. Tenho amigos que não se despediram dos pais ou dos filhos. Lembro de uma reportagem sobre um rapaz que escalou as janelas de um hospital para dar o último aceno à mãe doente. 

Num determinado momento, houve proibições de comunicação entre pessoas internadas e suas famílias via celular. Entendo até que houvesse sentido na organização dos trabalhos, mas seria uma medida de Saúde Pública? O direito da última despedida tem um impacto humano nos que vão e decisivo na vida dos que ficam.

E se essas políticas aparentemente cruéis salvaram vidas? Este é justamente o ponto. As mesmas autoridades que determinaram essas regras são as responsáveis por avaliar se elas funcionam e se realmente devem ser aplicadas da forma como foram desenhadas. Isso não foi feito.

Entramos num piloto automático em que qualquer questionamento era equiparado ao negacionismo científico mais estridente e oportunista. Para que os negacionistas não prevalecessem, era necessário que autoridades de Saúde Pública fossem inquestionáveis.

No curtíssimo prazo, politizar uma pandemia e xingar de negacionista quem questiona uma regra pode funcionar. Mas já no curto prazo é uma ameaça à autoridade dos agentes de Saúde Pública, ancorada em credibilidade e proporcionalidade.

O fato é que vivemos na sociedade digital que tem acesso a informações do mundo inteiro. Ainda nos debatemos na polarização tóxica e no esgarçamento do tecido social. Não fomos capazes de garantir regras justas e sensatas para a maioria, nos rendemos à gritaria.

A democracia tem um calcanhar de Aquiles, “a turbulência e fragilidade das paixões rebeldes”. O pensamento é de James Madison, um dos “founding fathers” e redator da constituição dos Estados Unidos.

Quando as paixões rebeldes têm o sinal verde da polarização tóxica e da fragmentação das sociedades, as paixões rebeldes ficam ainda mais turbulentas. Dizer que estamos ao lado da ciência e contra os negacionistas é um trunfo social, ainda que não seja verdade. Muitos usaram.

A questão é como regrar um mundo que já vive nessa lógica passional garantindo as liberdades individuais. Vinay Prasad tem uma proposta bem concreta para a área da qual entende, Saúde Pública.

Seria necessário construir uma nova espécie de “Bill of Rigths” para os cidadãos nesse caso específico. Gritar que a ciência está certa ou fazer acusações moralistas de que alguém não se importa com mortes estaria fora do jogo de agora em diante.

A ideia não é um salve-se quem puder. Autoridades de Saúde Pública continuariam tendo o poder para implementar regras, mas ele viria necessariamente acompanhado da responsabilidade do acompanhamento.

Qualquer restrição implementada teria de ser cientificamente testada durante o período máximo de três meses. Caso não fosse possível demonstrar que uma restrição de liberdades individuais funciona no bem maior do maior número de pessoas, ela cairia.

Parece um detalhe, uma regra simples. Não é. É um limite claro entre o poder dado a autoridades de Saúde Pública e a responsabilidade dessas autoridades de prestar contas e respeitar liberdades individuais.

Deixa claro que ciência é um método, não um livro sagrado com uma coleção de axiomas. Evidencia a ideia de que não somos sociedades divididas entre o bem e o mal se digladiando internamente. Somos nações, grupos humanos feitos de seres humanos únicos e diferentes que pretendem abundância para todos.

Como já nos ensinou o Barão Acton, “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Quanto mais a tecnologia e a ciência evoluem, mais precisamos entender de gente. A primeira regra para que o poder seja eficiente na garantia das liberdades individuais é o limite.

Eixo China – Rússia

A China tem tido crescimento industrial, tecnológico e comercial exponencial nos últimos trinta anos, o que leva sua economia a equiparar-se à dimensão do poderio econômico dos EUA. Esse crescimento leva-nos a construir dois cenários básicos.

De um lado, uma situação de cooperação entre as duas economias, que se consolidariam como parceiras. A dimensão do comércio China-EUA, os investimentos americanos na China, e o grande investimento chinês em títulos do Governo dos Estados Unidos mostram que já existe uma simbiose que pode prosperar.

De outro lado, poderemos ter um cenário de rivalidade, cujos sinais são a preocupação americana com os avanços chineses nos campos, tecnológico, industrial e comercial. Ademais, a China tem reforçado aceleradamente sua estrutura militar. De sua parte, os americanos têm buscado aperfeiçoar sua posição estratégica na Ásia para contra restar o incremento bélico chinês.

A preponderância do cenário de rivalidade poderia levar a uma macroestrutura internacional de bipolaridade, mitigada pela existência de outras potências como o Reino Unido, a França e a Rússia, capazes de projetar globalmente seu poder. Esses Estados coexistirão com potências regionais como a Índia, que tem estreitos laços com a Rússia, a África do Sul, e o Brasil, na América do Sul.

Ademais, temos o Egito, a Turquia, o Irã e a Indonésia. Embora com economia avançada industrial e tecnologicamente, o Japão tem limitada capacidade militar desde o fim da Segunda Guerra. A Alemanha merece atenção específica. País desarmado desde a Segunda Guerra, decidiu-se agora, no âmbito da guerra Rússia- Ucrânia, a aplicar 2 % do PIB em defesa. Tendo em vista a dimensão de sua economia, a Alemanha será, em pouco tempo, pelo menos uma potência regional, e buscará libertar-se das amarras causadas pela derrota na Guerra de 1939-1945.

Trata-se de cenário complexo, que poderá ser ainda mais complicado se tivermos uma coalizão duradoura e firme entre a China e a Rússia. Potências que estiveram no mesmo campo durante a Guerra Fria, tiveram atritos nas décadas de 1960, por razões ideológicas, e de 1970, por disputas fronteiriças. Desde então tem estado próxima. Em 04 de fevereiro de 2022, antes portanto da invasão da Ucrânia, o Presidente Putin visitou a China. Em reunião com seu homólogo chines, foi emitido um comunicado conjunto em que se declarou que os dois países têm “uma parceria estratégica sem limites”, e assinaram vários acordos, inclusive um compromisso de fornecimento energético para a China.

Por outro lado, no âmbito da invasão da Ucrânia pela Rússia, os norte-americanos já intensificaram seus laços com a Europa, que estavam esgarçados, em iniciativa que parece duradoura.

No entanto, à China, superpotência emergente, interessa estabilidade internacional que lhe permita consolidar sua expansão comercial e tecnológica, bem como militar. Tem enorme interesse no mercado europeu, e seu programa “belt and road”, também chamado de Rota da Seda, de infraestrutura, já se firmou no continente europeu. Ademais, a China não deseja que se disturbe o fluxo mundial de alimentos, mercadorias, minerais e energia. Esses interesses explicam a cautelosa posição chinesa de não se envolver demais no conflito russo ucraniano.

Uma aliança sino-russa solida e próxima é preocupante para as potências ocidentais, ao representar uma frente unida de dois Estados que têm uma tradição de antagonismo em relação ao ocidente.

Essa preocupação já se manifestara em 1972, em plena Guerra Fria, com a viagem do presidente dos EUA Richard Nixon a China, planejada e preparada pelo professor Henry Kissinger. Buscava-se colocar uma cunha no bloco comunista, liderado pela União Soviética, estabelecer uma fissura que rompesse a frente unida anti ocidental.

A invasão da Ucrânia faz-nos recordar o artigo clássico de 1905 do autor inglês Halford John Mackinder: The Geographical Pivot of History. Mackinder procura demonstrar sua teoria dizendo que quem domina a Eurásia, que considerava o centro estratégico da terra controla o mundo. Acrescentava Mackinder que quem controla o centro e o Leste da Europa controla a Europa e a Ásia.

Embora a história não tenha comprovado a tese geopolítica de Mackinder, e inegável que chamou atenção para a importância estratégica da região central europeia. Juntas, a China e a Rússia podem dominar a Eurásia.

Direitos Neurais: a garantia de liberdades individuais na era das máquinas que lêem pensamentos

Sei que este artigo vai parecer, num primeiro olhar, ficção científica. Ocorre que já estamos vivendo nessa ficção científica. Desde a última semana está comprovado que as máquinas podem ler pensamentos.

Ultimamente todas as notícias parecem orbitar em torno de polêmicas, brigas e bizarrices. Exatamente por isso vale muito partilhar com vocês esta descoberta científica, que chega a ser emocionante.

A história é uma união de cientistas em diversos países com pesquisas avançadas sobre interface entre a neurologia humana e as máquinas.

O ponto de união é uma jovem família alemã. O pai, que hoje tem 36 anos, tem ELA, Esclerose Lateral Amiotrófica. É uma doença degenerativa progressiva que elimina todo controle de movimentos musculares. 

Ocorre que não elimina nem a consciência nem a cognição. É uma prisão solitária para a qual os cientistas tentam há muitos anos algum tipo de alívio. A doença ficou mundialmente conhecida no viral do desafio do balde de gelo na internet.

Em 2018, quando ainda movia os olhos, o pai entrou num grupo experimental da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Eles trabalhavam com a comunicação computadorizada por meio dos olhos, que escolhiam frases e palavras para formar sentenças.

Houve uma possibilidade de avanço, essa totalmente inédita e de riscos incalculáveis. Talvez, por meio de um implante cerebral, fosse possível continuar escolhendo letras e formando frases mesmo depois de perder o movimento dos olhos.

O pai manifestou o desejo de correr o risco da cirurgia porque queria continuar se comunicando com a mulher e o filho. Ela assinou o termo de consentimento da cirurgia experimental, que foi feita com sucesso.

Conseguir fazer o equipamento funcionar já era uma outra questão completamente diferente. Em teoria, os eletrodos de 3,2 milímetros de diâmetro seriam capazes de ler as ondas cerebrais e gerar processos de escolhas de letras para formar frases.

Foram 3 meses inteiros testando diferentes métodos para fazer o sistema funcionar, sem sucesso. Então tentaram fazer o paciente controlar as próprias ondas cerebrais utilizando uma medida sonora.

Quando os disparos elétricos dos eletrodos nos neurônios eram mais rápidos, o som ficava alto. Quando os disparos elétricos eram lentos, o som ficava baixo. O paciente podia controlar a velocidade utilizando algum artifício de pensamento que ele próprio precisaria inventar.

Esse artifício seria uma forma de regular voluntariamente os impulsos elétricos dentro do cérebro para que eles interagissem com os eletrodos implantados. No primeiro dia, o paciente já conseguiu alterar o som.

Foram 12 dias de treinamento até que o paciente conseguisse deixar o som exatamente no tom em que ele desejava usando apenas recursos de controle dos impulsos cerebrais. É ciência, mas parece milagre.

O engenheiro biomédico Ujwal Chaudhary, que trabalha na ALS Voice, instituição benemérita alemã, relata o momento como se fosse ouvir música. O paciente conseguia em pouco menos de duas semanas, dominar o sistema de som controlando as próprias ondas cerebrais.

E como ele usaria isso para se comunicar? Mantendo o som alto ou baixo, ele ia dizendo sim ou não primeiro para um grupo de letras, depois para uma derivação do grupo, até chegar a letras individuais. Cada sim é uma letra que vai formar palavras até chegar numa sentença.

Foram 3 semanas até a primeira frase. O paciente estava desconfortável e pediu para ser reposicionado na cama. A esta altura, ele já havia perdido também o movimento dos olhos.

Durante um ano, ele produziu diversas frases. A velocidade, ainda mais nessa era da hipercomunicação, parece uma verdadeira tortura. Uma letra por minuto. Entre as primeiras frases estava “I love my cool son”. Emocionante.

O paciente conseguiu explicar à equipe que modulava o som quando tentava mexer os olhos. No entanto, não era um processo perfeito. O estudo durou 135 dias. Em 107 deles, o paciente conseguiu controlar o tom com 80% de acerto. Em apenas 44 dias ele conseguiu produzir frases inteligíveis.

Pensamentos e liberdades individuais

Até aqui, falei do milagre. Agora começo a provocar você sobre a delicadeza e profundidade do processo de proteção das liberdades individuais neste contexto.

O paciente em questão realmente estava empenhado em todo o processo, tinha vontade de manter a comunicação com a mulher e o filho mesmo após a perda de todos os movimentos. A liberdade de escolha dele foi respeitada.

Começa aí o primeiro dilema ético colocado pelos neurologistas: a impossibilidade de desistir no meio do caminho. Suponha que, por alguma razão, após o implante do chip ele não quisesse mais se submeter a tudo aquilo. 

Não tinha como parar, ele só iria conseguir comunicar isso à equipe se passasse por todo o processo de aprender a controlar o equipamento e formar frases.

Suponha que ele resolvesse enfrentar isso apenas para comunicar que quer interromper a experiência. Ele poderia fazer uma frase como “tirem esse implante”, certo? Sim. Mas daí a decisão correta seria tirar ou não?

Ainda é um dilema. Não é possível saber, por exemplo, se a sentença era apenas parte de outra que se perdeu por variáveis como ondas cerebrais não tão potentes para formar o início da frase. E se ele realmente tiver dito “por favor, nunca tirem esse implante”?

Outro ponto é como garantir que aquela leitura de ondas cerebrais se trata de uma manifestação de vontade. O paciente poderia estar dormindo e ter formulado isso em um sonho.

Daí entramos no dilema da privacidade. Suponha que, em um sonho, a máquina consiga ler segredos que, na verdade, ele não queria partilhar com as pessoas. Ainda não é claro como isso seria evitado.

Esse tipo específico de máquina de leitura cerebral ainda está muito longe de ser uma solução comercial. São necessárias centenas de horas de trabalho de dezenas de cientistas para fazer um modelo que só funciona em uma pessoa.

Além disso, o equipamento precisa ser calibrado diariamente de acordo com o progresso da interface com o paciente. É algo absurdamente caro para ser oferecido como solução para todos. Por enquanto.

Vamos a um exemplo de equipamento que hoje já é utilizado por mais pessoas, o membro eletrônico. Quem perde um braço ou uma perna pode ter a chance de utilizar uma prótese controlada por um implante cerebral.

Suponha que um paciente tenha conseguido essa chance e esteja no processo de treinamento do uso do braço eletrônico. É algo complexo e que leva algum tempo. O implante lê as ondas elétricas do cérebro e converte as decisões em movimentos do braço, da mão e dos dedos.

O paciente está muito feliz com a possibilidade de usar o braço eletrônico, mas não suporta uma pessoa da equipe que o atende no treinamento. Não há nenhuma razão, ele simplesmente não suporta a pessoa. 

Caso não queira mais estar no mesmo ambiente que a pessoa, o progresso do tratamento será comprometido. É um preço alto demais a pagar por uma bobagem. Ele respira fundo e segue em frente no seu objetivo.

Vez ou outra, quando a pessoa fala com ele, fantasia que tampa a boca com a mão para não ter mais de ouvir a voz irritante. Respira fundo de novo e prossegue no tratamento, sabe que uma hora ele acaba. Um dia, o braço eletrônico realmente ataca a pessoa. De quem é a culpa? Qual seria a solução?

É aí que entra o conceito de Direitos Neurais. Proteger as liberdades individuais exige uma série de regras no campo na neurotecnologia e da Inteligência Artificial.

Nesse caso específico do braço eletrônico, o implante cerebral precisa, de alguma forma, fazer a distinção entre o que são pensamentos e o que são decisões tomadas pela pessoa.

Direitos Neurais

Este exemplo do braço eletrônico é parte da publicação “Quatro prioridades éticas em neurotecnologia e Inteligência Artificial”, assinada em conjunto por diversos cientistas.

“Estamos no caminho para um mundo em que será possível decodificar os processos mentais das pessoas e manipular diretamente os mecanismos cerebrais subjacentes às suas intenções, emoções e decisões; onde os indivíduos podem se comunicar com outros simplesmente pensando; e onde poderosos sistemas computacionais ligados diretamente aos cérebros das pessoas auxiliam em suas interações com o mundo de tal forma que suas habilidades mentais e físicas são bastante aprimoradas. Esses avanços podem revolucionar o tratamento de muitas doenças, desde lesão cerebral e paralisia até epilepsia e esquizofrenia, e transformar a experiência humana para melhor. Mas a tecnologia também pode exacerbar as desigualdades sociais e oferecer às corporações, hackers, governos ou qualquer outra pessoa novas maneiras de explorar e manipular as pessoas., diz o documento (grifo meu).

O estudo foi o embrião da iniciativa Neurorights, da Universidade de Columbia, capitaneada pelo neurocientista Rafael Yuste. A primeira ideia é a de colocar na Declaração Universal dos Direitos Humanos cinco Direitos Neurais:

  1. Direito à identidade, a habilidade de controlar a própria integridade física e mental.
  2. Direito de ação, ou a liberdade de pensamento e vontade para escolher as próprias ações.
  3. Direito à privacidade mental, a habilidade de manter seus pensamentos protegidos contra a revelação a quem quer que seja.
  4. Direito a acesso justo a reforço mental, garantia de que o acesso aos benefícios das melhorias da capacidade mental e sensorial por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de maneira justa entre a população.
  5. Direito à proteção de vieses dos algoritmos, a habilidade para garantir que as tecnologias não implementem preconceitos no cérebro de quem as utiliza.

Na mentalidade do Estado-babá, isso funcionaria deixando a tecnologia se desenvolver livremente e apelando ao Poder Judiciário quando houvesse alguma infração de direitos.

Estamos acostumados ao conceito de lei que pega e lei que não pega. Mas há como pavimentar um caminho ao respeito de alguns princípios. Ele foi tentado agora no processo da nova Constituição do Chile, a primeira do mundo a ter os Direitos Neurais.

Em conjunto com a elaboração da legislação, foi feito um treinamento de todos os que trabalham com neurotecnologia e inteligência artificial. Todas essas profissões passam a ter um código de princípios e um Juramento Tecnocrático, feito à semelhança do Juramento de Hipócrates.

O projeto foi conduzido pela Neurorights Foundation junto com a Universidade Católica do Chile, a Universidad do Desenvolvimento, Xabi Uribe-Etxebarria – da gigante de Inteligência Artificial Sherpa -, a IBM e o Facebook. 

Os empregados dessas empresas passarão pelo treinamento e farão o juramento ético que, à semelhança do que fazem os médicos, ocorre em uma solenidade pública com a presença de amigos e familiares.

Os 7 princípios éticos básicos da neurotecnologia são:

  1. Não maleficência, ou seja, não há intenção de causar danos com a tecnologia aplicada.
  2. Beneficência, intenção de contribuir para o bem comum com o trabalho realizado
  3. Autonomia, que estabelece que nada pode ser feito sem o consentimento voluntário de quem intervém em determinada situação.
  4. Justiça. Busca garantir que a aplicação da neurotecnologia gere resultados justos e imparciais, evitando, por exemplo, vieses algorítmicos.
  5. Dignidade. Todas as pessoas devem ser tratadas com respeito ter sua integridade garantida.
  6. Privacidade, que defende a remoção de todas as informações confidenciais e identificáveis ​​dos dados coletados pela tecnologia.
  7. Transparência, cujo objetivo é garantir que os algoritmos usados ​​sejam tão transparentes e corrigíveis quanto possível.

O juramento solene já foi elaborado. É o seguinte:

“Em todos os aspectos do meu trabalho, assegurarei que meu conhecimento não seja usado para prejudicar as pessoas; garantirei que meu conhecimento seja usado para o benefício dos usuários; vou buscar consentimento e respeitar a vontade daqueles que confiaram em mim; maximizarei a equidade dos resultados, evitando qualquer discriminação ou promoção injusta de certas pessoas em detrimento de outras; vou me certificar de respeitar a dignidade dos usuários, protegendo seus direitos humanos; não violarei a privacidade de informações confidenciais de indivíduos; vou maximizar a transparência dos algoritmos que gerar e usar.

Eu faço este juramento livremente, em minha honra, e assumo qualquer responsabilidade caso eu tenha de quebrá-lo.”

Apelar à honra e responsabilidade individual será capaz de levar a ética ao universo digital e da Inteligência Artificial? É uma aposta e os resultados serão medidos.

O que definitivamente sabemos é que existe a necessidade de dar atenção a este tema. A tecnologia cada vez mais cria mecanismos capazes de controlar e manipular pessoas. Certamente haverá quem se interesse por eles e mercado para isso.

Os defensores das liberdades individuais e coletivas precisam estar atentos ao desenvolvimento tecnológico. Ele precisa ser, cada vez mais, centrado no ser humano.

O poder da Rússia no continente africano: conheça o Grupo Wagner

A resolução da ONU condenando a invasão Russa na Ucrânia rachou o continente africano. Nos demais continentes, a condenação foi quase unânime. Dos 54 países africanos, só 28 assinaram a resolução.

Ficar a favor é um pouco difícil. Dos 193 países-membros da ONU, só 5 apoiaram a Rússia nessa: a própria Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Síria e Eritreia, este último no chifre da África. 

A administração e as relações exteriores da Eritréia são diferentes das demais do continente. É uma ditadura totalitária resultante da união de diferentes sultanatos.

Para 16 países, a saída foi a abstenção. Optaram por ela: Argélia, Angola, Burundi, República Centro-Africana, República do Congo, Madagáscar, Mali, Moçambique, Namíbia, Senegal, África do Sul, Sudão do Sul, Sudão, Uganda, Tanzânia e Zimbabué.

Outros 9 países nem participaram da votação: Guiné-Bissau e Guiné Equatorial, além do Burkina Faso, Camarões, Etiópia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Guiné Equatorial, Marrocos, Suazilândia e Togo.

Não é novidade a influência da China sobre o continente africano. O plano “One Belt One Road” expande transferência de tecnologia e incentivos econômicos em todo o continente. Mas o posicionamento com relação à Rússia intrigou muita gente.

A tendência de países democráticos é analisar a questão sob o ponto de vista ideológico. Os russos têm excelência em propaganda política, aprimorada na era digital. Também têm laços históricos com diversos países africanos, que foram ligados à União Soviética. Mas talvez aqui a questão do poder bélico e da inteligência militar tenha um papel ainda mais importante.

Analisar o continente africano como bloco monolítico é um erro. Falamos de 54 nações soberanas com suas particularidades e cada uma delas ainda com divisões muito próprias do poder local. Por isso resolvi escolher um único país, o Mali, para falar de uma poderosíssima arma russa: o Grupo Wagner.

Trata-se de um grupo paramilitar de mercenários com participação em diversas guerras recentes e que está atuando também na invasão da Ucrânia. Ele surge em 2014 mostrando ao mundo um novo tipo de exercício de poder internacional.

Ele faz parte do conglomerado de poder de Евге́ний Ви́кторович Приго́жин, Yevgeny Viktorovich Prigozhin, magnata russo muito próximo ao ditador Vladimir Putin. 

Com sanções internacionais por atuação ilegal e acusações criminais nos Estados Unidos, o oligarca comanda um império que cobre áreas muito sensíveis de poder. É dono do Wagner Group, de mercenários russos; da Glavset empresa de manipulação de internet com propaganda russa; e da Concord, dona de diversos restaurantes e cujo serviço de catering atende Putin. Trata-se de um voto de confiança muito significativo num país famoso por envenenar desafetos.

A estreia das operações do Grupo Wagner foi a guerra da Criméia, em 2014. Depois, os mercenários tiveram uma atuação muito destacada durante a guerra da Síria. O primeiro passo rumo ao continente africano foi na guerra civil do Sudão, para onde foram deslocados mercenários que atuavam na Criméia.

Neste conflito, o papel do Grupo Wagner é o que vai se consolidar como politicamente importante para a Rússia, o de tornar o poder estabelecido imune a golpes de Estado. Ele faz apenas o treinamento militar e das forças de segurança do Sudão, não tem atuação direta na guerra civil.

Vladimir Putin declara reiteradas vezes que o governo russo não tem nenhuma relação com o Grupo Wagner. É uma empresa privada que teria vínculo exclusivo com a mão invisível do mercado. A ação estratégica a favor dos interesses russos seria uma coincidência apenas.

Depois do Sudão, o Grupo Wagner atuou com sucesso na guerra da República Centro-Africana, na segunda Guerra Civil da Líbia, na revolução do Sudão, fez segurança na crise governamental da Venezuela de 2019, conteve o jihadismo islâmico em Moçambique e então entrou no Mali, o ponto que vamos detalhar aqui.

Falamos de governos absolutamente instáveis. A maioria dos países africanos era colônia de algum país europeu até meados da década de 1970. Houve inúmeras guerras civis e várias ditaduras se estabeleceram, mas muitas nações jamais alcançaram a estabilidade política.

É um país de colonização francesa e riquezas naturais imensuráveis. O auge do império Mali foi no ano de 1300 e o imperador Mansa Musa é até hoje tido como possivelmente a pessoa mais rica da história da humanidade, dada a impossibilidade de quantificar a riqueza dele.

A cultura é islâmica, muito ligada aos tuaregs, povo islâmico do deserto do Sahara. A universidade de Timbutku, formada por 3 mesquitas milenares (Sankore, Djinguereber e Sidi Yahya) é a mais antiga do mundo, fundada no ano de 989.

O Mali era uma das nações que controlava o comércio pela rota do Sahara. No final do século XIX, no movimento chamado de “Conquista da África”, os franceses dominaram o país. Na década de 1960, ele declarou independência em bloco com o Sudão, onde o Grupo Wagner tem uma atuação de sucesso.

Naquela mesma década, os dois países se separaram. O Mali teve uma longa ditadura de partido único até o golpe de Estado de 1991, quando passou a se denominar uma República Democrática. Até hoje a estabilidade política jamais foi alcançada.

Em 2012, os tuaregs tomaram a área norte do país e declararam a independência da região que denominaram Azawad. Dois meses depois, ocorreu um golpe de Estado no Mali. Os tuaregs entraram em conflito com outros grupos separatistas e a questão foi resolvida com a intervenção de tropas da França.

O Mali retomou o controle de Azawad e conseguiu promover eleições para presidente e para o congresso no ano de 2013. Dois anos depois começa uma guerra civil entre dois grupos étnicos no centro do país. 

O estopim é a falta de acesso a água e terras agricultáveis, problema que se agrava com a crise climática. Na região há terroristas ligados à al-Qaeda apoiando um dos lados. Mas também há um descontrole com relação à criminalidade comum que impede o estabelecimento da ordem.

Os dois grupos criam milícias paramilitares. Há rumores de que o governo oficial do Mali dá apoio à milícia que combate terroristas islâmicos. Seria uma continuação do conflito com os tuaregs no norte do país.

Em 2018 aconteceram eleições presidenciais e Ibrahim Boubacar Keïta foi eleito com 67% dos votos. Havia 24 candidatos concorrendo legalmente, referendados pela Suprema Corte. Imediatamente após a vitória, foi negociado um cessar-fogo.

No ano seguinte, os terroristas islâmicos voltaram a atacar. Desta vez mataram soldados no sul do país. O presidente disse que não aceitaria um golpe militar, conduziria o país até as eleições de 2020. Seria finalmente a estabilidade?

O pleito foi um desastre completo. O líder da oposição foi sequestrado durante as eleições e manifestações eclodiram em todo o país. Houve um motim militar que acabou instalando uma junta militar no poder, com a prisão do presidente e do primeiro-ministro.

Ibrahim Boubacar Keïta renunciou dizendo que era para evitar o derramamento de sangue. A junta militar se comprometeu a governar por 18 meses até fazer uma transição pacífica para o poder civil. Era o golpe militar. Desde 2020, já houve dois golpes de Estado.

Aqui no Brasil se diz que impeachment é golpe. Falamos de algo bem diferente. Líderes de governo são sequestrados e outras pessoas tomam o lugar deles. 

Durante todo o período, além dos conflitos entre diferentes facções políticas, existe também a pressão do terrorismo islâmico. Desde 2013, as forças de segurança da França estão no Mali em operações de contraterrorismo.

Quem são essas forças que conseguem depor governos e comandar um país? Há um ponto em comum entre todas, o treinamento com especialistas russos. Ocorre no Mali e em diversos outros países com instabilidade política.

Em setembro do ano passado, o ministro de relações exteriores do Mali viajou a Moscou para um encontro com o ministro de relações exteriores da Rússia. A imprensa internacional anunciou que estávamos na iminência de uma contratação do Grupo Wagner pelo governo do Mali.

O Grupo Wagner receberia US$ 10,8 milhões ao mês mais uma taxa de sucesso, paga em acesso às minas de diamante do país. O governo russo confirmou a visita mas negou a intermediação do acordo.

No final do ano passado, o Grupo Wagner chegou ao Mali. A União Europeia fez uma moção condenando o acordo. França, Canadá e Alemanha mantinham tropas na região atuando contra o terrorismo islâmico e eram contra a presença de mercenários russos.

O governo do Mali continuava negando a presença de mercenários russos em seu território até o início deste ano. Mas investigadores forenses digitais rastrearam páginas de propaganda anti-França e pró-Rússia, além de vaquinhas para financiar a presença do Grupo Wagner no Mali.

No mês passado, a França, Canadá e outros países da União Europeia anunciaram que iriam se retirar do território do Mali e passar pacificamente as operações de contraterrorismo às autoridades locais. Alegaram não haver mais condições políticas, operacionais e legais de continuar.

O governo do Mali confia mais na Rússia do que nas forças da União Europeia para defender seu país de golpes dos terroristas islâmicos. Também aposta no treinamento das forças de segurança locais para tornar as autoridades no poder blindadas contra golpes de Estado.

O caso da República Centro-Africana, que conseguiu manter sua soberania com a ajuda do Grupo Wagner e sem o apoio do ocidente tomou as redes sociais na região.

Se as forças que promovem golpes de Estado são treinadas na Rússia, talvez pareça racional recorrer a mercenários russos para aprender a impedir golpes de Estado.

Ocorre que aqui falamos de poder, não de liberdades individuais. O preço de manter a dominância sobre um território ou eliminar a ação de terroristas islâmicos é sacrificar as liberdades individuais de toda uma população.

Os países democráticos ainda não conseguiram desatar este nó. A Rússia, no entanto, parece bem à vontade em jogar as declarações sobre livre iniciativa para o mundo capitalista. Além disso, se mostra efetiva em conter as ameaças de terroristas islâmicos nos territórios de países africanos.

Quantas pessoas sacrificariam a própria liberdade por proteção? Não é possível quantificar. Mas é fato que estabelecer este tipo de lógica não avança nem as liberdades nem a democracia. Elas são, comprovadamente, a forma mais eficiente de entregar abundância aos mais diversos tipos de sociedades.

 

Princípios da democracia cristã: liberdade, justiça e solidariedade

Sob alguns aspectos, a democracia cristã pode ser considerada um ramo distante da perspectiva política tradicionalista, que acabou sendo “republicanizada” e um tanto “esquerdizada” pela doutrina social da Igreja e pelo catolicismo social.[1] Suas ideias embrionárias se ligam a uma reação à Revolução Francesa, no sentido de tentar construir uma ponte entre a Igreja e a nova realidade política, tendo se desenvolvido inicialmente a partir das contribuições de Robert Lamennais, Charles Montalembert e Henri Dominique Lacordaire, que reivindicavam separação entre Igreja e Estado, liberdade de religião, de consciência, de ensino e de associação:

“Lamennais não vê religião e democracia como forças opostas, mas como grandezas que se influenciam mutuamente. Para ele, liberdade, justiça e igualdade são elementos teológicos que se distinguem em sua compreensão religiosa e ética do liberalismo individualista. Lamennais esperava uma coalizão entre as forças liberais cristãs e o liberalismo individualista e secular que, no entanto, levou muitos anos para se materializar[2]”.

Enquanto movimento político, a democracia cristã remonta a meados do século XIX, tendo suas raízes em associações católicas europeias que posteriormente deram origem aos partidos que se desenvolveram no pós-guerra, contribuindo decisivamente para o processo de unificação europeia e para o amadurecimento democrático no continente.

Na Alemanha, o primeiro chanceler alemão do pós-guerra, Konrad Adenauer, consolidou essa tradição unindo não apenas duas confissões cristãs – católicos e protestantes -, mas também duas vertentes políticas – liberais e conservadores. Na Europa pós-guerra, os partidos democratas-cristãos participaram de coalizões tanto à direita quanto à esquerda (incluindo os sociais-democratas), englobando o liberalismo sem, no entanto, reduzir-se a ele[3].

As trágicas experiências totalitárias do nazismo e do comunismo foram determinantes para a percepção do valor da democracia, inclusive por parte do Vaticano, que através da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), divulgada por ocasião do Concílio Vaticano II, “sustenta expressamente que a democracia liberal baseada no Estado de direito e na separação de poderes é o sistema que, por sua natureza, reúne as condições mais favoráveis ​​para a reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa, da família e de imperativos do bem comum[4]”. O documento em questão também destacava os direitos de livre reunião e associação, além dos direitos à liberdade de expressão e de religião.

Com base na concepção cristã do homem como criatura de Deus, digna, porém imperfeita; com base ainda nos princípios de justiça e solidariedade, sob inspiração da ética social das Igrejas cristãs e da tradição liberal dos iluministas, a democracia cristã sinaliza para uma política humanista e fraterna, distante dos extremos e das ideologias totalitárias que tanto sofrimento já trouxeram ao mundo:

“O leitmotiv da democracia cristã é a concepção cristã de Homem. Ele se baseia na individualidade e da dignidade inalienável do Homem. Segundo essa concepção de homem, o ser humano não é o representante de uma classe social – como no marxismo – mas um ser único e inalienável. À diferença das ideologias totalitárias, a concepção cristã do Homem não visa à formação do ‘homem novo’, mas aceita, ao contrário, cada homem tal qual ele é, com suas forças, suas fraquezas e seus limites. A dignidade inalienável do indivíduo não remete a um individualismo sem limite. A imagem cristã do Homem sublinha sua dupla natureza: o Homem é um indivíduo dotado de direitos inalienáveis e um ser social que só se realiza na comunidade partilhada com outros homens. Desta concepção de Homem, a democracia cristã deduz o direito de cada um à participação ativa, igual e responsável na política e na sociedade[5].”

Concebendo o Homem como um ser ativo, consciente, dotado de responsabilidade e de razão, a democracia cristã reconhece a democracia liberal baseada no Estado de direito como única ordem política capaz de realizar seus princípios, o que equivale a dizer que, em oposição ao socialismo e ao comunismo, “as mudanças sociais e políticas serão realizadas por melhoramentos progressivos (por exemplo, o desenvolvimento de uma constituição) e não por convulsões revolucionárias[6].” A democracia cristã propugna ainda o respeito à subsidiariedade (que privilegia a descentralização política e a autonomia, opondo-se ao centralismo e ao autoritarismo), além da solidariedade com o mais fraco e a responsabilidade com aqueles que sofrem.

A noção de liberdade adotada pela democracia cristã é liberal no sentido clássico do termo; vale dizer, no âmbito político ela se exprime como respeito aos direitos fundamentais inalienáveis garantidos pela constituição, na economia como direito à propriedade privada, à liberdade de circulação, e na sociedade como direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Em todas as circunstâncias, trata-se de uma liberdade submetida aos limites da lei, por intermédio da qual fica assegurado que a liberdade de um não obstaculizará o exercício da liberdade de outro.

O valor da justiça, por sua vez, “explica-se primeiro pela igualdade de todos os homens em sua dignidade concedida por Deus, depois pela igualdade diante da lei.[7]” Também aqui a democracia cristã aproxima-se do liberalismo, uma vez que “em um Estado de direito liberal, o termo justiça significa os mesmos direitos para todos, em outras palavras, ninguém pode ser favorecido ou desfavorecido por lei devido a sua crença, posição, origem ou devido a outras características”[8].

Não se trata, pois, da justiça social concebida pelo socialismo, pelo comunismo ou mesmo pela social-democracia, a saber, uma justiça obtida por meio de redistribuição radical da propriedade e da renda; trata-se antes da concepção de “justiça distributiva e equilíbrio social sem nivelamento; sobretudo, igualdade de oportunidade[9]” por meio da qual “cada homem, cada mulher deve poder se desenvolver em função de suas aspirações e de suas capacidades individuais[10].”

A política ambiental sustentada pela democracia cristã se fundamenta na necessidade de preservação da Criação: “fazendo parte da Criação, o homem é responsável pela natureza e pelo meio ambiente” e deve assumir a responsabilidade de utilizar e desenvolver tecnologias que respeitem o meio ambiente e que possam preservar os recursos naturais: “O homem tem a possibilidade e o dever de usar de maneira moralmente responsável o que ele é capaz de alcançar tecnicamente[11]”. Já a política externa traz como missão principal a garantia da paz no mundo e uma atuação baseada nos valores comuns em defesa da liberdade, democracia e Estado de direito[12].

A despeito do reconhecimento da ordem econômica baseada na economia de mercado, respeito à propriedade privada, à livre iniciativa e à livre concorrência, há um marco legal no interior do qual o Estado deve atuar tanto no sentido de estabelecer condições humanas de trabalho quanto de garantir cobertura social – temporária, em caso de doença ou desemprego, ou permanente, no caso de aposentadoria -, o que se justifica com base no valor fundamental defendido pela democracia cristã, a solidariedade. A obrigação do Estado em relação às pessoas que estão fora do mercado de trabalho, como doentes, grávidas, idosos ou desempregados, sublinha o respeito à dignidade humana. Não se trata, pois, de um Estado onipotente, mas do Estado mínimo necessário para assegurar um sistema solidário de segurança social[13].

O programa da democracia cristã encontra-se fundado em princípios liberais e em princípios cristãos que convergem entre si e se complementam, como o reconhecimento dos Direitos Humanos, o estabelecimento dos limites do poder do Estado a partir do respeito aos diretos inalienáveis dos indivíduos, o direito à liberdade econômica, política e religiosa. “Nesse sentido, as ideias liberais e cristãs constituem um contrapeso à submissão e desvalorização do indivíduo em nome do povo, do partido, da nação, da classe. ou outras ideologias totalitárias[14]”.

A democracia cristã partilha com as Igrejas o reconhecimento da dignidade humana, o respeito à liberdade e à responsabilidade, a proteção à vida desde a concepção, a preservação da Criação e a valorização da família. Essa comunhão de valores não equivale, porém, a uma confusão entre Igreja e Estado. Embora molde sua política com base na concepção cristã de homem, ela o faz “salientando que não é possível deduzir um programa político prático da fé cristã e, justamente por isso, ela não é o braço das igrejas no espaço político”[15].  Integrando diferentes tendências políticas fora dos extremos seja à direita, seja  à esquerda, o que a democracia cristã busca é concretizar por meio da política o ideal de humanismo cristão.

[1] NEMO, Philippe. Histoire des idées politiques politiques aux temps moderne et contemporains: Quadrige/PUF, 2002, Paris p.1091

[2] Démocratie Chrétienne: príncipes et conception politique. Manuel pour la coopération européenne et internationale de la Konrad Adenauer StiftungEditeur: Konrad Adenauer Stiftung, Berlin.p.20

[3] NEMO, Philippe. Ibdem. p.1096

[4] p.31

[5] p.9

[6] p. 12

[7] p.13

[8] P.13

[9] p.13

[10] p.13

[11] p.53

[12] P.56

[13] p.16

[14] p.33

[15] P.17

E a competência na gestão pública?

Uma das questões que sempre está em pauta no desenvolvimento da gestão em organizações é a competência. Este tema tem várias nuances importantes para que a gestão pública ou privada possa produzir resultados eficientes e eficazes, promovendo o desenvolvimento das organizações em geral. Recentemente, com as mudanças geradas por desafios ambientais, sociais, econômicos e, também, de relações internacionais, a aplicação e desenvolvimento de competências adequadas a este novo contexto na gestão pública, é determinante para que as políticas públicas sejam implementadas e gerem os resultados positivos e necessários para os cidadãos.

Neste sentido, cabem duas questões fundamentais para entender as competências. O que é gestão pública por competências?? O que é competência na gestão pública?? Existem duas perspectivas de competências na gestão pública, sendo: a gestão por competências, como administração pública, que abarca o conceito e aplicabilidade das capacidades dos profissionais desempenharem suas atividades no setor público e, a segunda, as competências da gestão pública que versa, do ponto de vista normativo, sobre as atribuições, funções e obrigações da gestão e do gestor público, tangibilizados nos regramentos das descrições de cargos e planos de carreiras.

A gestão por competências no âmbito da Administração Pública é um tema recente para o setor, publicado no Decreto nº 5.707/2006, substituído pelo Decreto nº 9.991/2019, responsável por inovar a Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal da Administração Pública Federal (PNDP). Estes decretos tem o objetivo de definir as normas para promover o desenvolvimento dos servidores públicos nas competências necessárias à consecução da excelência de sua atuação nos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, no âmbito do poder executivo.

De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas, a gestão por competências é a gestão da capacitação orientada para o desenvolvimento do conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho das funções dos servidores, visando o alcance dos objetivos das respectivas organizações no âmbito público.

No setor público, a gestão por competências objetiva mais transparência na relação laboral e interpessoal; maior eficiência nas ações institucionais; justiça interna; meritocracia nas políticas de consequência; redução do absenteísmo e manutenção dos talentos. Também, objetiva o desenvolvimento de pessoal, integração de pessoas, processos e estratégias, de maneira precisa e sem custos desnecessários.

Na perspectiva das competências na gestão pública, que trata das competências do ponto de vista das regras quanto às obrigações, funções e atribuições do gestor público, temos o exemplo do estatuto dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais (Lei nº 8.112/1990). Entre os deveres do gestor público do executivo federal estão: exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo; observar as normas legais e regulamentares; atender com presteza ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas às protegidas por sigilo, entre outros.

No universo conceitual de competências em gestão, existem alguns grupos de competências que se destacam para a gestão pública, sendo as competências comportamentais, competências técnicas e competências funcionais.

As competências comportamentais estão relacionadas ao exercício da postura, portanto as atitudes do colaborador, relacionadas às questões emocionais que podem ser decisivas para o desempenho das atividades. Essas atitudes podem ser individuais ou coletivas. Exemplos: iniciativa, empatia, boa comunicação e oratória, atendimento ao cliente.

As competências técnicas são as capacidades técnico-científicas necessárias para desempenhar tarefas e atividades. Está relacionada ao conhecimento teórico e prático que podem ser o conhecimento das leis e normas, ferramentas digitais e metodologias.

As competências funcionais estão relacionadas às características, comportamentais e técnicas conjugadas, para o desempenho de determinada função, relacionadas ao que é necessário para cada cargo, área e nível de senioridade, para o funcionamento e organização interna da gestão pública.

Mesmo com o avanço da tecnologia, a intensa mudança nos contextos nacional e internacional, estudos e pesquisas científicos e a possibilidade de resultados promissores, ainda existem muitos paradigmas para a plena implementação da gestão pública por competências.

No Brasil, questões políticas, o entendimento do que é meritocracia e como pode ser utilizada de forma positiva, cultura do individualismo e pouca avaliação atualizada e adequada à realidade, geram resistências em relação à gestão por competências em comparação com muitos outros países desenvolvidos.

No mundo, vários países democráticos e que prezam a liberdade, tem desenvolvido competências diferenciadas para atuar no novo contexto e superar os desafios que tem sido apresentados à humanidade. Dentre outras, as principais destas competências, são: capacidade e responsabilidade na tomada de decisões; resolução de problemas; enfrentamento de fake news; cultura e capacidades de uso de tecnologias digitais; e, valorização da experiência do cidadão.

As oportunidades de melhoria com a implementação da gestão por competências são inúmeras e poderão gerar melhores condições de trabalho para servidores e gestores públicos, eficiência e eficácia na utilização de recursos, políticas públicas mais efetivas e um contexto político favorável ao desenvolvimento sustentável do país.

Rússia x Ucrânia: quais são os limites da guerra cibernética?

A invasão russa na Ucrânia é acompanhada de uma invasão de todo o espaço cibernético. Na imprensa do Brasil, o fenômeno é muitas vezes tratado como inédito, mas não é. Desinformação é uma das armas de guerra mais antigas e funciona.

Entre os relatos ancestrais, temos a “fake news” de que Marco Antônio havia colocado Cleópatra em seu testamento, o que entregaria Roma aos estrangeiros se ele morresse.

É possível alegar que este seria o primeiro conflito em que a desinformação se alastra de uma maneira nunca vista antes, já que vivemos a era da Cidadania Digital. Também não é. O primeiro foi na tomada da Criméia, a mesma região, em 2014.

A experiência foi documentada no livro “War in 140 characters”, de David Patrikarakos. Existe uma grande mudança entre guerras de desinformação antes e depois das redes sociais e da digitalização da vida prática dos cidadãos. Hoje não é preciso mais construir um sistema de desinformação, basta usar os sistemas de relacionamento social que viraram fonte de informação.

A Rússia tem uma das mais sofisticadas máquinas de propaganda oficial com uso das redes sociais ocidentais. O primeiro artigo que publiquei aqui no Instituto Montese era exatamente sobre este tema, um detalhamento de como tudo funciona. Não se trata de algo óbvio ou de tentar convencer as pessoas de mentiras, mas da criação de toda uma lógica de pensamento.

Outro ponto importante de exercício de poder na era digital é o controle de sistemas cibernéticos. Quem consegue interferir na rotina dos cidadãos de outros países acaba ganhando um poder gigantesco, que está sendo usado nessa guerra.

Em novembro do ano passado, fiz um artigo sobre Ramsomware, o crime de sequestro de dados que passou a preocupar governos no mundo todo. É uma atividade prolífica na Rússia e que ameaça o equilíbrio de poderes entre potências.

Imaginamos a guerra como algo sem limites porque as imagens nos levam a uma realidade muito cruel. Mas esses limites existem, por isso há crimes de guerra. O conceito é antigo, data da primeira Convenção de Haia em 1907.

As regras mais conhecidas são aquelas traçadas a partir de 1949 nas quatro Convenções de Genebra e em seu aditivo de 1977. Tanto Ucrânia quanto Rússia são signatárias desses acordos e, portanto, seus governos se sujeitam a essas regras.

O princípio mais conhecido é o da distinção entre civis e combatentes. Atacar deliberadamente a população civil é um crime de guerra. Infelizmente, ele se repete em diversos conflitos e é perpetrado por muitos países que assinaram a Convenção de Genebra.

No confronto físico é relativamente fácil avaliar o que são ou não excessos contra a população civil. Mas e no mundo digital? Quais regras se aplicam? Um país pode simplesmente tirar a internet de todos os cidadãos do território que for invadido? Pode invadir o sistema bancário e impedir civis de movimentar dinheiro? Já houve quem pensou nessas respostas.

Nós migramos boa parte de nossas rotinas para o cyberespaço sem perceber. A pandemia acelerou demais esse processo. Boa parte de nossas atividades cotidianas, aquelas de todo cidadão comum, são realizadas no mundo digital. Não falo aqui só de rede sociais.

Declaramos imposto de renda pela internet, assinamos documentos por via digital, movimentamos nossas economias pessoais pelo cyberespaço, administramos negócios em nuvem, compramos e vendemos pelas plataformas, estudamos nelas, guardamos nossos documentos pessoais nos servidores das Big Techs. 

Outro dia me lembraram que, há 10 anos, nem os celulares com internet tinham aplicativos. O Ipad surgiu só no final do ano de 2010, era lançamento para o Natal. Imagine sua vida hoje sem os aplicativos de mensagens, bancos, informação de trânsito, compras, agenda. 

Nossa preocupação foi aprender a parte técnica, como passar nossa rotina analógica para a dinâmica digital. Quem me acompanha sabe que não economizo ao apontar os riscos que essa nova dinâmica traz para as democracias e liberdades individuais.

Por outro lado, é obrigatório reconhecer que esse avanço tecnológico também trouxe ganhos monumentais para as liberdades individuais, o desenvolvimento pessoal, a vida profissional e a liberdade econômica. Aprendemos e adotamos a tecnologia porque ela melhora nossas vidas.

Enquanto o cidadão comum se ocupava disso, representantes governamentais do mundo todo já analisavam como essas tecnologias iriam interferir no equilíbrio de poderes no mundo. 

Meu amigo Anderson Godz, fundador da EdTech Go New, criou uma explicação que facilita muito nossa análise. Não temos mais Três Poderes, temos Seis Poderes. E aqui não falamos apenas da divisão do poder como conhecemos, mas da influência de novos poderes no exercício do poder tradicional e institucionalizado.

Para todos é muito claro que temos Executivo, Legislativo e Judiciário. A mídia é o Quarto Poder, conhecemos bem este conceito. As Big Techs, já chamadas de Empresas-Estado, seriam o Quinto Poder.

Trata-se do pequeno conjunto de empresas bilionárias, com um mercado próprio na área de tecnologia, das quais hoje dependem bilhões de cidadãos e a economia da maioria dos países. São empresas como Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft.

O pulo do gato é compreender o Sexto Poder, aquele exercido pelos grupos de pressão que se formam e agem por meio dessas plataformas. Há pressões sociais, políticas e econômicas que antes dependiam de formar base social ou passar pela barreira do Quarto Poder, a mídia.

Agora, grupos e indivíduos que sabem navegar no mar revolto dos algoritmos das Big Techs conseguem exercer poder e mudar a forma como agem os Três Poderes tradicionais e até a mídia. A invasão da Ucrânia pela Rússia já traz exemplos práticos desse exercício de poder, que vemos no dia a dia.

A eleição presidencial no Brasil foi um exemplo clássico da chegada ao poder tradicional turbinada por grupos de pressão formados nas redes sociais. Passou a ser rotina ver na mídia como notícias “Fulano tuitou tal coisa” ou “A hashtag tal chegou aos trending topics”. O Quinto Poder e o Sexto Poder interferem na forma como os outros quatro são exercidos.

Há pelo menos 20 anos diversos conselhos da ONU debatem com governos e especialistas as ameaças potenciais que as novas tecnologias podem trazer à soberania dos países e aos Direitos Humanos. 

Desde 2004 há seis GGEs (Groups of Governmental Experts) trabalhando nas mais diversas questões de segurança cibernética, envolvendo experts internacionais e Estados-membros da ONU. O último concluiu seus trabalhos no ano passado.

A primeira resolução veio em 2015 e acompanha o raciocínio da Convenção de Genebra, que separa a população civil dos combatentes. Não existe uma proibição de ataques que afetem civis, existe o princípio da proporcionalidade. 

Aliás, há aqui um princípio para guardar com carinho. Proporção vem do latim ratio. É a mesma origem de racional e racionalidade. Ser racional tem uma relação íntima com ser proporcional. Para verificar se há igualdade de proporção, temos de comparar as razões.

Sei que o significado matemático é diferente, mas podemos fazer uma analogia com o significado dessas palavras na situação concreta. É proporcional e racional derrubar uma ponte ou interditar uma estrada usada por civis numa guerra? Depende do quanto ela é utilizada por combatentes inimigos e do risco que isso representa.

No universo cibernético, a mesma lógica é aplicada. Não se trata de bom senso, mas de regras acordadas por todos os países membros da ONU em diversas ocasiões, a primeira em 2015. A última foi em março do ano passado.

Foram criadas 11 normas objetivas às quais boa parte dos países membros se submeteram voluntariamente. Elas criam uma espinha dorsal do que nações soberanas devem ou não fazer no universo virtual, seja em tempos de guerra ou de paz. Os grifos são da própria ONU.

    1. Cooperação sobre segurança entre Estados.
    2. Considerar importante todo tipo de informação.
  • Prevenir uso malicioso de tecnologias cibernéticas dentro dos limites da soberania do Estado.
    1. Cooperar para combater o crime e o terrorismo.
    2. Respeitar os Direitos Humanos e a privacidade dos cidadãos.
  • Não causar danos a infraestruturas críticas.
    1. Proteger infraestruturas críticas.
    2. Responder a pedidos de ajuda.
    3. Garantir a segurança da cadeia produtiva.
    4.  Reportar as vulnerabilidades cibernéticas.
  • Não causar danos a equipes de resposta de emergências.

Se você está acompanhando as notícias sobre a guerra, provavelmente terá dificuldades para encontrar um princípio que ainda não tenha sido violado. Os relatos são invariavelmente estarrecedores.

Há ataques em sistemas bancários, torres de televisão e empresas de serviços públicos. Cidadãos que não tiveram a oportunidade de deixar suas casas agora transformadas em zonas de conflito pagam o preço altíssimo da violação de direitos nos espaços real e virtual.

Por outro lado, novos poderes e alternativas também surgem. Diante da ameaça ao funcionamento da internet na Ucrânia, decidiram cutucar um homem só, o bilionário Elon Musk. Questionaram por que, em vez de gritar nas redes sociais, ele não liberava internet via satélite de graça para os ucranianos. Ele liberou. 

É um novo poder para solucionar uma situação de guerra que não era possível antes que o cyberespaço tivesse tanta importância. As Big Techs resolveram interferir diretamente no conflito com sanções, derrubada de contas, posts e diminuição de alcance de postagens.

Há um deslocamento do eixo de poder. O que as nações pactuaram no ambiente institucional não foi cumprido, mas as consequências não estão chegando pela via institucional. Atores econômicos e da cadeia produtiva também são decisivos para os rumos de um conflito que preocupa o mundo.

No universo digital, esses agentes têm armas de guerra, as armas de informação e desinformação, antes exclusivas das nações 3’soberanas. 

Diante de arroubos imperialistas ou de conquista de territórios, os limites da guerra cibernética não existem. Pouco importa o que foi pactuado, aparentemente vale tudo. No entanto, a capacidade de resposta agora é imediata e vem de diversos agentes, não apenas os institucionais.

Vivemos o desafio de organizar o caos. O primeiro valor a ser sacrificado numa guerra é a verdade. As liberdades individuais vêm em seguida. A grande questão é o que seria infalível para garantir essas liberdades. Infelizmente, ainda não temos resposta.

 

Invasão nada surpreendente

Mário Machado

As duras declarações de Vladimir Putin nas horas que antecederam a invasão russa ao território ucraniano pegaram muitos observadores casuais dos assuntos internacionais de surpresa pelo seu tom forte e pelo enfoque na identidade étnica que deslegitimaria a existência da Ucrânia como Estado-Nação independente.

O governo russo é fortemente influenciado pela doutrina do neo-eurasianismo que tem no influente cientista político e analista Alexander Dugin seu principal proponente. Em sua essência o neo-eurasianismo entende o mundo como um conflito entre terra e o mar, em outras palavras entre a potência militar do cento da Eurásia e a potência marítima, no caso os Estados Unidos da América. E que a Rússia deve expandir sua influência nas mega-regiões do mundo que são espaços civilizacionais que têm como base contextos étnicos.

Nessa visão de mundo os territórios ao redor da potência terrestre se tornam vitais e naturais pontos de embate, uma vez que essa teoria enxerga um mundo multipolar no qual as civilizações distintas para sobreviver devem resistir e criar alternativas para a chamada globalização liberal.

Isso explica a virulência com que o Estado russo reage a certas pautas sociais que considera ameaças existenciais como direitos civis para pessoas homossexuais ou qualquer forma de protesto mais ostensivo contra o governo.

No campo internacional, a consequência dessa ideologia é a percepção russa de que qualquer expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN seria uma ameaça ao espaço russo e controlar os territórios próximos a suas fronteiras é uma questão existencial.

Desse modo, não reconhecer o estado ucraniano como “natural” é consequência de enxergar o controle do espaço da antiga União Soviética como natural e necessário diante do excepcionalíssimo russo.

Está o Ocidente pronto para pagar o preço de permitir que o Kremlin haja com impunidade? Assistiremos impassíveis a agressão na Ucrânia? A Rússia é um ator racional do sistema internacional e tem agido diante de uma agenda estratégica e o mundo deve entender que a percepção de ameaça existencial muda o preço que a Rússia está disposta a pagar.

 

Big Techs, soberania e liberdade: como resolver a equação?

Não temos mais Três Poderes, temos Seis Poderes. Executivo, Legislativo, Judiciário, Mídia, Big Techs e Grupos de Pressão Unidos nas Big Techs. A teoria não é minha, é do meu amigo Anderson Godz, fundador da edtech Go New. Mas eu fico repetindo em todo canto para vocês uma hora acharem que eu tive esse insight.

Parece algo muito abstrato e macro, longe da gente. Pela primeira vez na história da humanidade não é. As decisões tomadas dia a dia na relação íntima que temos com a tecnologia estão moldando uma nova estrutura de poder, em que temos dificuldade de enxergar a proteção das liberdades individuais.

Sou uma eterna otimista. Creio que, à medida em que desprogramamos nossa mente analógica e começamos a entender a nova dinâmica de poder, as soluções e caminhos irão surgir de quem já tem experiência em diversas áreas além da tecnologia.

Veja esse texto como parte do meu esforço para fazer com que você seja mais um cidadão a contribuir com a sua experiência pessoal para a defesa das liberdades individuais no mundo da digitalização e hiperconexão. Vou partir de casos concretos para provocar uma discussão e espero que você me ajude a evoluir nesses temas.

Começo com uma treta que dominou toda a imprensa, o YouTubber Monark, do Flow Podcast contra o YouTube. Vou ficar só nessa parte, embora saiba que a treta foi bem mais comprida. Também vou ficar nos fatos apenas.

Depois de defender que fosse legalizado um partido nazista no Brasil sem informar que Hitler só chegou ao poder pela aplicação dessa mesma tese de liberdade radical, o Flow Podcast voluntariamente tirou o vídeo do ar. Fez mais, tirou Monark da sociedade da empresa, que tem 10 podcasts e mais de 90 funcionários. 

O Ministério Público entrou em ação com providências legais. O Museu do Holocausto convidou Monark a fazer uma visita e entender a gravidade do que disse para milhões de pessoas entre um e outro whisky. Parlamentares e organizações da sociedade civil programaram eventos de conscientização sobre o Holocausto. Não podemos esquecer para não repetir.

Parece que foi um caso lapidar em que tanto as instituições quando a sociedade civil impuseram limites com ações objetivas e proporcionais, dentro de suas esferas de atuação. Mas a polarização criada pelas redes sociais nos dá uma eterna sensação de que “ninguém está fazendo nada” e “fulano continuará fazendo isso impunemente”. Pense quantas vezes você sentiu isso.

Provocar essa sensação é interessante para quem tem poder mas não instituído, ou seja, mídia, Big Techs e grupos de pressão. A institucionalidade que conhecemos não teria dado conta, então é necessário lançar mão de medidas urgentes e autoritárias, mas só desta vez.

Nas redes, o sentimento de que “ninguém está fazendo nada” se mistura com o schadenfreude, satisfação quando um adversário se dá mal. É a tempestade perfeita para fazer alguém abrir mão da própria liberdade sem perceber.

Dias depois de todas as medidas tomadas, muitos influencers continuavam faturando com o “ninguém fez nada, ele precisa ser punido”. O YouTube decidiu inventar uma punição inédita no mundo, que não está nem na lei brasileira nem nas regras de utilização da plataforma. O Monark – e não o canal onde houve a infração – não pode mais monetizar na plataforma.

Uma Big Tech tentar essa cartada não me surpreende, a surpresa é isso não ser percebido porque as pessoas ficam obcecadas em punir alguém e realmente achando que nada foi feito ainda. 

Exemplifico com a nossa mente analógica. Imagina se toda empresa que, direta ou indiretamente, contribuiu para aquela transmissão pudesse simplesmente determinar que aquele consumidor específico não pudesse mais usar seus produtos para aferir lucro. É o que o YouTube fez e a imprensa apoiou de forma maciça.

Então a empresa de energia elétrica poderia, diante de uma discordância com um cliente, impedir que ele usasse seus produtos para aferir lucro. Ele não seria cortado, poderia usar energia elétrica para sua vida pessoal. A companhia telefônica que providenciou a internet do episódio poderia fazer o mesmo. Onde iríamos parar?

A distorção aqui é de foco, causada pela polarização. As pessoas pensam no Monark porque é a treta da semana, não pensam em si, perdem o senso de sobrevivência. Avalie uma empresa alinhada a um governo autoritário. Ela poderia impedir as atividades econômicas de qualquer órgão de imprensa? A imprensa aplaudiu isso, a criação dessa brecha. Estamos em terreno pantanoso.

Quando a imprensa e intelectuais aplaudem um avanço sobre as liberdades individuais com justificativa moralista ou da exceção do caso, normalizam esse tipo de pensamento. Há quem diga que não temos tradição democrática no Brasil, por isso seria tão fácil enredar as pessoas dessa forma. 

Infelizmente, temos exemplos até na maior democracia do mundo, os Estados Unidos. Existe um esforço internacional monumental para decidir como lidar com o novo jogo de poder criado pela existência das Big Techs. As empresas querem evitar o máximo de regulação e tentam ter mais poder, algumas vezes mandam mais que o poder estabelecido.

Um caso emblemático é o do Telegram, que continua funcionando no Brasil e nem atendeu o então presidente do TSE, ministro Barroso. Em países onde as regras são claras e realmente cumpridas, eles respondem. Na mesma semana em que esnobou nossas autoridades, o Telegram se submeteu voluntariamente às regras criadas pelo governo alemão para a arena do debate digital.

Existe uma tendência de focar o debate na superfície. Monark deve ou não fazer um podcast? O Telegram deve ou não funcionar no Brasil? A questão é muito mais profunda.

Nossas instituições estão dando conta de proteger as liberdades individuais dos cidadãos brasileiros diante desses novos poderes? A opinião pública tem clareza de que precisamos ter especial cuidado com violação de liberdades em tempos de mudança como este?

Muitos já chamam as Big Techs de Empresas Estado. Efetivamente, têm mais poder que as instituições de diversos países do mundo. No caso do YouTube x Monark, houve algo bem interessante. A Big Tech diz ter tomado medidas para combater a ideia tóxica da liberdade radical, só que essas medidas são a prática da liberdade radical.

O que foi feito não tem nenhum respaldo legal, não havia previsibilidade desse tipo de medida nem na lei nem nas regras de uso da própria empresa, ela não se submeteu a nenhuma instituição brasileira para decidir e parece não haver quem se contraponha a essa força. Nem a imprensa livre que também é mediada pelo YouTube.

Pequenos precedentes criam hábitos, processos e formas de pensar. As Big Techs não são monstros, são gigantes financeiras que lutam para não se submeter ao poder institucional, ter liberdade radical em que ditam regras. O poder institucional ainda tenta entender como lidar com isso, já que são empresas globais e centenas de regras locais.

Uma forma eficiente de dobrar o poder institucional é ter mais poder sobre a vida dos cidadãos do que as instituições que ele elege. É o caso. Nenhuma instância governamental pode criar regras novas para punir um único indivíduo nem agir contra ele ao arrepio da lei. O YouTube efetivamente pode aqui no Brasil.

A nossa rotina é cada vez mais dependente de produtos das Big Techs e não falo apenas da parte psicológica ou do tal “vício” em internet e redes sociais. Lembra quando o Instagram e o WhatsApp caíram? Muita gente teve um impacto financeiro enorme porque suas atividades foram inviabilizadas.

A pandemia acelerou o uso do que estivesse à mão para buscar alternativas de organização de negócios e da vida. Muita gente demitida, por exemplo, montou lojas no Instagram e recebe por ali. Diversas empresas concentraram suas vendas em entregas e atendem via WhatsApp, até cobram por esses sistemas.

Os avanços tecnológicos são tão rápidos que não percebemos e é fato que resolvem problemas práticos das pessoas. O risco de aceitar tudo de forma acrítica está em não perceber avanços de poder sobre as liberdades fundamentais. Eles são sutis.

Um caso interessante é do fundador da New Discourses, James Lindsay, um crítico da cultura Woke e do Identitarismo (não confundir com pautas identitárias justas e que têm conexão com direitos reais das pessoas). 

Ele descobriu que havia um veto para que ele fosse citado por outros usuários do Instagram, sem que ele fosse avisado ou que houvesse qualquer regra prévia com esse tipo de sanção para usuários. Pode parecer uma bobagem, mas tem impacto em todo o sistema de acesso e buscas ao trabalho dele. É uma forma de moldar artificialmente um mercado específico.

Andy Ngo, autor do Best Seller Unmasked, teve sua conta congelada no Twitter por supostamente revelar dados privados de outros usuários. Ocorre que a situação não era essa, mas algo que beira o bizarro.

O jornalista independente revelou diversas histórias de violência e abusos cometidos em nome do movimento “Antifa”, que não é uma associação que exige inscrição. Qualquer um pode dizer que fez algo extremo por ser Antifa. Ele recebe diversas ameaças e uma delas veio de um email anônimo, que ele postou em sua conta do Twitter. Ele é que foi suspenso. O print do email apócrifo foi considerado revelar dados privados de usuários.

Também parece um pequeno detalhe, mas é uma interferência no direito de denúncia da sociedade civil. Já vivemos em um mundo em que “Fulano tuitou tal coisa” é manchete dos grandes jornais dos mais diversos países. Escolher, sem obedecer à lei e a nenhum critério lógico o que pode ser dito neste espaço digital distorce o noticiário e a percepção de realidade.

A ativista feminista Andreia Nobre listou uma infinidade de contas de outras ativistas que foram silenciadas. Aqui muita gente pode achar estranho, já que as plataformas têm fama de ser progressistas e fazem esse discurso. Existe atualmente um embate entre o feminismo e a militância trans em todo o mundo. 

Não se trata de um embate entre mulheres e pessoas trans nem entre quem milita por igualdade de gênero e inclusão de pessoas trans, é algo diferente. O grupo que eu chamo de “flanelinha de minoria” é que causa os problemas. 

O “flanelinha de minoria” é alguém que resolve cuidar de uma minoria específica e muitas vezes nem faz parte dela. Tal como o flanelinha, ele não quer saber se a minoria deseja ou não ser cuidada por ele, ele vai cuidar de qualquer jeito e a minoria que arque com os custos disso. 

As contas de feministas acabam suspensas principalmente em debates sobre banheiros unissex, transição de gênero em menores de idade e trans no esporte. Basta a denúncia em massa por um grupo para que uma conta seja suspensa, com ou sem razão. 

Na correria do dia a dia, a gente acaba até esquecendo que isso aconteceu, mas algo importante muda. Essa dinâmica de triagem do discurso público subverte os princípios democráticos. Passa a valer a lei do mais forte ou do mais violento. As liberdades individuais perdem proteção.

Como isso é feito de maneira sistemática, diariamente e numa velocidade incrível, perdemos o passo de como muda o jogo de poderes nas sociedades democráticas. As não democráticas já estabeleceram regras claras. São os Estados ditatoriais que controlam os cidadãos de acordo com suas regras, não empresas privadas.

O Partido Comunista Chinês, por exemplo, decidiu que essas Big Techs não operam em seu território. O Yahoo, admitido depois de revelar os dados de dois dissidentes que acabaram presos, resolveu sair ano passado. Não dava conta das novas exigências do governo. O Linkedin decidiu encerrar as operações depois do pedido de derrubar contas de quem trabalhasse falando de direitos humanos na China.

A Rússia, outra potência ditatorial, tem estratégia diferente. A bilionária máquina de propaganda russa manipula as redes com o tipo de propaganda política que interessa ao governo Putin. Meu primeiro artigo aqui no Instituto Montese foi um mergulho nessa dinâmica.

Outras ditaduras menores, como os Emirados Árabes Unidos, encontraram uma estratégia diferente. Usam a soberania para dar poderes ilimitados a Big Techs para operar à revelia da lei de outros países. É para lá que o Telegram se mudou quando o governo da Rússia, de onde é originário, exigiu revelação de dados de usuários.

O governo Putin reagiu duramente e proibiu o Telegram. Na prática, ninguém conseguiu impedir a rede de operar no próprio país. O Irã tentou, mas a inteligência iraniana já admitiu que 45 milhões de cidadãos, mais de metade do país, continua usando o aplicativo “proibido”. A Rússia acabou liberando de volta. 

No modelo de empresas que são vitais para outros ramos da economia, temos uma oportunidade de concentração de poder inédita para pequenos países, principalmente ditatoriais. Ao abrigar uma Big Tech e dar a ela liberdade ilimitada, exercem poder em países muito maiores.

Ditaduras tomam decisões de forma mais rápida que as democracias. Não quer dizer que tomem decisões melhores. É complicado decidir o jogo de poder entre soberania política e domínio econômico caso seja necessário levar em conta as liberdades individuais.

É nesse imbroglio que estamos. Preservar liberdades individuais tem como ponto central a vigilância para manter a liberdade de expressão e a liberdade econômica. Um exercício abusivo dessas duas liberdades pode manipular a opinião publicada e a opinião pública com argumentos moralistas e autoritários.

Casos flagrantes de avanços contra liberdades individuais, principalmente a manipulação do debate público, tendem a ser tratados como exceções em nome de um bem maior. 

Fulano fez um discurso de ódio perigoso, então foi absolutamente necessário aplicar a ele uma pena não prevista antes e completamente desproporcional, imposta por quem nem tem essa autoridade. Ao ler o texto, parece injustificável, mas é algo naturalizado no debate público polarizado e em tintas carregadas.

Qual seria a solução? Promover regulações apressadas e rígidas que praticamente criminalizam as Big Techs e as submetem a qualquer desejo de governos soberanos é uma tentação enorme. Mas não acredito que copiar o que as ditaduras fazem garantiria respeito às liberdades individuais dos cidadãos.

Ainda não existe um modelo pronto e acabado de como é possível preservar a soberania das nações, os direitos individuais e a liberdade econômica ao mesmo tempo nesse novo mundo. 

A Alemanha construiu um sistema que diversos governos democráticos observam de perto. É uma mistura entre órgão regulador, ação da sociedade civil e responsabilidade das Big Techs sobre o risco do próprio negócio. Em muitas partes do mundo, as plataformas são isentas de responsabilidade sobre ações dos criadores de conteúdo. Na Alemanha não.

Mas falamos de um país que tem condições objetivas de impor a lei e com um povo que tem noção dos próprios direitos. Além disso, o processo de superação das chagas do nazismo formou uma cultura especialmente atenta às tentativas autoritárias mais nefastas. 

Seria possível ter modelos tão eficientes nas demais democracias? Sinceramente, espero que sim. É preciso, no entanto, que as autoridades e os formadores de opinião tenham a humildade de aprender sobre a dinâmica do universo digital. 

Talvez essa mudança tecnológica também mude a dinâmica do poder institucional. Os países mais fortes não necessariamente seriam os maiores em território e em população, mas os que criem condições perfeitas de operação para gigantes econômicos. A mudança está em curso. Nossa questão é como garantir as liberdades individuais.

Uma vida inventada: como garantir a liberdade na economia do metaverso e dos games?

Outro dia um amigo me indicou um site de roupas absurdamente maravilhosas e extravagantes, elaborada por designers criativos de todo o mundo. Fiquei deslumbrada, mas imaginei que custassem uma pequena fortuna. Imaginem minha surpresa ao ver que custavam entre US$ 30 e US$ 40.

Enlouqueci. Já fui separando as preferidas e tentando ver se entregam no Brasil. É coisa que aparenta milhares de dólares e custa muito menos, uma barganha. Foi revirando as modalidades de entrega que entendi: é roupa para o metaverso.

Na hora já deu aquele frio na barriga. Afinal, já precisa até comprar roupa para ir ao metaverso e a gente ainda nem entendeu direito o que é. Na verdade, você já tem a experiência, só não associa o nome à pessoa.

O Facebook é talvez a melhor empresa de marketing que já houve. Ao mudar o nome para Meta e falar em Metaverso, evocando o elemento pop do filme do Homem Aranha, nos dá a impressão da chegada de algo totalmente novo e disruptivo. Não é assim, é uma evolução de muito do que já temos.

A definição técnica de Metaverso é um espaço livre e compartilhado de interação que une internet, realidade aumentada e inteligência artificial. Você já conhece algo muito semelhante: o mundo dos games, uma indústria que hoje é maior que a soma de Hollywood com Superbowl.

Há uma tendência de subestimar a indústria dos games, tratar como coisa de molecada. Mas estamos diante de uma ferramenta psicológica poderosíssima.

Os games surgiram entre as duas Grandes Guerras Mundiais para treinamento de soldados. Eram uma forma de dessensibilização. Combatentes da I Guerra relataram dificuldades em matar inimigos, viam ali a humanidade do outro. Os games treinam a mente para anular esse sentimento.

Há um filme na Netflix, Hejter,  https://www.netflix.com/br/title/81270667 que mostra o uso dessa realidade dos games, a realidade Metaverso, na radicalização política de pessoas. Pessoas com vulnerabilidades emocionais e de convivência podem recorrer ao universo fantástico dos games por conforto psicológico. No filme, elas acabam sendo treinadas para matar e realmente matam.

Depois de ler isso, pode parecer que precisamos eliminar imediatamente o Metaverso e os games. Muita calma. Se você tem filhos, deve ter observado como eles mantiveram a relação com os amigos por meio dos games durante a pandemia.

Já há pesquisas mostrando que a saúde mental das crianças que conseguiram, via games, ter vivências virtuais com outras crianças da mesma idade foi muito mais preservada nesse período.

Cito outro exemplo, vindo da Holanda. Alguns professores tiveram a ideia de usar o código aberto do jogo Roblox para montar aulas de História e Geografia. Em vez de aprender só nos livros, filmes e aulas presenciais, os alunos tinham experiências de imersão.

Na prática, eram montados “mundos” que fossem a experiência histórica ou a região geográfica sobre a qual eles iriam estudar. Em vez de ouvir falar, tinham uma experiência de imersão, como se tivessem vivendo aquilo. O resultado de aprendizado foi muito positivo.

Não há dúvidas de que estamos diante de uma nova forma de poder, uma nova arena em que as pessoas podem desenvolver seus sonhos e personalidades.

No master Novo Poder, da Go New, projeto do qual participei com os amigos Anderson Godz, Francisco Milagres e Salim Ismail, há um norte econômico para pensar o novo mundo. Passamos da economia da escassez para a economia da abundância.

O mercado de luxo, por exemplo, com o qual eu iniciei este artigo, é todo pautado na lógica da escassez. Por que um sapato custa US$ 5 mil? Porque é único, escasso, símbolo de status.

Hoje, diversas marcas de luxo têm opções para uso virtual. Parece loucura, mas existe. O mesmo sapato que uma celebridade de Hollywood pagou US$ 5 mil pode ser usado por você no Instagram por US$ 30.

Não é o Metaverso, mas é a mesma lógica. A celebridade milionária vai comprar o sapato e tirar as fotos. Você vai baixar um aplicativo e pagar US$ 30 para aplicar nas suas fotos com inteligência artificial.

Não é uma simples montagem, é um sistema patenteado em que seus seguidores realmente pensarão que você usa aquele símbolo de status. Confira na loja do metaverso, . Sabendo de antemão que são montagens, a gente identifica. Sem saber, ou demoramos demais ou passamos batido.

O fato é que podemos montar uma vida completamente inventada e estamos mergulhando cada vez mais fundo nessas tecnologias. Isso significa que a garantia das liberdades individuais passa pela mediação dessas plataformas.

Há diversas formas de lidar com o poder que as “Empresas-Estado” têm sobre as pessoas. Na União Europeia, Estados Unidos, América Latina e outras regiões democráticas do mundo francamente ainda patinamos.

Países totalitários já decidiram que empresa nenhuma vai dominar os dados e manipulação psicológica dos cidadãos. Os governos totalitários é que vão.

A China, por exemplo, recentemente limitou o tempo que crianças e jovens podem passar jogando videogame. Houve duas rodadas de imposição de restrições, a segunda maior que a primeira.

E como vão controlar isso? Se pais e mães reclamam o tempo todo de não conseguir controlar o tempo dos filhos nos games, como o governo conseguiria? Consegue porque já tem a liderança mundial em inteligência artificial.

As democracias estão ainda penando para regulamentar diversas empresas que ficaram poderosíssimas por controlar as plataformas em que as pessoas se relacionam. São diversas empresas gigantescas das quais os cidadãos dependem para se relacionar, ter informações, fazer pagamentos e realizar atos da vida civil.

Imagine que um único grupo de pessoas fosse dono de todos esses sistemas e pudesse cruzar os dados. Ele sabe tudo o que você faz da vida e pode decidir, de forma automatizada, impedir que você faça algo ou recompensar você por alguma boa ação.

É o sistema de “score social” que já está em vigência na China. A inserção digital é completa e o controle dos dados também. Pessoas que contestarem publicamente o Partido Comunista Chinês podem gerar consequências para toda a família.

Não são consequências como as que estamos acostumados, mas impedimentos práticos na vida. Alguém com baixo “score social” pode ser impedido de comprar passagens de trem e avião. Se um parente seu criticar o Partido Comunista Chinês, é um risco que você corre.

O “score social” também determina quem estuda nas melhores escolas, tem oportunidade de disputar os melhores empregos e as melhores moradias.

Por outro lado, pessoas que fazem boas ações são recompensadas automaticamente. O sistema domina todas suas interações para a vida cotidiana. Quem cuida dos pais idosos, doa sangue e recicla lixo, por exemplo, tem favorecimento e descontos em serviços.

É uma cultura completamente diferente da nossa, a brasileira. Parece assustador que alguém controle todos os nossos passos e resolva nos boicotar ou recompensar conforme seguimos regras ditadas.

Precisamos saber que hoje isso é possível. Nas democracias ainda patinamos sobre como regulamentar esse poder. Não há uma centralização, há diversas empresas que se comportam de maneiras diferentes. Algumas delas são mais poderosas que governos.

Enquanto quebramos a cabeça para regulamentar, a tecnologia só avança. Estamos cada vez mais inseridos e dependentes desse universo mediado por algoritmos.

Como resolver a questão ainda é incerto. Se demoramos demais para impor regras, podemos ser engolidos por poderes que desconhecemos. Se nos precipitamos na regulamentação, ela pode ser feita à revelia de princípios democráticos.

A questão que resta a cada um de nós é como defender nossas liberdades individuais neste contexto. Culturas autoritárias já resolveram suas regras. Nós ainda não. Uma precipitação na regulamentação pode nos jogar para o campo autoritário. São decisões desafiadoras.

Cada vez mais temos de ter clareza sobre nossos princípios e o que preserva nossa individualidade e saúde mental. A liberdade econômica também é central nessa equação. Sem ela, não é factível manter a saúde mental para garantir liberdades individuais.

Mais uma vez não tenho respostas, só muitas perguntas. É tentador resolver tudo de uma vez, mas a única solução comprovada já existente seria importar o modelo chinês de controle. Quem controlaria?

A tecnologia é sedutora. A possibilidade de uma vida inventada, com menos ônus para grandes emoções e status é uma tentação quase irresistível. Nosso desafio é viver nesse mundo sem abrir mão da liberdade.