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Facção criminosa e organização terrorista

Eu assisti, ninguém me contou. No decorrer da invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, o apresentador da Globo News chamou repetidamente os vândalos de terroristas. Depois a emissora corrigiu essa abordagem (sem dizer que corrigiu, nem porque corrigiu). Os invasores tinham intenções golpistas (chamar uma intervenção militar para interromper o mandato do presidente recém-eleito e já empossado, Lula da Silva), mas eles eram terroristas?

Jair Bolsonaro (já eleito e ainda não empossado) declarou no final de 2018 na avenida Paulista: “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”. Os militantes do MST (de Stédile) e do MTST (de Boulos) são terroristas?

Putin acaba de fazer aprovar nestes dias, pelo parlamento fantoche da ditadura russa, um tratado de parceria estratégica com o ditador Maduro para, entre outras coisas, combater o… terrorismo. Ele, Putin, há sete anos, já havia chamado os opositores de Maduro (Maria Corina incluída) de terroristas e continua qualificando seus próprios opositores na Rússia como terroristas. O mesmo faz o ditador Erdogan na Turquia. Estão vendo como esse assunto é delicado?

O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.

A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto antigo em debate, de 1996, já caracterizava terrorismo como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.

Mas praticar atos que infundem o terror nem sempre é suficiente para caracterizar uma organização como terrorista. Por exemplo, em guerra mudam-se os critérios. No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo?

La Résistance, a resistência francesa à ocupação hitlerista, era terrorista? Era uma organização armada, não-regular, não-legal, que praticava atos violentos (matava, sequestrava, mutilava seres humanos, sabotava, explodia bombas etc.) com efeitos claramente propagandísticos: visando atemorizar a população civil para dissuadi-la de colaborar com o nazismo. E aí? Aí vale porque os invasores eram estrangeiros? Quer dizer que o que define terrorismo não é a natureza das ações praticadas e sim os motivos pelos quais foram praticadas? Quer dizer que se ações tipicamente terroristas forem praticadas em defesa da pátria ou da nação – e da soberania nacional – está valendo? Que ética é capaz de resistir a tais critérios?

Além disso, todos os governos autoritários classificam seus opositores mais incômodos como terroristas e, para tornar juridicamente válida essa classificação, tentam criar novas leis (ou modificar leis já existentes) para tipificar como terroristas as ações ofensivas dos que se lhe opõem.

O assunto é espinhoso e exige que nos concentremos no básico. E o básico é o seguinte:

Organizações terroristas sempre têm uma causa político-religiosa (incluídas aí as religiões laicas, como certas ideologias revolucionárias). Na verdade o terrorismo é, a rigor, uma via antipolítica para alcançar algum objetivo não-mercantil (ou extra-mercantil).

Facções criminosas não são organizações terroristas. Elas não têm causa nenhuma. Não se vê “soldados” do narcotráfico (ou “trabalhadores do narcotráfico”, segundo Gustavo Petro) sacrificando suas vidas para atingir um objetivo. Por exemplo, se imolando em praça pública ou detonando um colete de explosivos no meio de uma multidão para matar o maior número de pessoas. Não se vê nem mesmo um “lobo solitário” do narcotráfico esfaqueando uma pessoa na rua em nome da sua causa de libertação (como faziam os zelotas na antiga Palestina ocupada pelos romanos) ou em nome da instauração de um califado universal (como os jihadistas do Estado Islâmico ou da Al Qaeda).

Facções criminosas, ditas do narcotráfico, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, são organizações com objetivos de lucro. São empresas bandidas. Ou seja, seu comportamento não é presidido por uma racionalidade extra-mercantil. Pode-se dizer que são um novo tipo de organização criminosa para o enfrentamento do qual as forças de segurança não estão preparadas.

A rigor as facções criminosas, em especial o PCC, não são mais nem organizações dedicadas ao tráfico de drogas como seu negócio principal. São uma espécie de máfia (amoral, mas sem familismo), de base prisional (parte de seus principais comandantes estão protegidos dos seus concorrentes nas prisões, sob custódia do Estado), que lucram com a venda e a cobrança ilegal de serviços, a imposição de taxas sobre negócios privados e a extorsão da população capturada em seus territórios.

Segundo artigo de Arthur Trindade, publicado no Correio Braziliense de ontem, “um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, existiam 88 facções de base prisional no Brasil. Sendo que 72 delas têm atuação local como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e têm conexões internacionais”.

Fala-se de uma coordenação entre governos federal e estaduais para enfrentar o crime organizado. Não basta. A situação chegou a tal ponto que é necessário um verdadeiro pacto social. Por mais que se aumente a repressão, a inteligência e os recursos, isso não bastará. É necessária a participação da sociedade e, inclusive, a colaboração das populações sequestradas nos territórios dominados pelas facções (muitas vezes na forma de resistência que não pode se revelar). Todavia, governos populistas, ditos de esquerda ou de direita, não são capazes de promover nada disso. Os de esquerda continuam acreditando que a criminalidade deriva da desigualdade social – o que leva à uma perigosa leniência, como se os criminosos fossem rebeldes primitivos que só existissem em razão da brutal desigualdade social e da exploração econômica, da opressão política e da dominação e discriminação ideológica das elites, dos capitalistas, dos imperialistas, dos neocolonialistas, sobre os trabalhadores ou o povo pobre. Os de direita continuam acreditando que existem os homens do bem e os homens do mal e que os primeiros devem exterminar os segundos pela força bruta, extirpando as maçãs podres da cesta – o que é a barbárie.

Definir as facções criminosas como organizações terroristas é uma armadilha autoritária. É conveniente para os que acham que se trata de eliminar fisicamente os bandidos (na base do “bandido bom é bandido morto”, ao arrepio das normas que regem os Estados democráticos de direito). Ninguém se escandaliza quando forças de segurança policiais ou militares abatem a tiros um terrorista, seja em Telavive, em Chicago, em Londres ou Amsterdã. Ninguém cobra que o terrorista seja preso, após a leitura de seus direitos e apresentado a um juiz. Há um consenso (tácito) sobre isso, que atravessa as ditaduras e chega até às mais plenas democracias liberais.

Mas matar os membros das facções criminosas não resolve o problema. Mil chacinas policiais ou militares não resolverão o problema. Cada “soldado” morto no narcotráfico será substituído rapidamente por outro. Cada “comandante” morto será sucedido por outro. Antes de qualquer coisa porque, a despeito dos riscos imensos, o negócio é muito lucrativo. E também porque o ambiente configurado nas favelas e periferias é favorável à instalação e replicação de uma cultura que valida, aos olhos de parte das comunidades, tal comportamento. Os feitos dos “heróis insurgentes” dos morros são cantados em prosa ou verso por artistas populares, cujas músicas são ouvidas por todos, crianças, jovens, adultos e idosos que nada têm a ver com o crime. Sim, o que estou dizendo é que há base social que permite que esse tipo de organismo nasça, cresça, se desenvolva e se reproduza.

Vários fatores combinados permitiram (e continuam permitindo) o surgimento (e a proliferação) desse tipo de organização criminosa. O principal desses fatores é uma depressão no campo interativo que extermina velozmente capital social. CV, PCC e Milícias surgem desse black hole. Uma deformação do tecido da sociedade – e uma degeneração do Estado inclusive (sobretudo no caso das milícias, que não surgem por ausência de Estado já que são uma espécie de dark side do próprio Estado). As facções criminosas do narcotráfico são uma degeneração do modo de agenciamento chamado mercado, assim como as milícias são uma degeneração do modo de agenciamento chamado Estado. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Operação Contenção expõe ao mundo a guerra interna do Brasil

A Operação Contenção — a maior da história do Rio de Janeiro, com mais de 120 mortos e o envolvimento de 2.500 policiais — trouxe o problema da expansão do crime organizado para o debate público de maneira incontornável.

Enquanto helicópteros sobrevoavam o Complexo do Alemão e da Penha, drones explosivos, barricadas incendiadas e fuzis transformavam a cidade em uma zona de guerra, levando o Brasil para manchetes do noticiário internacional.

Se os que padecem sob o jugo tirânico das facções criminosas nas comunidades e periferias já conheciam o enorme poder de facções como o Comando Vermelho, penso que a maioria da classe média do país, embora ciente do problema, não atinava ainda para a dimensão real do problema.

A repercussão do confronto entre policiais e criminosos no Rio trouxe novamente à tona uma clivagem ideológica no país, além de deixar transparecer a fragilidade de certas narrativas.

A palavra soberania, por exemplo, tão ecoada ultimamente pelo governo Lula, devido às tarifas e sanções impostas pelos EUA ao Brasil, se volta agora contra aqueles mesmos que dela tanto se utilizaram com afetação nacionalista.

De fato, como falar em soberania quando o Estado não detém o monopólio da força, mas o divide com criminosos que têm seu próprio “tribunal” e impõe suas “leis” em território no qual a população mais pobre vive como refém?

Aqueles que, em nome dos Direitos Humanos, se mostram tão preocupados com os alvos da ação policial, acaso mostram a mesma preocupação com os moradores da comunidade cujo direito de ir e vir é rotineiramente suspenso por barricadas?

Aqueles que apontam “barbárie” na ação da polícia contra o Comando Vermelho não consideram barbárie as torturas perpetradas contra moradores inocentes e contra rivais como prática sistemática de punição e controle territorial?

Aqueles que acusam a polícia de agir seletivamente contra “pobres” se solidarizaram com os milhares de pobres expulsos de suas próprias casas pelas facções?

O êxodo imposto pelas facções teve um crescimento espantoso no meu estado, Ceará, há mais de dez anos governado pelo Partido dos Trabalhadores. Uma reportagem recente da mídia local dá conta de que as facções criminosas expulsaram moradores de pelo menos 49 bairros de Fortaleza.

Em entrevista no papo Antagonista, o ex-capitão do Bope, Rodrigo Pimentel, comentou algo que foi motivo de indignação aqui em Fortaleza: a polícia não garantiu a segurança para que os moradores continuassem em suas próprias casas após receberem ameaças das facções, mas garantiu escolta para que abandonassem suas casas em segurança.

Certa noite, em setembro, eu estava em casa com meu filho quando sobreveio o barulho de uma expressiva e inusitada queima de fogos que durou vários minutos. Ele se agitou um pouco, eu fechei as janelas. Imaginei que era alguma vitória de time de futebol, Fortaleza ou Ceará. No outro dia, li que tinha sido a celebração do Comando Vermelho pela conquista de novo território.

Foi também aqui, em Fortaleza, o caso da cozinheira executada a facadas e tiros na frente dos seus filhos, por membros do Comando Vermelho, por ter se recusado a envenenar a comida de policiais. Esses e outros crimes de uma violência bárbara tornaram-se cada vez mais comuns.

O caso do Ceará mostra que o crime organizado está se expandindo com força total para todo o Brasil e que não se trata mais de problema restrito ao Rio de Janeiro.

Ao dar visibilidade a isso, a Operação Contenção forçou a sociedade a se posicionar. A questão lançada é a seguinte: o brasileiro comum quer que o Estado continue fazendo vista grossa para a expansão do crime organizado ou quer que ele seja efetivamente enfrentado?

Para espanto de boa parte da bolha esquerdista, as pesquisas apontaram claramente a disposição do brasileiro para o enfrentamento.

Segundo o instituto AtlalIntel, 62,2% da população da cidade do Rio de Janeiro e 55,2% da população brasileira aprovaram a Operação Contenção.

O dado mais significativo, porém, é que, entre os moradores de favelas do Rio, 87,6% aprovaram a operação e entre os moradores de favelas do Brasil, a aprovação foi de 80,9%.

Esses dados mostram uma enorme dissonância entre o discurso da elite progressista em nome dos pobres e o que os pobres realmente desejam para si.

“Massacre”, “genocídio”, “barbárie policial”, “extermínio de pobres”, escreveram os especialistas progressistas, e pulularam notas de condenação à operação que sequer mencionavam o nome Comando Vermelho, como se policiais do BOPE, entediados, tivessem resolvido subir o morro para matar pobres por diversão, como se jogassem uma partida de vídeo game.

A deputado Jandira Fechali (PCdoB/RJ) escreveu no X que “é possível combater o crime sem dar um tiro”.

Uma professora da UFF, ouvida como “especialista em segurança pública” tornou-se chacota nacional devido às suas análises do tipo: “um criminoso com um fuzil na mão é facilmente rendido por uma pistola e até por uma pedra na cabeça”.

intelligentsia progressista prestou solidariedade à professora e colocou o deboche na conta de misoginia e do preconceito contras cabelos laranjas, optando por permanecer descolada da realidade.

Como costuma acontecer no Brasil, o debate que deveria ser técnico e estratégico — como recuperar o território, como enfraquecer o poder das facções, como preservar vidas inocentes — foi tragado por paixões políticas.

Uma análise dos discursos expõe também o simplismo das duas visões de mundo extremistas que tentam moldar a política e se impor à sociedade: a que tende a ver o criminoso como vítima da sociedade e a que o vê como encarnação do mal a ser sumariamente executado.

Ambas as posições são confortáveis porque dispensam a complexidade. A primeira dissolve a culpa individual no sistema; a segunda apaga a necessária linha de contenção do Estado.

O humanitarismo da esquerda transformou-se em uma moral de absolvição. O traficante, o ladrão, o homicida tornam-se “vítimas do sistema”, enquanto o sistema — um ente abstrato e sempre culpado — substitui a responsabilidade pessoal.

Em nome da “justiça social” a narrativa da esquerda absolve os algozes dos pobres e condena a polícia que tenta assegurar o direito básico à segurança

Mas a direita não fica atrás em cegueira quando rotula toda e qualquer crítica a abusos policiais como “defesa de bandido”. Já há políticos brasileiros querendo viajar para El Salvador para aprender o modus operandi de Nayib Bukele.

Quando o poder público celebra o número de mortos como troféu, é preciso ficar alerta. Gosto daquela frase de Nietzsche, em “Para além de bem e mal”: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro”.

Certamente há uma posição mais sóbria entre o humanismo de gabinete e o punitivismo de palanque.

Não estamos mais diante de delinquência comum, mas de forças organizadas com comando, hierarquia, território, armamento pesado e vínculos econômicos com o Estado. O Brasil vive, ainda que não o reconheça oficialmente, uma forma de guerra civil.

O Comando Vermelho e o PCC são poderes paralelos com estrutura administrativa, logística e capacidade de arrecadação. Controlam serviços, impõem tributos, administram conflitos e exercem soberania sobre milhões de brasileiros.

Em várias regiões, são o único poder presente. O Estado, por omissão e covardia, cedeu o território e contentou-se com discursos e propaganda.

O governo federal culpa os estados; os estados culpam o Supremo; o Supremo culpa a polícia; a polícia culpa as leis. E o crime, em meio disso, se expande.

A Operação Contenção, no entanto, nos fez enxergar. Enxergar que a guerra já começou, que a soberania já foi fragmentada e que a segurança pública não deve ser teatro ideológico porque é questão de sobrevivência civilizacional.

Elite do Leblon critica, mas quase 90% dos moradores de favelas do Rio aprovam operação da polícia

Partido dos Trabalhadores é praticamente o único a ter governado o Brasil neste século. Foram quatro mandatos presidenciais e um quinto já no final. Nesse período, o crime organizado, que surgiu nos anos 1990, se tornou uma potência internacional. Hoje, segundo levantamentos oficiais, cerca de 26% do território nacional, incluindo parte do Rio de Janeiro, está sob domínio de facções criminosas. Só a título de comparação, na Colômbia e Nicarágua o percentual de território do crime não chega a 10%. É o retrato de um país onde o Estado foi sendo substituído por organizações armadas que impõem leis próprias, arrecadam “impostos” via extorsão, controlam o território e desafiam abertamente a autoridade pública.

A megaoperação realizada nos Complexos da Penha e do Alemão foi a mais letal da história do Rio de Janeiro. O saldo de 117 mortos expôs uma realidade que há anos vinha sendo ignorada. De acordo com a Polícia Civil, 109 corpos já foram identificados, e 78 dos mortos tinham histórico de crimes graves, incluindo homicídios e tráfico de drogas. Mais da metade dos suspeitos era de outros estados, confirmando que as favelas cariocas se tornaram o quartel-general do Comando Vermelho. Ali, as facções realizavam treinamentos de tiro e recrutamento de novos integrantes, que depois eram enviados para expandir o domínio da organização.

Pela primeira vez, os policiais foram recebidos por criminosos armados com drones que lançavam explosivos. A cena simboliza a nova escala de poder do crime organizado no Rio e reacende um debate urgente: até quando será possível tratar essas facções como simples organizações criminosas e não como grupos terroristas? Quatro policiais morreram.

Mesmo diante da violência e da tragédia, a população mais afetada demonstrou apoio à ação. Segundo pesquisa AtlasIntel, 87,6% dos moradores de favelas do Rio aprovaram a operação. São pessoas que vivem diariamente sob o medo imposto por criminosos e que sabem o custo real da ausência do Estado. Enquanto isso, parte da elite progressista do Rio, especialmente nos bairros do Leblon, da Gávea e de Ipanema, reagiu com indignação moralista.

É uma elite que gosta de posar como consciência crítica do país, mas que não tem coragem de enfrentar a realidade. Do alto de seus apartamentos, multiplica discursos sobre “genocídio” e “violência policial”, sem jamais pisar num beco dominado por fuzis. Defendem o povo, mas condenam qualquer tentativa de garantir o direito mais básico: viver sem medo. Falam de empatia, mas se recusam a ouvir quem realmente sofre com o domínio das facções.

A distância entre quem diz defender o povo e o que o povo quer é abissal. O brasileiro comum, inclusive o morador das comunidades, quer trabalhar, estudar, criar os filhos em paz e andar na rua com segurança. Quer ver o Estado recuperar o controle. Mas a elite militante insiste em enxergar cada ação policial como opressão e cada criminoso como vítima. O discurso serve para sinalizar virtude, não para enfrentar o problema.

O fenômeno é político e cultural. Durante décadas, o PT e seus aliados sustentaram a ideia de que combater o crime com firmeza seria autoritarismo. Essa visão contaminou as universidades, as redações e o debate público. Criou-se a fantasia de que o Estado deve compreender o criminoso, não reprimi-lo. O resultado é um país onde o tráfico financia campanhas, compra autoridades e dita regras em um quarto do território nacional.

A megaoperação no Rio expôs o que os brasileiros já sabiam: a paciência acabou. As pessoas estão cansadas de ser usadas como biombo moral por quem vive em segurança e lucra com a narrativa da desigualdade. Cansaram da elite que se comporta como flanelinha de minoria, oferecendo indignação sob demanda para manter prestígio entre os pares.

A segurança pública será o calcanhar de Aquiles da esquerda nas eleições do próximo ano. Porque, enquanto essa elite performa virtude, o povo real, que mora onde o Estado se ausentou, sabe que a paz só virá quando a lei voltar a valer para todos.

Mexicanização Brasileira

O poderio do crime que motivou a ação policial no Rio de Janeiro não é um caso isolado. É a tradução de uma doença metastática que consome o Brasil. O que se vê no Rio hoje é apenas o ensaio geral, a prévia mais avançada do que todo o país experimentará amanhã se não acordarmos para a realidade brutal: o crime não mais opera à margem do Estado: ele se infiltrou em suas veias e diversificou seus negócios em escala industrial.

O conceito de crime organizado transcende em muito aquele já conhecido como ilícito comum. Estamos falando de um conglomerado infiltrado nas instituições públicas, com gestão corporativa, que sistematicamente corrompe e coopta o Estado para garantir a impunidade e expandir seus impérios. Esta não é uma teoria conspiratória. É a prática documentada de facções como o PCC e o Comando Vermelho, que hoje controlam cadeias inteiras do poder público. A infiltração é a nova arma, agora eficaz e silenciosa. As fraudes em concursos públicos, criminosos eleitos para parlamentos e um judiciário leniente são as provas cabais de êxito desta estratégia.

Além disso, é um erro reduzir o poder do crime apenas ao tráfico de drogas. Atualmente uma vasta e complexa teia econômica lava seus recursos e financia sua expansão. Facções dominam o contrabando de cigarros, comercialização de vapes, adulteração de combustíveis em escala nacional e, de forma mais visível, parcelas do lucrativo mundo das apostas que envolvem influenciadores. Segundo a Receita Federal, apenas 27 das 134 empresas do setor possuem registro regular, criando um ambiente fértil para lavagem de dinheiro.

Enquanto o Rio de Janeiro chama a atenção pela visibilidade, vastas regiões do Norte e Nordeste do país já vivem sob um silencioso e férreo controle das facções. Inúmeras cidades têm seu comércio, transporte e até a vida social ditados pelo crime. Prefeitos governam sob a tutela de grupos criminosos ou fazem parte deles, enquanto a população vive sob a lei do silêncio, sabendo que o Estado, quando aparece, é muitas vezes apenas uma extensão do poder do tráfico e das milícias. Segundo o Monitor da Violência, 15% dos municípios brasileiros relataram episódios de guerra entre facções em 2023, um aumento de 40% em relação a 2020. São batalhas pelo domínio territorial.

Este cenário é a materialização do que especialistas chamam de “mexicanização”. Não se trata de uma simples importação cultural, mas da adoção de um modus operandi onde os cartéis não apenas disputam mercados ilícitos, mas contestam o monopólio estatal da força e controlam porções significativas do território e da economia formal e informal.  O destino lógico e aterrador deste caminho é o nascimento de um modelo de narcoestado, onde as decisões de política pública, as nomeações para cargos-chave e a agenda econômica são influenciadas pelos interesses escusos que, além do crime, controlam parcelas do comércio, política, entretenimento, energia e outros setores. 

A ação no Rio é um sintoma de uma guerra civil assimétrica, um conflito armado onde o Estado reage à superfície do problema, mas perde a guerra silenciosa nos corredores do poder e no campo econômico. Enquanto não houver uma estratégia nacional, unindo inteligência, investigação financeira, combate implacável à lavagem de dinheiro e, sobretudo, a desinfecção da máquina pública cooptada por essas milícias e facções, estaremos apenas enxugando gelo. O Brasil está caminhando a passos largos para se tornar o que o Rio já é: a tradução de um Estado falido.

Brasil: a ordem dos privilégios e o império do crime

O debate sobre a democracia é permanente, estando particularmente aceso no momento, quando são detectadas graves crises em alguns países e apontada a baixa qualidade crônica das democracias de outros. No Brasil, a qualidade democrática está péssima.

A igualdade é um princípio democrático, mas, enquanto os melhores regimes democráticos estruturam modelos que possibilitam um crescimento contínuo da igualdade ao mesmo tempo em que preservam a liberdade, de modo contrário, os regimes totalitários, a pretexto de construírem a igualdade absoluta, destroem a liberdade absolutamente.

O avanço contra a liberdade de expressão, venha de onde vier, nada mais é que a pavimentação para a construção de um regime totalitário. 

Deixaremos, porém, o complexo debate sobre os ataques à liberdade de expressão no Brasil para outra oportunidade e nos ateremos, por ora, na descrição da estranha democracia que os autoritários disfarçados de democratas se arrogam defender. 

Podendo ainda apenas formalmente ser considerada uma democracia, o Brasil constitui, na prática, um modelo disfuncional, uma espécie de “ordem dos privilégios”.

Dentro desta “ordem dos privilégios”, os três poderes da República Federativa do Brasil estão exemplarmente equilibrados.

É fato notório que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário arengam-se mutuamente, estranham-se, chamam nomes feios uns com os outros; mas tudo isso por coisas de somenos, sempre superadas em nome da causa maior dos privilégios.

Privilégios do Executivo

Dos vastos e muito conhecidos privilégios do Executivo, avanço apenas dois exemplos periféricos: o cartão corporativo e os jetons pagos a ministros de governo para atuarem em Conselhos de empresas estatais.

Pelo menos quatro ministros recebem jetons do Sistema S (como Sesc, Senac). Em 2024, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) somou R$ 257 mil em jetons por apenas duas reuniões e Camilo Santana (Educação) R$ 129 mil por sete encontros. Márcio Macêdo (Secretaria-Geral da Presidência), por sua vez, somou jetons de R$ 129 mil por sete reuniões em 2024; já Luiz Marinho (Trabalho e Emprego), também conselheiro no Sesc, tem recebimento previsto, mas sem valores divulgados no Portal da Transparência.

Quanto ao cartão corporativo, sabe-se que, entre janeiro de 2023 e dezembro de 2024, só em gastos sigilosos, a Presidência da República gastou um pouco mais de R$ 38 milhões, informação amplamente divulgada pela imprensa. Porém, não se deve perder a paciência, pois daqui a 100 anos o sigilo desses gastos será quebrado.

É bem verdade que as referidas gastanças estão dentro da legalidade. Mas nem tudo que é legal é moral. Um governo que se diz tão preocupado com as desigualdades sociais, que se diz em favor dos pobres, deveria ser o primeiro a cortar na carne os privilégios.

Em vez disso, aos já aberrantes privilégios, acrescenta-se rotineiramente a ostentação, como no caso das viagens internacionais do Presidente Lula e da Primeira-Dama, Janja, já popularmente conhecida como “Esbanja”, devido às suas notórias extravagâncias em viagens internacionais.

Privilégios do Legislativo

Dos privilégios do Legislativo, basta citar as já sobejamente conhecidas emendas parlamentares que, secretas ou não, são bilionárias.

Em tese, tais emendas deveriam servir ao atendimento de populações que só os parlamentares conheceriam suficientemente bem para lhes saber as necessidades. Seria razoável se os números fossem razoáveis.

Porém, R$ 52 bilhões, que foi o orçamento de 2024 para as emendas parlamentares, não é razoável; é um sequestro de dinheiro público para fins eleitoreiros (em alguns casos já comprovados ou em investigação, descambando para a corrupção pura e simples).

Na melhor das hipóteses, trata-se de um privilégio que visa garantir ao privilegiado a perpetuação da sua condição de casta superior.

Privilégios do Judiciário

Na plêiade de privilégios do Judiciário resplandecem penduricalhos que se elevam em forma de super-salários estelares.

O teto constitucional de salários para 2025 –que serve de limite máximo para a remuneração de servidores públicos federais – foi fixado em R$ 46.366,19 mensais, mas muito se engana quem pensa que os juízes cumprirão esse teto. Deveriam ser os mais ciosos em cumpri-lo, mas o desprezam majestaticamente.

Em 2024, em média, cada juiz recebeu aproximadamente R$ 270 mil extras. Entre novembro de 2023 e outubro de 2024, 125 magistrados receberam rendimentos líquidos superiores a R$ 500 mil em um único mês. A maior parte desses pagamentos ocorreu no Tribunal de Justiça de Rondônia, onde 114 juízes receberam até R$ 1,2 milhão líquidos em fevereiro de 2024.

Será ocioso dizer que todas essas enormidades estão revestidas de engenhosas camadas de legalidade.

Os valores elevados são atribuídos ao pagamento retroativo do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), também conhecido como quinquênio, benefício extinto em 2006, mas restabelecido em 2022 para juízes federais.

Essa decisão gerou um efeito cascata, levando tribunais estaduais a reimplantá-lo, resultando no pagamento de valores retroativos desde 2006.

Não se vê, infelizmente, nenhuma efetiva organização da sociedade civil para se contrapor a esse estado de coisas. No Brasil, o potencial de uma valorosa reação política está adormecido.

A massa mobiliza-se muito mais para defender políticos do que para confrontar tais disfuncionalidades e prefere eleger demagogos em detrimento dos poucos que efetivamente se contrapõem a essa espúria ordem de privilégios.

O crime se organiza

Paralelamente a isso, assistimos ao crescimento assustador da violência. Vê-se e amplamente se comenta que, em algumas regiões do país, o chamado “crime organizado” atua já como governo paralelo, às vezes mais organizado que os próprios poderes legais.

No Brasil, o crime organizado está altamente estruturado e em expansão. Antes mais restrito a pequenos espaços densamente povoados nas favelas do Rio de Janeiro, agora avança por todo o país; e até pelo continente sul-americano.

Matérias jornalísticas dão conta de que o PCC já utiliza um “censo do crime” e coordena presença estadual e nacional de forma estratégica.

Com força até aqui incontrolável, o crime organizado já domina vastas áreas da Amazônia. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que 260 dos 772 municípios da Amazônia Legal tinham atuação de facções em 2024 — um aumento de 46% em relação a 2023.

As maiores organizações — PCC, Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN) — disputam rotas de tráfico e controle territorial, muitas vezes em áreas estratégicas de mineração e fronteiras.

No Ceará, a facção Guardiões do Estado (GDE), responsável pelos grandes atentados de 2019, ampliou sua presença nos últimos anos.

Assim, enquanto os poderes legalmente constituídos ocupam-se de seus próprios interesses e de seus sempre crescentes privilégios, os poderes ilegais vão constituindo no Brasil o seu império do Crime.