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Foto: Reuters/Elizabeth Frantz/File Photo

Trump e o deficit de agentes democráticos nos Estados Unidos

Estamos mergulhados numa terceira onda de autocratização, muito mais tenebrosa do que poderíamos prever ou imaginar. Com Trump alinhando os EUA ao eixo autocrático, a situação se agrava rapidamente e uma escuridão espessa vai se abatendo sobre o mundo.

Como escreveu ontem Francis Fukuyama, no Persuasion (20/02/2025):

“Os Estados Unidos sob Donald Trump não estão recuando para o isolacionismo. Eles estão ativamente aderindo ao campo autoritário, apoiando autocratas de direita em todo o mundo, de Vladimir Putin a Viktor Orbán, Nayib Bukele e Narendra Modi”.

Como Trump, o MAGA e o partido Republicano puderam fazer isso, rompendo uma tradição secular de defesa da democracia dos EUA?

Podemos aventar algumas hipóteses para explicar o fenômeno. A ascensão de Trump (um líder de espírito totalitário) revela que, do ponto de vista da democracia, havia algumas coisas muito erradas com o Estado e a sociedade americanos:

1 – Cultura política discriminatória (e depois antipluralista) dos colonos brancos.

2 – Medo injustificado da ‘tirania da maioria’ (que levou os “pais fundadores” a adotarem um modelo de regime mais inspirado pela república oligáquica romana do que pela experiência democrática ateniense).

3 – Dilapidação acelerada do capital social acumulado nas experiências do ‘network da Filadélfia’ (pró-Independência) e de “governo civil” (tocquevilliano) no século 19 (sobretudo na Nova Inglaterra):

a) centralização excessiva em Washington,

b) recorrência exagerada aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva,

c) ereção do complexo científico-industrial-militar, e

d) muitas guerras.

Sejam quais forem as razões históricas que possamos aventar para explicar as mudanças que permitiram essa guinada, uma coisa é certa: isso só aconteceu por defict de agentes democráticos na sociedade americana. Deficit de agentes democráticos dentro do próprio partido Democrata e nas instituições do Estado e da sociedade (universidades, imprensa, organizações civis, corporações etc.). Em outras palavras, o número de pessoas capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática e resistir aos autoritarismos (e a qualquer populismo) mostrou-se insuficiente. Ora, não há democracia (liberal) sem um número mínimo, crítico, ativo, de agentes democráticos.

Steven Levitsky, em entrevista recente à BBC News Brasil (19/01/2025), respondeu que a eleição de Trump ocorreu porque

“Os políticos foram irresponsáveis, em particular os políticos republicanos, ao nomear um candidato que eles sabiam que era uma ameaça à democracia e deixar essa decisão para os eleitores… Mais uma vez, os eleitores não são cientistas políticos. Cabe aos cientistas políticos determinar se algo é uma ameaça à democracia ou não. Cabe às elites políticas defender a democracia. Não é função dos eleitores”.

Mas não se trata bem disso. Não são apenas os “cientistas” e as “elites”, são as pessoas, embora sempre em minoria, porém ativas, que devem valorizar e defender a democracia. Como escrevi em meu livro mais recente (2023), Como as democracias nascem:

“Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – no Brasil e em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos. Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.”

Tenho dedicado minha vida, nos últimos vinte anos, à expandir a aprendizagem da democracia, compreendendo que aqui também, no Brasil, o número de agentes democráticos está abaixo do nível crítico capaz de cumprir as funções mencionadas no parágrafo anterior. Por isso, entre outras razões, nosso regime eleitoral continua parasitado por populismos de esquerda e de direita que se revezam no poder e investem na polarização e na divisão da sociedade brasileira.

A impressão que tenho é que não vamos sair dessa situação, nem facilmente e nem no curto prazo. Será preciso – nos EUA, no Brasil e na maioria dos países – começar de novo, investindo na aprendizagem da democracia, em termos teóricos e práticos, para multiplicar o número de agentes democráticos. Começar de novo, mais um vez: a maldição de Sísifo que paira sobre os democratas de todas as épocas.

Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.