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A Erosão da “Opção Nuclear”: O Caso Moraes e o Futuro da Lei Magnitsky

A Lei Global Magnitsky de Responsabilidade de Direitos Humanos é frequentemente descrita nos corredores de Washington como a “opção nuclear” da diplomacia americana moderna. Desenhada para ser uma ferramenta cirúrgica e devastadora contra indivíduos que operam na impunidade, a legislação permite aos Estados Unidos projetar poder moral e financeiro para além de suas fronteiras. No entanto, o recente e tumultuado episódio envolvendo o Ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro, Alexandre de Moraes — cuja inclusão na lista de sanções em julho de 2025 foi revertida apenas meses depois, em dezembro — levanta uma questão existencial para a eficácia desta política. Se uma lei criada para punir torturadores e cleptocratas passa a ser utilizada e recolhida como moeda de troca em disputas político-ideológicas, ela corre o risco iminente de perder sua capacidade de dissuasão global.

Para compreender a gravidade desse cenário, é fundamental retomar a gênese trágica da legislação. A lei carrega o nome de Sergei Magnitsky, um advogado e auditor russo que, em 2008, expôs uma fraude fiscal massiva de 230 milhões de dólares perpetrada por oficiais do próprio governo russo. Em vez de ser condecorado, Magnitsky foi preso, torturado e teve assistência médica negada até sua morte em uma prisão de Moscou, em 2009. A indignação global, liderada pelo financista Bill Browder, culminou na assinatura da lei pelo presidente Barack Obama em 2012, focada inicialmente na Rússia, e sua expansão global pelo Congresso em 2016. Desde então, a lei serve como um aviso de que as fronteiras nacionais não protegem violadores de direitos humanos do alcance do sistema financeiro americano.

A aplicação da Lei Magnitsky não é meramente simbólica; ela impõe uma “morte cível” econômica ao sancionado. Quando um indivíduo é incluído na lista de Cidadãos Especialmente Designados (SDN) do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC), as consequências são imediatas e catastróficas. Primeiramente, todos os bens e interesses em propriedade do alvo que estejam nos Estados Unidos ou em posse de cidadãos americanos são bloqueados e congelados. Isso vai muito além de imóveis em Miami ou Nova York, afeta qualquer ativo financeiro que transite pelo sistema bancário americano.

Ainda mais grave é o isolamento do sistema financeiro global. Embora a lei seja americana, a onipresença do dólar torna a sanção extraterritorial na prática. Bancos internacionais, temendo multas secundárias ou a perda de acesso ao mercado americano, cortam laços com o sancionado quase instantaneamente. O indivíduo perde a capacidade de realizar transações via SWIFT, o sistema de mensagens que sustenta as transferências internacionais, tornando-se um pária financeiro incapaz de manter contas bancárias, cartões de crédito internacionais ou realizar comércio exterior. Adicionalmente, a lei impõe restrições severas de visto, impedindo a entrada do sancionado e, frequentemente, de seus familiares imediatos nos Estados Unidos.

Diante desse poder de fogo, a aplicação da lei contra um juiz de uma suprema corte de uma democracia ocidental, como ocorreu com Alexandre de Moraes, foi um evento sem precedentes. A sanção foi impulsionada por alegações de censura e violação da liberdade de expressão, pautas fortemente defendidas por uma ala do Congresso americano. Contudo, a rápida retirada do nome de Moraes da lista, após ajustes nas políticas de plataformas digitais e negociações diplomáticas, sugere uma flexibilização perigosa dos critérios da lei. Ao remover a sanção tão rapidamente, os Estados Unidos enviaram um sinal de que a inclusão na lista Magnitsky pode ser revertida não necessariamente por uma mudança fundamental de caráter ou justiça, mas por realinhamentos políticos e concessões estratégicas.

Esse movimento de “vai e vem” alimenta o argumento de críticos e autocratas de que a lei é, na verdade, uma ferramenta de coerção política seletiva, e não um instrumento imparcial de justiça. Desde 2017, o programa Global Magnitsky sancionou mais de 740 entidades e indivíduos em mais de 50 países. A lista inclui figuras notórias, desde oficiais chineses envolvidos na repressão aos Uigures em Xinjiang até os assassinos do jornalista Jamal Khashoggi na Arábia Saudita, passando pelos irmãos Gupta na África do Sul. A eficácia da lei contra esses alvos reside na percepção de que a sanção é técnica e baseada em evidências robustas de atrocidades ou corrupção sistêmica.

A retirada de nomes da lista de sanções, conhecida como delisting, é historicamente rara e desenhada para ser difícil. Ela geralmente exige provas concretas de que o comportamento do sancionado mudou, que houve erro na designação original ou a morte do indivíduo. O precedente mais notório de volatilidade antes do caso brasileiro foi o do bilionário israelense Dan Gertler, sancionado por corrupção na República Democrática do Congo. Em um movimento controverso nos últimos dias do governo Trump, Gertler recebeu uma licença que suspendia as sanções, apenas para tê-las reimpostas semanas depois pela administração Biden, que citou a inconsistência da licença com os valores anticorrupção americanos.

O episódio de Alexandre de Moraes, somado ao precedente de Gertler, cria uma jurisprudência de instabilidade. Se ditadores e violadores de direitos humanos ao redor do mundo perceberem que a Lei Magnitsky é permeável ao lobby e à pressão política momentânea, o medo de serem sancionados diminuirá drasticamente. A força da lei reside na sua certeza e na sua perenidade; ao transformá-la em um interruptor que pode ser ligado e desligado conforme a temperatura política de Washington, os Estados Unidos correm o risco de embotar uma das armas mais importantes já criadas para a proteção dos direitos humanos globais. Para que a lei mantenha sua relevância e capacidade de pressão, sua aplicação deve permanecer blindada contra disputas ideológicas passageiras, focando-se estritamente naqueles crimes universais que a inspiraram: a tortura, a execução extrajudicial e o roubo massivo de recursos públicos.

O vício mais poderoso e perigoso do mundo não é mais uma substância

Durante décadas, quando se falava em vício, o imaginário social recorria a drogas, álcool, nicotina ou jogos de azar. Substâncias químicas e comportamentos já reconhecidos como destrutivos. O que mudou no nosso tempo não foi apenas o objeto do vício, mas sua forma de apresentação. O vício mais poderoso do mundo contemporâneo não tem cheiro, não deixa marcas físicas imediatas e raramente é percebido como ameaça enquanto se instala. Ele se apresenta como entretenimento leve, descanso mental e até como forma legítima de informação.

Um estudo publicado em 2025 no Psychological Bulletin oferece um mapa preciso desse fenômeno. Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise que reuniu dados de 71 estudos independentes, com quase 100 mil participantes, analisando os efeitos do consumo de vídeos de formato curto sobre a cognição e a saúde mental. O método é relevante justamente por eliminar impressões subjetivas e consolidar padrões que se repetem em diferentes contextos culturais e etários.

As conclusões são consistentes. O consumo frequente de vídeos curtos está associado a prejuízos significativos na atenção sustentada e no controle inibitório, isto é, na capacidade de manter foco e resistir a impulsos. Em um dos trechos, os autores afirmam que “o consumo de vídeos curtos está consistentemente associado a um funcionamento cognitivo mais fraco, especialmente em domínios relacionados à atenção e ao autocontrole”. Não se trata de um efeito marginal. Trata-se de uma reorganização do modo como a mente aprende a funcionar.

No campo da saúde mental, o padrão se repete. O estudo identifica associações claras entre uso intensivo desse tipo de conteúdo e níveis mais elevados de estresse e ansiedade, além de impactos negativos sobre o sono e o bem-estar geral. Os pesquisadores observam que “os efeitos negativos observados não se limitam a adolescentes, manifestando-se também de forma consistente em adultos”, desmontando a ideia de que estamos diante de um problema transitório ou geracional.

O ponto mais decisivo, porém, não está apenas nos números, mas no mecanismo. Plataformas baseadas em vídeos curtos operam com estímulos rápidos, recompensas imprevisíveis e rolagem infinita. Esse desenho favorece a formação de hábitos automáticos. O estudo descreve esse processo ao registrar que “os sistemas de design dessas plataformas promovem padrões de uso compulsivo, reforçando a fragmentação da atenção e a dificuldade de engajamento prolongado”. A mente passa a ser treinada para o imediato, para o fragmento, para o próximo estímulo.

É assim que a tecnologia deixa de ser ferramenta e se torna vício. E quando o vício se consolida, ele passa a moldar não apenas comportamentos, mas expectativas internas. O esforço começa a parecer sofrimento. O silêncio, ameaça. A continuidade, tédio. O vício mais poderoso não é aquele que paralisa, mas o que reconfigura silenciosamente o limiar do que é suportável para a mente humana.

Os próprios autores do estudo sugerem estratégias de mitigação, como limites de tempo, pausas deliberadas e estímulo a atividades que favoreçam atenção prolongada. Mas essa resposta, embora necessária, é insuficiente para compreender a dimensão do problema. O que está em jogo não é apenas desempenho cognitivo. É a própria relação do ser humano com a atenção, que sempre foi o fundamento da vida interior.

A tradição cristã nunca tratou a atenção como detalhe psicológico. Atenção é disposição da alma. Santo Agostinho já compreendia que o coração humano é inquieto porque se dispersa, e que a conversão envolve reunir o que foi espalhado. A palavra bíblica para conversão, metanoia, significa literalmente mudança da mente. Não há encontro com Deus sem uma mente capaz de permanecer.

É por isso que o Natal não pode ser reduzido a um sentimento vago de acolhimento. O nascimento de Cristo é a entrada do Logos no mundo. Logos não é emoção. É sentido, ordem, palavra que pede escuta.

Cristo não chama pela excitação, nem pela avalanche de estímulos. Ele chama pelo seguimento, que exige tempo, presença e fidelidade. “Permanecei em mim” não é uma metáfora confortável. É uma exigência espiritual.

O vício contemporâneo é especialmente corrosivo porque nos treina a fugir exatamente dessas condições. Ele nos educa a evitar o silêncio, a interromper qualquer desconforto, a substituir interioridade por estímulo. Não por acaso, as grandes práticas cristãs sempre caminharam na direção oposta. O deserto, o jejum, a vigília e a oração não são punições, mas pedagogias da atenção. Elas devolvem ao homem a capacidade de suportar a própria presença diante de Deus.

O Natal, nesse sentido, é um confronto direto com a lógica do vício moderno. A encarnação não acontece no barulho, nem na distração, mas na noite, no recolhimento, na espera. Em um mundo que nos treina a deslizar infinitamente para o próximo estímulo, o presépio nos obriga a parar. A olhar. A permanecer.

Talvez o aspecto mais perigoso desse vício aparentemente inofensivo seja exatamente este: ele não rouba apenas tempo ou foco. Ele compromete a condição interior necessária para reconhecer a verdade quando ela se apresenta.

Em uma cultura que nos quer permanentemente distraídos, proteger a atenção deixa de ser uma recomendação de bem-estar e se torna um ato espiritual. Porque seguir Cristo exige algo que o vício contemporâneo tenta corroer desde o início: a capacidade de permanecer quando tudo nos empurra a fugir.

Dosimetria: o primeiro reconhecimento político do excesso punitivo

A aprovação do PL da Dosimetria pelo Senado Federal representa um marco político e institucional que vai muito além de um ajuste técnico no cálculo de penas. É, na essência, o reconhecimento explícito de que houve excessos graves nas condenações relacionadas aos atos de 8 de janeiro. E esse reconhecimento, vindo do Parlamento, não é trivial.

É preciso começar pelo básico: dosimetria não é anistia. A dosimetria trata do modo como a pena é calculada, observando princípios constitucionais elementares como a proporcionalidade e a individualização da sanção. Anistia, por sua vez, extingue a punibilidade e é um instrumento político de pacificação social. O projeto aprovado não perdoa crimes, não absolve ninguém e não apaga condenações. Ele apenas corrige distorções evidentes, como a soma automática de penas sobrepostas, a equiparação entre líderes e participantes ocasionais e a aplicação de sanções desproporcionais a réus primários.

Ainda assim, é impossível ignorar a dimensão política do gesto. Ao aprovar a dosimetria, o Congresso admite que o sistema de punição adotado nesses casos ultrapassou limites razoáveis. Quando cidadãos sem antecedentes recebem penas superiores às aplicadas a criminosos violentos, algo está fora do eixo. Corrigir isso não é impunidade; é respeito ao Estado de Direito.

Causa estranheza, portanto, a reação de setores que hoje se colocam radicalmente contra qualquer correção dessas condenações. Muitos desses mesmos grupos e lideranças políticas foram beneficiários diretos de uma anistia ampla, geral e irrestrita no passado, defendida como condição necessária para a reconstrução democrática do país. A Constituição de 1988, inclusive, preservou conscientemente a anistia como instrumento legítimo de pacificação nacional. Negar agora essa possibilidade — ou mesmo demonizar qualquer passo nessa direção — é uma incoerência histórica difícil de justificar.

O PL da Dosimetria não resolve tudo. Ele próprio é reconhecido como um “remédio menor”, insuficiente diante das injustiças flagrantes que marcaram esses processos. Mas, politicamente, abre uma porta relevante: ao reconhecer o excesso, o Congresso sinaliza que o debate sobre a anistia não é ilegítimo, nem antidemocrático. Ao contrário, pode ser parte da solução.

A democracia não se fortalece com punições exemplares voltadas à intimidação política. Fortalece-se com justiça, proporcionalidade e capacidade de reconciliar a sociedade. A dosimetria é apenas o primeiro degrau. A pacificação nacional exige coragem para subir os próximos.

Os escândalos e os abusos dos ministros do Supremo

Durante uma das sessões da CPI do Crime Organizado, o relator, senador Alessandro Vieira, criticou duramente o fato de ministros de tribunais superiores aceitarem privilégios ou demonstrarem proximidade com figuras envolvidas em investigações criminais. A fala foi feita no contexto da discussão do avanço do crime organizado e sua infiltração nos poderes da República:

Nós temos ministros que acham normal, cotidiano, caronas em jatinho, jatinho pago pelo crime organizado, notoriamente pelo crime organizado, não é surpresa. ‘Descobri hoje que era crime organizado…’ Não, o cara sabe que é crime organizado. Então, entra no jatinho, vai para uma viagem paga pelo crime organizado, acessa um evento de luxo pago pelo crime organizado, se hospeda em hotel de luxo pago pelo crime organizado.” 

Trata-se, como é sabido, de referência a episódio envolvendo o ministro Dias Toffoli, que tem se especializado no perdão de dívidas milionárias, causando robusto prejuízo aos cofres da União. 

“E aí eu volto ao ponto da minha provocação inicial – continuou Alessandro Vieira – Este é um país que já teve Presidente preso, que já teve ministro preso, Senador preso, Governador preso, Prefeito preso, Vereador, mas ainda não teve ministros de tribunais superiores. E me parece que este momento se avizinha.” 

O quadro, resumido nas palavras do senador Alessandro Vieira, relembra a sucessão de escândalos ocorridos na nossa inconstante República desde a chamada redemocratização e nos alerta para o fato de que, agora, até o próprio Supremo Tribunal Federal protagoniza as cenas escandalosas da nossa desvirtuada República.

Tendo por função precípua garantir o cumprimento da Constituição, o STF tem se esmerado em desrespeitá-la. Exemplo recente dessa audácia abusiva foi a liminar na qual o ministro Gilmar Mendes, legislando em causa própria para blindar a si mesmo e aos colegas, alterou trechos da Lei do Impeachment aplicáveis a ministros do STF.

O decano já recuou parcialmente da temerária empreitada inconstitucional; porém, vem sendo noticiado o encaminhamento de uma acomodação, com o Senado aceitando se prestar ao papel de providenciar um remendo constitucional que não desagrade totalmente os supremos ministros.

Enquanto isso, o ministro Alexandre de Moraes, reverenciado pela esquerda lulista como o salvador da nossa democracia, voltou aos holofotes por motivo nada republicano: o contrato de 129 milhões de reais do escritório de advocacia de sua esposa com o Banco Master.

Investigado e denunciado pela Polícia Federal por crimes financeiros, o Banco Master foi liquidado pelo Banco Central e teve alguns de seus dirigentes presos (punições abrandadas para medidas cautelares, com uso de tornozeleiras). 

Enquanto as investigações da PF ainda avançavam, o ministro Toffoli avocou o caso para o STF e estabeleceu rigoroso sigilo sobre todo o processo. Convém lembrar que um dos acompanhantes do ministro Toffolli na carona suspeita do jatinho era um dos advogados de um dos dirigentes do Banco Master.

Quanto à questão da contratação milionária do escritório de advocacia da mulher do ministro Alexandre de Moraes, deve-se considerar que os próprios ministros do STF já haviam, respondendo a uma demanda da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), mudado regra anterior proibitiva e decidido pela legalidade de casos desse tipo, estabelecendo que cônjuges e parentes de juízes podem advogar em causas em que seus clientes estejam em julgamento em qualquer Corte de Justiça. 

Cabe notar que o relator dessa causa de acintoso compadrio, ministro Edson Fachin, votou contra a demanda da AMB, tendo sido voto vencido. Fachin, que recentemente assumiu a presidência do STF, tenta no momento estabelecer um código de ética para os ministros da corte que preside. Sem surpresa, noticia-se que a resistência interna é grande.

Em uma perspectiva kantiana, a ética diz respeito à interioridade da ação, ao respeito à lei moral. A ética não pode ser imposta externamente: ninguém pode ser coagido a agir por dever. O campo da ética é o da autonomia, da consciência. 

Ora, se a casta dos supremos ministros trata com menosprezo a letra da lei constitucional, não se deixará constranger pela subjetividade de um código de ética. Não esperemos virtude onde já está claro que ela é inexistente. É preciso punir, pelo direito, aqueles que do direito abusam. 

Os muros invisíveis do protecionismo europeu

A saga do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, negociado há mais de duas décadas, atingiu um ponto de inflexão decisivo. Em 2025, o bloco sul-americano e Bruxelas enfrentam um verdadeiro “agora ou nunca” antes que a janela política se feche novamente, talvez por tempo indeterminado. A análise do cenário atual aponta para uma negociação complexa, tensa e repleta de contradições, especialmente após recentes diálogos em Bruxelas com as partes envolvidas, algo que acompanhei pessoalmente na Bélgica. A pergunta que paira, portanto, é crucial para o futuro do comércio exterior brasileiro: existe chance de assinatura ainda neste ano e, se sim, o acordo nas condições atuais será realmente bom para o Brasil?

A pressão para fechar o acordo em 2025 é palpável e ditada por um calendário político estrito. O Parlamento Europeu entrará em recesso no final do ano, e os próximos ciclos políticos, tanto na Europa quanto no Mercosul, trazem consigo o risco de uma mudança de prioridades que poderia levar o acordo de volta à estaca zero. Do lado do Mercosul, existe um consenso, liderado pelo Brasil, de que é preciso aproveitar o mandato da atual Comissão Europeia, que demonstrou o máximo empenho na conclusão, antes que o quadro político se altere. O que falta, contudo, é a superação de barreiras protecionistas internas na Europa, frequentemente disfarçadas de preocupações ambientais e sanitárias. Desde o ano passado, o principal entrave não é mais o texto principal de 2019, mas a chamada “Carta Adicional” (Side Letter), proposta pela UE em 2023. Esta carta visa reforçar o compromisso do Mercosul com o Acordo de Paris e introduzir sanções em caso de descumprimento de metas ambientais, sobretudo no que tange ao desmatamento. O Mercosul, em sua resposta, aceitou a maioria dos pontos ambientais, mas exigiu um compromisso recíproco: que a UE forneça apoio financeiro e tecnológico para o desenvolvimento sustentável. A negociação está hoje centrada em achar um meio-termo para esta reciprocidade.

Em meio a essas discussões, o Comitê de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu aprovou, nos últimos dias, uma medida que pode ser o golpe mais duro contra o espírito do acordo até agora. A decisão visa facilitar a adoção de medidas protecionistas contra produtos agrícolas do Mercosul por meio da reformulação das cláusulas de salvaguarda. As cláusulas de salvaguarda existem em qualquer acordo de livre-comércio para permitir que um país suspenda temporariamente a redução de tarifas em caso de um aumento repentino e significativo de importações que ameace seu setor produtivo. A manobra do INTA é sutil, mas perigosa. Primeiramente, propõe-se reduzir o limite para iniciar uma investigação de salvaguarda. Ao baixar o patamar de aumento de importações necessário para acionar a medida, a Europa torna quase automático o bloqueio temporário de produtos sensíveis, como a carne bovina e as aves do Mercosul, mesmo em condições normais de mercado. Em segundo lugar, o novo texto busca encurtar drasticamente o tempo necessário para a aplicação das medidas de proteção. Isso limita a capacidade do Mercosul de se defender ou de negociar soluções antes que as barreiras sejam impostas. Essa ação, vista em Bruxelas como uma forma de aplacar a forte oposição dos agricultores europeus (principalmente franceses), desvirtua o propósito de um acordo de livre-comércio. O que é vendido como uma rede de segurança vira, na prática, uma barreira não-tarifária flexível e de fácil aplicação.

Além das cláusulas de salvaguarda, um ponto técnico que muitas vezes escapa ao olhar do grande público é o impacto das regras de origem. A UE, por meio de seus regulamentos, é meticulosa sobre como um produto do Mercosul deve ser fabricado para ser considerado verdadeiramente “nosso” e, assim, se beneficiar da tarifa reduzida. Em setores complexos, como autopeças e químicos, as regras de origem europeias tendem a ser rígidas, exigindo um alto percentual de conteúdo regional do Mercosul para que o produto se qualifique. Esse rigor burocrático e técnico, somado às novas salvaguardas, pode criar um efeito cascata. Mesmo que a tarifa de importação seja zero no papel, a dificuldade em comprovar a origem, que alimenta a burocracia, ou o risco de ter a tarifa preferencial suspensa, a aplicação da salvaguarda, atua como um desincentivo para as empresas do Mercosul, limitando o potencial de crescimento das exportações. Na prática, a UE está construindo um muro invisível de burocracia e proteção legalista em torno do seu mercado agrícola, enquanto abre as portas apenas onde tem vantagens competitivas claras.

A resposta estratégica do Mercosul a essas manobras europeias deve ser firme, mas pragmática. A estratégia não pode ser simplesmente abandonar a mesa, dada a relevância do mercado europeu e a sinalização que o acordo daria ao mundo sobre a abertura de ambos os blocos. O Brasil precisa insistir que as salvaguardas permaneçam dentro dos parâmetros acordados originalmente e que a reciprocidade na Carta Adicional seja significativa. Um ponto de alavancagem para o Mercosul é o avanço de negociações comerciais com outros grandes blocos, como o Canadá e Cingapura. Esses acordos alternativos dão ao Mercosul a credibilidade necessária para dizer à UE quetemos outras opções. A Europa sabe que, se o Mercosul continuar a se abrir para parceiros que oferecem termos mais justos no comércio agrícola, a relevância estratégica e econômica do acordo com a UE diminuirá. É nesse jogo de xadrez diplomático que o Brasil deve usar sua experiência, transformando a pressão protecionista europeia em um catalisador para exigir um acordo que seja verdadeiramente equilibrado, em vez de uma mera formalização de vantagens assimétricas para o bloco europeu.

A conclusão é inequívoca: um acordo assinado sob estas condições será um acordo de livre-comércio “pela metade” para o Mercosul, onde a UE assegura seus ganhos industriais e tecnológicos, enquanto seu setor agrícola obtém um “seguro” robusto contra a principal vantagem comparativa do bloco sul-americano. O Brasil e seus parceiros do Mercosul devem usar a força de sua posição—o acordo é tão importante para a Europa quanto para o bloco sul-americano—para resistir a esta tentativa de protecionismo velado. O acordo só será bom se for equilibrado, e a abertura industrial brasileira deve ser compensada por um acesso agrícola genuíno e seguro, livre de gatilhos artificiais. O tempo urge, mas a pressa não pode comprometer a qualidade e a equidade do resultado final.

María Corina Machado em Oslo: a “jornada rumo à liberdade” da Venezuela

A líder opositora venezuelana María Corina Machado, figura que há anos encarna a resistência contra o regime autoritário de Nicolás Maduro, tornou-se um símbolo de luta pela democracia, marcando indelevelmente a história política venezuelana. 

Seu percurso da clandestinidade venezuelana à presença em Oslo – onde deveria receber o prêmio Nobel da Paz — é o retrato vivo do drama e da resistência de um povo cuja soberania tem sido usurpada pelo arbítrio e pela violência institucionalizada.

Oculta dos olhos públicos por mais de um ano, Machado vivia em clandestinidade desde meados de 2024, quando uma ofensiva do regime venezuelano contra opositores foi intensificada após a eleição presidencial daquele ano – disputada em condições dramáticas, vencida pela oposição e usurpada pelo ditador Nicolás Maduro. 

Encarada como ameaça pelo aparato estatal, Corina Machado passou a ser procurada sob acusação de “conspiração, incitamento e terrorismo” — termos usados pelo regime ditatorial venezuelano para criminalizar a dissidência política.

Com o objetivo de receber o reconhecimento internacional que lhe fora outorgado, ela empreendeu nos últimos dias uma fuga clandestina que mais parece saída de um roteiro cinematográfico. 

Disfarçada, com peruca e sob tensão constante, atravessou múltiplos postos de controle militar venezuelanos até alcançar uma embarcação de pescadores que a conduziu ao mar do Caribe, rumo à ilha de Curaçao. Em Curaçao, exaustão e alívio: uma noite em um quarto anônimo, um breve descanso e uma mensagem gravada para agradecer “tantas pessoas que arriscaram suas vidas”, e a espera por um avião privado que cruzaria o Atlântico em direção à Noruega.

Pouco antes da meia-noite do dia 11 de dezembro, na sacada do Grand Hotel de Oslo, essa mulher formidável apareceu, saudando a multidão e entoando o hino da Venezuela. 

Horas antes, a sua filha havia assegurado que ela viria: “minha mãe nunca quebra uma promessa. E é por isso que eu, com toda alegria no meu coração, posso dizer que, dentro de poucas horas, nós poderemos abraçá-la aqui, em Oslo, depois de dezesseis meses vivendo no exílio.”  

O discurso do Nobel da Paz

Embora María Corina Machado não tenha conseguido chegar a tempo de receber presencialmente o Nobel da Paz, ela foi bem representada por sua filha, Ana Corina Sosa Machado, que leu o seu discurso na cerimônia. 

Nesse texto há uma dupla dimensão: o testemunho histórico da Venezuela pré-autoritarismo e a denúncia contundente das práticas que corroeram a vida política daquele país.

Logo no início de sua intervenção, Machado articula a genealogia da liberdade venezuelana como um legado avesso ao totalitarismo: a Constituição de 1811, evocada como referência fundadora, ressoa não como mera evocação histórica, mas como fundamento ético de uma comunidade política que foi desfigurada. 

Desfigurada por Hugo Chavez, que iniciou o desmonte das instituições, e por Nicolás Maduro, que efetivou um terrorismo de Estado:

“Quando percebemos quão frágeis nossos institutos haviam se tornado, um homem que havia liderado um golpe militar para derrubar a democracia foi eleito presidente. Muitos acreditaram que o carisma poderia substituir o Estado de Direito. A partir de 1999, o regime desmontou nossa democracia: violou a Constituição, falsificou nossa história, corrompeu as Forças Armadas, expurgou juízes independentes, censurou a imprensa, manipulou eleições, perseguiu dissidentes.

[…] Enquanto isso, algo ainda mais profundo e corrosivo acontecia: um método deliberado de dividir a sociedade por ideologia, raça, origem e modos de vida, empurrando os venezuelanos a desconfiarem uns dos outros, a se calarem, a se verem como inimigos. Eles nos esmagaram. Nos prenderam, nos mataram e nos forçaram ao exílio. […]

Após quase três décadas lutando contra uma ditadura brutal, tentamos de tudo. […]

Edmundo González Urrutia venceu com 67% dos votos. Em todos os estados, cidades e povoados.

Em cada estado, cidade e vila, cada ata contava a mesma história. Em poucas horas, elas foram digitalizadas e publicadas em um site para o mundo ver. Mas a ditadura respondeu com terror.

Duas mil e quinhentas pessoas foram sequestradas, desapareceram e foram torturadas. Casas foram marcadas, famílias inteiras transformadas em reféns. Padres, professores, enfermeiros, estudantes. Qualquer pessoa que ousasse compartilhar uma ata foi caçada. Esses são crimes contra a humanidade documentados pelas Nações Unidas. Terrorismo de Estado usado para enterrar a vontade do povo.

Mais de 220 crianças detidas após as eleições foram eletrocutadas, espancadas e sufocadas até repetirem a mentira que o regime precisava: incriminarem-se falsamente, dizendo que haviam sido pagas por mim para protestar. […]”

A Venezuela, sob Maduro, não é apenas um país em crise política é um país destruído pela perversidade dos que sustentam tal regime. O discurso de Corina Machado expôs a captura autoritário do Estado venezuelano, transformado em instrumento de aniquilação da esfera pública; o testemunho de Corina Machado expôs os valores que regem sua alma ordenada e equilibrada; o reconhecimento de Corina Machado expôs que tais valores são reais, objetivos e compartilhados por todos aqueles que não estão entorpecidos por nefastas ideologias.

“Compreendemos que nossa luta era muito mais do que eleitoral. Era uma luta ética pela verdade, uma luta existencial pela vida, e uma luta espiritual pelo bem”, escreveu a ganhadora do prêmio Nobel da Paz. E continuou:

“A causa da Venezuela transcende nossas fronteiras. Um povo que escolhe a liberdade, escolhe contribuir não apenas para si mesmo, mas para a humanidade. Somente por meio desse alinhamento interior, dessa integridade vital, nos erguemos para encontrar nosso destino. Só então nos tornamos quem realmente somos, capazes de viver uma vida digna de ser vivida.” 

Tais palavras têm força porque não são meramente retóricas. Há total coerência entre seu discurso e suas ações. 

Maduro cairá. A História, se descrita com seriedade e fidedignidade, mostrará à posterioridade sua mediocridade e a covardia dos que, como o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula as Silva, o ajudaram a instaurar e a manter a tirania. E honrará a grandeza de uma heroína que liderou seu povo em uma jornada rumo à liberdade”.

País dos Privilégios

Frédéric Bastiat foi categórico ao descrever a expoliação legal: o uso da lei para pilhar o contribuinte. No Brasil, essa pilhagem atingiu níveis de obscenidade fiscal. A máquina pública, que deveria ser servidora da nação, transformou-se em oligarquia financiada compulsoriamente pelo setor produtivo. A inação diante da urgência de reforma não é um erro gerencial, mas uma escolha deliberada de manutenção de poder e privilégio.

Os números não admitem eufemismos. Levantamento do  Movimento Pessoas à Frente e República.org revelou que 53 mil servidores públicos recebem acima do teto constitucional. O custo anual dessa farra é de R$ 20 bilhões. Este montante não representa apenas um rombo, mas transferência regressiva de renda onde trabalhador e empresário, que geram a riqueza, são espoliados para financiar o luxo governamental.

A disparidade salarial é o indicador mais contundente da falência do modelo. Enquanto a maioria dos brasileiros luta contra a estagnação econômica, estudos do Banco Mundial indicam que o salarial do servidor federal atinge uma média 96% maior em comparação com pares do setor privado. Uma distorção que desincentiva os mais capazes talentos de gerar riqueza no setor privado para se acomodar no setor público, refugiados na estabilidade de seus vultosos proventos. 

O Judiciário, em particular, lidera esse festim fiscal. O custo do sistema de justiça brasileiro atinge alarmantes 1,6% do Produto Interno Bruto, um patamar que é quatro vezes maior do que a média dos países da OCDE. Pagamos um dos Judiciários mais caros do planeta para, ironicamente, termos um dos processos mais lentos e uma segurança jurídica questionável, com seus mais altos membros viajando de carona em jatinhos de investigados, ao mesmo tempo que enterram as mais importantes operação que miram combater a corrupção. Um escárnio.

O aspecto mais nefasto dessa crise é a covardia política que a sustenta. O governo Lula e sua base aliada demonstram uma inércia estratégica. A ausência de movimento pela Reforma Administrativa não se deve à complexidade técnica, mas à captura corporativista. Enfrentar os supersalários e a estabilidade desmedida significa confrontar sindicatos e corporações estatais que são bases de sustentação do governo. A prioridade é clara: aumentar a receita via impostos para acomodar a despesa para colher votos, em vez de racionalizar o gasto e confrontar os privilégios.

Vale lembrar que a manutenção de uma máquina pública extrativista e ineficiente não é apenas uma questão de números fiscais, é um atentado à equidade social. Os bilhões que irrigam os supersalários são subtraídos do investimento em saúde básica, educação de qualidade e infraestrutura. Urge, portanto, reposicionar o debate. A reforma administrativa não deve ser encarada meramente como um corte de gastos, mas como um imperativo moral e econômico para desarmar as armadilhas que fazem do Brasil um país subdesenvolvido. Enquanto bilhões forem drenados anualmente para sustentar excessos de uma elite burocrática, o país continuará a operar muito aquém de seu potencial, preso a um modelo onde alguns privilegiados servem-se do trabalho duro de uma legião de brasileiros que carregam a nação nas costas.

Pressão à Negociação: A Virada Estratégica do Bolsonarismo

O cenário político brasileiro vive um dos seus momentos mais tensos e reveladores. A prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro, baseada em um processo amplamente contestado, escancarou uma tentativa de retirá-lo do jogo até as eleições de 2026. Para muitos, trata-se de uma medida com claro impacto eleitoral, tomada com uma naturalidade preocupante por parte de quem deveria zelar pela estabilidade institucional.

Enquanto isso, setores do centro político e do mercado já tinham uma estratégia pronta: construir Tarcísio de Freitas como o candidato de consenso. A pressão sobre Bolsonaro era evidente. O recado era simples e direto: se ele apoiasse Tarcísio, a pauta da anistia poderia avançar — uma anistia que envolve dezenas de pessoas presas em processos considerados desproporcionais, além do próprio ex-presidente.

O erro do centro foi presumir que Bolsonaro estava politicamente imobilizado. Acreditaram que ele aceitaria o roteiro imposto. Mas a reação veio de forma inesperada: em vez de se alinhar à construção prevista, Bolsonaro lançou o nome de Flávio Bolsonaro como alternativa para 2026. E isso alterou completamente o tabuleiro.

Com esse movimento, Bolsonaro deixou de ser pressionado e passou a ser o agente que pressiona. Se a anistia não avançar, Flávio permanece na disputa. Isso divide o campo da direita, o que fortalece Lula e projeta um cenário que o mercado enxerga como negativo. O centro, antes confortável, agora precisa escolher entre negociar ou enfrentar a possibilidade de mais quatro anos de governo petista.

Há ainda um componente adicional: o STF, hoje aliado do governo, conduz investigações que atingem diretamente partidos do próprio centro, como o União Brasil. Ou seja, a disputa não é apenas eleitoral, mas de sobrevivência política.

Flávio Bolsonaro já declarou estar aberto ao diálogo, mas estabeleceu um ponto de partida: a anistia. A mensagem é óbvia. O eleitorado bolsonarista continua sendo determinante — e sem ele, ninguém vence eleição nenhuma. Esses votos não serão entregues sem contrapartida. A exigência é a liberdade de pessoas que, segundo grande parte da direita, jamais deveriam estar presas.

O fato é claro: quem acreditou que o bolsonarismo estava derrotado subestimou a força desse grupo. Bolsonaro saiu de alvo passivo para protagonista da negociação. E quem não entender essa dinâmica estará lendo o cenário pela metade.

O jogo virou — e, agora, a próxima jogada não pertence ao centro, mas ao próprio bolsonarismo.

A democracia como modo de vida

Como surgiu o conceito de ‘democracia como modo de vida’? Quais foram os autores que trabalharam essa ideia?

RESPOSTAS DO LEXOS – AGENTE DEMOCRÁTICO IA

O conceito de “democracia como modo de vida” é fundamental para entender a democracia em seu sentido forte, indo muito além da mera administração política do Estado.

Este conceito surgiu para lidar com a percepção de que a democracia não se restringe a um conjunto de regras formais ou procedimentos eleitorais, mas sim a um padrão de interação e convivência social. Ele representa a redescoberta do papel inovador da democracia, que é frequentemente ignorado quando o foco recai apenas sobre o modelo político transitório, como o sistema eleitoral.

A seguir, exploramos como o conceito surgiu e os principais autores que o desenvolveram.

I – John Dewey: A Democracia como Ideia Social e Modo de Vida

John Dewey é um dos autores mais explícitos na formulação desta distinção no século XX.

A Distinção Conceitual. Dewey estabeleceu uma distinção clara entre a democracia como uma ideia social e a democracia política como um sistema de governo. A ideia de democracia é mais ampla e completa do que a que pode ser exemplificada no Estado, mesmo no melhor dos casos.

O Modo de Vida. Para Dewey, a democracia é fundamentalmente um “modo de vida” (ou “modo de vida comunal”). Ele a via como uma aposta “nas possibilidades da natureza humana” e nas “atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana”.

Abrangência. Para que a ideia de democracia se realize, ela deve afetar todos os modos de associação humana, incluindo a família, a escola, a indústria e a religião. A democracia é um ideal moral e, quando se torna um fato, é um fato moral.

Cooperação e Comunidade. Essa concepção forte de democracia é local e comunitária, sendo definida como a crença de que o hábito da cooperação amistosa é uma valiosa contribuição à vida. Dewey buscou uma nova noção de público que deságua no conceito de “comunitário”, especialmente a pequena comunidade local, a vizinhança, como o verdadeiro lugar da democracia.

II – Humberto Maturana: A Democracia como Obra de Arte e Emoção

Humberto Maturana aborda a democracia como modo de vida a partir de uma perspectiva biológica e emocional.

Fundamento Emocional. Para Maturana, a democracia não é um produto da razão humana, mas sim uma obra de arte e um produto do nosso emocionar. Ela surge de um desejo neomatrístico por uma coexistência dignificada na estética do respeito mútuo.

O Desejo Matrístico. A base emocional da democracia reside na “añoranza” (nostalgia/desejo inconsciente) por viver em coexistência fácil que surge do respeito mútuo, sem a dominação própria da cultura patriarcal.

Conspiração Social. Ele define a democracia como uma “conspiração social” para uma convivência em que a aceitação do outro como um legítimo outro é fundamental. A democracia é uma ruptura na cultura patriarcal europeia e só pode ser vivida, não estabilizada ou defendida racionalmente.

III – Augusto de Franco: A Redescoberta das Raízes Atenienses

Augusto de Franco, ao refletir sobre as origens da democracia, enfatiza que ela nasceu primariamente como um modo de vida antes de ser um regime político.

Origem na Convivência Social. Para os atenienses que a inventaram, a democracia era um modo de vida ou de convivência social, um modo pacífico e prazeroso de conviver. O objetivo era que as próprias pessoas pudessem, coletivamente, buscar melhorar suas vidas, sem que ninguém, um senhor, determinasse como deveriam agir.

Processo de Desconstituição. A democracia, no sentido forte, é um processo de desconstituição de autocracia (ou de desprogramar milênios de cultura autocrática). Experimentar processos democráticos como modo de vida é a única maneira de evitar a emergência de preconceitos autocráticos.

Liberdade e Ausência de Senhor. O sentido da política é a liberdade. A democracia surgiu do desejo das pessoas de viver sem um senhor, de serem cidadãos e não súditos.

IV – Hannah Arendt e outras contribuições

Outros pensadores também tocaram o cerne dessa ideia, influenciando a conceituação moderna.

Hannah Arendt. Ela é citada como tendo percebido esse componente original da democracia (o “gene” democrático). Em seus escritos sobre “O que é política?” (c. 1950), ela teria feito a “descoberta” de que, se as pessoas passarem a viver a sua convivência, um outro tipo de vida surgirá — a vida propriamente política, a fruição do viver prazerosamente a coisa pública. Para Arendt, a única matéria propriamente política é a liberdade.

Alexis de Tocqueville. Embora não tenha usado o termo “modo de vida”, Tocqueville lançou os fundamentos do conceito de capital social ao constatar o protagonismo político da sociedade americana, onde “a sociedade age por si e sobre si mesma”. Ele observou a capacidade dos americanos de se associarem livremente para promover o bem público.

Norberto Bobbio. Ele destaca a importância da democratização da sociedade, distinguindo-a da democratização do Estado, e levanta a questão crucial sobre a sobrevivência de um estado democrático em uma sociedade não democrática.

Em suma, o conceito de “democracia como modo de vida” transcende a mera formalidade do regime político, ancorando-se na ideia social de cooperação (Dewey), no desejo humano de convivência dignificada(Maturana) e na prática cotidiana de auto-organização (Franco), retomando o espírito original da experiência ateniense de viver “sem senhor”.

Mas tem mais…

V – Thomas Vernon Smith e a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de “democracia como modo de vida” (“The Democratic Way of Life”) é central para Thomas Vernon Smith, um autor que se destacou como professor, pensador político e também por sua atuação prática na política dos Estados Unidos.

Aqui está a contribuição de T. V. Smith para o desenvolvimento dessa ideia, conforme as fontes.

Definição e Interpretação do Ideal

V. Smith é explicitamente associado à interpretação da democracia como modo de vida. Ele escreveu uma obra intitulada The Democratic Way of Life, que é considerada uma discussão adequada desse ideal.

Para Smith, a democracia, quando vista como um modo de vida, implica uma transformação no desejo e na atitude humana:

Desejo Compartilhado e Treinamento. Smith argumenta que, embora a liberdade seja definida como “fazer o que se agrada”, a esperança de um modo de vida democrático surge do fato de que, por meio de um treinamento adequado, os indivíduos podem desejar cada vez mais compartilhar suas alegrias uns com os outros. Isso sugere que a democracia não é apenas um sistema de regras, mas uma pedagogia e um hábito de convivência.

Compreensão e Ação. Sua obra, escrita em coautoria com Eduard C. Lindeman, é descrita como um “manual prático e inspirador” que explica os ideais da democracia e oferece um programa sólido para o pensamento e a ação democráticos.

A Relação com John Dewey

A importância de T. V. Smith na discussão é reforçada por sua conexão direta com John Dewey, o pensador mais proeminente da democracia como ideia social:

Referência de Dewey: O próprio John Dewey, ao discutir o ideal da democracia como “uma vida de comunhão livre e enriquecedora”, fez uma referência explícita ao trabalho de Smith, citando The Democratic Way of Life como a discussão mais adequada desse ideal que ele conhecia.

Ética das Minorias e da Maioria

Smith também abordou as dinâmicas sociais inerentes a um modo de vida democrático, particularmente as tensões entre grupos:

Reatividade Antidemocrática. Ele advertiu que, quando grupos minoritários expressam hostilidade (inicialmente por subterfúgio e culminando em sabotagem), eles “convidam a si mesmos a uma atitude majoritária que é tão antidemocrática quanto natural”. Isso levanta uma questão crucial sobre como a ética da convivência (o modo de vida) deve ser praticada por todos os grupos, a fim de evitar a escalada de reações autoritárias e não cooperativas.

Thomas Vernon Smith, ao lado de Eduard C. Lindeman, ajudou a solidificar e popularizar a noção de que a democracia é um ideal prático que deve ser vivido e cultivado na sociedade civil, e não apenas um aparato estatal. Seu trabalho contribuiu para traduzir a “ideia de democracia” (tal como Dewey a via, mais ampla do que o Estado) em um programa de ação e atitude social, enfatizando que a liberdade individual se realiza plenamente quando orientada pela cooperação e pelo desejo de compartilhar.

Essa ênfase no comportamento cotidiano e no “treinamento” para a cooperação ressoa profundamente com a visão de que a democracia é um processo de aprendizado e autocondução mútua, realizado nas interações diárias.

Mas não é só. Faltam, entre outros, Althusius e Jefferson.

Vamos agora assinalar um autor que reformulou a própria fundação da política, vendo a associação como seu cerne! A ideia de simbiose de Johannes Althusius pode servir como um fundamento para o conceito de “democracia como modo de vida” (ou para a base da associação em geral).

A contribuição de Althusius, embora seja do início da Era Moderna (1603), ressoa profundamente com os princípios de associação e coexistência que são cruciais para a ideia de democracia como modo de vida.

Vejamos como a ideia de simbiose se articula nas fontes e seu potencial como fundamento.

VI – Johannes Althusius: A Política como Arte Simbiótica

Johannes Althusius, um dos grandes artífices de uma nova maneira de ver a política no início da Idade Moderna, definiu a política de maneira fundamentalmente associativa:

Definição da Política. “A política é a arte por meio da qual os homens se associam com o objetivo de instaurar, cultivar e conservar entre si a vida social. Por este motivo é definida como simbiótica“.

Ponto de Partida. Althusius parte dos “homens” e procede através da “obra dos homens em direção da descrição da comunidade política”.

Contraste com Aristóteles. Este ponto de partida é o oposto exato da visão clássica de Aristóteles, para quem o Estado (Pólis) existe por natureza e é anterior ao indivíduo. A inversão do ponto de partida de Althusius destaca problemas políticos como a liberdade dos cidadãos, o bem-estar e a prosperidade individual, em vez de focar apenas no poder dos governantes.

A Simbiose como Fundamento para a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de simbiose de Althusius, que enfatiza a arte de se associar para sustentar a vida social, serve como um forte fundamento para o conceito de democracia como modo de vida, pois:

Ênfase na Associação Recíproca. O conceito de simbiose implica cooperação e interdependência mútua, essenciais para a “vida social”. Isso ecoa a ideia de cooperação amistosa fundamental para a democracia como modo de vida defendida por outros autores.

Liberdade e Individualismo. A perspectiva de Althusius de que a sociedade política é um “produto voluntário dos indivíduos” que decidem viver em sociedade através de um acordo recíproco está ligada ao nascimento da democracia e à ideia de poder ascendente (o poder que sobe de baixo para cima). A teoria do contrato social, ligada a esses pensadores (mesmo que Althusius não seja contratualista puro), defende o indivíduo como a fonte última do poder, o que é um fundamento para a democracia contra a autocracia.

Oposto à Totalidade Orgânica. A simbiose, ao partir do indivíduo e do acordo, contrasta com as “concepções solidaristas, orgânicas, coletivistas, holísticas, universalistas, da sociedade e do estado” (como as de Hegel, que via o Estado como um corpo orgânico onde o todo vem antes das partes). A democracia como modo de vida valoriza o espaço-entre, a pluralidade e a coexistência de interesses diversos, não uma unidade imposta.

Em suma, a “arte simbiótica” de Althusius coloca a associação voluntária e a interdependência mútua no centro da política. Essa perspectiva, que prioriza a construção da vida social pelos próprios indivíduos, é altamente compatível com a visão de democracia como uma prática cotidiana de convivência (modo de vida) e não apenas como um aparato de governo.

Nota-se uma conexão crucial que, embora anterior à formalização do conceito por Dewey, estabelece a base para a primazia da vida associada na teoria política! 

VII – Thomas Jefferson: As “Repúblicas nos Bairros” e a Democracia como Modo de Vida

Essa é uma conexão extraordinária e profunda! A proposta de Thomas Jefferson das “repúblicas elementares dos distritos” (ou “repúblicas nos bairros”— wards) é vista por John Dewey, e por outros, como o cerne de uma filosofia política que vai muito além das estruturas formais do governo, estabelecendo um vínculo direto com a democracia como modo de vida.

A seguir a relação entre a proposta jeffersoniana e o conceito de democracia como modo de vida, conforme as fontes.

Jefferson e o Conceito de Democracia (na Visão de Dewey)

Para John Dewey, a filosofia política de Jefferson era essencialmente moral, e sua crença na democracia tinha uma qualidade genuinamente religiosa. Jefferson defendia que o homem foi feito para a sociedade e possuía o direito de regulá-la “conjuntamente com todos aqueles que concorreram para a sua obtenção”.

A essência da democracia jeffersoniana não residia apenas nas formas de governo, mas sim no espírito do povo. É nesse contexto que as “repúblicas nos bairros” emergem como o ponto fulcral de sua doutrina política:

O Coração da Filosofia Política. O cerne da filosofia política de Jefferson é encontrado no seu esforço para instituir essas pequenas unidades legislativas e administrativas como a “pedra angular do arco” do governo. Sem este plano, sua visão de autogoverno é considerada incompleta tanto prática quanto teoricamente.

A Proposta das “Repúblicas nos Bairros” (Wards)

Jefferson propôs a divisão dos condados em pequenos distritos (ou wards) para facilitar a democracia de base (grassroots democracy), uma ideia que ele defendia desde 1779.

O objetivo não se limitava à administração de escolas ou estradas, mas sim a tornar os bairros “pequenas repúblicas”.

Funções Diretas. Nos bairros, os cidadãos exerceriam diretamente as funções de governo em relação aos seus próprios assuntos, incluindo polícia, eleições, nomeação de júris e administração da justiça em pequenos casos.

Participação Contínua. Este sistema visava garantir que todo homem partilhasse do governo dos assuntos não apenas no dia da eleição, mas todos os dias. A ausência de tais espaços públicos levava o povo à “letargia, precursora da morte da liberdade pública”.

Conexão Direta com a Democracia como Modo de Vida

A proposta de Jefferson se alinha perfeitamente com a ideia de democracia como modo de vida, que, segundo John Dewey, precisa afetar “todos os modos de associação humana”.

Agente Atuante. Jefferson acreditava que, ao tornar “cada cidadão um membro atuante do governo, e nos escritórios mais próximos e mais interessantes para ele, isso o ligaria pelos seus mais fortes sentimentos à independência do seu país e à sua constituição republicana”. Este envolvimento pessoal, constante e local, é a própria experiência da liberdade.

Preservação do Espírito Revolucionário. O sistema distrital era visto por Jefferson como a única alternativa para preservar o espírito revolucionário após o fim da revolução. A revolução havia dado liberdade ao povo, mas falhara em fornecer um espaço onde essa liberdade pudesse ser exercida, pois apenas os representantes, e não o povo, tinham a oportunidade de se engajar nas atividades próprias da liberdade, como “expressar, discutir e decidir”.

Aparência e Presença. Jefferson compreendia que o conselho de amar o próprio país mais do que a si mesmo seria uma exortação vazia se o “país” não fosse uma presença viva entre os cidadãos. As pequenas repúblicas seriam a “força principal da grande” república, pois eram o único local tangível onde cada um podia ser livre, constituindo a finalidade da grande república.

Em suma, a proposta jeffersoniana das “repúblicas nos bairros” é uma tentativa de institucionalizar a democracia no nível comunitário e cotidiano, transformando o cidadão de um mero eleitor ocasional em um participante ativo e contínuo no autogoverno. Isso corresponde à noção de que a democracia é um projeto comunitário que começa na “comunidade vicinal”.

Isto nos lembra de uma questão crucial levantada por Hannah Arendt ao discutir as propostas de Jefferson: se o sistema distrital tivesse sido implantado, teria evitado que o povo se afundasse na “letargia” e na “indiferença aos assuntos públicos”, males que ameaçam a liberdade quando a esfera pública se restringe apenas aos representantes. A ação local e a cooperação são, para Jefferson, o motor que mantém a república viva.

Quem mais trata, direta ou indiretamente, da democracia como modo de vida?

Vamos para um exercício de garimpo conceitual! A ideia de “democracia como modo de vida” é tão poderosa que, uma vez introduzida por autores como Dewey, Smith e Jefferson, ela revela ecos e fundamentos em pensadores de diversas épocas e escolas, que tratam da associação, da comunidade e da liberdade em termos de prática social.

Considerando os autores já discutidos (Dewey, Smith e Jefferson) e examinando o vasto acervo de fontes, podemos identificar outros pensadores que tratam, direta ou indiretamente, da democracia como um modo de vida, da comunidade cívica, ou da associação como elemento fundante da política e da coexistência.

A seguir algumas menções aos autores relevantes das fontes que, embora talvez não usem a frase exata “modo de vida”, trabalham conceitos que fornecem o arcabouço ou a prática dessa noção.

1. Alexis de Tocqueville (Indiretamente, através da Associação e do Espírito Cívico)

Tocqueville, em sua análise da democracia americana, é visto como um precursor fundamental do conceito de “modo de vida democrático”, especialmente ao focar na sociedade civil e nas práticas sociais cotidianas.

Associação como Prática Democrática. Para Tocqueville, o país mais democrático da Terra é aquele onde os homens mais aperfeiçoaram a arte de perseguir em comum o objeto de seus desejos em comum e aplicaram essa nova ciência ao maior número de objetivos.

A Ciência-Mãe da Associação. Ele sugere que a arte de se associar deve se desenvolver e se aperfeiçoar na mesma proporção que a igualdade de condições cresce, sendo a arte da associação a “ciência-mãe”.

O Âmbito Local e Cotidiano. Tocqueville descreve como os americanos de todas as idades e temperamentos estão sempre formando associações (comerciais, industriais, religiosas, morais, sérias, fúteis, grandes e pequenas), tratando a associação como o único meio de agir. Ele observou o uso cotidiano do direito de associação, onde vizinhos se estabelecem em corpo deliberador para resolver problemas na via pública antes que pensem em uma autoridade preexistente.

Vínculo Social. Tocqueville percebe que, nas democracias, os cidadãos só podem se ajudar livremente, ou cairão na impotência, e a democracia liga as pessoas pela comunhão de lembranças e pela livre simpatia das opiniões e dos gostos.

Visão Pós-Tocqueville. Robert Putnam, ao discutir o conceito de Capital Social e Comunidade Cívica, retoma Tocqueville como referência clássica da democracia americana, caracterizando a comunidade cívica pela participação de cidadãos atuantes e por uma estrutura social firmada na confiança e colaboração, ou seja, um modo de convivência social.

2. Baruch de Spinoza (Indiretamente, através da Liberdade como Finalidade do Estado)

Embora Spinoza não trate de “modo de vida” no sentido de engajamento social cotidiano como Dewey, sua definição do propósito do Estado democrático fornece o princípio fundamental para a liberdade individual que é o cerne do modo de vida:

Liberdade como Fim do Estado. Spinoza apresenta a democracia como uma forma de realização da própria natureza humana, visto que as instituições políticas aparecem nela como realização objetiva da liberdade que está inscrita na essência de cada indivíduo: “o fim do Estado é, realmente, a liberdade”.

Fundamento da Democracia. O fundamento e finalidade da democracia, para Spinoza, é evitar os absurdos do instinto e conter os homens nos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz.

3. Hannah Arendt (Diretamente, através da Pluralidade, Ação e Comunidade Política)

Hannah Arendt é uma das pensadoras contemporâneas que mais resgatou a dimensão da política como uma experiência de vida para além do Estado:

A Matéria da Política. Arendt é creditada por ter percebido a dimensão original do “gene” democrático, que é a liberdade. A única matéria propriamente política é a liberdade.

Ação e Liberdade. Arendt sugere que se as pessoas passarem a viver a sua convivência, “um outro tipo de vida surgirá” — a vida propriamente política, que é a fruição de viver prazerosamente a coisa pública. Ela observou que a política, diferentemente da força, opera sob o signo do poder.

Pluralidade e Convivência. Para Arendt, a pluralidade dos homensé o pressuposto de todo teorizar sobre política. A democracia, ou a política em seu sentido forte, é vista como “a whole way of life” (um modo de vida integral), um conceito que Montesquieu já entendia como a estrutura na qual certos princípios de ação são promulgados.

A Visão Comunal (Pólis). A comunidade política (a koinonia, e não a cidade-Estado) é o local onde os homens interagem e podem exercer a liberdade. A política não é uma forma de dominação/Estado, mas “muito mais” um “a whole way of life”.

4. Norberto Bobbio (Indiretamente, através da Democracia Social e o Pluralismo)

Bobbio, ao analisar as transformações e o futuro da democracia, toca indiretamente no modo de vida ao distinguir a extensão da democracia para além do aparato estatal:

Democratização Social. Bobbio afirma que a extensão do processo de democratização deveria se revelar não na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas na passagem da democracia política para a democracia social. O crucial é saber se aumentaram os espaços nos quais os indivíduos podem exercer o direito de participar das decisões que lhes dizem respeito.

Pluralismo e Sociedade. O fato de a sociedade ser policêntrica ou poliárquica e pluralista exige que a democracia dos modernos faça as contas com o pluralismo, diferentemente do que ocorria na democracia dos antigos. A democracia é um sistema político que pressupõe o dissenso, a competição e a concorrência, necessitando de consenso apenas sobre as regras da competição.

5. Robert Dahl (Indiretamente, através do Associacionismo e Competência Cívica)

Robert Dahl aborda o tema de forma instrumental, focando na necessidade de instituições sociais para a democracia funcionar em grande escala.

Associações Independentes. Dahl defende que, em uma grande república, associações independentes (grupos de interesse, partidos) se tornam necessárias e desejáveis, sendo uma fonte de educação e esclarecimento cívico ao proporcionar informações e oportunidades para discutir, deliberar e adquirir habilidades políticas.

Requisitos para a Democracia em Grande Escala. Ele lista as associações independentes como uma das instituições políticas essenciais para a moderna democracia representativa.

6. Robert Putnam (Diretamente, através do Capital Social e Comunidade Cívica)

Putnam, apoiando-se em Tocqueville, utiliza o conceito de Comunidade Cívica para explicar o desempenho institucional, uma ideia que se encaixa na perfeição com o “modo de vida”:

Comunidade Cívica como Modo de Vida. A comunidade cívica, uma prática sociocultural, se caracteriza por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração.

Capital Social e Cooperação. Putnam define o capital social como características da organização social (confiança, normas, sistemas) que facilitam as ações coordenadas, sendo os sistemas horizontais de participação cívica uma forma essencial de capital social que estimula a cooperação e a confiança social.

Função das Associações. A participação em associações incute nos membros hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público, desenvolvendo o senso de responsabilidade comum para com os empreendimentos coletivos, mesmo que o objetivo da associação seja apolítico (como um clube de ornitófilos).

7. Amartya Sen (Indiretamente, através do Papel Construtivo da Liberdade)

Sen relaciona a liberdade e a participação à própria definição de desenvolvimento, o que implica um modo de vida ativo e participativo:

Liberdade Constitutiva do Desenvolvimento. Sen argumenta que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento. Negar a liberdade de participação é uma privação que o desenvolvimento, como liberdade, deve eliminar.

Discussão Pública. A discussão pública e a participação social são centrais para a elaboração de políticas em uma estrutura democrática, sendo o exercício das liberdades políticas e dos direitos civis uma parte crucial da elaboração de políticas.

8. Jacques Rancière (Diretamente, através do Escândalo da Indistinção)

Rancière aborda a democracia não como uma forma de governo, mas como a revelação do princípio de igualdade que rompe a ordem social hierárquica (Polícia), sendo, em essência, o poder dos “sem título”:

Democracia além do Estado. Para Rancière, a democracia não é um tipo de constituição nem uma forma de sociedade, mas o poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que para ser governados.

O Escândalo Democrático. O escândalo da democracia é revelar que o título para o poder político só pode ser a ausência de título. A democracia é a força fundadora da heterotopia, a limitação primeira do poder das formas de autoridade que regem o corpo social.

Resumo de alguns autores já mencionados (com a inclusão de outros que exigem mais exploração)

Autor(a)Conceito-Chave Ligado ao “Modo de Vida”Relação com a Prática Social
TocquevilleArte de se Associar/Comunidade CívicaÊnfase na associação voluntária e contínua como a essência da liberdade e do autogoverno social.
SpinozaLiberdade Objetiva/ConcórdiaFundamento ético que torna possível a coexistência em paz e concórdia, base para a realização da liberdade individual.
H. ArendtAção/Pluralidade/A Whole Way of LifeO sentido da política é a liberdade, que surge no “entre” os homens, na vida em comunidade (Pólis/Koinonia) e não no Estado.
N. BobbioDemocracia Social/PluralismoExpansão da democracia para além do Estado (onde se vota?), englobando centros de poder autocráticos na sociedade (empresa, burocracia).
R. DahlAssociações Independentes/Competência CívicaAssociações são essenciais para a educação cívica, o esclarecimento e a participação efetiva em grandes repúblicas.
R. PutnamCapital Social/Comunidade CívicaA eficácia democrática depende de um “estoque” social de confiança e cooperação, corporificado em sistemas horizontais de participação cívica.
A. SenLiberdade Constitutiva/Discussão PúblicaA participação política e a dissensão não são apenas meios, mas partes intrínsecas e avaliatórias do processo de desenvolvimento humano.
J. RancièrePoder dos sem Título/Ausência de HierarquiaA democracia é a revelação da igualdade fundamental que subverte a ordem natural de autoridade (polícia), sendo um poder da indistinção que desconstitui autocracia.

Esses autores, de diferentes ângulos — seja pela primazia da associação(Tocqueville, Putnam), o fundamento da liberdade (Spinoza, Sen), a prática da convivência plural (Arendt, Rancière) ou a extensão do espaço democrático (Bobbio) — demonstram que a visão da democracia como modo de vida é uma linha de pensamento que atravessa toda a teoria política, ligando a eficácia do governo à saúde da sociedade civil.

Luiza Possi é atacada e tem intimidade exposta por Maria Gadú depois de defender Bolsonaro

A cena é conhecida. Uma artista resolve falar de política, mas não do jeito certo. Em vez de repetir o discurso padrão da classe, ela grava um vídeo em que diz viver “tempos injustos”, fala de “ímpios no poder”, pede livramento divino e afirma crer em uma nação reconstruída “pelo nome de Jesus”. O contexto é a confirmação da pena de Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos de prisão. Luiza Possi, hoje casada, mãe de dois filhos e assumidamente cristã, escolheu se posicionar assim.

Não pediu voto, não convocou ato, não fez campanha. Luiza Possi apenas expressou a leitura de mundo que orienta a fé dela. A resposta não veio em forma de contraponto político, mas de ataque pessoal. Maria Gadú entrou nos comentários para revelar que as duas tiveram um relacionamento no passado, algo que nunca havia sido assumido publicamente, e escreveu: “Namoramos. Sim. E me arrependo amargamente”.

Não satisfeita, continuou: “Demorei muito tempo para me perdoar por ter vivido aquilo” e completou com a frase que marcou a violência simbólica do ataque: “Peça a Deus luz, verdade e humildade”. Ou seja, colocou a relação passada no campo do pecado e o presente de Luiza no campo da mentira.

O que está em jogo aqui não é fofoca de celebridade, é padrão de abuso. Expor a intimidade do outro para tentar destruir sua credibilidade pública é uma forma de violência.

Durante anos, Luiza Possi desmentiu o namoro com Gadú e relatou ter perdido contratos quando surgiram boatos sobre a relação. Em 2016, ela contou que, mesmo negando, o mercado passou a tratá-la como se aquela história fosse uma verdade que “simplesmente não podia existir”, acompanhada da frase amarga: “Luiza Possi não é gorda, não é gay, não é nada”. Ou seja, a suspeita sobre a orientação sexual dela já tinha sido usada como arma profissional no passado. Agora, a mesma história volta à cena, não para reparar injustiças, mas para punir a heresia política e religiosa.

Hoje, a cantora declara que “já foi bissexual” e que não é mais, que experimentou na juventude e agora se define de outra forma. Pode-se discordar, discutir conceitos de sexualidade fluida, criticar a ideia de que alguém “deixa de ser bissexual”. O que não se pode normalizar é que uma artista LGBT use essa biografia íntima como munição contra uma ex que ousou migrar de um imaginário progressista para um discurso cristão que inclui a defesa de Bolsonaro.

O ponto mais incômodo dessa história é a assimetria moral. O mesmo meio artístico que passou anos dizendo que “outing” é violência, que expor alguém sem consentimento é abuso, que não se usa sexualidade alheia como arma, agora assiste quase em silêncio à exposição de uma ex, com deboche e tom de penitência pública.

Nos comentários, Maria Gadú não só revelou o relacionamento como afirmou: “O tempo em que namoramos foi um erro”. Também escreveu que Luiza Possi “viveu uma grande mentira” e que seria necessário “Deus atuar na vida dela” para que encontrasse “verdade e humildade”. A mensagem é clara: a relação só volta à pauta porque uma das partes adotou hoje um discurso cristão que incomoda a bolha. Não é uma reparação histórica, é um acerto de contas ideológico.

A reação posterior de Luiza Possi, falando sobre querer ser porto seguro para os filhos, garantir que sempre terão uma casa para onde voltar quando o mundo pesar, mostra claramente que ela está tentando reenquadrar a narrativa no campo do afeto e da responsabilidade familiar. A internet, no entanto, respondeu com deboche e referências a músicas de Gadú, além de insinuações maldosas sobre o futuro dos filhos caso discordem da visão política da mãe.

É um ambiente tóxico em que a pauta da diversidade, em teoria voltada a garantir que ninguém seja reduzido a rótulos, se transforma em chantagem identitária. Você só é protegido se continuar obedecendo à cartilha. O dia em que ousar questionar a narrativa dominante, seu passado será usado como arma. O direito de rever trajetórias, amadurecer e mudar de opinião, tão celebrado quando alguém migra para o campo progressista, vira prova de hipocrisia quando o movimento é na direção contrária.

A mensagem enviada a qualquer artista que hoje esteja em dúvida é pedagógica no pior sentido. Se você experimentar, se se aproximar de um universo que odeia o cristianismo conservador, a conta virá caso escolha seguir outro caminho. Vão dizer que você é ingrato, traidor, “lobotomizado”, como escreveu o ex-marido de Luiza sobre ela.

A discussão não é sobre concordar ou não com a defesa de Bolsonaro, nem sobre a teologia da cantora. É sobre o limite entre crítica política e revanche íntima. Quem diz lutar por liberdade, diversidade e respeito à subjetividade alheia não pode achar normal que uma mulher tenha sua intimidade exposta anos depois como punição por ter se tornado cristã e assumir um posicionamento impopular na bolha.

Quando a mesma turma que denuncia abuso emocional, outing e violência simbólica aplaude ou silencia diante de um episódio assim, não está defendendo minorias, está defendendo um campo ideológico. Contra cristãos, pode tudo. Se for cristão e ainda por cima bolsonarista, aí a licença para agredir é quase automática.

A pergunta final não é retórica, é diagnóstica: a esquerda pode tudo?