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Madeleine Lacsko

Sobre Madeleine Lacsko

Jornalista há 26 anos, especializada em Cidadania Digital, colunista do UOL e está à frente do projeto Cidadania Digital na Gazeta do Povo. Atuou como Consultora Internacional do Unicef Angola na campanha que erradicou a pólio no país, diretora de comunicação da Change.org para a América Latina, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. Trabalhou na Jovem Pan e Antagonista.

Defesa do Hamas em universidades de elite mostra poder do eixo político autoritário

Nos últimos dias, universidades de elite nos Estados Unidos estão em uma crise causada por manifestações, erroneamente nomeadas em muitos lugares como pró-Palestina. Não são. São pró-Hamas e pedem abertamente o assassinato de mais judeus.

É um caso em que uma minoria barulhenta e violenta clama pelo direito de não respeitar nenhuma regra democrática e consegue obrigar os demais a se curvarem à defesa da barbárie.

Paralisar uma universidade, como ocorreu em Columbia, seria algo justificável por uma questão que move a maioria dos estudantes. Só que não é o caso. O problema tem se repetido em outras universidades de elite, com Yale e Harvard.

Chegamos ao absurdo de ver estudantes impedindo estudantes judeus de entrarem no campus. Há vídeos em que assediam estudantes judeus que tentam voltar aos próprios dormitórios. Felizmente não são a maioria. Tristemente, mesmo sendo minoritários conseguem dominar o cenário da vida real e narrativa exposta na imprensa.

A Universidade de Harvard faz uma pesquisa periódica sobre as preocupações dos estudantes. Diante do caos instaurado, podemos pensar que a maioria deles está preocupada com a Faixa de Gaza. No entanto, é a 15a preocupação em ordem de grandeza. Bem acima dela, em 7o lugar, está a proteção da democracia.

É um cenário distópico. Tem ganhado mais direitos e mais poder os que querem defender uma ditadura teocrática tocada por um sanguinário grupo terrorista. Há protestos com cantos de amor ao Hamas, pedindo que sejam assassinados mais soldados de Israel e que Telaviv seja destruída. Israel é a única democracia do Oriente Médio. No entanto, o grupo majoritário que quer defender a democracia não tem o mesmo espaço dentro das universidades.

Tendemos a medir muitas questões políticas pela adesão que ganham. É uma visão míope. Questões que se tornam majoritárias ao longo da história começam a ser defendidas por grupos minoritários.

A defesa do Hamas é circunstancial. Provavelmente, a maioria que engaja nisso mal saberia apontar a Faixa de Gaza em um mapa. Só que esse pessoal tem voz, está sendo ouvido pela mídia mainstream e é capaz de moldar a cultura.

O contexto também é importante. São eufemismos para os defensores de terroristas e hipérboles para a única democracia do Oriente Médio. Eufemismos para os meus e hipérboles para os seus é uma tática bem manjada, mas ainda funciona.

Em seu estatuto, o Hamas defende o assassinato de todos os judeus pelo mundo e a extinção de Israel. Praticou atos terroristas bárbaros contra civis e fez questão de propagandear com vídeos transmitidos pela internet. Assassinatos, estupros, tortura e decapitações eram celebrados. Agora ainda resiste a devolver as dezenas de civis que mantém reféns.

Para o Hamas, o eufemismo. Estão defendendo o povo palestino, brigam por terras, querem uma solução de dois Estados. O estatuto do grupo diz ser contra qualquer solução nesse sentido, o único objetivo é destruir Israel.

Só que isso vai muito além do Hamas e do presente conflito. Se estende no tempo e no espaço. Este é mais um dos grupos jihadistas financiados e armados pela teocracia do Irã. Se há um lugar em que os direitos humanos e fundamentais andaram para trás, é ali.

Basta pesquisar fotos de Teerã antes e depois da revolução islâmica para entender qual a proposta dos aiatolás. Nem o mundo árabe, que tem conflitos históricos com Israel, apóia as ideias jihadistas da teocracia persa. No último ataque do Irã contra Israel, tanto Arábia Saudita quanto Jordânia ajudaram a interceptar mísseis e drones que cruzaram seu espaço aéreo.

Não foram ataques do Hamas, foram dos outros grupos fomentados pelo Irã, Hezbollah no Líbano e Houthis no Iêmen. Tudo começa quando Israel e Arábia Saudita estão prestes a fechar um acordo histórico e depois que Israel e Emirados Árabes fecharam um.

A batalha vai além do Oriente Médio, é a geopolítica mundial. Pelas redes sociais, China e Rússia fomentam as narrativas do Irã defendendo os jihadistas.

Isso ocorre num contexto de clara rivalização entre dois eixos. De um lado está o mundo livre, as democracias liberais. De outro estão países como Irã, China, Rússia e Coreia do Norte. A guerra é também de narrativas.

Já foi atingido o objetivo de rachar por dentro as democracias liberais. O discurso do eixo autoritário tem sido repetido por grupos minoritários no ocidente, mas com influência no mainstream, capacidade de se fazer ouvir e possibilidade de moldar a cultura.

O jogo de eufemismos contra hipérboles favorece o eixo autoritário. É feito, curiosamente, por grupos que dizem defender a democracia, os direitos humanos e as minorias. Na prática, replicam tudo aquilo que favorece autocracias, eliminação de direitos humanos e esmagamento das minorias.

Estamos diante de uma dissonância cognitiva. O grupo diz defender algo mas age no sentido diferente. Diante disso, o lógico parece ser encarar o resultado das próprias ações e mudar de atitude. Não é, no entanto, o que tende a ocorrer.

Pense em uma seita do fim do mundo. A data do apocalipse é marcada mas o mundo não acaba. O que fazem os membros? O esperado é que culpem o líder e deixem a seita. A experiência mostra o oposto, a seita tende a ser mais fortalecida e seus seguidores investem em buscar desculpas para o erro na previsão.

É assim com os supostos progressistas que defendem grupos de terroristas. Primeiro usavam eufemismos para a barbárie perpetrada pelo Hamas. Agora já pedem abertamente o assassinato de judeus. Qual será o próximo passo?

Não é difícil imaginar, é replicar todas as teses dos jihadistas e minimizar a dignidade humana e os direitos de todos os demais grupos. Ano passado, o Irã chegou a presidir um fórum de direitos humanos na ONU. O escândalo normalizado acaba corrompendo a linguagem, relativizando o que as democracias entendem por defesa de direitos humanos. É uma busca para encaixar nesse conceito o que os aiatolás praticam. Não tem como, portanto a tendência é relaxar o conceito.

Um dos principais desafios das democracias é conter os grupos que, exercendo seus direitos democráticos, pretendem implodir a própria democracia. O sucesso deles começa pela corrupção da linguagem. É assim que transformam o inaceitável em novo normal.

O fenômeno antissemita nas universidades de elite dos Estados Unidos não pode ser subestimado e precisa ser contido. Ele tem o potencial de se estender a outros grupos e minar por dentro a democracia. Comecemos por dar às coisas o nome que elas têm.

Defesa da Palestina não pode ser confundida com defesa do assassinato de judeus. Também precisa ser vista como o que é, a defesa de uma autocracia. Ninguém pode defender uma autocracia e, ao mesmo tempo, desfrutar da fama de democrata ou progressista. É um trabalho árduo, que exige constante vigilância.

Terrorismo tempera salada russa da desinformação de Putin no Ocidente

Esta semana, o governo russo atualizou para 143 o número de mortos no atentado terrorista no Crocus City Hall, casa de espetáculos da periferia de Moscou. Há 182 feridos, mais de 80 deles hospitalizados. Segundo informações do portal russo Baza, 95 pessoas permanecem desaparecidas. Até agora, 11 pessoas foram presas por envolvimento no crime.

As imagens são aterrorizantes. Os terroristas entraram numa casa de espetáculo atirando a esmo contra civis, incluindo crianças. A autoria foi assumida pelo Estado Islâmico, mais precisamente a ramificação Estado Islâmico do Khorasan.

Para muitos pode parecer algo surpreendente ou inusitado. Não é. A Rússia talvez seja a única força eficiente para conter o jihadismo islâmico, com amplo sucesso em ações no continente africano. Por isso, é vista como grande inimiga do ISIS e de diversos outros grupos do tipo. Eles já cometeram diversos atentados contra o país.

Em 2022, o Estado Islâmico explodiu a embaixada da Rússia em Cabul, no Afeganistão, matando 4 funcionários. Antes, tinha feito um ataque ainda mais sangrento. No ano de 2015, 224 pessoas morreram quando o Estado Islâmico explodiu um avião russo que decolava do Egito. O grupo também considera a Rússia responsável  por sua derrota em guerras como a do Afeganistão e da Chechênia.

Aí existe uma outra nuance ainda mais complicada: o Estado Islâmico tem como seu pior inimigo o Talebã – acredite se quiser – e considera a Rússia como próxima desse grupo, considerado herege. O ISIS tem como objetivo estabelecer um califado, ou seja, uma nação governada de acordo com suas regras religiosas extremistas. O ideal é que essa seja a pátria mundial, mas ela começa aos poucos.

O início da ocupação foi na Síria e no Iraque, mas a derrota do ISIS ali é total, principalmente por causa da ação da Rússia em apoio ao governo sírio. Os terroristas decidiram buscar outros locais, como o Afeganistão e o leste do continente africano. Mais uma vez, a Rússia é um obstáculo.

O que ocorre no continente africano é bastante curioso. Caso tenha interesse em se aprofundar, fiz um artigo meses atrás para o Instituto Monitor da Democracia sobre este tema específico. O Grupo Wagner, braço de guerra privada de Putin, foi eficiente para varrer do continente africano diversas células do Estado Islâmico. O ditador matou seu aliado, que era o dono do Grupo Wagner, Yevgeny Viktorovich Prigozhin. A eficiência de suas forças indiretas no continente africano continua mesmo assim.

O Estado Islâmico já assumiu publicamente a autoria do atentado e é provável que venha a promover outros. Quando uma organização jihadista está perdendo territórios, é natural provocar terror para demonstrar poder e atrair mais adeptos.

Os Estados Unidos alegam que já haviam previsto a atividade terrorista naquela região e avisado o governo russo, que nada teria feito. Putin nega e agora usa o atentado para desinformação e demonstrações de brutalidade.

As imagens dos presos pelos atentados correram o mundo. Estão passando por audiências nos tribunais completamente arrebentados, espancados pelas forças de segurança russas.

Os suspeitos identificados seriam do Tadjiquistão: Dalerdzhon Mirzoyev, Saidakrami Murodali Rachabalizoda, Shamsidin Fariduni e Muhammadsobir Fayzov.

Fariduni tinha o rosto completamente inchado. Mirzoyev apareceu no tribunal com hematomas nos olhos. Rachabalizoda a mesma coisa, mas com a adição de uma faixa na orelha. Segundo as autoridades, um pedaço foi cortado na prisão. Fayzov chegou numa cadeira de rodas e parecia estar sem um olho. O governo Putin não disse claramente qual a ligação deles com o Estado Islâmico. Aliás, fez justamente o contrário.

Em pronunciamentos públicos, o ditador russo disse que havia indícios de participação da Ucrânia no atentado. Seria um veículo com placas ucranianas que foi utilizado pelos terroristas. Parece uma afirmação possível de ser verdadeira e circunstancial. Não é, é parte do sofisticado esquema russo de desinformação focado na guerra da Ucrânia.

A ditadura considera crime “fake news” sobre a guerra. Ou seja, contrariar o que Putin diz e condenar a invasão rende uma pena de cadeia. Mais recentemente, é também possível o confisco de bens de quem criticar a invasão da Ucrânia. Isso não cessa, mas diminui consideravelmente a produção interna de conteúdo sobre isso.

No Ocidente, Putin consegue a estranha façanha de ter apoio em todos os extremos políticos, seja de direita ou de esquerda. Esse mecanismo de jogar do nada uma informação sobre a Ucrânia é feito sob medida para radicais, que vivem divorciados da verdade. Eles não precisam ser convencidos, só precisam ser instigados à dúvida sobre uma realidade que rejeitam.

Como querem acreditar que a Ucrânia invadida é o bandido e a Rússia invasora é o mocinho, os radicais se agarram a qualquer fio de narrativa que os afaste da realidade. Esta semana, a Rússia fez bombardeios de mísseis contra alvos civis na Ucrânia, incluindo uma faculdade. O radical vai desprezar essa informação e focar na história de que a Ucrânia é terrorista e faz atentados na Rússia. No Brasil, isso pegou principalmente na esquerda mais abastada. Perguntados sobre o atentado, vários têm impressão de que a Ucrânia está envolvida.

Ao mesmo tempo, Putin lança um agrado para a extrema-direita na pauta de costumes. O ditador acaba de equiparar a militância LGBT ao terrorismo no país. É um passo extremo, jamais tomado nem pelas ditaduras teocráticas mais duras.

A criminalização da homossexualidade, que é deplorável, existe em vários países do mundo, principalmente nas ditaduras teocráticas. Putin entrou num outro patamar agora, endurecendo ainda mais sua escalada de década contra homossexuais. Não é mais só crime, é terrorismo.

Veja o que ocorreu com os terroristas no caso do teatro, é o mesmo que pode acontecer com militantes LGBT. Por incrível que pareça, tem gente aqui no Brasil e em outros países ocidentais apoiando isso. Argumentam que a militância está tão agressiva e tão eficiente ao impor suas crendices à sociedade que alguém precisa parar com isso. As pessoas não ligam que a solução seja um ditador equiparar militância política a terrorismo.

Vladimir Putin acaba de vencer novamente eleições fraudadas. Observadores internacionais dizem que foi a mais fraudada que presenciaram por ali. A diplomacia brasileira, também presente, atesta que houve normalidade. Ele vai agora bater o record de Joseph Stálin como governante mais longevo da Rússia. Stálin permaneceu 26 anos no poder, Putin chegou em 1999. Ambos trabalharam fortemente para moldar o pensamento das elites ocidentais. Os ditadores russos aprenderam muito bem como a desinformação é poderosa, os ocidentais não aprenderam nada.

O Brasil do jeito que o Hamas gosta

O Hamas elogiou uma fala do presidente do Brasil, que pretende ser uma democracia. Caso essa pretensão seja mantida, é um momento trágico para o país.

Na Etiópia, o presidente Lula declarou o seguinte: “O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.” Fazer essa declaração em solo etíope é escalar ainda mais um degrau na provocação.

Lula e qualquer um têm todo o direito de criticar a reação de Israel ao ataque terrorista do Hamas bem como de criticar o governo do país. Não foi isso o que ele fez.

O presidente do Brasil caiu em um discurso indecente e muito comum em grupos neonazistas em ascensão nos últimos anos pela internet. Ao comparar tudo o que ocorre no Oriente Médio ao Holocausto, duas coisas são feitas ao mesmo tempo. A primeira é minimizar o Holocausto. A segunda é colocar os judeus como nazistas, portanto contra eles se pode tudo.

Não é à toa que o caldo começou a desandar entre apoiadores de Lula. Oscilam entre apoiar um discurso aplaudido publicamente pelo Hamas e degenerar para pedidos de morte aos judeus e a todos os que criticaram o presidente. O nível de violência muda, mas o chiqueiro moral é o mesmo.

Falar isso justamente na Etiópia é ainda mais perverso. Pouca gente sabe aqui no Brasil, mas os judeus foram vítimas de uma limpeza étnica no território etíope na década de 1980. O então ditador Mengistu Haile Mariam resolveu perseguir a minoria judia, que começou a fugir para outros países. Nem todos conseguiam.

Muitos tentaram fugir a pé da Etiópia a Israel e acabavam morrendo pelo caminho. Em maio de 1991, Israel utilizou aviões em operações secretas do Exército para resgatar mais de 14 mil judeus etíopes em barcos e aviões.

Foi uma operação secreta da Mossad que parece filme. Os agentes se hospedaram em resorts, utilizaram barcos para resgate clandestino e depois colocaram as pessoas dentro de aviões pousados no deserto para conseguir levar a Israel.

Eu estive no início deste mês dentro dos aviões usados para esse resgate, ainda preservados em bases aéreas e utilizados em outras operações. Contei o que vi na minha viagem no podcast Democracia em Foco, feito pelo Instituto Monitor da Democracia.

Escolher o solo Etíope para sugerir que judeus são os novos nazistas é definitivamente um novo patamar de baixeza. Aliás, nem autoridades do Irã, o maior inimigo de Israel na região, fazem declarações do tipo. Entre os países árabes também não há declarações semelhantes vindas de mandatários.

Por isso o Hamas aplaudiu, porque é algo do nível dele. Pouca gente sabe, mas o Conselho Islâmico da Fatwa, entidade que controla a lei islâmica no Oriente Médio, condenou publicamente o Hamas antes mesmo do ataque terrorista de 7 de outubro.

O colegiado com sede no Iraque foi fundado pelo Ayatollah Shaikh Fadhil al-Budairi e une sunitas e xiitas. Ele emite “fatwas”, que são pronunciamentos de clérigos muçulmanos esclarecendo como agir de acordo com a lei islâmica em determinadas situações.

Esse conselho emitiu uma fatwa condenando o Hamas por corrupção e pelo terror contra a população palestina de Gaza. Vejam bem, não é só contra Israel, é de antes. Um conselho teocrático islâmico disse que o Hamas faz terror contra os palestinos.

A fatwa, que você pode ver nesse vídeo gravado pelo porta-voz do Conselho Islâmico da Fatwa, Sheikh Muhammad Ali al-Maqdisi, proíbe de orar pelo Hamas, se juntar a ele, apoiar, financiar ou brigar pelo Hamas.

Muitos democratas já se preocupavam com o explícito alinhamento do governo Lula ao crescente bloco autocrático do planeta, liderado por Rússia, China e Irã. Ao conseguir ser aplaudido publicamente pelo Hamas, o presidente deu um passo significativo.

China aperta a pressão contra a democracia de Taiwan e ganha apoio do Brasil

No último sábado, 13 de janeiro de 2024, Lai Ching-te venceu as eleições presidenciais de Taiwan. É o representante do Partido Democrático Progressista, o governista, que chega ao poder pela terceira vez seguida, uma sequência inédita.

Foram eleições bastante tensas. O Partido Comunista Chinês definiu o pleito como a decisão entre guerra e paz. Lai Ching-te foi denunciado diversas vezes pelo país como um separatista perigoso.

Cinco dias depois das eleições, na quinta-feira, 18 de janeiro, a China realizou manobras militares e cruzou o estreito entre os dois territórios. Segundo Taiwan, foram manobras de combate aéreo e naval com 24 aeronaves e 5 embarcações. O estreito entre os territórios foi cruzado por 11 aeronaves.

No dia seguinte, o ministro das relações exteriores da China, Wang Yi, foi recebido oficialmente em Brasília pelo nosso ministro das relações exteriores, Mauro Vieira. Ele declarou que o Brasil apóia a política de “uma só China”, ou seja, a incorporação da democrática Taiwan pelo governo chinês.

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Taiwan, em 1912. Oficialmente, chama-se República da China. A China tem o nome oficial República Popular da China. São duas Chinas, por isso o nome de “uma só China”.

As coisas começaram a mudar na Revolução Comunista Chinesa, em 1949. Esse regime jamais reconheceu a existência de Taiwan. Era considerada uma província rebelde, como segue até hoje.

Na época, no entanto, a China era representada na ONU por Taiwan, que tinha até assento no Conselho de Segurança. Mas era a época da Guerra Fria e as coisas começaram a mudar. Em 1971, os Estados Unidos pararam de dar apoio a Taiwan no Conselho de Segurança. Vários outros países democráticos do ocidente seguiram na decisão. O Brasil não. Fomos contra a retirada de Taiwan da ONU em 1971, ano em que a representação passou a ser feita pela China.

Três anos depois, em 1974, foram rompidas as relações diplomáticas entre Brasil e Taiwan. Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas as relações comerciais com Taiwan também continuam e somos o principal parceiro nas Américas. O comércio envolve soja, minério de ferro, café e eletrônicos de alta tecnologia.

Entre maio e junho de 2014, o Senado brasileiro mandou uma comissão a Taiwan. O relatório foi feito pelo então senador Jorge Viana, que hoje é presidente da Apex, Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Todas as despesas foram pagas pelo governo estrangeiro. Transcrevo parte do relatório:

“Em nossa Missão Oficial, surpreendeu-nos a relação entre Taiwan e China. Apesar de não possuírem relações diplomáticas (China vê Taiwan como província e Taiwan se declara autônoma), há entre ambos forte relação comercial. São cerca de 800 voos por semana entre Taipei, capital de Taiwan, e as principais cidades chinesas, além de uma intensa relação comercial. Se na política e na diplomacia não há qualquer diálogo, nas relações comerciais as coisas fluem muito bem.

O Brasil precisa observar melhor essas particularidades e ampliar as relações comerciais, intercâmbio técnico e científico com Taiwan – apesar da inexistência de relações diplomáticas.

Nesse sentido e como resultado desta Missão Oficial, defendemos que o Brasil facilite a retirada de vistos e amplie o status do escritório de Taiwan no Brasil e do escritório do Brasil em Taiwan.

Por fim, vale ressaltar que Taiwan e Brasil compartilham do mesmo princípio de democracia e proteção aos direitos humanos. Os povos dos dois lados demonstram extrema simpatia e calorosa recepção. Enquanto Taiwan desenvolve fortemente sua indústria de produtos eletrônicos e de semicondutores, o Brasil mostra sua força no setor automobilístico, de bioenergia e mineração. Em vista disso, e com a colaboração de comunidade taiwanesa no Brasil, acredito que há muito espaço para que esses laços bilaterais cresçam ainda mais”. (grifo meu)

Na época, o atual presidente da Apex era favorável à ampliação das relações entre Brasil e Taiwan. Relatou que a situação com a China era muito mais complexa do que um rompimento. Há a briga política, mas há laços de economia e sociedade entre os dois povos.

O mais importante é ter frisado a identidade com os princípios democráticos e o respeito aos direitos humanos, conceitos que não são seguidos pelo Partido Comunista Chinês.

A China tem investido fortemente no reposicionamento como liderança geopolítica mundial, principalmente pelas dificuldades internas atuais. A política de filho único, que já foi revertida, causou um envelhecimento da população que dificulta as contas públicas. O mercado imobiliário tem problemas. As políticas adotadas durante a pandemia pioraram ainda mais a situação.

Recentemente, a relação entre China e Taiwan começou a entrar novamente em rota de colisão. No final do ano retrasado, durante o 20o Congresso do Partido Comunista Chinês, foi reafirmada a intenção de ocupação do território de Taiwan, por meios pacíficos “se possível”. Isso acendeu o alerta da comunidade internacional, que passou a se reposicionar.

No próprio ano de 2022, diversas autoridades norte-americanas fizeram visitas oficiais a Taiwan. Em represália, a China realizou exercícios militares no estreito entre os dois países. O presidente Joe Biden chegou a dizer que os Estados Unidos pegariam em armas para defender o “status quo” na região. Depois, a diplomacia suavizou as coisas, deixando claro que o país não entraria em guerra. No entanto, continua armando Taiwan. Agora, após as eleições, o posicionamento foi bem diferente. Joe Biden declarou que os Estados Unidos não apóiam a independência de Taiwan.

O governo Lula já havia se antecipado a isso. Em 14 de abril de 2023, foi emitido um comunicado diplomático conjunto entre Brasil e China. Um dos ítens dizia o seguinte: “O lado brasileiro reiterou seu firme apoio ao Princípio de Uma Só China, reconhecendo o governo da República Popular da China como o único governo legítimo de toda a China, e Taiwan como uma parte inseparável do território chinês. Ao reafirmar o princípio da integridade territorial dos estados, o Brasil apoiou o desenvolvimento pacífico das relações entre ambos os lados do Estreito de Taiwan. O lado chinês expressou grande apreço por esse posicionamento”.

Agora, o Brasil deu um passo além. Não apenas reafirmou sua posição como recebeu o ministro das relações exteriores da China no dia seguinte dos exercícios militares em Taiwan. É uma declaração de enorme peso simbólico, que nos coloca definitivamente em um lado de um potencial conflito.

Os tentáculos chineses usando a influência do Brasil chegam também aos BRICS. No comunicado conjunto do ano passado, já havia um protocolo de intenções: “Ambas as partes avaliaram positivamente o diálogo e a coordenação que mantiveram dentro de organizações internacionais e mecanismos multilaterais, e continuarão a fortalecer esse intercâmbio no âmbito da ONU e de outras organizações multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, bem como em agrupamentos plurilaterais como o G20, BRICS e BASIC. Além disso, o lado chinês expressou seu apoio à Presidência Pro Tempore do BRICS pelo Brasil em 2025. Ambos os lados comprometeram-se a aprofundar ainda mais a cooperação em todas as áreas dentro do BRICS. Eles apoiaram a promoção de discussões ativas entre os membros do BRICS sobre o processo de expansão do grupo e destacaram a necessidade de esclarecer os princípios orientadores, normas, critérios e procedimentos para esse processo de expansão com base em ampla consulta e consenso”.

Depois disso, o Brasil propôs a entrada da China nos BRICS, junto com diversas outras ditaduras. Os detalhes estão no artigo “O Brasil trocou a Alca pelo Bricstão e isso tem consequências”, que escrevi para o Instituto Monitor da Democracia em setembro do ano passado.

Por meio do soft power e do domínio econômico, a China tem se colocado cada vez mais como liderança geopolítica mundial. Isso significa para os países aliados decidir entre uma liderança global fundada em democracia e direitos humanos ou o oposto. O Brasil parece já ter decidido.

A desinformação de guerra dominou o debate público do Brasil

A palavra desinformação já é daquelas que o pessoal chama de “gatilho”. Foi tão solapada e usada de forma partidária que cada um dá a ela um significado diferente. Ela tem, no entanto, um significado formal. São operações de manipulação e distorção da realidade.

Muita gente, devido ao debate atual, imagina que isso seja natural da política ou das redes sociais. Não é, trata-se de estratégia militar tão antiga quanto os próprios exércitos.

Estamos no meio de duas guerras, a invasão da Ucrânia e a iniciada com o atentado terrorista em Israel. Narrativas de desinformação criadas por países que apóiam essas guerras já começam a aparecer de forma sutil em todo o debate público.

A guerra da Ucrânia já foi útil para que o mundo fizesse uma linha divisória entre civilização e barbárie. Os líderes do mundo civilizado condenaram a invasão para tomada de território com amplo massacre de civis. Vladimir Putin já foi condenado por genocídio por sequestrar crianças ucranianas e levar à Rússia.

Há líderes que simplesmente apóiam a Rússia e pronto. Outros, no entanto, apóiam mas não podem falar. Aí é que entra a desinformação. O discurso deles é o mesmo, parece feito pela mesma pessoa. Eles repetem essas ideias em qualquer lugar que possam encaixar.

A tática para ficar a favor da Rússia sem dizer isso começa por minimizar a invasão e atribuir igual culpa aos dois lados. “Quando um não quer, dois não brigam”, já dizia o povo que justificava espancamento de mulher. A outra tática é equiparar a reação de defesa militar Ucraniana ao massacre de civis promovido por Putin.

Na guerra de Israel, as coisas não são muito diferentes. O discurso para apoiar o Hamas sem pagar o preço de compactuar com terrorismo é o mesmo. A forma mais esperta de fazer é condenar os ataques do Hamas sem falar o nome do grupo e sem dizer explicitamente que é terrorismo. Depois, se houver muita pressão popular, dizer que o ataque foi terrorismo mas jamais chamar o Hamas de terrorista.

No caso de Israel, parece se consolidar a nova divisão do mundo em blocos. Falamos de um ataque à única democracia liberal da região, circundada por diversas ditaduras, algumas delas teocráticas.

As democracias liberais já se colocaram ao lado de Israel, já que essa é a visão de mundo que defendem. Outro bloco, no entanto, se colocou contra Israel, seja abertamente ou de forma velada.

Já sabemos em que bloco estamos agora.

Um fato curioso do discurso de desinformação ocorreu esta semana, em um tema que nada tem com a guerra, o levantamento de bloqueios comerciais norte-americanos contra a Venezuela.

O presidente Lula fez o seguinte tuíte: “Recebi com satisfação a notícia de que o governo dos EUA retirou sanções contra a Venezuela, depois que o governo e a oposição venezuelanos assinaram um acordo para eleições justas no ano que vem. Sanções unilaterais prejudicam a população dos países afetados e dificultam processos de mediação e resolução de conflitos. O levantamento total e permanente de sanções contribui para normalizar a política venezuelana e estabilizar a região” (grifo meu).

Por que eu selecionei essa frase? Porque ela é uma ideia que tem sido pisada e repisada pelo bloco que apóia a Rússia na invasão da Ucrânia. As sanções europeias não são mais polêmica e temos outra guerra, então o tema parece que sumiu do noticiário. Só que ele continua muito vivo.

Esta semana houve um encontro dos países da Road and Belt Initiative, a nova Rota da Seda, um projeto de mais de US$ 1 trilhão para estabelecer liderança chinesa internacional. Vladimir Putin foi o destaque entre os convidados de Xi Jinping para o evento em Pequim.

A tônica da fala do líder chinês foi uma condenação aos esforços de países do ocidente para depender menos da economia chinesa. Muitos países temem ficar nas mãos da China porque suas cadeias de fornecimento dependem demais do país.

Outra reclamação foi sobre embargos como o que sofre a Rússia depois que invadiu a Ucrânia. Isso acontece também com a China, mais pontualmente. Um exemplo concreto é a indústria de painéis solares, que evita os produtos feitos por campos de concentração da minoria Uigur. Eram os suprimentos que dominavam o mercado.

No dia em que Joe Biden pisou em Israel, Xi Jinping fazia seu discurso e chamava Putin de querido amigo. “Nós nos opomos a sanções unilaterais, coerção econômica, desvinculação e interrupção das cadeias de suprimentos”, disse o líder chinês. Dias depois, o presidente Lula repete a mesma ideia.

Seria algo natural caso fosse um raciocínio lógico. Não é, é uma narrativa. Lula mente quando diz que é contra embargos unilaterais. Em agosto, por exemplo, o Brasil vetou venda até de ambulâncias para a Ucrânia. O discurso é repetido apenas para alinhar posições. Cada vez veremos esse método ser repetido com mais maestria.

O Brasil trocou a Alca pelo Bricstão e isso tem consequências

Na 15a cúpula dos Brics na África do Sul veio a notícia de que o bloco será dobrado, basicamente com ditaduras. Serão convidados Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e a Argentina.

Os cinco países devem entrar no bloco como membros plenos. Isso significa que terão a mesma representatividade e os mesmos direitos dos cinco membros originais, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

A se concretizar a proposta, que ganhou fôlego agora, China e Rússia podem ter feito uma grande jogada no tabuleiro geopolítico internacional. Seria uma força econômica e política com estatura para polarizar com o G7, o bloco dos países mais industrializados do mundo, composto por Alemanha, Candá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido.

Blocos econômicos não são agrupamentos baseados unicamente em comércio e economia. Eles se formam com base em uma visão de mundo comum, que pretendem fortalecer.

Na virada do século, o Brasil negociava na Cúpula das Américas a entrada na Alca, Área de Livre Comércio das Américas. A ideia era de que entrassem todos os países menos cuba. Barreiras comerciais seriam eliminadas pouco a pouco no bloco.

A última rodada de negociações foi em 2005. Um ano depois, em 2006, no meio do primeiro governo Lula, surge outro bloco, composto por Brasil, Rússia, Índia e China. A justificativa não era apenas econômica, era de visão de mundo. Todos eram países no mesmo estágio de desenvolvimento e juntos poderiam ser mais fortes. Em 2011 a África do Sul se juntou ao bloco.

Embora a narrativa fosse de um grupo de países no mesmo nível, não há dúvidas de que China e Rússia são países muito maiores e mais poderosos que os outros três. Além disso, têm uma visão bastante diferente sobre democracia. São culturas antigas nas quais a ideia de democracia simplesmente não existe.

É uma situação diferente dos outros três que, embora não sejam consideradas democracias liberais ou democracias plenas, têm sociedades que abrigam os ideais democráticos.

Agora que os Brics atingiram a maioridade, 18 anos depois da fundação, a situação geopolítica mudou. A China teve um crescimento impressionante tanto sob o ponto de vista econômico quanto de influência. A Rússia resolveu expandir seu poderio invadindo a Ucrânia e inaugurando uma guerra que mexe com o mundo todo.

O presidente Lula almeja uma atuação nesse conflito, segundo ele próprio, promovendo a paz. As declarações, no entanto, são duvidosas. Até o famoso “quando um não quer, dois não brigam” foi lançado em público. Isso para falar de uma invasão territorial que já rendeu condenação em tribunal internacional por genocídio devido ao sequestro de crianças ucranianas.

É uma situação que tem o potencial de afastar o Brasil de democracias com as quais temos laços históricos. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, já declarou publicamente que o único a se preocupar com a segurança da Rússia na invasão é o presidente Lula.

No meio desse contexto, China e Rússia decidem incluir mais quatro ditaduras no bloco, algumas delas teocráticas. São países que desprezam os direitos das mulheres e punem de maneira exemplar os homossexuais.

É um discurso curiosamente oposto àquele adotado pelos progressistas que apoiaram a candidatura de Lula à presidência. Ele não perde uma oportunidade de defender publicamente a presença desses países no bloco.

A narrativa é de que um país não pode evitar relações comerciais com países que têm regimes de governo ditatoriais. Essa ideia é correta, não há forma de fazer isso num mundo globalizado. No entanto, ela não se aplica ao caso concreto. Fazer parte de um bloco engloba também a promoção de uma visão de mundo.

Inicialmente, a justificativa era unir países em desenvolvimento. Agora fica claro que o bloco seria formado majoritariamente por ditaduras. Está inaugurada a era do Bricstão. O Brasil fará parte e isso terá consequências.

Como as Big Techs se uniram para semear o divisionismo entre agentes reguladores

Big Techs superaram as diferenças entre si e se uniram para dividir republicanos e democratas que tentavam fazer uma regulamentação econômica para o setor. Não estamos falando de um movimento de discurso público apenas, mas do investimento de bilhões em lobby, acima até do investimento de indústrias como a farmacêutica e de armas.

A campanha foi classificada como épica pela Bloomberg, que ouviu 45 pessoas envolvidas nos esforços para esmagar duas legislações, uma de democratas e outra de republicanos. As Big Techs tiveram sucesso e as leis foram enterradas esta semana. Não farão parte do pacote final de votações do Congresso, divulgado na última segunda-feira. Podem eventualmente ser pautadas depois, mas o movimento foi marcante para os legisladores.

As iniciativas legislativas foram derivadas de uma investigação de 18 meses conduzida pelo democrata de Rhode Island David Cicilline. Não foi ele, no entanto, que sugeriu as leis.

A primeira era o “American Innovation and Choice Online Act” que impediria as Big Techs de usar suas plataformas para tirar vantagens de novos competidores e esmagar novos players do mercado. O “Open App Markets Act” seria a regulamentação de Apple e Google sobre as lojas de aplicativos dos telefones celulares.

Ambas iniciativas foram tratadas como uma ameaça à sobrevivência da indústria em si pela coalizão formada por Apple, Amazon, Facebook e Google. Democratas e republicanos pareciam ter as mesmas ideias sobre as leis, que tendiam a ser aprovadas. O lobby investiu em insuflar o divisionismo entre os partidos.

O lobby criou narrativas de publicidade e imprensa, financiar grupos de pressão, enviar lobistas a Washington e também investir em campanhas de políticos. Somente em publicidade voltada aos argumentos que amedrontavam republicanos e democratas com perda de votos foram gastos US$ 130 milhões. Outros USS 100 milhões foram gastos especificamente com lobby.

A artilharia contra os republicanos era focada em liberdade de expressão e liberdade de mercado. Campanhas ferozes, locais e nacionais, das Big Techs e de seus grupos financiados, argumentavam que a regulamentação castraria a liberdade.

Na realidade, era o oposto. Somente com a regulação haveria liberdade de mercado nesse segmento específico. Ele é controlado por um punhado de gigantes que usa seu poderio tecnológico para esmagar e tirar do cenário qualquer outro competidor.

A campanha que mirava os democratas era centrada nos argumentos de que a nova legislação seria prejudicial para as minorias e reduziria a privacidade online, já que o governo controlaria as empresas.

Novamente, a realidade é o oposto. Se apenas um punhado de empresas controla todo novo segmento da hipercomunicação, são elas que colocam as mãos sobre a privacidade das pessoas. As diversas brechas e problemas que já surgiram nesse campo no mundo todo deixam claro que deixar as coisas como estão não é solução.

Além disso, com poder global de comunicação e investimentos poderosos, as Big Techs investem no discurso divisionista do identitarismo, que impede qualquer tipo de avanço para as minorias. Ao fragmentar a sociedade em grupos de oprimidos colocados uns contra os outros, essas empresas se colocam como gatekeepers da inclusão.

O poder não é dado a nenhuma minoria, é cedido momentaneamente por quem já está no poder aos representantes de minorias que se mantenham na narrativa divisionista criada pelas Big Techs.

Elas e suas plataformas se tornam o símbolo da defesa de minorias, aniquilando qualquer possibilidade de avanço real ou diminuição do poderio de um setor tão predatório.

Houve obviamente problemas de negociação por parte dos autores das leis. Políticos sucumbiram ao discurso de que perderiam votos e muitas vezes se deixaram levar pelas rivalidades pessoais durante as negociações.

Divisionismo é uma das formas mais antigas de conquistar poder e, aparentemente, é uma ferramenta utilizada com frequência pelas Big Techs na defesa de seus interesses. São empresas pragmáticas que sabem colocar os antagonismos no armário quando interessa dividir grupos que possam regular sua atuação.

Os legisladores garantiam ter votos suficientes para aprovar as duas regulações ainda este ano. Elas deveriam ir a plenário, estavam prontas. O líder da maioria, senador Chuck Schumer, tomou a decisão de não levar nada a voto, garantindo que não havia número suficiente para aprovação. As filhas dele trabalham na Amazon e Facebook.

É uma derrota importante, mas o mesmo movimento foi feito na União Europeia e acabou vencido pelas autoridades. O Think Tank Economy Security project acredita que é apenas uma questão de tempo.

Para o diretor de relações governamentais, antimonopólio e políticas de competição da organização, Alex Harman, as Big Techs estão apenas adiando o inevitável. “Elas não estão ganhando, estão perdendo em câmera lenta”, sentencia.

Não há dúvidas que as Big Techs trazem muitas inovações importantíssimas que mudam as possibilidades e as vidas das pessoas. Isso não dá a elas o direito de substituir a institucionalidade e governar o mundo como bem queiram. Estamos justamente presenciando o freio de arrumação.

Conheça a “democracia popular de processo integral”, a democracia falsificada pela China

No início do mês, o jornalista Augusto de Franco, defensor apaixonado da democracia, fez uma provocação irresistível em seu site, Dagobah. Disse que seria interessante fazer uma análise aprofundada do que considera “a maior tentativa da história de falsificar a democracia”. Aqui estamos.

Ele postou a versão em inglês de um documento público divulgado pela agência oficial Xinhua News por ocasião da comemoração do centenário do Partido Comunista Chinês e não teve a devida atenção internacional.

É algo que precisa ser dissecado e analisado cuidadosamente por pessoas com visões diferentes. Não é fácil compreender a estrutura por trás do documento e como desfazer a narrativa. O título já mostra o poder de destruição. China: a democracia que funciona. Seria apenas uma desfaçatez se fosse algo produzido pelos blogueiros conduzidos pela coleira por políticos ocidentais. É perigoso exatamente por ser muito bem executado.

Em 23 páginas, o documento recorre à história política de 5 mil anos da China para legitimar o Partido Comunista como fiador da democracia. O exercício retórico é sofisticado. Na introdução, se diz que o Partido Comunista Chinês tentou todas as formas de democracia utilizadas atualmente no ocidente e elas falharam. A releitura histórica se funde com a releitura do conceito de democracia em si.

Há uma mistura perversa entre o conceito de governo do povo com a possibilidade de ascensão social mediada por um partido que é o único garantidor da “vontade popular”. O partido assume o papel que no ocidente geralmente é depositado no colo de grandes ídolos políticos populistas. Os conceitos de liberdade e direitos humanos também são pervertidos.

Todo o documento tem um foco muito mais voltado à leitura moral das situações do que à descrição da realidade. Um exemplo é a deturpação do conceito de direitos humanos, que parte de uma mentira para uma justificativa moral. Na China, os direitos humanos são plenamente respeitados e protegidos. Viver uma vida de contentamento é o direito
humano supremo.

É a execução perfeita da novilíngua de George Orwell. Não basta apenas renomear o que desagrada, é preciso criar teorias morais que degradem algo valorizado na democracia. Os direitos humanos estão elencados de forma objetiva numa declaração internacional. Eles são sistematicamente atropelados pelo governo chinês, acusado diuturnamente dos mais diversos tipos de violações.

A moralização é a afirmação aparentemente feita pensando no bem comum. Não existe um “direito humano supremo” e nem se fala de “vida de contentamento” na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É uma forma sub-reptícia de justificar as violações sistemáticas deliberdades individuais apelando ao conceito abstrato de felicidade ou contentamento. Se a pessoa está contente, então não se pode dizer que a violação de direitos humanos é isso, afinal estar contente é o centro da questão. Não existe melhor gaiola do que a ilusão de liberdade. O documento é a sistematização de um discurso para criar ilusão de liberdade ao mesmo tempo em que justifica as violações das liberdades.

O que seria então o tal do contentamento? É a sensação de progresso econômico e de ter as necessidades de subsistência atendidas. A economia da China manteve um crescimento de longo prazo, estável e rápido, e a vida das pessoas melhorou significativamente. A China estabeleceu o maior sistema de seguridade social do mundo. O número de pessoas cobertas pelo seguro médico básico ultrapassou 1,3 bilhão, e o número de pessoas cobertas pelo seguro básico de velhice já ultrapassou 1 bilhão.  A China completou a construção de uma  sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos. Todo o país se livrou da pobreza absoluta e embarcou no caminho da prosperidade comum. As pessoas ganharam uma sensação mais forte de realização, felicidade e segurança.

A linguagem parece bem intencionada e, por isso, funciona como narrativa para os mais desavisados. Este parágrafo remonta a um dos episódios mais trágicos da história da China, que só começou a ser desvendado pelo ocidente recentemente. Um livro de Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong, publicado em 2008 trouxe à tona uma realidade ainda mais devastadora do que se pensava. “A grande fome de Mao – A história da catástrofe mais devastadora da China” traz a primeira pesquisa em arquivos do próprio governo sobre o ocorrido entre 1958 e 1962. As estimativas eram de 30 milhões de mortos pela fome. As novas pesquisas demonstraram que foram pelo menos 45 milhões de mortos.

O professor teve acesso em primeira mão a arquivos contando de forma detalhada o impacto da política chamada de “O Grande Salto para Frente” de Mao Tsé-Tung. Era um plano de expansão econômica aparentemente muito bem feito. A teoria, na prática, era outra. Hoje, o Partido Comunista Chinês chama o evento de “O Difícil Período de 3 anos”, que seria de 1959 a 1961. A falta de comida para as pessoas teria, segundo a versão oficial, sido decorrência de problemas nas condições ambientais. A contagem oficial é de 15 milhões de mortos.

O ponto mais trágico é que ninguém morreu de fome por falta de comida, mas por uma política que regulava o acesso a alimentos para consolidar poder. O novo documento relaciona a subsistência à democracia. Durante “A Grande Fome de Mao”, a comida era usada como instrumento para garantir que as pessoas cumprissem as tarefas determinadas pelo Partido Comunista Chinês. As famílias já haviam começado a ser esfaceladas e as pessoas obrigadas a trabalhar em grandes colônias agrícolas.

Toda a produção precisava ser entregue ao Estado até o ponto em que foi proibido até mesmo cozinhar dentro das casas. O acesso à cantina coletiva era facilitado aos que cumpriam as tarefas. Os que não cumpriam, estavam doentes, dormiam no serviço ou estavam fracos perdiam esse acesso. Muitos acabaram morrendo. Nessa época, a propaganda oficial vendia a imagem de uma economia próspera com um povo feliz. Mas os novos documentos mostram uma realidade absolutamente chocante.

O desespero chegou a um ponto em que havia muitos casos de camponeses que desenterravam parentes para comer, era comum o consumo de roedores, terra e cascas de árvore para matar a fome. Praticamente toda família tem um sobrevivente desse horror. Vender a situação atual como prosperidade e democracia é menos difícil diante dessa memória. Por isso a ideia de relacionar democracia a subsistência é especialmente perversa.

O Partido Comunista Chinês tem o poder de controlar a economia com mão forte a ponto de privar cada um dos cidadãos de toda a dignidade. Já fez isso. Agora utiliza essa memória para dizer que a privação de liberdades individuais é democracia,  já que as pessoas podem comer e estão contentes. Os conceitos de contentamento e felicidade são altamente subjetivos e fáceis de manipular no discurso político. A ideia da “democracia que funciona” é calcada exclusivamente na subjetividade.

As instituições democráticas passam por um período de descrédito no mundo todo. Questionar é natural do processo democrático. Mas a abertura de qualquer tipo de dissenso é vista pela China como oportunidade para advogar pelo conceito de “democracia de consenso”, aquela em que o consenso pode ser democraticamente forçado.

Se o povo é despertado apenas para votar, mas depois fica adormecido, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe grandes esperanças durante a campanha eleitoral, mas não tem voz depois, isso não é uma verdadeira democracia. Se o povo recebe promessas exageradas durante a campanha eleitoral, mas fica de mãos vazias depois, isso não é uma verdadeira democracia.

Com isso obviamente a maioria de nós vai concordar. A crise institucional da democracia ocorre justamente porque as pessoas não se sentem participantes das decisões nem representadas pelas instituições. O documento sobre a democracia chinesa fala com empolgação sobre a inexistência de partidos de oposição. Não é um regime de partido único, mas todos os outros sabem que estão lá para colaborar com o Partido Comunista Chinês, não para questionar nem se opor.

Um bom modelo de democracia deve construir consenso em vez de criar divisões e conflitos sociais, salvaguardar a equidade e a justiça social em vez de aumentar as disparidades sociais em favor de interesses estabelecidos, manter a ordem e a estabilidade sociais em vez de causar caos e turbulência, e inspirar positividade e valorização do bom e do belo em vez de instigar a negatividade e promover o falso e o mal.

O Partido Comunista Chinês tem uma lógica conhecida de forçar o consenso a qualquer preço e atropelando liberdades e diferenças individuais. É quase delirante a forma como este princípio é distorcido até se encaixar em uma definição moral da “boa democracia”. Martin Luther King dizia que a paz não é ausência de conflito, é presença de justiça. Este conceito é completamente subvertido no pacifismo movido pela mão forte da ditadura.

A democracia é um direito do povo em todos os países, e não uma prerrogativa de algumas nações. Se um país é democrático, isso deve ser julgado por seu povo, não ditado por um punhado de forasteiros. Se um país é democrático deve ser reconhecido pela comunidade internacional, não arbitrariamente decidido por alguns juízes auto nomeados. Não existe um modelo fixo de democracia; ela se manifesta de muitas formas. Avaliar a miríade de sistemas políticos no mundo com um único critério e examinar diversas estruturas políticas com regras monocráticas são, em si, atitudes antidemocráticas.

No mundo ricamente diversificado, a democracia vem em muitas formas. A democracia da China está prosperando ao lado de outros países no jardim das civilizações. A China está pronta para contribuir com sua experiência e força para o progresso político global por meio da cooperação e do aprendizado mútuo. A ideia é que você pode chamar de democracia se conseguir convencer as pessoas de que é democracia. E isso pode ser feito num regime de partido único, cada vez mais fechado ao mundo exterior, com inúmeros mecanismos de controle social de última geração.

O mais ousado é a proposta de ajudar outros países a consolidar seus regimes e dar um jeito de também chamar de democracia. Além dos efeitos práticos, é uma narrativa que pega e pode contaminar inclusive o mundo democrático. Se cada um criar sua versão de democracia e contestar a legitimidade de todas as instituições democráticas, tudo passa a poder ser chamado de democracia. Se nada é suficientemente democrático, tudo também pode ser democrático em alguma medida, sempre buscando melhorar.

Ainda há muito a se analisar sobre este documento, mas parece uma tese que tem tudo para se espalhar, sobretudo diante das crises institucionais nas grandes democracias mundiais. O assustador é que estamos tão consumidos pelas crises que criamos onde existe democracia que nem atentamos para as tentativas de demolir cada suspiro democrático.

Direito à identidade é o menos protegido no universo digital, mostra levantamento da Neurorights Foundation

Quando se fala em direitos e algoritmos, no que imediatamente a gente pensa? Nos preconceitos embutidos nos algoritmos. Eu também penso nisso, influenciada pela literatura que consumo e pelos documentários que vejo.

Hoje, algoritmos decidem muitas coisas práticas na vida das pessoas. Como a gente imagina que eles não erram, decisões injustas acabam não sendo corrigidas. O caso mais conhecido é o que virou documentário na Netflix sobre reconhecimento facial.

Os sistemas aprendem com o banco de dados que é fornecido a eles. A maioria dos programadores é de homens brancos, portanto a precisão nesse segmento da população é maior. Há erros em mulheres, negros e maior ainda em mulheres negras. Isso prejudica atos corriqueiros da vida de muita gente.

Outro caso famoso é o apontado pelo fundador da Apple, Steve Wozniak. Ele e a mulher são casados em comunhão de bens e têm o mesmo patrimônio. Ambos abriram conta em um banco de bilionários. Os cartões e o limite dela vieram menores sem nenhuma justificativa.

Eles pesquisaram e verificaram que o mesmo acontecia com várias mulheres. Era um vício do algoritmo. Na vida de uma bilionária talvez não faça tanta diferença. Na vida de uma mulher que depende daquele dinheiro para fechar o mês pode ser algo bastante grave.

Ninguém determinou que o algoritmo desse menos crédito a mulheres. A forma como o preconceito se expressa é muito mais complexa. O algoritmo aplicado nesse tipo de política precisa expressar a sociedade que queremos mas acaba espelhando a sociedade que somos.

Trocando em miúdos, o computador recebe os exemplos do tipo de cliente que tem determinado volume de crédito. É realidade que o sexo masculino hoje em dia tem essa predominância. Se não houver uma ressalva na programação, o computador pode entender que o sexo é um critério para definir o crédito. 

Ocorre que este é um dos direitos neurais mais bem protegidos hoje em dia. Parece assustador, mas não é. Se passamos a enxergar o problema e damos a ele a atenção que merece, as soluções começam a aparecer. 

A Neurorights Foundation acaba de lançar um relatório de acompanhamento de respeito aos Direitos Neurais em todo o mundo, principalmente no nível das legislações internacionais. Sabe qual é o direito menos protegido? À identidade. Talvez ele nos pareça tão seguro que ainda não nos demos conta do risco.

Há alguns meses, fiz um longo artigo para o Instituto Montese falando detalhadamente sobre o que são e quais são os cinco Direitos Neurais:

  1. Direito à identidade, a habilidade de controlar a própria integridade física e mental.
  2. Direito de ação, ou a liberdade de pensamento e vontade para escolher as próprias ações.
  3. Direito à privacidade mental, a habilidade de manter seus pensamentos protegidos contra a revelação a quem quer que seja.
  4. Direito a acesso justo a reforço mental, garantia de que o acesso aos benefícios das melhorias da capacidade mental e sensorial por meio da neurotecnologia sejam distribuídos de maneira justa entre a população.
  5. Direito à proteção de vieses dos algoritmos, a habilidade para garantir que as tecnologias não implementem preconceitos no cérebro de quem as utiliza.

A questão do Direito à Identidade na era digital faz parte da ficção científica dos anos 1990. Na época, fiquei profundamente marcada pelo filme “A Rede”, estrelado por Sandra Bullock.

Ela interpretava uma programadora que recebia um disquete via correio, enviado por um amigo antes de morrer. O material revelava uma grande conspiração para apagar a identidade de pessoas. Se a pessoa não existisse mais no universo virtual, não poderia mais provar que estava viva.

Naquela época, era algo completamente fora de cogitação. Mas hoje não é. Imagine que sumissem todos os dados digitais do mundo, o que sobraria dos seus documentos? Nossos arquivos profissionais, pessoais, contas, comprovantes de pagamentos, declarações de impostos, propriedade, assinaturas e até processos judiciais estão armazenados de forma digital.

E se os documentos não sumissem, mas a autoria fosse trocada? Seria uma confusão sem precedentes. Mas, se acontecesse com todo mundo ao mesmo tempo, o prejuízo seria menor individualmente. Sim, acredite.

Com todos passando pelo mesmo problema, haveria mais compreensão sobre o evento. Mas imagine que somente uns poucos indivíduos passassem por isso. Quem iria acreditar? Eles estariam sujeitos a realmente perder suas identidades e não teriam como provar.

Esse é o drama do filme, que há quase duas décadas me faz imprimir uma papelada que parece inútil. Continuarei imprimindo enquanto esse filme permanecer na minha cabeça. E, evidentemente, não conto como a protagonista solucionou o drama.

A grande questão é como nós solucionaremos este problema e a primeira ideia é a definição de protocolos digitais. Justamente aí é que reside o erro. Como assim? Explico.

Por que os vieses surgidos com algoritmos são problemas que a humanidade consegue enfrentar com mais facilidade do que ameaças à identidade? Porque eles surgem só com a realidade digital.

Quando a solução para um problema digital está na área digital, ela é mais simples porque mexemos em algo mais novo e mais óbvio. 

Algoritmos que são aplicados em políticas públicas ou privadas são relativamente recentes. Se corrigir a programação conserta essas políticas, problema resolvido. Com a violação ao direito à identidade não é tão simples, infelizmente.

Antes da realidade digital, não havia tantos riscos com relação à identidade. O que poderia apagar a identidade de uma pessoa? Eram hipóteses absolutamente remotas, fantasiosas ou muitíssimo trabalhosas, feitas para casos específicos. 

Isso levou a uma realidade em que não foi necessário definir legalmente com precisão o que é identidade. É por isso que esse direito fica fragilizado na era digital. Como não existe uma definição precisa para ele, entra num limbo.

Vamos a alguns exemplos dados pela Neurorights Foundation. Um dos principais Direitos Neurais é o direito à consciência. Para nós parece algo bem claro. Tente definir objetivamente. Não é tão fácil.

Ocorre que isso jamais foi feito. Nos protocolos internacionais que falam de direitos individuais e individualidade não temos nada que defina objetivamente o que é a consciência. Quando não havia instrumentos que manipulassem a consciência humana, não parecia necessário. Agora há.

O que é a sua identidade? Não é o seu RG nem os seus outros documentos, é algo bem mais complexo e profundo. E todos nós temos direito a tudo isso, que nada seja violado e que tenhamos nosso sigilo de consciência protegido.

Como fazer isso num mundo em que há ferramentas de violação de sigilo de identidade e consciência mas não há definições legais do que são identidade e consciência?

Passemos a algo ainda mais delicado, as crianças, que são seres humanos em formação e dotados de dignidade e consciência. O que seria a identidade e a formação da identidade protegidas legalmente? Precisamos definir, a tecnologia não para.

Em países como Rússia e China as definições já estão feitas pelos governos. Os dados pertencem ao Estado, não aos indivíduos. Você pode concordar com a decisão ou discordar dela, mas foi tomada.

Nas grandes democracias ocidentais há um vácuo perigoso. Em tese, os dados pertencem aos cidadãos. Não há, no entanto, nenhuma garantia de posse desses dados e nenhuma penalidade para a tomada deles.

Verdade seja dita, o problema é que não existe sequer a definição do que são exatamente esses dados. Isso complica demais o cenário.

Parece razoável imaginar o que seja a sua identidade e o que significa invadir a sua identidade. Ocorre que não existe essa definição, então as brechas são infinitas.

Uma das principais preocupações da Neurorights Foundation já se converteu em um processo gigantesco contra o Google no Reino Unido sobre dados de saúde. Quanto dos dados que você coloca em aplicativos de saúde são sigilosos e quanto daquilo pode, por exemplo, ser vendido para o seu seguro de saúde?

Imagine que você baixe um aplicativo que mede quantos passos você dá por dia. Ou até mesmo um aplicativo que controle sua pressão arterial. Não há regras claras sobre o que pode ser compartilhado ou não. 

Você aceita termos de uso do aplicativo. São aquelas letras pequenas em que a gente sempre digita sim sem ler. De repente, o aplicativo some, você não acha mais, esquece do assunto, vida que segue.

Um dia você vai fazer um seguro e aquela empresa comprou todos os dados do aplicativo. Por causa daqueles dados você tem uma recusa ou terá de pagar um preço muito superior ao que seria o preço padrão para você. Isso é justo ou é uma violação?

Em tese é uma violação. Na prática, ainda não sabemos. Muitas pessoas já enfrentam esse problema na vida real e cada uma tem de lutar por si, não há soluções prontas.

A tecnologia já avançou. O mundo que imaginamos ser da ficção científica já chegou, mas a regulamentação não acompanhou essa velocidade.

A tentativa de acompanhar foi falha. Ainda tentamos regular os novos dispositivos, novas tecnologias digitais e novas invenções. É um erro monumental.

Definir com mais precisão os direitos e valores humanos que precisamos proteger nunca foi tão urgente. A Neurorights Foundation advoga que a ONU tome a dianteira no processo. 

Muitas empresas de tecnologia têm feito sua parte adotando princípios éticos, mas eles são descentralizados e voltados para os negócios de cada uma delas, não para princípios universais.

“Em última análise, os tratados internacionais de direitos humanos existentes estão atualmente despreparados para proteger Direitos Neurais. No entanto, conforme descrito em detalhes em nossos achados, os rápidos avanços na neurotecnologia não são mais ficção científica – são ciência. É urgente que a ONU desempenhe um papel de liderança globalmente para abraçar essas inovações emocionantes, protegendo os direitos humanos e garantindo a ética no desenvolvimento da neurotecnologia”, prega a Neurorights Foundation.

O mundo todo vive, enquanto isso, uma política polarizada de forma tóxica, inclusive porque os governos são incapazes de proteger os Direitos Neurais. Vamos conseguir acordar a tempo? Espero que sim.

Quando a liberdade depende da capacidade de reação a um ataque ramsomware

Desde que eu soube da existência do ramsomware, esse tipo de crime dominou minha atenção. Não estamos apenas diante de mais um desdobramento da criatividade criminal. Aqui falamos da possibilidade do mundo criminal realmente desequilibrar os poderes estabelecidos e da sociedade civil.

Ramsomware é o sequestro de dados e impedimento do funcionamento de um sistema feito por hackers. Ano passado, fiz um artigo para o Instituto Montese explorando como o equilíbrio entre grandes potências é afetado por essa modalidade criminosa.

Neste artigo, enumero diversos casos ocorridos no mundo, inclusive vários aqui no Brasil. O resgate é pedido em criptomoedas e, no começo, obviamente ninguém quer pagar.

O que garante que o sistema não foi completamente destruído e os hackers vão sumir com o dinheiro? Desde que o primeiro resolveu pagar, temos visto um padrão. Os hackers realmente devolvem o acesso completo a todos os dados. 

Eles poderiam ter muito poder e fazer muito dinheiro retendo os dados e vendendo pouco a pouco, por meio de chantagem. Por alguma razão, não foi essa a escolha. Acabaram montando uma forma de empreendimento criminoso que movimenta bilhões anualmente.

Diversas empresas brasileiras listadas na B3 já tiveram de ficar fora das operações de mercado devido a ataques ramsomware. Está mais perto do que imaginamos. Um número incrível de pequenas e médias empresas relata ter sido vítima dos hackers. Mas elas pagam e o problema some.

O FBI montou uma força especial contra sequestro de dados. Até agora, só se conseguiu recuperar dinheiro de uma das operações, foram milhões de uma empresa privada. Criminosos envolvidos em um punhado de operações foram presos pelo mundo.

O problema é que a criminalidade e a tecnologia têm evoluído muito mais rápido que a capacidade institucional de conter os ataques. 

Isso acontece justamente no momento em que a realidade da tecnologia está mudando o jogo do poder entre os países. O mundo interligado pela internet tem uma dinâmica global, atravessa fronteiras sem apresentar passaporte. Nossas regulamentações são feitas na lógica da soberania nacional. Ainda não encontramos uma equação para regrar o que está na internet.

A tecnologia também muda o equilíbrio de poder entre os países. Você provavelmente lembra da briga do Telegram com o Judiciário do Brasil. Ela é um caso interessantíssimo da nova dinâmica de poder na era da internet.

O Brasil é um país de dimensões continentais com mais de 200 milhões de habitantes e recursos naturais invejáveis. O Telegram vem da Rússia, também um país continental com recursos naturais essenciais para o funcionamento da indústria na Europa. Temos visto isso muito claramente agora com o drama do gás natural durante a invasão da Ucrânia.

Países com grandes territórios, reservas naturais importantes e população significativa sempre tiveram prevalência de poder. Isso até a era da internet.

Vladimir Putin exigiu do Telegram entrega de dados confidenciais dos usuários, tudo dentro das leis russas. Ocorre que isso seria prejudicial à competitividade mundial da empresa. O dono resolveu não ceder os dados.

Numa dinâmica analógica, a empresa estaria sem saída. Desobedecer uma grande potência significaria ficar fora do mercado. Mas a era digital vem com uma nova dinâmica, muito familiar para quem é fã de teoria dos jogos.

Agora, quem tem o poder de criar regras pode se equiparar a quem conquista o poder por tamanho de território, população e recursos. Basta garantir que os recursos privados fornecidos mundialmente não sejam afetados por regulações incômodas para a empresa.

O Telegram resolveu mudar sua sede para o minúsculo e poderoso universo dos Emirados Árabes Unidos. A sede foi colocada ali. O governo local garantiu as operações legalizadas da forma mais conveniente para o empreendedor.

Potências gigantescas como Rússia, China e Irã reagiram. O Telegram foi proibido nos três territórios, todos controlados por fortes ditaduras. 

Espere que já chegaremos ao ramsomware e liberdades individuais. Vamos prosseguir aqui pelos empreendimentos, legais ou legalizados em pequenos territórios.

Com a regra garantida e válida pelos Emirados Árabes Unidos, o Telegram continuou operando com o mesmo público de antes. Os serviços de inteligência do Irã já admitiram que a maioria da população usa o Telegram, mesmo que ele seja proibido.

A Rússia de Putin resolveu legalizar o Telegram de novo. Não era uma opção proibir, as pessoas efetivamente usavam o serviço. Melhor legalizar e não perder poder. O Partido Comunista Chinês já diz oficialmente que o Telegram é proibido, mas se for por VPN, então pode usar.

Obviamente pensamos no Telegram como algo legalizado, um serviço que não tem nada de criminoso. Mas, pelos olhos dos governos da Rússia, China e Irã, ele era criminoso.

Abrigado pelas regras do minúsculo território dos Emirados Árabes Unidos, ele passa a se impor e forçar uma legalização mesmo dentro de grandes potências ditatoriais. 

Imagine um serviço que, para a nossa lei e nossa moralidade, seja visto como criminoso. Sim, o ramsomware desfruta da mesma prerrogativa que o Telegram.

Se um único e minúsculo país permitir em seu marco legal que os sequestradores de dados possam operar legalmente, eles podem agir no mundo todo. 

Agora vamos a um passo além, um caso real que foi acompanhado de perto pelo site Giro Latino: quando criminosos inviabilizam um governo soberano de um país. Acaba de acontecer na Costa Rica.

No último dia 18 de abril, o país anunciou o sequestro de uma gigantesca base de dados do sistema tributário e do sistema aduaneiro. Foi como uma derrubada de peças de dominó. 

Em seguida, vários outros sistemas saíram do ar. Eram questões importantes, como a administração da previdência da Costa Rica e o Instituto Meteorológico Nacional. Todos os sistemas centrais para o funcionamento do governo central simplesmente sumiram.

O momento político não poderia ser mais crítico. O governo havia mudado de mãos justamente naquele momento. Carlos Alvarado, político de esquerda, perdeu as eleições para o direitista Rodrigo Chaves. Não houve grandes atritos entre os dois.

Alvarado logo reconheceu a vitória popular de Chaves e decidiu instaurar um governo de transição. Foi então que os dados simplesmente desapareceram e não havia o que fazer na tal da transição.

O sumiço dos dados foi atribuído ao grupo Conti, famoso conglomerado russo de ramsomware. A Rússia tem abrigado quadrilhas bilionárias que operam em diversos países. Eles não atacam alvos russos e, por outro lado, não enfrentam risco de extradição.

A chantagem com a Costa Rica extrapolou todos os níveis de deboche das gangues de ramsomware. Os criminosos ofereceram 35% de desconto no resgate se ele fosse pago até dia 23 de abril. 

Além disso, fizeram uma ameaça velada ao setor privado do país. “Prometemos não tocar no setor privado da Costa Rica, tratamos com respeito o empresário desse país e pedimos que convençam o Governo a nos pagar”, disse o grupo criminoso nas redes sociais.

A pequena Costa Rica ficou refém da crise mundial. O grupo de ramsomware que sequestrou os dados do país em plena transição democrática também anunciava apoio total a Vladimir Putin na invasão da Ucrânia.

Como reagir a uma situação dessas? Não há parâmetro diplomático que dê conta de tantas variáveis e tantas ameaças. 

Fosse um país com o tecido social esgarçado, os criminosos teriam mais poder que as autoridades estabelecidas, tanto a que sai quanto a que chega. 

A Costa Rica decidiu que não vai pagar. Agora os criminosos ameaçam revelar publicamente todos os dados sigilosos que estavam nos sistemas do governo. 

Além disso, invadiram os sistemas de inteligência de um país próximo, o Peru. Estamos definitivamente num novo patamar da atuação dos grupos criminosos de ramsomware.

Chegou um momento em que miraram pequenas nações e ameaçaram usurpar o poder político e institucional. Tentaram colocar o empresariado contra as instituições de seus países. 

A Costa Rica é o tipo de país pequeno que poderia ganhar poder usando sua soberania para garantir a operação global de grupos econômicos. Na prática, ela virou refém de um grupo que se ancora em uma grande potência para atacar o poder institucional de pequenas nações.

Não prosperou a aposta no divisionismo interno. Rodrigo Chaves será empossado no próximo dia 8 de maio, diante de uma das crises mais desafiadoras do governo da Costa Rica. Pelo menos não está refém de um grupo criminoso.

Ataques do tipo ramsomware não são feitiçaria, são tecnologia. Podem ser muito potentes, mas saber como reagir diante dos primeiros sintomas também é eficiente para proteger as vítimas. E é justamente neste ponto que está o problema. Impedir esses ataques não parece ser prioridade em muitos países e em muitas empresas.

Uma pesquisa feita nos Estados Unidos com médias e pequenas empresas mostra que 75% delas teriam de fechar caso sofressem um ataque ramsomware. Não estão preparadas para reagir e nem mesmo para estancar.

O mais preocupante é que 30% dessas empresas sequer têm alguma intenção de planejamento para blindagem contra esse tipo de ataque.

Cada vez mais nossas liberdades são garantidas por sistemas digitais. Toda nossa identificação e prestação de contas com as autoridades já estão na internet.

Há um filme de 1995, A Rede, que me marcou muito. É uma programadora representada por Sandra Bullock cuja identidade simplesmente some do sistema.

Se todas as identidades sumissem do sistema de computadores seria o caos. Mas todos nós estaríamos vivendo o mesmo drama e compreendendo as dificuldades de todos. Imagine se só a sua identidade sumisse em um sistema que funciona bem para todos. Ninguém nem iria acreditar na sua história.

Hoje é possível que um grupo criminoso tire um país do ar enquanto todos os outros funcionam normalmente. Quais seriam as consequências caso os demais países desconhecessem ou desacreditassem essa possibilidade?

Reagir a ataques ramsomware passa a ser um requisito básico para a manutenção das liberdades na era digital. Dados são o petróleo do século XXI, ouvimos dizer com frequência. Resta saber se estamos dispostos a proteger os dados tanto quanto brigamos pelo petróleo.