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Paulo Kramer

Sobre Paulo Kramer

Paulo Kramer é cientista político, com doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Mantém conta no Twitter em homenagem aos pensadores liberais Alexis de Tocqueville e Max Weber. É autor do vol. 65 da coleção Perfis Parlamentares, dedicado ao homem das diretas-já!, Dante de Oliveira (Edições Câmara)

Reequilíbrio Comercial, Corte De Impostos, Desregulamentação: O Novo ‘Sonho Americano’ De Trump2

No meu mais recente podcast para o portal do Instituto Monitor da Democracia, em entrevista ao nosso presidente Márcio Coimbra, procurei lançar um pouco de luz sobre a aparentemente errática e sem dúvida volátil política econômica externa do segundo governo Donald Trump. No presente artigo, pretendo prosseguir  nessa reflexão, se possível aliviando o debate de sua forte carga emocional sempre que vem à baila a figura do polêmico presidente que promete fazer a América grande novamente….

Durante os 100 primeiros dias de Trump2, o stop-and-go da sua política alfandegária elevou escalonadamente os direitos de importação sobre as mercadorias  vendidas aos Estados Unidos por todos os seus parceiros comerciais, para, logo em seguida, suspender temporariamente essa majoração, na expectativa de uma ‘pausa para negociações, com a solitária e notável exceção da China,  cujas exportações ao mercado norte-americano continuam taxadas em 145% e que retaliou na mesma moeda, chutando para cima suas tarifas sobre produtos americanos.

O vaivém produziu um frenesi nos mercados, ora derretendo bilhões de dólares em ativos, ora impulsionando  recuperações de preços não menos espetaculares. Até o dia 5 deste mês de maio, as ações das empresas integrantes do índice S&P 500 — quinhentas maiores companhias de capital aberto listadas nas bolsas de valores dos Estados Unidos — acumularam nove dias seguidos em alta, algo inédito desde 2004. O crescimento de 10% em tão pouco tempo cancelou as perdas decorrentes do anúncio do tarifaço por Trump em 2 de abril, data que o presidente batizou de “Dia da Libertação”. Os sinais contraditórios emitidos pela nova política tarifária e a contração do PIB norte-americano em 0,3% no primeiro trimestre de 2025 projetaram um sombra de incerteza sobre os planos de investimentos das empresas, ao mesmo tempo em que reacenderam os temores de uma estagflação.

Para reavivar o otimismo dos empresários e consumidores, Trump e a bancada Republicana no Capitólio negociam um novo pacote de redução permanente de impostos e corte de gastos públicos. Fontes do governo também acenam com a possibilidade de atenuação das pressões tributárias sobre a China, em troca da cooperação de Pequim com a cruzada de Trump contra o ingresso ilegal de fentanyl produzido pela indústria farmacêutica chinesa,  princípio ativo dos opióides que alimentam uma epidemia mortal no seio das camadas mais pobres da sociedade americana.

Com a palavra, o secretário Bessent — Em artigo para o Wall Street Journal, Scott Bessent, o secretário do Tesouro que fez fortuna no mercado de capitais,  procura substanciar a estratégia de relações públicas de seu chefe Trump, visando à restauração da confiança dos agentes econômicos.

Bessent inicia sua argumentação lembrando que, desde a década de 1980, quando teve início a atual etapa de globalização, as desigualdades socioeconômicas na América se acentuaram entre uma minoria de vencedores (empreendedores tecnológicos, banqueiros de investimentos e segmentos profissionais de nível superior nos litorais do Atlântico e do Pacífico) e uma maioria de perdedores (classes média e trabalhadora,  empobrecidas pela liberalização comercial e pela desindustrialização no coração continental dos Estados Unidos). Trump se elegeu para ampliar a participação desses setores desfavorecidos, hoje a espinha  dorsal do seu eleitorado, nas riquezas acumuladas por Wall Street. O tarifaço é visto por Bessent como instrumento essencial  para o reequilíbrio do comércio exterior e a revitalização da base industrial do País, com a criação de mais e melhores postos de trabalho.

O autor cita um paper de 2016, elaborado por três economistas (“China shock”, de David Autor; David Dorn; e Gordon Hanson) que mediram o impacto socioeconômico da liberalização comercial na ‘América profunda’, durante o mesmo período que a China se transformou na fábrica do mundo e superpotência exportadora: os trabalhadores dos Estados Unidos perderam 3,7 milhões de empregos. Nas palavras de Bessent, “milhões de americanos sofreram um declínio absoluto da sua renda real”.

Para virar esse jogo, o secretário do Tesouro propõe uma tríplice estratégia:

( a ) renegociar os termos do comércio global. Isso inclui o tarifaço, mas também a redução das barreiras alfandegárias dos outros países ,  de modo a abrir mercados externos e, ao mesmo tempo, “trazer de volta milhares de postos de trabalho na indústria de transformação”;

( b ) tornar permanentes os cortes de impostos de 2017 (governo Trump1), acrescidos de inovações como a isenção de tributos sobre gorjetas, horas extras e Seguridade Social. Isso significa deixar mais dinheiro nos bolsos dos empresários para investir e dos consumidores para gastar. Lembra Bessent que a lei tributária de 2017 aumentou a renda de 50% dos domicílios da América mais rapidamente do que para os 10% mais ricos.  

Ele calcula que, se os cortes de impostos, programados para expirar no final deste ano, não forem perenizados, a família mediana dos Estados Unidos perderá US$ 4 mil em renda. O novo pacote propõe, ainda, deduções sobre financiamentos para a compra de automóveis _made in USA_, bem como incentivos fiscais para a construção de novas fábricas; e

( c ) desregulamentar/desburocratizar de forma a estimular a produção de tudo na América — de materiais de construção a _chips_ (semicondutores) de inteligência artificial.

Paralelamente ao impulso que dará à prosperidade de patrões e empregados, acredita Bessent, que essa nova estratégia também vai assegurar a dianteira militar dos Estados Unidos vis à vis a China.

As primeiras medidas desburocratizantes decretadas por Trump2, cancelando regulamentos da era Biden, teriam economizado US$ 2.100 para uma família norte-americana com quatro pessoas. Mais: a eliminação de requisitos de compliance, considerados excessivos, para pequenos bancos locais facilitará o acesso ao crédito do consumidor de bens duráveis. Outro objetivo dessa desregulamentação/desburocratização é tornar mais abundante a oferta de energia. Por isso, Trump recentemente decretou “emergência energética” e abriu 1,53 milhões de acres à exploração no Alasca. O preço da gasolina já caiu 50 cents em relação ao ano passado.

Scott Bessent busca contagiar com seu entusiasmo todo o público norte-americano informando que, por dois meses seguidos, as contratações de mão de obra no setor não rural superaram as expectativas, com a incorporação de 177 mil empregos ao mercado de trabalho.

Em suma, a política econômica de Trump2, formatada pelo secretário do Tesouro, promete um forte e duradouro ciclo virtuoso, com mais empregos, reindustrialização acelerada, menores custos de energia, robustecimento da segurança nacional e vitória na competição econômica e militar com os chineses.

Basta agora aguardar o que os parceiros e adversários da América farão para reagir e/ou se adaptar a todas essas mudanças decretadas pelo segundo governo Trump e pela estreita maioria Republicana no Congresso….

Em tempo: no fim de semana de 10 e 11 de maio, em Genebra, Suíça, a China e os Estados Unidos se reuniram pela primeira vez para negociar alternativas ao mútuo tarifaço. O lado norte- americano foi representado por Bessent e pelo embaixador Jamieson Greer (representante comercial da Casa Branca); e o lado chinês, pelo premiê He Lifeng. Do encontro resultou um acordo no sentido de reduzir, drasticamente, por 90 dias as tarifas recíprocas impostas desde o “Dia da Libertação”: os Estados Unidos,  de 145% para 30% sobre os produtos chineses; a China, de 125% para 10% sobre os produtos norte-americanos.

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( * ) Cientista político e _fellow_ do Instituto Monitor da Democracia.

Irã & Hezbollah: Uma ‘dobradinha’ patrono/cliente que ameaça a América Latina

Sempre preferi deixar a colegas deste portal mais experientes e bem-informados do que eu as análises sobre o Oriente Médio. Hoje, porém, vou abrir uma exceção para compartilhar com o distinto público do Instituto Monitor da Democracia minha angústia com informações que deveriam traduzir um alerta: o grupo terrorista libanês Hezbollah, cliente da teocracia iraniana, está transformando nossos países numa retaguarda logística, financeira e, por vezes, ‘operacional’ de sua guerra permanente contra Israel e os Estados Unidos….

A Rand Corporation, prestigioso think tank sediado em Santa Monica, Califórnia, publicou estudo inteiramente baseado em fontes públicas (noticiário de imprensa, artigos acadêmicos, transcrições de notas taquigráficas de audiências do Congresso americano etc) que comprova essa afirmação (**).

Nos anos 90 do século passado, as operações ‘militares’ do Hezbollah deixaram um rastro sangrento na região. Em 1992, num ataque à embaixada israelense em Buenos Aires, 20 pessoas morreram e mais de 200 ficaram feridas. Dois anos depois, também na capital Argentina, o Hezbollah explodiu a sede da Amia-Asociación Mutual Israelita, matando 85 pessoas e ferindo mais de 200 — o mais devastador ataque terrorista nas Américas até o 11 de Setembro de 2001. Também em 1994, a organização bombardeou jato comercial panamenho: todos os passageiros morreram.

Mais recentemente, percalços enfrentados pelo próprio grupo e por seu patrono iraniano no Oriente Médio — queda do regime do aliado Bashar al-Assad na Síria; eliminação do secretário-geral do Hezbollah Hassan Nasrallah e do seu herdeiro presuntivo Hashem Safieddine; e o fortalecimento do apoio dos Estados Unidos a Israel — têm estimulado o Hezbollah a intensificar suas atividades na América Latina (redes de financiamento e apoio logístico, além de operações ‘militares’).

O recrudescimento dessas atividades levaram a Argentina, a Colômbia, Honduras e Paraguai a classificar formalmente o Hezbollah como organização terrorista — atitude infelizmente não acompanhada pelo Brasil, apesar da intensa movimentação de militantes e simpatizantes do Hezbollah na região da Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai) e também na Venezuela, país que compartilha uma extensa fronteira com o Brasil na Amazônia.

Com o desenvolvimento de redes de apoio ‘ativo’ e ‘passivo’ na diáspora libanesa e palestina, a organização estreitou seus laços com o contrabando, o narcotráfico, o comércio ilegal de armas, o tráfico de pessoas, o roubo de identidades, o garimpo ilegal e esquemas de lavagem de dinheiro.

A Rand calcula que de 20 a 30% dos recursos financeiros do Hezbollah provenham dessas atividades ilegais ao redor do mundo, inclusive da América Latina; os outros 70 a 80% provêm diretamente do Irã.

As evidências são abundantes. Em 2008, as atividades colombianas prenderam Chekri Harb, que operava uma rede de distribuição de cocaína, pagando ao Hezbollah uma ‘comissão’ de 12%. Dois anos antes disso, a Colômbia, por meio da Operação “Camel”, já havia descoberto outras operações de narcotráfico vinculadas à organização. Notório é a participação do Hezbollah no mercado venezuelano do ouro. Em 2020, os Estados Unidos conseguiram impedir carregamentos de gasolina iraniana em troca de ouro da Venezuela. 

Testemunhos prestados a comissões e subcomissões do Congresso americano apontam o ativo envolvimento do Hezbollah em operações de fraude documental: falsificação de passaportes, certidões de nascimento, cédulas de identidade e carteiras de habilitação, com a finalidade de facilitar a travessia de fronteiras.

Em 2014, a polícia peruana prendeu militantes da organização por atividades de vigilância de ‘alvos’. Em 2016, na Bolívia, autoridades descobriram um depósito de explosivos do Hezbollah.

Em 2020, outra vez a Colômbia sofisticada rede de lavagem de dinheiro administrada por Ayman Joumaa, que reciclava, em média, o equivalente a 200 milhões de dólares por mês graças a venda de carros usados e ao tráfico de cocaína. 

No Brasil, em 2006, a Polícia Federal deteve elementos da facção criminosa PCC-Primeiro Comando da Capital que negociavam a compra de armas com o Hezbollah. E, no ano retrasado, a PF ‘estourou’ uma célula do grupo terrorista que planejava ataques contra alvos da comunidade judaica.

É bem provável que, à medida que as Forças de Defesa Israelenses escalam sua guerra ao terror no Oriente Médio, alvos das comunidades judaicas em outras regiões se tornem cada vez mais visados, a pretexto de retaliação. 

Dificuldades

A Rand Corporation reconhece que o uso frequente de variados intermediários, entre outras complicações, dificulta o mapeamento e a repressão dessas atividades ilegais. Outra grande dificuldade é colocada pela íntima simbiose entre a organização e o regime bolivariano da Venezuela. A DEA, agência de combate ao narcotráfico dos Estados Unidos há alguns anos identificou o apoio de políticos venezuelanos à emissão de passaportes para o Hezbollah. O Departamento do Tesouro americano descobriu que o empresário venezuelano Fawzi Kan’an e o diplomata Nasr al-Din (encarregado de negócios da embaixada da Venezuela em Damasco, Síria), mais que simples apoiadores, eram militantes do grupo, diretamente envolvidos no treinamento ideológico e militar e no tráfico de armas e narcóticos.

Nos últimos tempos, a parceria Venezuela-Irã/Hezbollah se tornou ainda mais íntima, com a assinatura de acordo de cooperação (2022) que alinhou definitivamente o governo ditatorial de Nicolás Maduro ao chamado “Eixo da Resistência”, formado pelo Irã, Rússia, Coreia do Norte e China. Na prática, essa aliança se concretiza em atividades como o transporte de militantes e itens ilegais nos aviões da estatal Conviasa e o fornecimento de combustível iraniano a navios/tanque da Venezuela.

A diplomacia do Irã também multiplica sua ofensiva de soft power na América do Sul e no Caribe.  Em 2023, as embaixadas iranianas patrocinaram a tradução ao espanhol  e a distribuição do livro de memórias do “líder supremo” Ali Khamenei, que propaga a doutrina do islamismo radical. Centros culturais iranianos hoje se espalham por Cuba, Venezuela, Peru é Argentina. O governo de Teerã também distribui bolsas e oportunidades de intercâmbio acadêmico aos estudantes desses países. Outro braço do soft power iraniano em nações de língua espanhola é a “Hispan-TV”, canal de notícias lançado em 2011, com programação voltada aos decendentes de iranianos e membros de minorias islâmicas.

Com uma infraestrutura de inteligência e segurança muito mais frágil que a dos Estados Unidos — obviamente o alvo prioritário do estudo da Rand e das suas recomendações —, o Brasil e os seus vizinhos estão despreparados para monitorar e, se necessário, reagir a essas atividades do Irã e do Hezbollah, uma série ameaça à nossa segurança e às nossas instituições.

O desafio está lançado: até quando?

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( * ) Cientista político e fellow do Instituto Monitor da Democracia.

( * * ) O documento se intitula “Hezbollah’s networks in Latin America: potential implications for U. S. policy and research” (março de 2025) e foi coordenado pela pesquisadora da Rand Corporation Marzia Giambertoni.

Um olhar “realista”sobre o conflito Rússia x Ucrânia: Entrevista com Marcos Degaut

A mais casual conversa com Marcos DEGAUT equivale a uma aula sobre Geopolítica e Relações Internacionais, sob uma perspectiva realista, gostemos ou não do que ele tem a nos dizer. Degaut, que é mestre pela UnB, Ph D em Segurança Internacional pela University of Central Florida e doutor em Direito Internacional pela UDF, tem mais de 30 anos de experiência no serviço público e já trabalhou como secretário-adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, secretário de Produtos do Ministério da Defesa e secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil-Camex. Por isso, estava ansioso por ouvi-lo a respeito da situação atual e das perspectivas futuras da crise envolvendo Rússia, Ucrânia, Estados Unidos e Europa. Gentilmente, Degaut respondeu às perguntas abaixo. Mas a responsabilidade pela edição final de suas respostas é toda minha. Vamos lá?

1) PK – O acordo Estados Unidos/Ucrânia sobre minerais estratégicos, recentemente anunciado, garantiria a segurança ucraniana contra futuras invasões russas?

MD – O acordo que está sendo desenhado é de natureza comercial e financeira. Não inclui nenhum componente militar, de defesa. O que ele prevê é a exploração, pelos americanos, de terras raras/minerais estratégicos da Ucrânia. Prevê, também, a constituição de um fundo destinado a financiar a reconstrução ucraniana. O presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelensky, desejava incluir essa componente militar, mas o presidente Donald Trump a vetou, pelo menos até o momento. Então, o futuro pacto NÃO oferece à Ucrânia nenhuma garantia contra possíveis novas invasões. Em tempo: considero que o objetivo maior da Rússia é impedir a presença militar ocidental (Otan) em território ucraniano, que o Kremlin encara como seu ‘entorno imediato’ — e não expandir o domínio russo.

2) PK – Ao quebrar o gelo das negociações com a Rússia de Vladimir Putin, estaria Trump enfraquecer a aliança Pequim/Moscou?

MD – Sim. A orientação atual da política externa é de segurança nacional do governo dos Estados Unidos baseia-se na percepção de que o seu principal adversário geopolítico, geoestratégico, é a China. Trump deseja a reinserção da Rússia no sistema financeiro internacional de modo a afastá-la da China, o que envolve a garantia de que a Otan não posicionará suas tropas na fronteira com a Rússia. Essa manobra pode dar certo, até porque a maioria dos generais russos hoje está descontente com a situação de seu país como ‘sócio menor’ dos chineses. Um benefício adicional da reintegração da Rússia ao sistema financeiro internacional é o seu impacto anti-inflacionário: com a revogação das atuais sanções econômicas, o reingresso do gás e do petróleo russos no mercado energético mundial contribuiria para manter a estabilidade geral dos preços. Ao mesmo tempo, isso normalizaria o acesso da Rússia às commodities agrícolas de que ela tanto necessita. Por tudo isso, creio que essa manobra teria, sim, boas chances de sucesso.

3) PK – Como avaliar a solidez do compromisso da Europa Ocidental — especialmente França e Alemanha — para com a segurança ucraniana em face de uma nova ameaça militar russa?

MD – Uma coisa é a legitimidade desse compromisso; outra, muito diferente, é a sua credibilidade na prática, dentro de um prazo viável. Hoje, a Rússia, ao lado dos Estados Unidos e da China, é um dos países que mais gastam com armamentos. A quantidade dos estoques militares russos é muito superior à europeia. Isso para não falar da enorme superioridade dos arsenais nucleares da Rússia em comparação com os da França e do Reino Unido. Mesmo que a Europa comece a investir hoje tudo aquilo que líderes como o presidente francês Emmanuel Macron prometem, sobretudo no atual contexto de déficits públicos na maioria desses países — e na hipótese irrealista de a Rússia nada fazer para incrementar suas capacidades militares —, seriam necessários de 10 a 1 anos e cerca de 800 bilhões de dólares para equiparar esses arsenais…. Onde arranjar tanto dinheiro em meio a uma apertada situação fiscal? Uma coisa é certa: a Rússia não vai ficar esperando de braços cruzados.

4) PK – Podem os ucranianos confiar numa paz duradoura com os russos? Estaria a Ucrânia fadada a se conformar com perda de 20% do seu território para a Rússia como preço da paz?

MD – Volto àquele ponto anterior: a Rússia atual de Putin não é a antiga União Soviética, que estava interessada em exportar a revolução comunista para o resto do planeta. O que a Rússia de hoje quer são fronteiras seguras, o mais longe possível das forças da Otan. Para tanto, o Kremlin considera vital manter sua influência no ‘entorno imediato’: Ucrânia, Belarus etc. Não se trata de invadir, tomar conta desses territórios, mas, sim, impedir a influência das grandes potências ocidentais naquele entorno.

5) PK – Quer dizer que o destino da Ucrânia é jamais vir a se tornar membro da Aliança Atlântica? E da União Europeia?

MD – Da Otan, seguramente, jamais; os russos nunca aceitarão. Para eles, trata-se de uma questão existencial. Já quanto à UE, que é um bloco econômico sem componente militar, não vejo nenhum obstáculo intransponível a uma futura adesão ucraniana.

6) PK – Na sua opinião, Taiwan será a ‘próxima Ucrânia’?

*MD – Vejo aí uma diferença qualitativa muito importante: a Ucrânia sempre foi entendida como uma entidade à parte do território russo, o que contrasta vivamente com o caso de Taiwan, ilha que há séculos foi incorporada ao território da China imperial. Pertenceu ao Japão por 50 anos (1895/1945) e, em 1949, serviu de refúgio ao Kuomintang de Chiang Kai-shek, derrotado pela revolução comunista daquele ano. A República Popular da China exige como condição para o estabelecimento de relações oficiais com qualquer país que este rompa laços diplomáticos com a República da China (Taiwan). Os taiwaneses mantêm escritórios de representação comercial e intercâmbio cultural na maioria das nações, mas embaixadas em um número cada vez menor de países. Na minha opinião, a China de Xi Jinping está se preparando para anexar Taiwan (à força, se necessário); resta saber como o Ocidente reagirá….

7) PK – Lembrando o colapso final da presença norte-americana no Afeganistão (2021), como uma mediação de Trump para pôr fim à guerra Rússia X Ucrânia pode afetar sua popularidade perante a opinião pública dos Estados Unidos?

MD – Mais uma diferença marcante aqui…. Por 20 anos, os Estados Unidos mantiveram forte presença militar no Afeganistão (boots on the ground); vidas norte-americanas foram perdidas. E, no final, material bélico dos Estados Unidos foi abandonado e tomado pelo Taliban. No caso Rússia X Ucrânia, Trump se recusa a enviar soldados para lutar na Europa Oriental. Também já deixou claro que quer desescalar as tensões militares entre russos e ucranianos como prelúdio a um novo contexto que faça sentido comercial, econômico, para as partes envolvidas. Se isso der certo, a popularidade doméstica de Trump será alavancada.

PK – Muito obrigado!

A(s) política(s) externa(s) do Governo Trump2

Em 1971, Graham T. Allison, então jovem cientista político de Harvard, lançou uma obra hoje clássica para os estudos de processos decisórios de políticas públicas. Essence of Decision analisa a tomada de decisões do governo do presidente John F. Kennedy num dos mais dramáticos episódios da Guerra Fria: a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (outubro de 1962). Fotos aéreas da Inteligência dos Estados Unidos revelaram que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares apontados para o território norte-americano, a alguns quilômetros de distância, com o beneplácito do governo comunista de Fidel Castro. Naquele momento, o mundo jamais esteve tão próximo de um holocausto termonuclear.

As cúpulas burocráticas civis e militares do governo Kennedy — Departamento de Estado, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional, Estado- Maior das Forças Armadas — competiam entre si para ‘fazer a cabeça’ do presidente quanto à melhor opção para enfrentar aquele desafio da URSS: conversações diplomáticas? Bombardeio aéreo? Invasão terrestre? Bloqueio naval das águas cubanas? Kennedy optou pela última alternativa. Na sequência, o presidente do Conselho de Ministros e primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita S. Khrushchev acabou cedendo e ordenando o desmonte das plataformas de lançamento dos foguetes. E, num toma-lá-dá-cá à época não divulgado, os Estados Unidos concordaram com a retirada de mísseis da Otan apontados para a URSS..

Allison questionou a ‘falácia da composição’ subjacente ao paradigma do estudo das Relações Internacionais: o modelo do “ator racional unificado” (a União Soviética agiu assim, os Estados Unidos reagiram assado etc), como se todas as decisões emanassem de um estadista onisciente, frio, cem por cento racional, confrontando-o com dois outros. Um deles refletia a queda de braço entre os interesses das diversas organizações governamentais envolvidas; e o outro, a “política burocrática”, ora de competição, ora de cooperação, das autoridades de diferentes repartições. (Em 1999, com a colaboração de Philip Zelikow e graças à divulgação do conteúdo de arquivos diplomáticos e militares soviéticos mantidos sob sigilo absoluto até a implosão da URSS, Allison publicou uma segunda edição de Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, substancialmente revista e ampliada.

No início deste mês de fevereiro, em sua coluna para a Bloomberg, Hal Brands, docente da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais)/Universidade Johns Hopkins, Washington, D. C., e pesquisador do American Enterprise Institute, reforçou a perene validade dos insights allissonianos.

Na visão de Brands, o segundo governo Trump tem não uma, mas cinco diferentes políticas externas, cada uma delas defendida por um segmento da coalizão Republicana hoje no poder e todas dispostas a garantir que os seus pontos de vista prevaleçam no processo decisório.

Em primeiro lugar, vêm os “Falcões Globais”, liderados pelo secretário de Estado Marco Rubio e pelo assessor-chefe de Segurança Nacional Mike Waltz. Esse grupo procura se manter fiel ao desejo de Trump no sentido de renegociar as alianças estratégicas dos Estados Unidos (países membros da Otan, Japão, Taiwan, Arábia Saudita etc), mas permanece convicto de que os desafios colocados pelo ‘eixo autoritário’ Pequim/Moscou/Pyongyang/Teerã só podem ser vitoriosamente confrontados mediante a estreita colaboração com esses e outros parceiros estrangeiros.

Em segundo lugar, Brands aponta a clique dos “Guardiões da Ásia”, capitaneada por nomes como Elbridge Colby, subsecretário de Defesa, e o senador Republicano Josh Hawley, do Missouri. Eles acreditam que o risco cada vez mais eminente de uma guerra com os chineses justifica e exige o redirecionamento dos recursos militares da América, hoje concentrados na Europa (guerra Rússia X Ucrânia) e no Oriente Médio, para o Indo-Pacífico, objetivando fortalecer a proteção de Taiwan diante das cada vez mais frequentes ameaças de invasão transmitidas por Pequim; incrementar os pactos armados já existentes com Austrália e Reino Unido (Aukus) e com Japão, Austrália e Índia (Quad, ou Diálogo Quadrilateral de Segurança); bem como celebrar novas alianças com outras nações da região, igualmente temerosas do expansionismo chinês no Mar do Sul da China, a exemplo das Filipinas e do antigo inimigo, o Vietnam).

Em terceiro lugar está a turma da “América, Volte para Casa!”. O vice-presidente J. D. Vance e a diretora da Inteligência Nacional Tulsi Gabbard (ex-deputada Democrata pelo Havaí) advogam um drástico enxugamento dos gastos e compromissos militares dos Estados Unidos mundo afora em troca de mais dinheiro do orçamento federal para turbinar programas domésticos de bem-estar social (Medicare e Medicaid são dois exemplos).

Em quarto lugar, Brands identifica os “Nacionalistas Econômicos”, destacando os secretários do Tesouro (Scott Bessent) e do Comércio (Howard Lutnick). Esta clique enxerga a política externa sob o prisma dos interesses comerciais dos Estados Unidos: uso, ou ameaça do uso, de barreiras tarifárias e não tarifárias como ferramentas para a abertura de mercados aos investimentos e exportações americanos. Esse grupo se alinha com o interesse de Trump em assegurar a hegemonia dos Estados Unidos em setores sensíveis como Inteligência Artificial e recursos energéticos. Diferentemente dos “Guardiões da Ásia”, os “Nacionalistas Econômicos” privilegiam a dimensão comercial e financeira da rivalidade com a China, em detrimento da dimensão militar.

Por último, mas não em último, a “Linha-Dura do MAGA, encabeçada pelo subchefe da Casa Civil Stephen Miller, se opõe a qualquer tipo de ajuda externa e subordinam a política externa às prioridades de sua agenda doméstica: imigração ilegal, em primeiríssimo lugar.

Sempre segundo Hal Brands, as disputas entre essas cinco facções elevam o grau de imprevisibilidade da política externa e de segurança nacional. Os “Falcões Globais” batem de frente com a “Linda-Dura do MAGA”, no exemplo mais óbvio; ou então, “Nacionalistas Econômicos” e “Guardiões da Ásia” procuram solapar as iniciativas recíprocas.

Ao mesmo tempo, ele aponta zonas de convergência importantes, o que pode abrir oportunidades de alianças táticas entre facções como as dos “Falcões Globais” e dos “Guardiões da Ásia”, ou até mesmo destes com a clique da “América, Volte para Casa”, ao menos no que respeita à redução de compromissos militares na Europa e no Oriente Médio….

Ao fim e ao cabo, o professor adverte as autoridades da nova administração contra o que considera falsas e perigosas soluções, entre as quais a vulgarização dos tarifaços comerciais a ponto de uma orgia protecionista enfraquecer as relações da América com aliados preciosos. Ou então, uma pressão tão descabida sobre a Aliança Atlântica, para que esta assuma parcela maior de responsabilidade financeira na estabilização da ordem internacional, a ponto de mergulhar os Estados Unidos, superpotência indispensável, num imprevisível isolacionismo.

Conflitos Geopolíticos na “Garganta do Pacífico”: o Mar do Sul da China

O Mar da China Meridional, ou Mar do Sul da China (MSC), figura entre as maiores prioridades — e, também, alguns dos mais sérios desafios — do ambicioso projeto de Xi Jinping no sentido de tornar a China ‘grande de novo’.

Com 3,5 milhões de quilômetros quadrados (correspondendo a 22% da massa territorial chinesa) e mais de 250 ilhas, o MSC banha 10 países: a República Popular da China (RPC); Taiwan; Filipinas; Brunei; Malásia; Camboja; Indonésia, Singapura, Tailândia; e Vietnam. Por ali circulam de 20% a 33% do comércio mundial marítimo. Seu subsolo é rico em petróleo e gás, e suas águas abrigam mais de 3.300 espécies de peixes. O MSC é uma das maiores zonas produtoras de pescado do mundo, fonte importante de segurança alimentar para as nações litorâneas. Seus muitos pontos de estrangulamento, como os estreitos de Luzon e de Taiwan, aliados ao volume de interesses econômicos e militares em jogo, valeram-lhe o apelido de “Garganta do Pacífico”. Em caso de conflito militar bloqueando o Estreito de Malaca, entre a Indonésia e a Malásia, todo o seu tráfego marítimo teria que ser redirecionado para o sul da Austrália, com enormes custos adicionais para o comércio mundial e incalculáveis prejuízos para Taiwan, Singapura e outros países da região.

Por sua importância, os Estados Unidos advogam plena liberdade de navegação para as frotas mercantes e de guerra que singram o MSC, o que se choca frontalmente com as pretensões chinesas. As informações a seguir constam da excelente e atualíssima obra do jornalista Chun Han Wong, Party of One: the Rise of Xi Jinping and China’s Superpower Future (New York: Simon & Schuster, 2023). Nascido em Singapura e fluente tanto em inglês quanto em mandarim, ele trabalhou na sucursal chinesa do Wall Street Journal entre 2014 e 2019, quando teve a renovação de suas credenciais profissionais negada pelas autoridades de Pequim, que se indignaram com suas reportagens sobre as fortunas amealhadas pela oligarquia comunista, aí incluída a família de Xi.

Ainda na década de 1940, quando o Kuomintang dominava o continente, o governo do generalíssimo Chiang Kai-shek divulgou uma mapa que proclamava a soberania chinesa sobre a maior parte do MSC. Depois da vitória da revolução liderada por Mao Tsé-tung (1949), o regime comunista consolidou aquele ‘traçado’, estendendo suas pretensões a limites que até hoje alimentam atritos com seus vizinhos. Exemplos: com o Japão, a leste, por causa das ilhas Senkaku (ou, em chinês, Diaoyu); e com Filipinas, Malásia, Brunei e Taiwan, ao sul, pela ocupação das águas e das ilhas Spratly e Paracel.

Citado por Chun Han Wong, o pesquisador Gregory Poling, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (Washington, D. C.), aponta o interesse de Pequim em cobrir suas reivindicações sob um véu de ambiguidades, a fim de confundir as conversações com representantes dos países vizinhos (somada aos chineses, a população dessas nações do litoral do MSC ultrapassa a marca dos 600 milhões de habitantes). Será que o mapa dos chineses reflete suas pretensões soberanas sobre acidentes terrestres, como as ilhas Spratly e Paracel? Ou será que ele considera aquelas águas como parte do mar territorial chinês? Ou será, ainda, que ele envolve a reivindicação de direitos de exploração econômica escorados em antecedentes históricos?…

Enquanto, os diplomatas estrangeiros se entregam ao desvendamento desses enigmas, a China constrói ‘ilhas’ sobre os arrecifes, de modo a assegurar a eficácia de suas reclamações com quartéis, pistas de pouso, sistemas de defesa antiaérea e antinaval, entre outros ‘testemunhos’ do seu poderio militar.

Os elefantes, o capim e a ‘pergunta de um milhão de dólares’:

O governo americano e os governos daqueles países litorâneos do MSC encaram tudo isso como uma violação do arcabouço jurídico liberal que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sustentou o sucesso econômico da região. Eles alegam que a RPC querem substituir esse arcabouço por um descarado recurso à ‘lei do mais forte’….

Assim, em 2016, o governo chinês declarou “nulo” um veredito da Corte Internacional de Justiça, de Haia, principal tribunal das Nações Unidas, o qual determinava o cancelamento dos planos de construção de ilhas artificiais, por solicitação dos governos de cinco países do Sudeste Asiático. Essa atitude de desafio se prevaleceu do poder de barganha decorrente do comércio da China com aquelas nações e também da tática de Pequim, que consiste em jogá-las umas contra as outras. Isso, até hoje, tem impedido uma resposta unificada da Associação das Nações do Sudeste Asiático-Asean aos arreganhos da RPC. O bloco, composto de 10 membros, toma suas decisões por consenso, e pelo
menos dois deles (Camboja e Laos), dada a sua dependência em face dos investimentos e empréstimos negociados no marco da Nova Rota da Seda, ali atuam como dóceis ‘clientes’ da China.

Afinal, como adverte a sabedoria popular do Extremo Oriente, quando os elefantes brigam, o capim sofre, ao que, em de seus pronunciamentos, o pai-fundador de Singapura, Lee Kuan Yew (1923-2015, primeiro-ministro entre 1965 e 1990), acrescentou: “Quando eles flertam, o capim também sofre. E, quando fazem amor, aí então é um desastre!…”

De qualquer maneira, o repto chinês à estabilidade geopolítica e econômica na região do Indo-Pacífico, cada vez mais, vem suscitando reações de potências regionais que compartilham as preocupações de segurança dos Estados Unidos, a exemplo do pacto militar trilateral entre americanos, britânicos e australianos (AUKUS) e o Diálogo Quadrilateral (Quad), em cujo marco Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália têm recebido apoio crescente dos governos da Coreia do Sul, do Canadá, do Vietnam e da Nova Zelândia.

Neste ponto, a ‘pergunta de um milhão de dólares’ que o mundo se faz é: qual o futuro desses arranjos estratégicos destinados a conter o expansionismo chinês durante o segundo mandato presidencial de Donald Trump?

A nova Rota da Seda e a armadilha da dívida externa

Em novembro último, durante a cúpula do G20, no Rio de Janeiro, os governos da China e do Brasil assinaram 37 acordos em diversas áreas, como agricultura, mineração, comércio, infraestrutura, ciência & tecnologia etc. A China importa do Brasil minério de ferro, soja, carne e petróleo, entre outras commodities, indispensáveis para a suas indústrias e a sua segurança alimentar. Ela é o nosso principal parceiro comercial, e somos um dos poucos países do mundo com superávit na balança comercial bilateral.

A caminho do Rio, Xi Jinping participou de outra cúpula, a da Apec (Cooperação Econômica Ásia/Pacífico), na capital peruana, lá aproveitando para inaugurar a primeira etapa de construção do Porto de Chancay, distante 70 quilômetros ao norte de Lima. Esse será, dentro de pouco tempo, o primeiro complexo portuário sul-americano, cujo controle é 100% da estatal marítima chinesa Cosco Shipping Co. As obras foram iniciadas há oito anos, e os investimentos totais estão calculados em 3,4 bilhões de dólares. Chancay faz parte da Nova Rota da Seda (NRS), estratégia de interconectividade infraestrutural — transportes, logística, telecomunicações etc — destinada a ajudar a China a se transformar na maior potência mundial. Pelo novo Porto, navios mercantes chineses descarregarão uma infinidade de produtos manufaturados e levarão de volta matérias-primas preciosas como o lítio, o cobre e, também, a soja, inclusive aquela cultivada no Brasil. O complexo em construção permitirá aos cargueiros da China uma economia de tempo (12 dias) e muito dinheiro. Hoje, as mercadorias sul-americanas precisam subir até o México para transbordo em portos como o de Manzanillo antes de serem embarcadas rumo ao “Império do Meio”. A essa vantagem locacional, junta-se outra, igualmente valiosa: o grande calado (profundidade) da baía de Chancay possibilita a ancoragem de supercargueiros com capacidade para 24 mil contêineres.

Em toda a América Latina, a China vem fazendo negócios bilionários e influenciando pessoas importantes, o que deixa preocupados os Estados Unidos, cuja hegemonia na região nunca tinha sido seriamente contestada. Não é de hoje que políticos americanos como o senador Marco Rubio, Republicano da Flórida, que acaba de ser escolhido por Donald Trump para comandar o Departamento de Estado, procuram alertar o establishment e a opinião pública do seu país para o crescimento da influência da República Popular da China — e de sócios menores desta, como a Rússia —, com riscos para o interesse nacional dos Estados Unidos.

Em 2019, na primeira administração Trump, o então secretário de Estado Mike Pompeo acusava a China de usar os projetos e obras da NRS para expandir sua influência não só na América Latina, como também na Ásia, na África e até em países da Europa Ocidental, como a Itália.

Da parte dos governos latino-americanos, considero, à primeira vista, legítimo buscar parcerias econômicas extracontinentais com a finalidade de minimizar carências históricas (materiais e sociais) às quais Tio Sam raramente se sentiu solidário na prática. Ainda assim, penso que a aproximação entre governos latino-americanos e Pequim mereceria ser avaliada com o devido cuidado, uma vez que são cada vez mais frequentes as notícias a respeito de consequências negativas que vários projetos da NRS estão acarretando para os interesses e a própria soberania de outros países.

Laos

O já citado Pompeo declarara que o regime comunista chinês utiliza práticas opacas, predatórias e corruptas de modo a forçar parceiros economicamente mais fracos a contrair dívidas impagáveis, ameaçando-lhes a segurança mediante o controle de infraestruturas críticas (ferrovias, rodovias, portos e usinas de energia elétrica). Pequim, segundo Pompeo,  seleciona prioritariamente como seus ‘alvos’ governos que terão dificuldade para honrar os empréstimos concedidos pelos grandes bancos estatais chineses, o que acaba obrigando os inadimplentes a ceder seus ativos aos credores.

O exemplo do Laos, no Sudeste da Ásia,  já ficou mundialmente conhecido. Ali, os investimentos totais chineses somam 6,7 bilhões de dólares. Desejoso de modernizar sua precária infraestrutura, o regime comunista daquele pequeno país recorreu ao Eximbank chinês para a construção de uma ferrovia ligando a cidade de Boten, na China, a Vientiane (capital laociana). Paralelamente, o governo tomou empréstimos no valor de 600 milhões de dólares para a construção de usinas hidrelétricas ao longo do rio Mekong. Em 2020, com dificuldade para saldar o financiamento, o Laos teve que ceder 90% das ações de sua empresa estatal de transmissão de energia à China. Hoje, se quiser, Pequim poderá cortar o abastecimento de luz e força a todos os domicílios e empresas laocianos.

Sri Lanka

O governo do veterano ex-presidente e ex-primeiro ministro Percy Mahendra “Mahinda” Rajapaksa foi obrigado a renunciar diante de violentos protestos populares motivados pelo descontrole inflacionário. No poder, Rajapaksa obtivera financiamento do Eximbank da China em valor superior a 1 bilhão de dólares para a construção do porto de Hambantota. Antes disso, o governo da Índia e o Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB) tinham sido sondados, mas ambos recusaram a solicitação do Sri Lanka por duvidarem da viabilidade econômica do projeto. Os chineses toparam a empreitada, mas os cingaleses tiveram que aceitar taxas de juros anuais de 6,3%, muito mais elevadas que as de 3% a. a. do ADB.

A passagem do tempo confirmou as previsões pessimistas quanto à rentabilidade da obra. Em 2017, durante período em que Rajapaksa não estava no governo, o Sri Lanka arrendou Hambantota à China Merchant Port Holdings por 99 anos. Com o 1,12 bilhão de dólares recebido pelo arrendamento, o governo cingalês pagou suas dívidas para com credores ocidentais, mas não conseguiu saldar seus compromissos com a China.

Malásia

Durante a década passada, o então primeiro-ministro Najib Razak teve que recorrer à assistência financeira chinesa para cobrir o desfalque bilionário que Razak e seus parceiros deram contra o fundo soberano 1MDB. Os megaprojetos que o governo malaio de então ofereceu à China incluíam o Anel Ferroviário da Costa Oriental (ECRL); a ferrovia de alta velocidade Bangkok (Tailândia)/Kuala Lumpur (capital da Malásia); um oleoduto; um gasoduto; e a exploração de um território federal com o objetivo de transformá-lo em hub turístico e financeiro.

Pequim, com sempre, quis se aproveitar da frágil situação malaia impondo pesadas condições na negociação dos contratos. A população, cada vez mais descontente com essas condições, com a prática chinesa de importar grandes contingentes de mão de obra patrícia para trabalhar nos projetos e também com as seguidas revelações de corrupção, foi às ruas para exigir a destituição de Razak e a suspensão ou anulação de vários contratos.

O portal independente “BRI Monitor”, que publica dados e informações atualizados sobre as falhas de transparência, regulação e governança dos projetos da NRS, foi a minha principal fonte para este artigo.

Em suas investidas diplomáticas que visam reescrever as regras liberais do sistema econômico e político internacional até hoje sustentado pelo poderio dos Estados Unidos, Pequim usa e abusa de uma retórica pró-desenvolvimento soberano das nações do chamado “Sul Global”. Casos como os que eu acabo de relatar revelam a NRS como estratégia tão-somente voltada a redirecionar a dependência desses países, deslocando-a do Ocidente para a China no comando de um ‘eixo revisionista’ também integrado por Estados párias como Rússia, Irã e Coreia do Norte. Que isso sirva de advertência ao Brasil e a nossos vizinhos latino-americanos hoje hipnotizados pelo vislumbre dos ‘negócios da China’.

O Encolhimento da População: Desafio Mundial

Para _baby boomers_ como eu, que cresceram lendo nos jornais ou ouvindo os comentaristas da TV vaticinarem que a “explosão demográfica” representaria a maior ameaça ao futuro da civilização — comparável ou quiçá mais tenebrosa que uma guerra nuclear —, o recente artigo do demógrafo e economista americano Nicholas Eberstadt em _National Affairs_ (novembro/dezembro de 2024) soa como uma retumbante ‘implosão’….

Segundo Eberstadt, pela primeira vez na história da humanidade desde a Peste Negra do século XIV, “a população do planeta irá declinar” (o número de óbitos superando o de nascimentos). Só que agora não mais por causa de uma doença mortal transmitida pelas pulgas que infestam os ratos, mas, sim, em razão de “escolhas” humanas.

A nova tendência de despovoamento do mundo segue-se a um longo e impressionante período de crescimento populacional: nos 700 anos posteriores à Peste Negra a população da Terra se multiplicou por 20, tendo quadriplicado no século passado. Agora, sociedades e governos precisam correr contra o relógio para adaptar suas políticas a um contexto de acelerado encolhimento (e envelhecimento) demográfico.

Olhando no retrovisor da história contemporânea, a ‘explosão’ que inquietava nossos pais e avós se devia menos ao aumento do número  de nascimentos por mulher (“taxa de fertilidade”) do que à melhora das condições gerais de higiene e saúde, o que reduziu drasticamente os índices de mortalidade infantil e esticou as expectativas de vida mesmo nos países subdesenvolvidos.

Dos anos 1960 em diante, então, a fertilidade mundial simplesmente despencou. Em 2015, a fertilidade planetária já era a metade da de 1965, fenômeno verificado em praticamente todos os países. Hoje, a imensa maioria dos seres humanos vive em países cuja taxa de fertilidade é inferior ao nível mínimo de reposição populacional (2,1 filhos por mulher nas nações desenvolvidas, ou um pouco mais do que isso naquelas mais pobres, caracterizadas por maior mortalidade infantil ou evidentes desequilíbrios entre os números de meninos e meninas).

Sempre de acordo com os dados coligidos por Eberstadt, em 2019, pouco antes da pandemia da Covid19, dois terços da população global viviam em países cuja taxa de fertilidade se situava abaixo do nível de reposição. Mais recentemente, essa tendência ganhou ainda mais velocidade.

Na Ásia do Pacífico, outrora um caldeirão fervilhante em matéria de crescimento demográfico, hoje, o Japão está 40% abaixo da taxa de reposição; a China, 50%, Taiwan, 60%; e a Coreia do Sul, 65%. Na Tailândia, o número de óbitos já supera o de nascimentos. A Índia, atualmente com a maior população do planeta, também registra significativo declínio de  fertilidade, assim como seus vizinhos Nepal, Sri Lanka (Ceilão) e Bangladesh.

A China, que recentemente perdeu o campeonato demográfico mundial para a Índia, deverá ter sua atual população de 1,4 bilhão de habitantes reduzida à metade daqui a meio século.

Na América Latina, a mesma coisa. Em cidades como Bogotá, capital da Colômbia, e a capital do México, a fertilidade já é inferior a um nascimento por mulher. Enquanto isso, em Cuba (1,1% de fertilidade), o número de mortes já supera o de partos. No Uruguai e no Chile, as taxas de fertilidade são de 1,3% e 1,1%, respectivamente.

Até mesmo no Norte da África e no Oriente Médio, a queda da fertilidade desafia as exortações pró-natalistas do Islã. Em Istambul, na Turquia, a taxa de 1,2 filho por mulher é inferior à de Berlim.

Rússia: desde a queda do comunismo, já houve 17 milhões de óbitos a mais que nascimentos. Em média, os países membros da União Europeia estão 30% abaixo do nível de reportagem (em 2022, a proporção foi de quatro mortes para cada três nascimentos). No mundo rico, os Estados Unidos sobressaem por uma taxa de fertilidade comparativamente elevada: 1,6 bebê por mãe no ano passado. Ainda assim, o birô do censo projeta para o ano de 2080 o início de um contínuo declínio da população americana.

A única exceção à essa tendência global de encolhimento demográfico é a África ao sul do Saara (em média 4,3 filhos por mulher). Contudo, lá também a taxa de fertilidade está 35% abaixo daquela registrada no final da década de 1970.

Se atualmente um quarto do planeta já enfrenta declínio populacional, computando um número de óbitos superior ao de nascimentos, não demorará para que o restante do mundo siga no mesmo rumo.

Variados são os fatores explicativos desse generalizado fenômeno: acesso ampliado aos métodos contraconceptivos, aumento do nível educacional/redução do analfabetismo, crescente incorporação das mulheres ao mercado de trabalho. Mas, até mesmo, nos países menos desenvolvidos, a tendência à despopulação se faz presente: Myanmar (antiga Birmânia) e o Nepal já estão abaixo do nível de reposição. Subjacentemente a tudo isso, como assinala Eberstadt referindo-se à descoberta do economista americano Lant Pritchett, um fator ainda mais fundamental: a opção das mulheres por menos filhos, ou mesmo por nenhum, não importa o que pensem ou queiram seus parceiros ou familiares.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a mulher se situa na  vanguarda de um novo estilo de vida que, em escala mundial, privilegia a autonomia,  a autorrealização acadêmico-profissional, a maternidade ou paternidade  tardia e a preferência de muitas pessoas por se manterem ‘descasadas’, acentuando o declínio de tradicionais valores e normas religiosos e comunitários.

Eberstadt reconhece que são grandes e complexos os desafios de um mundo menos populoso e mais idoso. Um mundo que contará com cada vez menos trabalhadores empresários e inovadores e cada vez mais aposentados, pensionistas e pessoas dependentes de assistência social. Há vinte anos, menos de 425 milhões pessoas em todo o mundo tinham alcançado os 65 anos de idade; daqui a 25 anos, ou menos, esse mesmo número de habitantes do planeta terá 80 anos! Em 2050, a previsão para a Coreia do Sul é de que o país terá três óbitos para cada nascimento; no mínimo, um sexto da população estará com 80 anos de idade ou mais; e haverá 1,2 pessoa em idade de trabalhar para cada idoso.

Esses encargos se afigurarão ainda mais pesados para aqueles países que até hoje não acumularam riqueza suficiente para financiar a avalanche de despesas com bem-estar social. Envelhecerão sem terem se tornado prósperos….

Os deslocamentos geopolíticos condicionados pelo novo panorama demográfico tampouco podem ser desconsiderados. Para ficar num único exemplo, como China, Rússia, Irã e, provavelmente também, a Coreia do Norte, hoje empenhadas em consolidar um eixo de contestação à hegemonia global dos Estados Unidos, poderão concretizar suas ambições a longo prazo se enfrentam profunda e acelerada retração populacional?

Apesar de tudo, Eberstadt conclui seu ensaio numa chave de otimismo moderado e realista. Ao menos, ele acredita que grande parte dos políticos e tecnocratas do mundo inteiro já sabem o que precisam fazer. Por toda parte, os sistemas previdenciários deverão ser reformados, de maneira a prolongar o tempo das pessoas no mercado de trabalho e retardar sua aposentadoria; as estruturas de incentivos (principalmente a tributação) terão que mudar a fim de privilegiar a poupança e o investimento a longo prazo; as famílias, cada vez menores e mais atomizadas, necessitarão contar com suporte do Estado e da comunidade a fim de assegurar conforto e dignidade aos seus idosos; políticas de imigração requererão alterações profundas para garantir suprimento suficiente de capital humano àquelas nações cujo funcionamento econômico estará comprometido pelo predomínio de idosos sem condições de permanecer na força de trabalho.

Acima de tudo, uma macrotransição demográfica capaz de evitar o agravamento das desigualdades e da pobreza em escala global demandará o compromisso de governantes e governados do mundo inteiro com o aumento da produtividade do trabalho (melhorar quantitativa e qualitativamente a produção de bens e serviços por trabalhador, num contexto de baixa disponibilidade de mão de obra). E a chave para esse futuro é uma educação de qualidade, estimuladora da curiosidade, da criatividade, do talento, da iniciativa e da cooperação das crianças e dos jovens — recursos humanos cada vez mais escassos e preciosos. Infelizmente, muitos sistemas escolares, sobretudo em economias   de renda média (a exemplo do Brasil) ou baixa, ainda não conseguem transmitir e fomentar  competências básicas, como a habilidade de ler, escrever e fazer cálculos. Para essas nações, portanto, o futuro de despovoamento e envelhecimento se traduz num cenário sombrio e ameaçador.

Putin amplia as hipóteses de guerra nuclear

“Quão séria é a ameaça da nova doutrina nuclear russa?” Com esse título, Alexander Gabuev,  analista do Fundo Carnegie para a Paz (Carnegie Endowment for Peace), sediado em Washington, D. C., publicou recente artigo em que busca alertar o mundo para as possíveis/prováveis consequências da decisão da autocracia putinista na Rússia de baixar o chamado limiar de nuclearização, ou seja, o patamar a partir do qual os comandantes militares daquele país estarão autorizados a utilizar armas nucleares contra seus inimigos.

Até agora, a doutrina oficialmente adotada pelo Conselho de Segurança russo em 2020, antes,  portanto, da desastrosa aventura ucraniana do presidente Vladimir Putin, previa essa utilização em resposta a um ataque convencional que viesse a colocar em perigo a própria existência do Estado.

A nova versão da doutrina, que Putin deverá sancionar brevemente em forma de decreto, contempla três hipóteses: agressão perpetrada por um Estado inimigo não nuclear, porém apoiado por aliados nucleares; obtenção de informações sobre um ataque maciço de armas aéreas e especiais, combinado com a violação das fronteiras russas; e ataque de armas convencionais às repúblicas da Rússia e de Belarus que implique uma ameaça crítica à soberania de ambas.

Essa significativa  alteração doutrinária é uma resposta direta  às gestões do presidente ucraniano Volodymir Zelensky junto ao governo Joe Biden para que os Estados Unidos transfiram a Kyiv mísseis capazes de penetrar profundamente o território inimigo.

Os comandantes da Otan tem ciência da gravidade desse cenário: muito embora seja quase certo que os ataques ucranianos a Sevastopol com mísseis britânicos “Storm Shadow”, há um ano, só poderiam ter sido desferidos com o sinal verde da Aliança Atlântica, as altas patentes militares da Alemanha relutam em ceder à Ucrânia mísseis “Taurus” de longo alcance.

Moscou, de sua parte, indica que sua inferioridade em equipamento militar e as perdas humanas gigantescas causadas por uma invasão inicialmente prevista, há dois anos e meio, como um ‘passeio’ de tão fácil e rápida agora obrigam a Rússia a apelar para ameaça nuclear.

O governo americano sabe que precisa atender às suas duas maiores prioridades de defesa — em primeiro lugar, a segurança do próprio território dos Estados Unidos; em segundo lugar, a dos seus aliados da Otan — antes de satisfazer os interesses ucranianos. Daí, o cuidado com que Washington conduz discretíssimas gestões com o Kremlin, abaixo do radar da imprensa, de modo a evitar uma escalada até que o armagedom nuclear se torne inevitável, um desfecho que felizmente não se materializou em quase meio século de Guerra Fria.

Em face de tudo isso, Gabuev, do Carnegie, prevê, como desenvolvimentos imediatamente mais prováveis, a intensificação dos ataques por mísseis e drones ucranianos — já que Kyiv expande rapidamente sua capacidade de produzir esses equipamentos  aéreos — e, do lado russo, a multiplicação de represálias, como sabotagem e assassinatos ‘seletivos’ contra países da Otan. A hipótese da transferência de armas sofisticadas da Rússia para inimigos do Ocidente, como a milícia dos Houthis, aliada iemenita dos aiatolás iranianos, também não está descartada (um jeito de obrigar os Estados Unidos e seus aliados a dispersar seu foco e seus recursos militares), mas também implicaria um desafio adicional para Putin: incorrer na má vontade de uma peça vital no tabuleiro diplomático de Moscou — a Arábia Saudita, potência sunita que compete com o Irã pela supremacia  no Oriente Médio.

Com Quem Será? Em busca do(a) Vice de Donald Trump

Até os anos 70 do século passado, os candidatos à vice-presidência dos Estados Unidos eram anunciados ao final das convenções partidárias que oficializavam o número 1 das respectivas chapas.

Mais tarde, como ensina Joel K. Goldstein na importante obra The White House Vice-Presidency: the Path to Significance, Mondale to Biden, de 2016, com a consolidação do sistema de eleições primárias, o desfecho das convenções passou a ser conhecido antes da realização das mesmas, e isso também ‘adiantou’ o processo da escolha do número dois.

Sempre de acordo com  Goldstein, em artigo recente para o boletim “Sabato’s Crystal Ball, do Centro de Política da Universidade da Virgínia, no ano de 1984, o candidato Democrata à Casa Branca, Walter Mondale, que tinha sido vice de Jimmy Carter e acabou ‘tratorado’ por Ronald Reagan quando este conquistou seu segundo mandato, foi o primeiro a revelar quem seria sua companheira de chapa, pouco antes da convenção: a deputada federal por Nova York Geraldine Ferraro.

O que não muda é a busca de um(a) companheiro(a) que possa ‘compensar’ as deficiências do cabeça de chapa em termos demográficos e regionais. Para o pleito de novembro deste ano, a pergunta é: o Republicano Donald Trump, virtual candidato de sua legenda e que se caracteriza por ser um ‘ponto fora da curva’ em quase tudo, seguirá este script? Em 2016, vale lembrar, Trump se manteve fiel a ele, buscando em Mike Pence, ex-governador de Indiana e antigo apoiador do presidenciável texano Ted Cruz, um ‘abra-te, sésamo’ para eleitorado conservador evangélico. Desta vez, porém, não existe a menor possibilidade de a dobradinha se repetir em vista da recusa de Pence, no papel constitucional de presidente do Senado, a seguir seu chefe na feroz contestação dos resultados eleitorais do pleito de 2020, que levou à vitória da chapa Democrata Joe Biden/Kamala Harris.

Poucas dúvidas há de que a personalidade nada convencional de Trump vai se  refletir na escolha do(a) seu(sua) novo(a) companheiro(a) de chapa. O estilo abrasivo do ex-presidente, que, durante as primárias, referiu-se sarcástica e até grosseiramente a competidores como o governador da Flórida Ron DeSantis e a ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora às Nações Unidas (governo Trump) Nikki Haley, alienou de tal maneira esses dois correligionários que ambos já declararam não estar interessados em compor a chapa trumpista. DeSantis chegou a criticar a preferência de Trump por um(a) vice identificado(a) com uma política identitária e ‘lacradora’. O governador do Texas, Gregg Abbot, também já manifestou seu desinteresse.

Se o critério orientador da seleção do vice de Trump for a ideologia, a governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem; o senador pela Carolina do Sul Tim Scott (o único Republicano negro do Senado); e o senador por Ohio J. D. Vance (autor da autobiografia que deu origem ao filme “Hillbilly Elegy”/“Era uma Vez um Sonho”) são nomes fortes. Chances menores, porém nada desprezíveis, teriam a deputada federal por Nova York Elise Stefanik e o senador pela Flórida Marco Rubio, que, em 2016, se declarou desinteressado em ser o vice de Trump. É improvável, agora que seu domicílio eleitoral é na Flórida, que ele escolha para vice alguém do mesmo estado. A emenda constitucional número 12, promulgada em 1804, exige que o presidente e seu vice sejam domiciliados em estados diferentes.

Como já observado acima, porém, naquele ano, Trump, ao escolher seu companheiro de chapa, orientou-se menos pela identidade e mais pela ‘complementaridade’. E, naquela época, antes de se fixar em Mike Pence, o magnata chegara a sondar o então governador de Ohio, John Kasich.

O autor Goldstein lembra que, quando o presidenciável é uma cara nova em Washington, é natural que sua escolha do vice recaia sobre alguém que sinalize experiência política (os Democratas Carter & Mondale; os Republicanos George W. Bush & Dick Cheney). A recíproca é verdadeira se o titular da chapa for uma ‘figura carimbada’ e quiser sinalizar algum ímpeto renovador, a exemplo de Jack Kemp, antigo astro do futebol americano e deputado Republicano reformista por Nova York (vice da chapa do veterano senador pelo Kansas, Bob Dole, em 1996); Sarah Palin, então governadora do Alaska e estrela em ascensão da ala ultraconservadora do GOP (companheira do senador Republicano moderado pelo Arizona, John McCain); e Paul Ryan, então jovem deputado  pelo Wisconsin (na chapa Republicana encabeçada por Mitt Romney, ex-governador de Massachusetts, hoje senador pelo Utah). Rara mesmo sempre foi a seleção de um número dois sem prévia experiência eleitoral. Exceções: Henry Wallace (ex-secretário de Agricultura do Democrata Franklin D. Roosevelt, quando da segunda reeleição deste, em 1940); e o Democrata Sargent Shriver, ex-diretor do Peace Corps, ex-embaixador à França e cunhado de John F. Kennedy (companheiro da chapa encabeçada pelo senador de Dakota do Sul George McGovern), em 1972. A candidatura McGovern/Shriver amargaria um retumbante fracasso: naquele ano, o Republicano Richard Nixon conquistou a reeleição vencendo em todos os estados, à exceção de Massachusetts.

Observe-se que Trump, no pleito de 2016, foi o primeiro presidente eleito sem experiência anterior em cargo público algum (civil ou militar), embora já fosse amplamente conhecido em todo o país, sobretudo graças ao reality show televisivo “O Aprendiz”.

De um modo geral, assinala Goldstein, presidenciáveis Democratas e Republicanos ‘pescam’ seus vices em diferentes águas: os primeiros dão preferência a senadores (foram 16 entre 19 desde 1940); os segundos tendem a selecionar governadores, como Spiro Agnew (Maryland, vice de Nixon na eleição de 1968); Sarah Palin (Alaska, 2008); e Pence (Indiana, 2016). Mas isso não quer dizer que senadores Republicanos nunca tenham concorrido ao segundo cargo mais poderoso do mundo: Nixon (vice de Dwight D. Eisenhower, 1952 e 1956); Bob Dole (vice de Gerald Ford, 1976). Poucas vezes, em contraste com os Democratas, o GOP apresentou candidatos à vice-presidência provenientes de altos escalões do serviço público (Henry Cabot Lodge Jr., ex-embaixador às Nações Unidas e companheiro de chapa de Richard Nixon em 1960, no pleito vencido por John Kennedy e Lyndon Johnson; e George H. W. Bush, ex-diretor da CIA, eleito e reeleito na chapa de Ronald Reagan, em 1980 e 1984).

Os dois grandes partidos quase nunca recorrem à Câmara de Representantes em busca do número 2 (exceções: o deputado William Miller, em 1964, na malograda campanha Republicana de Barry Goldwater, senador conservador do Arizona; e o já citado Paul Ryan, em 2012. Ele e Mitt Romney foram derrotados no pleito que reelegeu os Democratas Barack Obama e Joe Biden.) O último deputado federal eleito vice-presidente foi o Democrata John Nance Garner, companheiro de Franklin Roosevelt quando da primeira eleição deste, em 1932. Assim, se o passado tem alguma serventia como preditor do futuro, escassas são as probabilidades de Trump vir a escolher a deputada Stefanik (NY) ou sua colega do estado da Geórgia e também Republicana Marjorie Taylor Greene.

Seja como for, o(a) futuro(a) vice-presidente de Trump, caso este se eleja novamente, vai encarar desafios (e oportunidades) incomuns. Como a Constituição veda a eleição de um presidente pela terceira vez, consecutiva ou não, seu(sua) companheiro(a) poderá concorrer à Casa Branca daqui a apenas quatro — e não oito — anos. E se Trump, mesmo eleito, vier a ser impedido de continuar na presidência por causa de seus muitos, digamos problemas com a Justiça, o(a) vice virá a sucedê-lo a qualquer momento do próximo quadriênio.

Taiwan: depois da eleição, sinais de alerta

Todo ano, em março, o regime chinês encena as chamadas “Duas Sessões”: paralelamente à plenária do Congresso Nacional do Povo-CNP (poder legislativo nominal exibindo um pluralismo de fachada: oito partidos-satélites permitidos e representantes de numerosas entidades, todos instrumentalizados pela estratégia política de  “Frente Única”, sob supervisão do Departamento do Trabalho de Frente Única do Comitê Central do Partido Comunista da China) reúne-se o Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. O CN-CCPPC, outro instrumento dessa estratégia, reforça a legitimação da supremacia do Partido Comunista, tendo como missão oficial debater, vocalizar e encaminhar propostas apresentadas pelos representantes dos numerosos segmentos da sociedade. Na sequência, o CNP e o governo chancelam essas propostas transformando-as em projetos de lei e diretrizes de política pública. Tudo isso é um cerimonial meramente ‘carimbador’, pois nada é aprovado que não tenha sido previamente proposto e permitido pelos altos dirigentes do PC.

Vértice de uma pirâmide edificada, na base, por “comitês locais” (em níveis de províncias, condados, municipios etc), o Comitê Nacional compõe-se de 2.169 membros, com mandatos de cinco anos. Desse total, 544 representam o PC e os partidos satélites — a exemplo do Comitê Revolucionário do Kuomintang (Partido Nacional do Povo) Chinês e do Partido Democrático dos Camponeses e Operários Chineses, entre outros; 313 são delegados de organizações populares (e.g., Liga da Juventude Comunista, Federação Chinesa dos Sindicatos, Federação das Mulheres da China etc); 1.076 representam grupos de interesse relevantes (agricultura, ciência & tecnologia, educação, artes e literatura, entre outros); e mais de duas centenas pertencem às categorias de personalidades nominalmente “independentes” e “convidados especiais”, entre os quais o ator hollywoodiano chinês Jackie Chan.

Como não poderia deixar de ser, a anexação de Taiwan, meta obsessiva do comunismo chinês, figurou com destaque na pauta do CN. Numa reunião a que estiveram presentes militantes do ‘satélite partidário’ Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês, Xi Jinping, presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido Comunista, exortou os presentes a “contribuir [. . .] ativamente para a união de todos os patriotas — dentro e fora da China; dentro e fora de Taiwan — e o fortalecimento da oposição à independência” da ilha, “expandir o apoio à reunificação e impulsionar conjuntamente a reunificação [. . .]”. Prosseguindo, o orador ressaltou: “Devemos promover ativamente o intercâmbio e a cooperação entre os dois lados do Estreito em ciência & tecnologia, agricultura, desenvolvimento da juventude e outros campos e aprofundar o desenvolvimento integrado de ambos os lados do Estreito”.

Estratégia multifacetada – Na prática, a China vai continuar explorando as fissuras político-sociais na opinião pública taiwanesa, agora mirando o governo do recém-eleito presidente William Lai, que tomará posse em maio.

Lai, que é o vice da atual presidente Tsai Ing-wen obteve uma terceira vitória consecutiva para o seu Partido Democrático-Popular (DPP) no pleito de janeiro último à chefia do Poder Executivo.

Contudo, como alerta o ex-diplomata americano, atualmente pesquisador do think tank Fundação para o Desenvolvimento das Democracias, sediado em Washington, D. C., Craig Singleton, por trás do triunfo de Lai e do DPP, subsistem fragilidades que não escapam ao olhar vigilante e hostil de Pequim.

Para começar, Singleton observa em recente artigo para o portal da revista Foreign Policy, essa vitória foi por maioria relativa (40%), com os restantes 60% divididos entre os candidatos dos dois partidos de oposição: Hou You-yi (Kuomintang-KMT) e Ko Wen-je (Partido do Povo de Taiwan, fundado em 2019). Ambos defendem uma linha acomodacionista em relação à China continental. Já o DPP, muito embora não chegue ao extremo de desafiar Pequim com uma ‘bandeira’ oficial pró-independência, pretende manter indefinidamente a  atual autonomia de facto da República da China, nome oficial de Taiwan.

Comparativamente, tanto em 2016 quanto em 2020, Tsai venceu por maioria absoluta, respectivamente com 16 e 17 pontos percentuais acima da votação obtida agora pelo seu vice.

Ao mesmo tempo, o DPP acaba de perder a maioria no Yuan Legislativo (parlamento), que passará a ser presidido por Hou, do KMT. Enquanto o KMT conquistou 14 novas cadeiras e o TPP, três, o DPP perdeu 10 deputados.    Isso lança uma sombra de incerteza sobre o prosseguimento de projetos importantes da atual administração, como a ampliação do período de serviço militar obrigatório (dos atuais quatro meses para um ano) e o desenvolvimento de um submarino taiwanês.

Consultorias especializadas na análise de redes digitais, como o Doublethink Lab, entre outras, descobriram que, durante a campanha eleitoral, o aplicativo TikTok, controlado pelo grupo chinês ByteDance, divulgou propaganda favorável aos dois presidenciáveis oposicionistas e veiculou desinformação contra o partido do governo, incluindo fake news sobre um suposto apoio do governo Tsai a programas de armas biológicas dos Estados Unidos, o que, aliás, repete propaganda do regime Putin contra a Ucrânia….

A milícia digital da China também criou perfis falsos de portais noticiosos tradicionais, a fim de espalhar notícias inverídicas favoráveis à reunificação.

Outro fator que pode ter contribuído para enfraquecer o desempenho da candidatura Lai foi a ‘guerra de nervos’ representada por longos meses de manobras e ‘exercícios’ militares intimidatórios do Exército de Libertação Popular, imiscuindo-se no espaço aeronaval de Taiwan.

Por último, mas não em último, Singleton nota que, curiosamente, depois das eleições taiwanesas, a revista teórica do PC da China, Qiushi, reproduziu o texto de um discurso proferido por Xi Jinping 18 meses antes, condenando supostas atitudes separatistas de Taiwan à época da visita à ilha de delegação de congressistas dos Estados Unidos encabeçada pela então presidente da Câmara dos Representantes, a deputada Democrata Nancy Pelosi.

Para concluir, tudo indica que o regime de Pequim prosseguirá com suas campanhas de desinformação, manobras militares de intimidação e pressões econômicas sobre os parceiros comerciais de Taiwan, uma estratégia multifacetada visando predispor o povo da ilha favoravelmente à anexação, o que traduziria uma séria derrota para a causa da democracia liberal em todo o mundo.