Todos os posts de Paulo Kramer

Paulo Kramer

Sobre Paulo Kramer

Paulo Kramer é cientista político, com doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Mantém conta no Twitter em homenagem aos pensadores liberais Alexis de Tocqueville e Max Weber. É autor do vol. 65 da coleção Perfis Parlamentares, dedicado ao homem das diretas-já!, Dante de Oliveira (Edições Câmara)

Uma nova (e acidentada) rota da seda

Há dez anos, aproveitando sua visita oficial ao Cazaquistão, o secretário-geral-geral do Partido Comunista chinês e presidente da República Popular da China (RPC), Xi Jinping, lançava a “Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota” — ou, simplesmente, BRI, sigla para Belt and Road Initiative. Trata-se de um ambicioso plano de interconectividade infraestrutural (transportes, logística, telecomunicações etc) destinado a consolidar o papel da China como superpotência econômica mundial. Os projetos e obras dessa nova “Rota da Seda” hoje se estendem para muito além do imediato entorno eurasiático chinês, abrangendo cerca de 150 países no Sudeste da Ásia, na Europa Central, no Oriente Médio, na África das bacias oceânicas do Atlântico e do Índico e na América Latina.

Apesar da falta de transparência quanto à precisa dos investimentos, dos impactos ambientais e sociopolíticos da BRI — afinal, a RPC é uma ditadura de partido único… —, bastam alguns exemplos para nos certificar da magnitude do plano e dos seus problemas: ferrovias expressas China/Europa e Jakarta/Bandung (Indonésia); corredor econômico China/Paquistão (portos, energia elétrica, zonas de processamento de exportações-ZPEs, estradas de rodagem, ferrovias e transporte urbano); centenas de represas no delta do rio Mekong; ferrovia Addis-Abeba/Djibuti (Leste africano), para citar apenas alguns dos maiores empreendimentos programados.

Estimativas especializadas preveem que os investimentos totais da BRI deverão somar até 8 trilhões de dólares (https://bit.ly/).

Maiores desafios

Quase 85% do portfólio de projetos da BRI localizam-se em países que as consultorias internacionais classificam como “de médio a alto risco”. A instabilidade e a segurança reinantes nesses lugares vem cobrando um tributo na forma de vítimas civis (chinesas e locais). Em dezembro do ano passado, cinco executivos de empresas da China ficaram gravemente feridos durante ataque terrorista a um hotel de Cabul, capital do Afeganistão. Outros incidentes do gênero foram registrados no Paquistão, na Tailândia ou no Mali, alguns deles tendo como alvos específicos as embaixadas da China.

Em nações que recebem esses investimentos e sediam essas obras, verificam-se crescentes protestos contra as condições financeiras ‘leoninas’ impostas pelos bancos chineses e consideradas uma debt trap (armadilha de endividamento permanente), bem como uma restrição intolerável à soberania local. A resistência já acarretou atrasos e cancelamentos de vários projetos. No Quênia, a paralisação das obras de uma usina elétrica redundou em prejuízos equivalentes a 2 bilhões de dólares. Em Gana, em fevereiro último, grupos de cidadãos deram entrada  em uma ação judicial contra a exploração de bauxita em uma floresta-área de proteção ambiental.

O desprezo de governos aliados da China e clientes de projetos da BRI por regras elementares de integridade e governança, transparência e responsabilização vem explodindo em escândalos de corrupção. No maior deles, na Malásia, o ex-premiê Najib Razak embolsou, pessoalmente, 700 milhões de dólares e comandou um desfalque contra o fundo soberano malaio totalizando cerca de 4,5 bilhões!  O escândalo paralisou projetos-chave  da BRI na Malásia, como um gasoduto e  o Anel Ferroviário da Costa Leste.

América Latina e Caribe

Neste continente, desde 2005 — muito antes, portanto, do lançamento da BRI —, empresas estatais chinesas contabilizam investimentos da ordem de 160 bilhões de dólares. O comércio com a China já ultrapassa a marca de 315 bilhões, enquanto os empréstimos concedidos pelos bancos estatais chineses perfazem 136 bilhões de dólares. Para a sua segurança alimentar e o abastecimento de suas indústrias exportadoras com matérias-primas indispensáveis, a China investe nos mais diversos ramos da economia latino-americana: minério de ferro, lítio, petróleo & gás, pesca, reflorestamento, logística, para mencionar apenas alguns. Entre os megaprojetos da BRI sobressaem o porto de Chancay e as minas de Las Bambas (exploração de cobre a céu aberto), ambos no Peru; e a ferrovia Maya, no México. No Brasil, estudo do Centro de Desenvolvimento Global da Boston University revela que 16 empresas de energia elétrica, lideradas pelas gigantes estatais chinesas State Grid e China Three Gorges, controlam  quase 10% do consumo nacional (304 usinas somando 16.736 megawatts), operando inclusive no segmento nuclear.

O Ocidente democrático, finalmente, reage

Desde que se tornou o mais poderoso governante do “Império do Meio”, igualando-se a Mao Tsé-tung, Xi Jinping não esconde o seu desígnio de reescrever as regras liberais da economia internacional em uma perspectiva sinocêntrica, com característico desprezo por princípios e valores fundacionais como o respeito aos direitos humanos, a liberdade de expressão e a livre competição política sob o estado de Direito, ameaçando a estabilidade política e militar do planeta com o agravamento da rivalidade com os Estados Unidos e seus aliados ocidentais, em  pontos ‘sensíveis’ do globo como o Mar do Sul da China e o Estreito de Taiwan.

Em boa hora, porém, as democracias avançadas do mundo começam a reagir ao desafio hegemônico chinês. Uma das mais importantes iniciativas nesse sentido é o “Portão Global”, lançado pela União Europeia há menos de dois anos e que prevê investimentos  públicos e privados no valor de 300 bilhões de euros, principalmente no chamado Sul Global (o mundo em desenvolvimento afroasiático e latino-americano). Em dezembro de 2021, ao anunciar a iniciativa, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou: “Por meio da oferta de ampliação da infraestrutura mundo afora, o “Portão Global” pretende investir na estabilidade e na cooperação internacionais. Além disso, deverá demonstrar que valores democráticos trazem segurança, justiça e sustentabilidade para os parceiros e vantagens duradouras para as pessoas”.

O sucesso do plano da UE, sem dúvida, será uma vitória decisiva para aqueles que, contra ideologias autoritárias, preconceituosas e neocolonialistas, cremos que o pluralismo democrático é plenamente compatível com o desenvolvimento econômico e a justiça.

Taiwan esquenta a ‘nova guerra fria’ China/Estados Unidos

I.

Apenas 12 dias depois da visita da Presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi (Democrata da Califórnia) a Taiwan, quando os protestos diplomáticos de Pequim e os disparos, com munição real, dos projéteis do Exército de Libertação Popular no Estreito de Taiwan ainda reverberavam mundo afora, mais uma delegação do Congresso norte-americano aterrissou em visita à ilha rebelde.

Pelosi desembarcou, na primeira terça-feira de agosto, em Taipé, coroando um giro pela Ásia do Pacífico que incluiu Cingapura, Malásia, Coreia do Sul e Japão. Essa foi a mais importante visita de uma autoridade norte-americana desde 1997, quando o também presidente da Câmara, Newt Gingrich (Republicano da Geórgia) encabeçara missão à República da China, nome oficial de Taiwan. Ela chegou praticamente ‘de surpresa’, pois não havia antecipado publicamente essa última escala em sua viagem. Pelosi encontrou-se com a presidente da república Tsai Ing-wen, com o vice-presidente do Yuan Legislativo (parlamento) Tsai Chi-chang e com grupos de defesa dos direitos humanos; levou a todos eles a mensagem de que os Estados Unidos persistem em sua determinação de preservar a democracia taiwanesa.

Quase ao mesmo tempo, o regime da República Popular da China deu início a uma gigantesca manobra envolvendo o disparo de meia dúzia de mísseis e a mobilização de cerca de 100 aviões, além de submarinos, porta-aviões, destróieres e navios de apoio – enfim, nada comparável ao ‘treinamento’ que teve lugar no estreito de Taiwan entre 1995 e 1996, quando o ELP ainda era uma força mal-treinada com equipamento obsoleto.

Naquele tempo, bastou que os Estados Unidos mobilizassem dois grupos-tarefa capitaneados por porta-aviões a pouco mais de 320 quilômetros da ilha para dissuadir os chineses de continuarem com suas manobras. Agora, a RPC comanda o terceiro maior arsenal nuclear do planeta, e suas forças aérea, terrestre e naval são equipadas com tecnologia comparável à do arsenal do Pentágono. É óbvio que Pequim aguardava um gesto qualquer de Washington, pretexto que veio sob a forma da visita de Pelosi, para dar essa demonstração de força, reafirmando a inabalável intenção do regime comunista de integrar Taiwan, efetiva e definitivamente, ao espaço de sua soberania. Afinal, manobras desse porte não podem ser improvisadas de uma hora para a outra, já que exigem uma complexa integração entre as três forças e um minucioso planejamento logístico. No front diplomático, o chanceler chinês, Wang Yi, considerou a visita uma “provocação política declarada”, em grave violação do “princípio de uma única China” (mais sobre isso na próxima seção deste artigo), o que “fere a soberania chinesa”.

Para Wang, os “Estados Unidos devem parar de tentar obstruir a grande reunificação da China”, pois “Taiwan é parte inalienável do território chinês”. Mal Pelosi embarcou de volta para o seu país, o governo chinês divulgou um “livro branco” (white paper), acusando os Estados Unidos de “solaparem o desenvolvimento e o progresso da China” e afastando o compromisso inicial chinês de não tomar Taiwan pela força, o primeiro documento oficial sobre o assunto – intitulado “A Questão de Taiwan e a Reunificação da China em uma Nova Era – desde a ascensão simultânea de Xi-Jinping à secretaria-geral do Partido. Comunista e à presidência da RPC (a edição anterior era de 2000). Paralelamente, a China também respondeu com sanções econômicas, suspendendo o abastecimento de areia a Taiwan e proibindo a importação de numerosas mercadorias da ilha, principalmente frutas e pescado.

Naturalmente, o governo taiwanês aproveitou o ensejo para também reagir com declarações firmes e manobras militares adrede planejadas. O chanceler Joseph Wu defendeu a soberania de facto da ilha de 23 milhões de habitantes, alertou que Pequim estaria preparando uma invasão e que as ambições geopolíticas chinesas ameaçam outros países da região. De modo a dar consequência concreta a esse posicionamento, as forças armadas de Taiwan dispararam mais de 100 projéteis carregados com munição real no sul da ilha, na proximidade dos exercícios do ELP. Taiwan está separada da província chinesa de Fujian, no continente, por uma distância máxima de 180 quilômetros de mar. Desde o início da Guerra Fria, uma “linha mediana” foi traçada no Estreito de Taiwan com o objetivo de reduzir o risco de conflito armado. Agora, essa linha imaginária foi cruzada várias vezes por 10 navios de cada lado – os chineses tentando cruzá-la e os taiwaneses tentando bloquear esse acesso.

Num calculado jogo de cena e com base nos conselhos dos seus assessores militares, o presidente Joe Biden sinalizou contrariedade com a missão Pelosi, muito embora ele mesmo, em três oportunidades diferentes, já tenha declarado à imprensa que nunca recuará do tradicional compromisso americano com a defesa de Taiwan. Se Biden realmente se opusesse à missão, Nancy Pelosi jamais teria chegado a Taipé a bordo de um jato oficial do governo com escolta da força aérea dos Estado Unidos, providências que requerem expressa autorização da Casa Branca.

A delegação congressual americana mais recente, liderada pelo veterano senador Democrata de Massachusetts Ed Markey, também cumpriu o roteiro de encontros com a chefe de Estado Tsai, com o ministro das relações exteriores Wu e membros do Yuan Legislativo e deve provocar mais uma bateria de exercícios do ELP e indignadas declarações da chancelaria da China.

II.

Três são os documentos diplomáticos que servem de base à One-China policy dos Estados Unidos. O primeiro deles é o “Comunicado de Xangai”, de fevereiro de 1972, anunciado ao fim da histórica visita do presidente Richard Nixon à China. Ele reconhece a existência de uma única nação chinesa, e que Taiwan faz parte dela. Também confirma o interesse dos Estados Unidos em uma solução pacífica da questão de Taiwan pelos próprios chineses, com a promessa norte-americana de, num futuro indefinido, retirar todas as suas instalações militares da ilha.

O segundo documento é o comunicado sobre o estabelecimento de relações diplomáticas Estados Unidos/RPC (janeiro de 1979). Nele, as partes se comprometem a rejeitar a busca por hegemonia na região da Ásia do Pacífico, assim como em qualquer outra região do mundo. O governo norte-americano reitera o compromisso de acatar a noção de que existe somente uma China, o que inclui Taiwan.

O terceiro comunicado, de agosto de 1982, teve sua íntegra desclassificada somente em 2019. O governo Ronald Reagan concordou em não exceder, quantitativa ou qualitativamente, o nível de transferência de armamentos americanos a Taiwan, com o compromisso adicional de reduzir gradualmente suas vendas desses equipamentos e munições. (Essa foi uma resposta positiva ao gesto do regime chinês que, em 1981, declarara sua intenção de buscar uma reintegração pacífica de Taiwan à RPC.)

Ao mesmo tempo que os Estados Unidos reconheciam o regime comunista como único representante ‘oficial’ da China, o Congresso norte-americano votou, e o presidente Democrata Jimmy Carter sancionou, a Lei de Relações com Taiwan (Taiwan Relations Act), renovando os compromissos de apoiar uma solução pacífica no Estreito de Taiwan, fornecer a Taiwan armamentos necessários à sua autodefesa e resistir a qualquer ameaça à integridade da segurança e do sistema socioeconômico do povo taiwanês.

III.

Qual teria sido a motivação pessoal da visita de Nancy Pelosi a Taiwan? Ao longo de sua carreira política, ela sempre fez questão de apoiar abertamente a luta de regimes democráticos sob ameaça de inimigos ditatoriais. Em 1991, por exemplo, dois anos depois do massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, Pelosi, integrando delegação de congressistas dos Estados Unidos, esteve no local e desfraldou estandarte em apoio ao movimento chinês pró-democracia. Mais recentemente, a presidente da Câmara dos Representantes encabeçou comitiva do Congresso em visita a Kiev, capital da Ucrânia, já durante a invasão russa ao país.

Esses gestos compreendem o ‘legado’ com que a veterana congressista da Califórnia deseja coroar sua trajetória, já próxima da aposentadoria.

IV.

A escalada de tensões China/Taiwan preocupa o mundo inteiro. Por ali transita boa parte do comércio marítimo internacional. Taiwan é líder mundial na fabricação de semicondutores (chips), ingrediente indispensável da economia digital, e o agravamento do conflito deve abalar ainda mais as cadeias globais de suprimento, que não se recuperaram do choque da pandemia e também sofrem com a guerra russo-ucraniana. Muito embora, os analistas militares minimizem a probabilidade de uma invasão da ilha a curto prazo, aumentam os temores de que esses exercícios com munição real se multipliquem, tornando-se o ‘novo normal’ na região, o que, cada vez mais, vai dificultar a distinção entre manobras simuladas e um ataque para valer…

Todos os políticos em Washington, a começar por Biden e Pelosi, continuam a reafirmar a adesão dos Estados Unidos à política da China única. Durante recente visita a Phnom Penh, capital do Camboja, a convite da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), o secretário de Estado Anthony Blinken criticou as manobras do ELP em torno de Taiwan e conclamou Pequim a desescalar suas provocações militares.Reiterou, ainda, que a visita de Pelosi foi pacífica e não representou mudança alguma na política dos Estados Unidos vis-à-vis Taiwan. (Seja como for, no mesmo período daquela polêmica viagem, o porta-aviões USS “Ronald Reagan”, que fica baseado no Japão e transporta helicópteros e caças a jato F/A-18, além de sofisticados sistema de inteligência e vigilância, concluiu visita portuária a Cingapura, e deslocou-se pela região na companhia do cruzador USS “Antietam” e do destróier USS “Higgins”.)

Mas, o que os aliados da China e dos Estados Unidos acham disso tudo? Solidário à China, que se recusa a condenar a invasão russa à Ucrânia, o chanceler Sergey Lavrov ironizou a “estranha lógica” das declarações de Washington sobre a manutenção da política da China única, enquanto a terceira mais alta autoridade dos Estados Unidos visitou Taiwan, em total desconsideração aos interesses de Pequim. A China cancelou encontro de chanceleres com o Japão em protesto contra declaração conjunta do G-7 de que as manobras militares no Estreito de Taiwan eram injustificadas. E, no referido evento da Asean, em Phnom Penh, os chanceleres Lavrov e Wang Yi se retiraram juntos da sala de reunião tão logo o ministro japonês das Relações Exteriores, Hayashi Yoshimasa, começou a discursar.

Em Canberra, a chanceler australiana, Penny Wong, pediu um desanuviamento das tensões, no interesse da “estabilidade” da região. O alto grau de integração da economia mundial faz com que os parceiros dos Estados Unidos e da China torçam por uma desescalada. Enquanto isso, o que mais preocupa o PC chinês, às vésperas do seu 20º Congresso (provavelmente em novembro), que conduzirá Xi Jinping a um inédito terceiro mandato, é o potencial da inquietação social causada pela visível desaceleração da economia. Isso leva o regime a apelar para a exacerbação dos sentimentos nacionalistas e o endurecimento do controle sobre os meios de comunicação tradicionais e as redes sociais, com redobrada repressão a todo tipo de oposição política (advogados dos direitos humanos, ativistas LGBT+ etc).

Rússia X Ucrânia: a qualidade do comando faz a diferença

SIR LAWRENCE FREEDMAN É O DECANO BRITÂNICO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS, professor emérito do King’s College (Londres), e autor de obras já consideradas clássicas como The Evolution of Nuclear Strategy (4ª edição, 2019, em coautoria com Jeffrey Michaels) e Strategy: a History (2013). Freedman se prepara agora para lançar Command: the Politics of Military Operations from Korea to Ukraine. Na edição de julho/agosto de 2022 de Foreign Affairs, ele nos brinda com uma ‘degustação’ do novo livro, com foco no conflito russo-ucraniano. O que segue é um ‘apanhado’ dos pontos que considero mais importantes naquele artigo.

I

Nos regimes autocráticos – caso da Rússia de ontem, hoje e talvez sempre –, os governantes, muitas vezes, tomam decisões militares com base em informações incompletas e, não raro, simplesmente falsas, porque a tendência desses déspotas é valorizar a ‘lealdade’ sobre a competência na escolha dos seus generais, cercando-se de yes men temerosos de discordar dos seus superiores ou retransmitir-lhes notícias ‘desagradáveis’ vindas do front. Em grande medida, daí derivam as dificuldades que as forças militares russas vivenciam hoje na Ucrânia, um impasse material e psicologicamente desgastante, enfrentando uma forte e inesperada resistência de um adversário muito menor, porém decidido a criar todas as dificuldades possíveis aos invasores, valendo-se de ampla assistência financeira e militar dos Estados Unidos e seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Como a Rússia se meteu nessa enrascada sangrenta?

Em setembro de 1999, Vladimir Putin se tornou premiê de um física e politicamente enfraquecido presidente Boris Yeltsin. Naquele momento, o exército russo lambia as feridas do seu amor próprio, humilhado em uma longa e desastrosa campanha contra os rebeldes islâmicos da Chechênia (1994/1996). Naquele mesmo setembro, os cidadãos de Moscou e de todo o país foram abalados por explosões em prédios residenciais da capital russa. O governo imediatamente culpou o terrorismo checheno, embora até hoje muita gente desconfie que os ataques foram planejados e executados por ex-colegas de Putin no FSB, substituto da KGB. soviética, a fim de fabricar pretexto para uma nova guerra. Dessa vez, o governo russo desencadeou uma campanha maciça e impiedosa, e a capital da Chechênia, Grozny, acabou conquistada. Na primavera seguinte, Putin venceu com folga a sua primeira eleição presidencial, seu recente sucesso militar sinalizando a determinação do governo a restabelecer a autoridade centralizada do Estado. Nos anos seguintes, o boom mundial das commodities catapultou as exportações russas de petróleo e gás. Essas receitas ajudaram a financiar a modernização do estabelecimento militar. Ao mesmo tempo, as relações com o Ocidente começaram a azedar.

Em 2004/2005, a Ucrânia foi varrida pelos ventos pró-ocidentais da chamada Revolução Laranja. Em 2008, durante a conferência de cúpula da Otan em Bucareste, Romênia, o governo de Kiev ventilou a sua aspiração a se unir ao bloco. Em 2013, com o chamado Movimento Maidan, o povo ucraniano derrubou o presidente pró-Rússia que havia voltado atrás na promessa de adesão à União Europeia.. No ano seguinte, o Kremlin retaliou com a anexação da Crimeia. Para justificar esse gesto hostil, Putin alegou que a população local de origem russa estaria sendo perseguida pelo governo central e armou grupos paramilitares de oposição. O Ocidente aceitou aquela agressão com a mesma passividade com que já tinha recebido o massacre da Chechênia e a tomada pelos russos de uma parte do território da Geórgia (2008) como ‘castigo’ pela ousadia cometida pelo governo daquela ex-república soviética do Cáucaso ao anunciar seu desejo de fazer parte da Otan. Moscou continuou armando os rebeldes da região do Donbas, e nem a precária paz estabelecida graças ao acordo de Minsk (Belarus) fez cessar os choques armados, assim como também não cessaram ações russas ‘por procuração’ via ciberataques e operações psicológicas com a finalidade de enfraquecer o governo ucraniano e a infraestrutura econômica do país. Sem alternativa, Kiev foi se aproximando cada vez mais do Ocidente.

Em meados de 2021, o Kremlin divulgou manifesto de Putin declarando que a Ucrânia constituía parte inalienável da pátria-grande russa. Entre o final daquele ano e o começo deste, o governo russo passou a concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia. Em Moscou, os comandantes militares asseguraram ao presidente que a invasão seria um ‘passeio’ e que as tropas russas rapidamente tomariam Kiev, decapitariam o governo do presidente Volodymyr Zelensky e o substituiriam por uma junta fantoche. Mas, como registrei há pouco, havia alguns anos que Kiev modernizava as suas forças armadas com treinamento e equipamentos transferidos pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan. Como a hipótese que orientou o exército russo era que a invasão seria curta e rápida, seus comandantes não se prepararam para um conflito mais prolongado tomando os devidos cuidados logísticos; com isso, suprimentos de rações alimentares, combustíveis e armas/munições começaram a escassear. No plano tático-operacional, o erro da invasão foi dispersar unidades de elite entre várias frentes de batalha, dificultando a coordenação e agravando o desafio logístico.

De sua parte, os ucranianos utilizam modernas armas antiaéreas e antitanque, ao mesmo tempo que se beneficiam da proximidade das fontes de suprimento. Já nos primeiros dias da invasão, o exército da Ucrânia impôs sérios danos às colunas de blindados inimigos e às pistas de pouso de que os russos dependem para renovar se reabastecer. Acima de tudo, é o entusiasmo dos soldados ucranianos, devotados à defesa da sua terra, que oferece o mais vivo contraste com o desânimo e a desorientação do inimigo russo. Fez bem o presidente Zelensky ao se recusar a pedir asilo no Ocidente. A legitimidade da sua liderança não só inflama o ânimo dos compatriotas como também acabou convencendo os aliados de que a Ucrânia é, sim, capaz de repelir com sucesso a invasão perpetrada por vizinho muito maior. Em menos de seis meses de luta, 20% das forças terrestres russas foram destruídas, e sua reconstrução se mostra cada vez mais difícil dadas as sanções que sufocam sua base industrial de defesa. Já as pesadas violações de direitos humanos cometidas pelos invasores – tortura, estupros, bombardeio de instalaçoes civis, como hospitais e centros comerciais – só fazem reforçar a determinação ucraniana de resisti e, com ela, a disposição ocidental de apoiá-los mediante amplas doses de assitência financeira, a exemplo do pacote de 40 bilhões de dólares aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos.

Entrementes, o expansionismo agressivo da Rússia deu novo e inédito alento à aliança transatlântica. Suécia e Finlândia, duas potências até outro dia orgulhosas de sua longa tradição de neutralidade, já receberam sinal verde de todos os membros da Otan para engrossar o pacto.O novo “conceito estratégico” da Otan, há pouco divulgado em substituição à versão de 2010, identifica a Federação Russa como “ameaça” imediata e “significativa”, designando a República Popular da China, hoje a maior aliada da Rússia, como um desafio “à segurança e aos valores” ocidentais. (Mais sobre isso ao final deste artigo.) Desde a invasão da Ucrânia, o Pentágono já enviou 10 mil militares americanos à Polônia; 2,5 mil à Romênia; e 2 mil aos três países bálticos. Na Alemanha, os Estados Unidos mantêm o seu maior efetivo (40 mil militares).

Em 25 de março, um mês depois do início daquilo que o governo russo classifica, orwellianamente, como “operação militar especial”, Putin acabou desistindo, ao menos por enquanto, do objetivo inicial de tomar todo o todo o território ucraniano e o redimensionou na perspectiva mais modesta de limitar a ocupação ao sul e ao sudeste do país. Começava a “2ª fase” da campanha: “libertação’ do Donbass, onde se localizam as províncias ‘rebeldes’ de Donetsk e Luhansk. Mesmo assim, nem as conquistas russas das cidades de Mariupol e Lysychansk foram suficientes para dissuadir os ucranianos de prosseguir em sua tática de desgastar a retaguarda inimiga com ataques balísticos de precisão contra bases logísticas e linhas de suprimento.

II

O ímpeto da resistência ucraniana que tanto surpreendeu a maioria dos analistas ocidentais se explica, em grande medida, por dois fatores. Além da capacidade do governo Zelensky para manter elevado o moral das tropas e da população civil, Freedman aponta como variável crucial a flexibilidade da cadeia de comando. Os níveis hierárquicos inferiores sabem tomar decisões adequadas à instável realidade do campo de batalha, sabendo-se apoiados pela confiança dos seus superiores. O contraste com a rigidez hierárquica do comando russo não poderia ser mais dramático.

E Freedman, baseado no acúmulo sistemático de observações históricas que se estendem desde a Guerra da Coreia (1950/1953) até a corrente invasão da Ucrânia pela Rússia, assim resume as quatro condições fundamentais para o sucesso dos comandantes de sucesso:

( 1 ) confiança mútua entre escalões hierárquicos superiores e inferiores;
( 2 ) rápido acesso a equipamentos e suprimentos adequados (no caso da Ucrânia, drones, armas antitanques e antiaéreas que têm provocado um ‘estrago assimétrico’ à máquina de guerra russa);
( 3 ) qualidade da liderança em todos os níveis (contribuição relevante da assistência militar ocidental aos ucranianos); e
( 4 ) compromisso com a missão e compreensão do seu propósitopolítico (em comparação com os soldados ucranianos, os invasores russos chegaram iludidos de que a população local os receberia com vivas e flores, como ‘libertadores’. Repetindo: os ucranianos sempre souberam exatamente por que estão lutando.)

III

Quais as perspectivas do conflito Rússia X Ucrânia, quanto tempo ele irá durar?

Até onde a vista alcança, o atual impasse deve se arrastar pelo menos até o próximo inverno no hemisfério norte, quando poderemos avaliar com clareza qual o tamanho da dependência europeia em face do gás russo. O presidente Jair Bolsonaro tem razão quando observa que as sanções econômicas ocidentais estão criando dificuldades, mas não no grau e com a rapidez com que contavam os adversários da Rússia. Esta projeta para o corrente ano receitas de exportação de petróleo e gás no valor de 267 bilhões de euros, contra os 221 bilhões apurados em 2021, conforme estimativa da Bloomberg,

De outra parte, se o fracasso da invasão vier a precipitar a queda de Putin, não será a primeira vez que erros de cálculo militar terão acarretado mudanças de regime na Rússia. Basta lembrar que a derrota ante ingleses e franceses na Guerra da Crimeia (1853/1856) ensejou um ciclo de reformas sob o czar Alexandre II, inclusive com a libertação dos servos (1861). Em 1905, a vitória do Japão contra a Rússia levou a uma (tímida) liberalização da autocracia imperial. O colapso dos exércitos russos na Primeira Guerra Mundial abriu caminho à Revolução Bolchevique (1917). Por último, mas não em último, a impossibilidade de vitória no Afeganistão (1979/1989) acelerou a implosão da União Soviética.

O conflito na Ucrânia será, em grande medida, decidido longe do campo de batalha. À China de Xi Jinping interessa evitar um fiasco militar russo, pois a Rússia é considerada por Pequim uma preciosa ‘retaguarda logística’ na hipótese, cada vez mais provável, de um acirramento da rivalidade com os Estados Unidos e as democracias avançadas a eles aliadas. Tanto Xi quanto Putin aspiram a construir vastas esferas de influência na Eurásia no quadro de uma nova arquitetura geopolítica à imagem e semelhança de suas visões autocráticas, o que pressupõe uma substancial debilitação da ordem mundial liberal apoiada no colosso norte-americano. Mas, a elite comunista chinesa também receia que o prolongamento/agravamento da guerra na Ucrânia produza um reforço das alianças militares lideradas pelos Estados Unidos na Europa, no Oriente Médio e na região Indo-Pacífico e teme alienar seus parceiros econômicos e comerciais europeus. Assim, para os chineses, em se tratando de China X Ucrânia, se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.

Esse panorama sombrio pode ainda piorar na hipótese de um Putin, inconformado com a perspectiva de derrota humilhante, recorrer à chantagem nuclear, o que, certamente, elevará o risco de uma corrida armamentista Leste/Oeste a um superior e mais perigoso patamar.

Mas, essa é uma outra história, que fica para uma outra vez.

China, Estados Unidos e Taiwan: entre a ambiguidade e a clareza

QUANTAS GAFES presidenciais são necessárias para efetivar uma inflexão estratégica? Por três vezes desde que se tornou inquilino da Casa Branca, Joe Biden insinuou publicamente o abandono da “ambiguidade estratégica” nas relações da América com Taiwan em face da política anexacionista da República Popular da China. Em todas essas oportunidades, seus assessores correram para retificar, ou ao menos atenuar, as declarações do chefe. Mas, como lembra Marc A. Thiessen, colunista do Washington Post, o povo não elege assessores presidenciais….

Em 1979, sete anos depois da histórica visita de Richard Nixon à China, os Estados Unidos reconheceram diplomaticamente a RPC e, ao mesmo tempo, ‘desreconheceram’ a República da China (Taiwan). Mesmo assim, sucessivas administrações em Washington, D.C., mantiveram laços políticos, econômicos e, sobretudo, militares com Taipé, com base do Taiwan Relations Act, aprovado pelo Congresso e sancionado por Jimmy Carter naquele mesmo 1979. De modo a não afrontar o novo parceiro comunista na missão de conter a hoje extinta, mas então ameaçadora, União Soviética, os Estados Unidos adotaram uma posição deliberadamente ambígua ante a hipótese de a RPC vir a recorrer à força para anexar Taiwan, que Pequim considera uma ilha rebelde e parte inalienável do território chinês, reservando-se a prerrogativa de retomà-la na eventualidade de os taiwanenses proclamarem unilateralmente a sua independência. Em outras palavras, Washington não declara se vai ou não vai intervir militarmente para proteger Taiwan. Paralelamente, as maciças transferências de armamentos norte-americanos ao pequeno aliado ‘oficioso’ jamais cessaram. Na verdade, o governo Biden acaba de marcar um recorde histórico de vendas de material bélico a Taiwan (18 bilhões de dólares em quatro anos: caças F-16, tanques Abrams, mísseis antiaéreos Stinger, misseis antinavios, torpedos, drones da classe Reaper, entre outros itens).

Em agosto do ano passado, a propósito dos desdobramentos de um ainda hipotético ataque russo à Ucrânia, Biden, em resposta a um repórter da rede ABC, salientou que “[A]ssumimos um compromisso sagrado com o artigo quinto [da Carta da Organização do Tratado do Atlântico Norte] de que, se, de fato, alguém invadir ou atacar os nossos aliados da Otan, nós responderemos. O mesmo [vale] para o Japão, para a Coreia do Sul, para Taiwan”. Dois meses depois, agora diante das câmeras da CNN, indagado se os Estados Unidos entrariam em guerra para defender Taiwan de um ataque militar chinês, o presidente foi igualmente claro: “Sim, temos o compromisso de fazê-lo”. E, em maio último, durante entrevista coletiva por ocasião de sua visita a Tóquio, Biden foi perguntado: “O sr. não quer se envolver militarmente no conflito ucraniano por razões óbvias [mas] [e]staria disposto a se envolver militarmente em defesa de Taiwan [. . .]?” Resposta presidencial curta e grossa: “Sim”. O repórter insistiu: “O sr, está [disposto]?” Resposta mais detalhada: “É o compromisso que assumimos [. . .] A ideia de que [Taiwan] pode ser tomada a força simplesmente não é apropriada”.

Toda estratégia bem-sucedida depende do equilíbrio entre aspirações e capacidades – os objetivos e os meios disponíveis para alcançá-los. Ora, vários jogos de guerra e simulações conduzidos pelo Pentágono demonstram que a opção dos Estados Unidos pela “clareza estratégica” em relação à defesa de Taiwan está fadada ao fracasso. Como esclarece Oriana Skylar Mastro, expert em assuntos militares chineses, nos últimos 20 anos, a China aproveitou sua bem-sucedida decolagem econômica para modernizar seus arsenais. Hoje, os mísseis da marinha do Exército de Libertação Popular (ELP) são capazes de neutralizar os porta-aviões da armada americana.

A força aérea de Tio Sam conta a penas com duas bases, no Japão, para se deslocar até o Estreito de Taiwan sem necessidade de reabastecimento. já a China possui 39 bases aéreas a apenas 500 milhas de Taipé. Um ataque preventivo dos chineses, no caso de a liderança comunista estar convicta de que os americanos reagirão em defesa de Taiwan, frustará essa reação aeronaval. No front cibernético, a doutora Mastro adverte que o ELP está em condições de abater satélites militares americanos, comprometendo seus sistemas de comunicações, inteligência, comando e controle.

Em contraste, os chineses, operando do seu próprio território, dispõem de cabos de fibra ótica, o que lhes assegura um fluxo estável e confiável de dados e informações. É possível que, de modo a evitar uma represália em larga escala, o ELP venha a concentrar seus ataques em Taiwan, evitando engajamento direto com as forças armadas dos Estados Unidos. Por outro lado, é igualmente possível – sustenta Oriana Mastro – que, temendo envolver-se numa escalada do conflito, os aliados da América na região relutem em facilitar-lhe o acesso a portos, aeródromos etc.

Para afastar esse perigo, não basta que os Estados Unidos dobrem a aposta na diplomacia da “ambiguidade estratégica”, que, honra seja feita, até hoje foi capaz de manter a paz no Estreito de Taiwan, Mas, na etapa histórica que se inicia, de bipolaridade emergente opondo potências liberal-democráticas e patrimonialismos agressivamente iliberais, como China, Rússia e Irã), isso é insuficiente. Volta e meia citado nesta coluna, o analista Hal Brands, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais), vinculada à Universidade Johns Hopkins, e colunista da Bloomberg, afirma que a causa-raiz da crescente instabilidade nas relações entre Pequim e Washington, não reside no compromisso do segundo com a democracia taiwanesa, mas, sim, no desequilíbrio militar cada vez mais favorável à RPC.

O livro que Brands acaba de publicar em co-autoria com o cientista político Michael Beckley, docente da Universidade Tufts e pesquisador do think tank conservador American Enterprise Institute – The Danger Zone: the Coming Conflict with China – aconselha, entre outras as seguintes medidas: o reforço e a simultânea dispersão das bases militares dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico, de modo a reduzir a atual vulnerabilidade a um ataque chinês; a expansão dos arsenais do Pentágono, principalmente mísseis de longo alcance e outras munições teleguiadas de precisão capazes de romper qualquer bloqueio aeronaval a Taiwan e, ao mesmo tempo, absorver o impacto dos primeiros dias de conflito sem perda de capacidade de resposta; e a intensificação das relações militares com Taiwan, com a realização de exercícios militares multilaterais.

O supracitado Marc Thiessen faz coro a Brands e Beckley quando reconhece que a melhor maneira de manter a paz na região consiste em dissuadir o regime chinês de anexar Taiwan à força – e não esperar passivamente por um ataque como aquele que o exército de Vladimir Putin desferiu contra a Ucrânia há mais de cem dias.

Olimpíada de Inverno 2022: Pequim X direitos humanos

Paulo Kramer

O regime comunista chinês tem reagido ao boicote diplomático anunciado pelos governos dos Estados Unidos e de outros países contra as Olimpíadas de Inverno de Pequim com a mescla habitual de cinismo e intimidação.

O boicote é motivado pelas políticas repressivas do governo chinês contra a população islâmica dos uigures na região de Xingiang (noroeste do país).

Reportagem publicada no portal axios.com no último dia 11 informa que o regime promete amplo acesso a sites e redes sociais estrangeiros para os atletas alojados na Vila Olímpica, enquanto continua a negá-lo  ao conjunto da população chinesa, submetido ao Grande Firewall do governo.

Mesmo assim, como avisam as autoras da matéria — Ashley Gold, Ina Fried e Bethany Allen-Ebrahimian —, dificilmente os atletas se sentirão à vontade para publicar o que quiserem sobre o país anfitrião.

Conforme adverte o Comitê Olímpico dos Estados Unidos em documento recente, “deve-se presumir que todos os dados e comunicações na China possam ser monitorados, comprometidos ou bloqueados”. Ainda não há clareza a respeito de como as autoridades locais encararão as postagens de cidadãos de outros países, porém as leis da China concedem a elas ampla latitude para reprimir qualquer manifestação on-line classificada como ilegal.*

Nos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim, a despeito das promessas do governo chinês e do Comitê Olímpico Internacional, repórteres do mundo inteiro tiveram acesso bloqueado a muitos sítios da internet. Mais recentemente, as plataformas de streaming chinesas ‘cancelaram’ os jogos dos times de futebol americano Boston Celtics e Houston Rockets depois que jogadores e administradores dessas equipes veicularam críticas à situação dos direitos humanos e da liberdade de expressão na China. Atletas americanos, ouvidos em off pelo New York Times, admitiram temer represálias desse tipo por criticar o governo de Xi Jinping.

Até agora (escrevo na terça-feira, 19 de janeiro), os governos dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Lituânia, Japão, Dinamarca e Países Baixos (Holanda) decidiram não enviar representações oficiais aos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, em fevereiro.

A Nova Zelândia declarou que não enviará nenhuma comitiva de nível ministerial, e a ministra de Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, disse que não irá comparecer ao evento, embora tenha invocado razões pessoais para sua ausência.

Na verdade, as democracias avançadas começam a articular uma resistência à estratégia agressiva do Partido Comunista Chinês, liderado pelo presidente Xi Jinping, que ambiciona nada menos que substituir as regras liberais do sistema internacional, construído no pós-Segunda Guerra Mundial  sob hegemonia dos Estados Unidos (livre mercado e regime representativo), por uma nova ordem mundial sinocêntrica autoritária. Em poucas palavras, ação e reação….

*Por enquanto, a exemplo do que ocorre em outros segmentos das relações do Ocidente com o “império do centro”, interesses empresariais tendem a prevalecer sobre considerações éticas e humanitárias, como provam as dificuldades encontradas por ativistas para pressionar empresas patrocinadoras a retirar seu apoio aos jogos. *

Paulo Kramer é cientista político e especialista da Fundação da Liberdade Econômica