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Democracia e Liberdades

Em um momento no qual muitos formadores de opinião, além de políticos e magistrados, tomam a democracia como um fim em si mesmo, e não como um simples meio para a troca pacífica dos governantes, torna-se necessário reafirmar que a verdadeira finalidade da política é o bem comum da sociedade, que deve se manifestar por intermédio da adesão aos princípios de Ordem, Liberdade e Justiça; pela promoção dos direitos inalienáveis da pessoa à vida desde a concepção, à autonomia individual dentro dos limites da lei, e à manutenção da propriedade privada; pela instauração do Estado de Direito; e, finalmente, pela vigência da economia de livre mercado. Na defesa de tais princípios, direitos e instituições, o estabelecimento do sistema representativo democrático pode ser um instrumento de extrema importância, desde que a democracia não sucumba ao fenômeno da “tirania da maioria”, tal como descrito, em 1830, pelo pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), em sua clássica obra A Democracia na América.

O cerne do problema das concepções e práticas totalitárias da democracia, propostas pelos ideólogos e pelos militantes esquerdistas, que busca eliminar a pluralidade social em nome da “tirania da maioria”, é o conflito entre noções distintas de liberdade. Ao fazer uma crítica, de modo indireto, às errôneas noções do democratismo propostas pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e adotadas pelos jacobinos, durante a Revolução Francesa de 1789, o pensador e ativista político suíço Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), no seu famoso discurso “A Liberdade dos Antigos Comparada à Liberdade dos Modernos”, proferido, em 1819, no l’Athénée royal de Paris, defendeu que, enquanto os antigos gregos e romanos entendiam que um cidadão era livre na medida em que tinha o direito à participação direta do corpo político em assembleias populares, nas quais eram deliberadas o estabelecimento das normas legais e os rumos da ação comunitária, os modernos compreendem a liberdade como sendo a autonomia dos indivíduos em relação ao poder de intervenção do Estado na esfera privada dos membros da sociedade.

Tal distinção entre essas duas visões diversas acerca da liberdade influenciou, profundamente, as reflexões de Alexis de Tocqueville, bem como inúmeros outros teóricos liberais ou conservadores. Mesmo tendo sido a versão mais influente da diferenciação entre os dois tipos de liberdade, a tese de Benjamin Constant não era inovadora, pois foi discutida, anteriormente, nos escritos de outros pensadores. A mesma temática foi discutida pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), em 1651, no Leviatã; pelo jurista, historiador e filósofo francês Montesquieu (1689-1755), em 1748, em O Espírito das Leis; e pelo jurista e filósofo prussiano Wilhelm von Humboldt (1767-1835), em 1792, em Os limites da ação do Estado. Em sua análise pioneira, Hobbes afirmou que “a liberdade à qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos, assim como nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política, não é a liberdade dos indivíduos, mas a liberdade do Estado”.

A mesma questão foi apresentada, mais recentemente, no livro A Constituição da Liberdade, de 1960, pelo economista, jurista e filósofo austríaco F. A. Hayek (1899-1992), quando o ilustre pensador liberal distinguiu a “liberdade política”, entendida como participação democrática, da “liberdade individual”, definida como autonomia do indivíduo, de modo que a primeira equivale à concepção antiga, enquanto a segunda à moderna. Todavia, diferentemente do que propõem os liberais em sua adesão à liberdade individual e os socialistas em sua crença na liberdade política, os conservadores entendem que há uma necessidade de equilíbrio entre as duas concepções, além de defenderem a importância da chamada “liberdade interior”, tal como apresentada pela filosofia estoica, pela tradição cristã e pelas reflexões éticas do filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804), bem como uma limitação desses três tipos de liberdade pelos princípios da ordem, tanto em seu sentido interior da moral quanto no exterior da política e da justiça, nos aspectos comutativo e distributivo.

De acordo com o filósofo, historiador e literato americano Russell Kirk (1918-1994), em 1993, no livro A Política da Prudência, “o conservador procura limitar e equilibrar o poder político, de modo que a anarquia ou a tirania não tenham chances de surgir”, tendo mais adiante ressaltado que “restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos, um cumprimento adequado das leis, a velha e intricada rede de restrições sobre a vontade e o apetite – são aprovados pelo conservador como instrumentos da liberdade e da ordem”, para, finalmente, apresentar a máxima segundo a qual “um governo justo mantém uma tensão saudável entre as pretensões da autoridade e as pretensões da liberdade”.

Focos de tensão – Taiwan

A compreensão da situação de Taiwan como um dos mais importantes focos de tensão no atual cenário internacional, em que a invasão russa na Ucrânia completa um ano deve ter como base as suas origens históricas.

A Revolução Comunista chinesa, que tem como data símbolo 1949, culminou com a consolidação do poder do Partido Comunista da China sobre todo o território continental e com a fuga de seus oponentes para a ilha de Formosa, atual Taiwan, onde as forças derrotadas estabeleceram uma República.  Nesse período, a Guerra Fria estava em pleno curso e a República em Formosa passou a contar com o apoio dos Estados Unidos da América e do campo ocidental. Deve-se observar que a China Comunista nunca reconheceu Formosa como estado independente e a considera como uma província rebelde, parte inalienável da China continental. A República da China (Taiwan) representou o país na ONU até 1971 e fazia parte como membro Permanente, com poder de veto, do Conselho de Segurança (CSNU), pois foi um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. A partir de 1971, a China Comunista passou a ter a representação plena, com a desistência dos Estados Unidos de se opor ao país comunista como um dos membros do Conselho.

A política de uma só China, que vigora desde então, fez que Taiwan passasse a ter uma atuação internacional limitada pela falta de reconhecimento externo. A ilha, contudo, tem tido relações comerciais intensas com inúmeros países, e desenvolveu-se como um polo de tecnologia avançada, destacando-se na produção de semicondutores. O Brasil, por exemplo, tem importantes relações comerciais com Formosa, embora não se relacione diplomaticamente com Taiwan desde que reconheceu a China comunista em 1974. Os dois países mantêm escritórios comerciais e culturais, e a pauta de exportações brasileira é essencialmente de produtos de base como soja, minério de ferro, café, ao passo que importamos produtos  industrializados, principalmente eletrônicos de alta tecnologia.

Tendo em vista que a China nunca aceitou a existência de Taiwan como um estado autônomo, e sempre considerou que a ilha deverá ser incorporada a seu território continental como província, os Estados Unidos, desde os primórdios da Guerra Fria, veem Taiwan como um bastião anticomunista. Os americanos têm a visão de Formosa como um posto avançado na defesa do Ocidente e adotam uma política intensa de fornecimento de armas para aquela República. É interessante observar que, conquanto venham armando Taiwan, os EUA na verdade não se têm comprometido a defendê-la diretamente – ou seja, mobilizando suas próprias tropas – no caso de uma tentativa chinesa de ocupação.

Trata-se de política denominada “ambiguidade estratégica”, significando o envio de armamentos, sem envolvimento direto.

A firme caminhada da China no rumo de se firmar como superpotência econômica, industrial, comercial e tecnológica, e sua política de modernização militar tem causado crescente preocupação nos Estados Unidos, que sentem a hegemonia de que desfrutam desde a derrocada da União Soviética no início da década de 1990 ameaçada por um novo contendor que, rapidamente, parece equiparar-se a seu porte de superpotência. Ademais, a renovação do mandato do atual líder chines no Vigésimo Congresso do Partido Comunista de 2022, quando se reafirmou a possibilidade de ocupação de Taiwan por meios pacíficos (“se possível”), tem causado preocupação entre os norte-americanos.

Ainda em 2022, delegações do Congresso dos EUA realizaram visitas oficiais a Formosa, que foram objeto de protestos pelo governo de Pequim. Em reação às visitas, a China imediatamente realizou exercícios militares no entorno da ilha. Os chineses consideraram essas visitas como provocação, mas não foram além dos exercícios militares. Também em 2022, o Presidente dos Estados Unidos chegou a declarar para a imprensa que seu país poderia pegar em armas para defender o “status quo” de Formosa, mas suas declarações foram prontamente qualificadas e amenizadas pela diplomacia americana, e houve posteriormente o anúncio de reforço no fornecimento de armas para Taiwan, no âmbito da chamada ambiguidade estratégica.

A China, que tenta recuperar-se de períodos de baixo crescimento econômico por causa de sua diretriz de covid zero, problemas no mercado imobiliário, e de baixo crescimento populacional, com envelhecimento de sua população, mantém a perspectiva de continuar sua rota de afirmação no cenário estratégico mundial. Seu atual interesse preponderante é uma situação de estabilidade internacional que lhe permita seguir essa trajetória. A posição chinesa em relação ao conflito russo-ucraniano tem buscado um equilíbrio pragmático, com o menor envolvimento possível, ainda que já tenha manifestado desagrado com a invasão.

A apresentação do recente plano de paz chines relativo à guerra na Ucrânia, conflito que claramente está em um impasse, mostra a preocupação chinesa com a estabilidade do sistema internacional. A China é um ator internacional que, pelo seu peso estratégico atual, e pela proximidade com a Rússia, aliada tradicional desde a Guerra Fria, e a quem tem ajudado a contornar as sanções ocidentais, parece ser um dos únicos países capazes de mediar uma iniciativa de paz.

Em síntese, no que diz respeito a Taiwan, a China não deverá tomar a iniciativa de uma invasão no futuro previsível, pois prefere consolidar-se em ambiente de estabilidade e só recuperar sua chamada província rebelde quando as condições lhe forem inteiramente favoráveis.

A Democracia dos Antigos e as Democracias dos Modernos

No atual contexto político brasileiro, muitas pessoas, incluindo parlamentares e autoridades do Executivo ou do Judiciário, parecem acreditar que a democracia é um fim em si mesmo. Em face dessa alarmante postura, torna-se necessário reafirmar, constantemente, que o regime democrático é apenas um meio para garantir a necessária mudança pacífica dos governantes. Ademais, é fundamental ressaltar que uma legítima democracia só pode subsistir dentro dos limites impostos pelo aparato legal do Estado de Direito, que, além de ser algo muito distinto do arbítrio dos magistrados, pressupõe a garantia dos invioláveis direitos individuais, dentre os quais prefigura a livre expressão de ideias, mesmo aquelas que possam ser tachadas de antidemocráticas.

Além dessa perigosa confusão entre os meios e as finalidades do regime democrático, outro grande problema daqueles que se colocaram na posição de guardiões da democracia parece ser um profundo desconhecimento do que foi a democracia em sua antiga experiência grega, bem como dos usos do termo pelos modernos para se referir a modelos para tomada de decisões políticas distintos, e até mesmo conflitantes. Existem diferenças abissais entre a democracia antiga grega, por um lado, e, por outro, as modernas democracias liberais, que, por sua vez, não devem ser confundidas, em hipótese alguma, com as chamadas democracias populares vigentes em países sob o jugo de regimes socialistas.

De acordo com a denominada “Teoria Clássica das Três Formas de Governo”, apresentada pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), a “Democracia” seria o governo de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, distinguindo-se tanto da “Monarquia”, que é sustentada pela autoridade de um único homem, quanto da “Aristocracia”, na qual os rumos da comunidade política são guiados por uma parcela significativa dos melhores cidadãos. Na teoria aristotélica, cada uma dessas três formas ideais tem uma forma degenerada equivalente, sendo essas, respectivamente, a “Demagogia”, a “Oligarquia” e a “Tirania”.

Enquanto forma de governo concreta, a democracia teve uma duração relativamente curta quando comparada aos regimes monárquicos e aristocráticos. Historicamente, tal regime político surgiu no século VI a.C., em Atenas, tendo sido seu apogeu no século V a.C., quando esteve vigente em diversas cidades gregas. Contudo, devido à corrupção dos demagogos e do povo, ela entrou em declínio no século IV a.C. e foi substituída por diferentes governos monárquicos, tirânicos, aristocráticos ou oligárquicos. Contemporâneo da decadência das experiências democráticas gregas, o filósofo Platão (427-348 a.C.) alertou que esse regime estava fadado à ruína, pois nele os sábios nunca teriam sucesso na empreitada de instigar as pessoas comuns a serem virtuosas, visto que as massas sempre agem segundo as paixões.

Na modernidade, os ideais democráticos ressurgiram inspirados em dois eventos históricos específicos, que deram origem a modelos políticos distintos. O primeiro deles foi a democracia liberal, decorrente da bem-sucedida experiência instaurada nos Estados Unidos da América, a partir da independência dessa nação, em 4 de julho de 1776, e do estabelecimento, em 17 de setembro de 1787, do governo constitucional, que teve no estadista americano James Madison (1751-1836) seu principal arauto e no pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) seu melhor analista.

O segundo tipo encontra suas origens do desastroso e violento processo revolucionário, inspirado nas concepções ideológicas tanto racionalistas dos filósofos iluministas quanto sentimentalistas, coletivistas e igualitaristas do pensador suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que eclodiu, a partir de 14 de julho de 1789, na França tendo sido duramente criticado pelo estadista e pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797), precursor do conservadorismo, sendo este modelo a chamada democracia popular, vigente, em nossos dias, nos países com tendências socialistas, que se caracterizam por desrespeitar os ditames éticos das liberdades individuais, os princípios jurídicos do Estado de Direitos e as práticas econômicas do livre mercado.

Infelizmente, o que muitos dos defensores do regime democrático em nosso país desejam não é a manutenção dos princípios da ordem, da liberdade e da justiça, mas a submissão ao arbítrio dos donos do poder e dos manipuladores das paixões da massa. Tal espetáculo dantesco não é uma verdadeira democracia, e sim apenas a nefasta ideologia do democratismo. Conforme alertou Russell Kirk (1918-1994), “todas as ideologias, até mesmo o democratismo, levam os tolos à imoderação – e logo à servidão. O que o ideólogo-mestre busca é o poder, não a liberdade”.

Nicarágua Despedaçada

A deterioração democrática pela qual passa a Nicarágua é preocupante e disparou um alerta externo que tem mobilizado a comunidade internacional. O recrudescimento do regime é real, com perseguições políticas, religiosas e acadêmicas, seguindo o mesmo padrão clássico de ditaduras latino-americanas. Uma situação que joga o novo governo brasileiro em frente delicada, uma vez que sandinismo e petismo são aliados históricos.

O sandinismo, apesar de ser um movimento de esquerda, possuía um corte diferente dos regimes alinhados a Cuba e União Soviética e era exatamente isso que aproximava o movimento do petismo, pois tentava aliar métodos do socialismo com certo grau de liberdade. Os sandinistas deixam o poder pela via eleitoral, sendo derrotados por Violeta Chamorro nas eleições de 1990.

Quando retornou ao poder em 2007, Ortega representava no imaginário popular um retorno do sandinismo ao governo. Porém, a dinâmica já não era a mesma e aos poucos, os sandinistas históricos se afastaram e passaram a questionar a nova leitura, longe das ideias originais de um sandinismo que já estava fora do poder por quase duas décadas.    

A mudança radical de Ortega o afastou dos antigos aliados e das redes tradicionais de apoio ao movimento, em especial a Igreja Católica, que passou a abrigar os dissidentes do regime e perseguidos políticos. O governo colocou na cadeia nomes históricos do sandinismo. Duas universidades católicas foram fechadas. Clérigos foram presos e a comunidade internacional percebeu a preocupante guinada autoritária do país.

Nesta esteira, atualmente além de membros da oposição política e líderes religiosos perseguidos, organizações de Direitos Humanos passaram a ser ameaçadas e seus registros jurídicos encerrados. Acadêmicos foram expulsos das universidades e todos os partidos de oposição foram fechados acabando com a liberdade política. A imprensa independente foi fechada e teve bens confiscados. O governo proibiu a importação de papéis para impressão de jornais e hoje o país não possui mais periódicos impressos. Os organismos internacionais que estavam denunciando esta situação foram expulsos.

Diante de mais uma eleição presidencial e ciente de que perderia a corrida, Ortega prendeu todos os candidatos presidenciais, retirando sua cidadania, e ainda proibiu que os partidos apresentassem candidatos substitutos. Há um claro estado de exceção.

Um grupo de especialistas apontados pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas apontou a responsabilidade de Ortega e sua esposa, atual vice-presidente, como comandantes de uma estrutura repressiva de perseguição política, apontando crimes contra a humanidade. O Brasil foi o único dos oito países responsáveis a propor soluções para a Nicarágua a se abster de condenar o regime.

Estamos diante de um processo de transição autoritária. O governo brasileiro precisa mostrar que seu compromisso democrático está acima de qualquer relação pessoal, especialmente depois dos ataques contra a democracia brasileira no último janeiro. Lula chegou ao terceiro mandato diante de uma frente ampla, colocando-se na arena internacional como fiador da democracia brasileira. Chegou o momento de o Brasil exercer sua liderança externa e o petismo entender que Ortega há tempos deixou de representar o sandinismo. É apenas mais um caricato e perigoso ditador latino-americano que ameaça a democracia de seu país.

Autoridade e autoritarismo, segundo Hannah Arendt

A autoridade, explica Hannah Arendt, é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Isso se dá porque ela sempre exige obediência. Contudo, “a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou.[1]” A autoridade se contrapõe não apenas à coerção pela força, mas também à persuasão através de argumentos: “onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso[2]”. É na hierarquia, cuja legitimidade é reconhecida tanto por aquele que manda quanto por aquele que obedece, que a autoridade se assenta.

No ensaio O que é autoridade?, Arendt delimita o conceito em questão a fim de possibilitar a sua contraposição à estrutura de governo totalitária, que se erigiu também como uma resposta à crise da autoridade. Longe de confundir autoritarismo com autoridade legítima ou governos autoritários com regimes totalitários, suas reflexões acerca do tema têm por objetivo depurar os conceitos a fim de que as análises alcancem o fenômeno do totalitarismo na sua peculiaridade e distinção. Na sua interpretação, o desenvolvimento de formas totalitárias de governo relaciona-se, em algum grau, com “o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais[3]”.

A crise de autoridade a que ela se refere não se limita à perda de prestígio do governo ou do sistema de partidos, mas de algo anterior, que se espalha “em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural[4].” Além disso, essa perda da autoridade não pode ser analisada como fenômeno isolado, uma vez que se trata apenas da “fase final, embora decisiva, de um processo que, durante séculos, solapou basicamente a religião e a tradição[5].”

Essa crise maior, não apenas da autoridade, mas da religião, da tradição e da própria razão, tornou-se patente na contemporaneidade, principalmente através das críticas de Kierkegaard, Marx e Nietzsche, pensadores que “desafiaram os pressupostos básicos da religião tradicional, do pensamento político tradicional e da metafísica tradicional invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.[6]” Responsabilizar, porém, os pensadores rebeldes do século XIX pelas catástrofes do século XX seria “ainda mais perigoso que injusto[7]”, pois “as implicações manifestas no evento concreto da dominação totalitária vão muito além das mais radicais e ousadas ideias de quaisquer desses pensadores[8]”. É preciso, ao contrário, reconhecer-lhes a grandeza por “terem percebido o seu mundo como um mundo invadido por problemas e perplexidades novas com as quais nossa tradição de pensamento era incapaz de lidar[9]”.

Kierkegaard, Marx e Nietzsche, segundo Hannah Arendt, “situam-se no fim da tradição, exatamente antes de sobrevir a ruptura”.[10] Eles radicalizaram a abordagem ao passado pelo fio da continuidade histórica, questionando a tradicional hierarquia conceitual que dominara a filosofia ocidental desde Platão e que Hegel dera por assegurada, sendo “para nós como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse[11]”, mas não podem, por isso, responder pela brutal quebra que houve em nossa história: “esta brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia cristalizaram em uma nova forma de poder e de dominação[12]”.

Tendo por pano de fundo a sua crítica à noção linear de História típica da modernidade, Arendt aponta certas fragilidades nos argumentos de liberais e conservadores quando estes abordam a dicotomia autoridade versus liberdade. Liberalismo e conservadorismo seriam, segundo ela, “a expressão política da consciência histórica do derradeiro estágio da época moderna”[13] e procederiam “sob a implícita suposição de que as distinções não são importantes”. O uso que ambas as vertentes fazem dos conceitos de história, progresso e decadência responderiam pela incapacidade de distinguir, atestando seu pertencimento a uma época na qual tais conceitos “começaram a perder sua clareza e plausibilidade por terem perdido seu significado na realidade público-política sem perderem inteiramente sua importância”.[14] Liberalismo e conservadorismo teriam mostrado, em conjunto, que estivemos diante de um retrocesso simultâneo tanto da liberdade quanto da autoridade, mas, por se manterem dentro das categorias de uma filosofia da história, foram insuficientes na interpretação do fenômeno totalitário, o qual analisaram não na sua essência e originalidade, como evento qualitativamente distinto, mas sim como mera medida de distanciamento daquilo que traziam como expectativa:

“O liberalismo mede um processo de refluxo da liberdade, enquanto o conservadorismo mede um processo de refluxo da autoridade; ambos denominam de totalitarismo o resultado final esperado e veem tendências totalitárias onde quer que um ou outro esteja presente[15].”

A crítica de Arendt, portanto, não se limita ao liberalismo e ao conservadorismo enquanto tais, mas à falta de sutileza das ciências sociais, políticas e históricas como um todo. O filósofo (no caso, a filósofa) vê diferenças de natureza onde o pesquisador comum enxerga apenas diferenças de grau. Por partir do pressuposto de que há uma constância do progresso na direção da liberdade organizada, as teorias liberais olham cada desvio desse rumo como um mero processo reacionário e perdem de vista as nuances de cada forma de governo, desconsiderando as diferenças entre elas:

“Isso faz com que passem por alto a diferença de princípio entre a restrição da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total eliminação da espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários, por intermédio dos seus diversos métodos de condicionamento. O escritor liberal, preocupado antes com a história e o progresso da liberdade que com as formas de governo, vê aqui apenas diferenças de grau, e ignora que o governo autoritário empenhado na restrição à liberdade permanece ligado aos direitos civis que limita, na medida em que perderia sua própria essência se os abolisse inteiramente – isto é, transformar-se-ia em tirania[16].”

Aqui se torna patente a importância do rigor conceitual: autoritarismo não pode ser confundido com totalitarismo. Por trás da confusão liberal inclinada a ver tendência totalitária em toda limitação autoritária jaz, segundo Arendt, a “confusão mais antiga de autoridade com tirania e de poder legítimo com violência[17]”. É preciso, pois, salientar as distinções:

“A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. Seus atos são testados por um código que […] não foi feito pelos detentores efetivos do poder. A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior ao seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado[18].”

As distinções entre sistemas tirânicos, autoritários e totalitários propostas por Arendt são a-históricas e antifuncionais. Elas implicam que, no mundo moderno, a autoridade desapareceu tanto no mundo livre quanto nos chamados sistemas autoritários e que a liberdade “está sob ameaça em toda parte, mesmo nas sociedades livres, tendo sido, porém, abolida radicalmente apenas nos sistemas totalitários, e não nas tiranias e nas ditaduras[19]”.

A autoridade, explica Hannah Arendt, não se acha necessariamente presente em todos os organismos políticos. Tanto a palavra (auctoritas) quanto o conceito são de origem romana e não estiveram presentes nem na língua grega nem nas várias experiências políticas da história grega[20]. A experiência da pólis, como se sabe, era baseada no logos, na doxa, na consideração do mundo comum a partir de diversos pontos de vista: “Em um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, tais como apresentados aos cidadãos de Atenas pelos sofistas, o grego aprendeu a intercambiar seu próprio ponto de vista, sua própria opinião com os seus concidadãos[21]”.  O governo absoluto, por sua vez, era conhecido pelos cidadãos da pólis como tirania e uma das principais características do tirano era governar por meio da pura violência[22].

Não havia, portanto, na experiência política grega efetiva uma relação em que o elemento coercitivo repousasse na relação mesma e que implicasse simultaneamente obediência e liberdade. Foi isso que Platão e Aristóteles tentaram introduzir na vida pública da pólis e, para tanto, foram buscar exemplos das relações extraídas da administração doméstica e da vida familiar gregas[23]. Foi após a morte de Sócrates que Platão começou a descrer da democracia, passando a considerar a persuasão insuficiente para guiar os homens, buscando então algo que se prestasse a compeli-los sem o uso de meios externos de violência[24].

Para Arendt, o contexto no qual o pensamento grego se acerca mais estreitamente do conceito de autoridade é “na República, de Platão, onde ele confrontou a realidade da pólis com um utópico governo da razão na pessoa do rei-filósofo[25]”, cujo poder coercitivo repousaria não na pessoa do rei, mas nas ideias que são percebidas pelo filósofo[26]. A verdade do filósofo, porém, não possui a mesma validade na “esfera dos assuntos humanos que o filósofo tivera que abandonar para percebê-la[27]”. Há, pois, uma “dicotomia entre o ver a verdade em solidão e isolamento e o ser capturado nas conexões e relativismos dos negócios humanos[28]”.

A perda de vista dessa dicotomia esconde, muitas vezes, uma vontade de domínio que se disfarça sob um manto pedagógico. Foi sob esse manto que o pensamento político platônico influenciou boa parte da teoria política ocidental. Platão não apenas “pretendeu introduzir uma espécie de autoridade no manejo dos negócios públicos e na vida da pólis[29]” como também tentou fazer com que essa autoridade política adquirisse um caráter educacional, sobrepondo ao reino da política o modelo educacional por meio da autoridade.

Não foi, porém, na Grécia, que a palavra e o conceito de autoridade se estabeleceram, mas em Roma, assentando-se na tradição e na religião, perfazendo a tríade que se sustentava na experiência da fundação romana. Com o declínio do Império, a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Católica, que assumiu a tríade religião, autoridade e tradição. Uma vez que a Igreja adotara a distinção romana entre autoridade e poder, reivindicando para si a primeira,[30] a posterior separação entre Igreja e Estado teve por inconveniente implicar a perda, no âmbito político, do “elemento que, pelo menos na História ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e permanência[31]”.

O famoso declínio do ocidente ou a crise do mundo atual é interpretado por Hannah Arendt como “declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político[32]”. As revoluções da época moderna seriam, por seu turno, “gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza[33]”.

Com exceção da Revolução Americana, todas as revoluções, desde a francesa, malograram em seus objetivos, tendo terminado em restauração ou tirania. Isso indica, segundo Arendt, que a autoridade – tal como se desenvolveu na experiência romana e foi compreendida à luz da filosofia política grega – não se reestabeleceu em lugar nenhum e que precisamos lidar com o fato de que vivemos hoje em uma esfera política sem autoridade, confrontados com os problemas elementares da convivência humana “sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, auto evidentes[34]”.

Notas

[1] ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. p.129

[2] Idem. p.129

[3] Idem. p.128

[4] Idem. p.128

[5] Idem. p.130

[6] Idem. p.53

[7] Idem. p.54

[8] Idem. p.54

[9] Idem. p.54

[10] Idem. p. 55

[11] Idem. p.56

[12] Idem. p.53

[13] Idem. p.139

[14] Idem. p.139

[15] Idem. p.137

[16] Idem p.133-134

[17] Idem p.134

[18] Idem p.134

[19] Idem p.142

[20] Idem p.142

[21] Idem. p.82

[22] Idem. p. 143

[23] Idem. p. 143

[24] Idem. p. 147

[25] Idem. p. 145

[26] Idem. p. 149

[27] Idem. p.155

[28] Idem. p.156

[29] Idem. p.159

[30] Idem. p.169

[31] Idem. p. 170

[32] Idem. p. 185

[33] Idem. p. 185

[34] Idem. p. 187

Aborto, Conservadorismo e Democracia

Em seu famoso livro A Mentalidade Conservadora, Russell Kirk (1918-1994) elencou, como primeiro cânone do conservadorismo, a “crença em uma ordem transcendente, ou corpo de leis naturais, que rege a sociedade, bem como a consciência”. A partir dessa premissa, defendeu que “problemas políticos, no fundo, são problemas morais e religiosos”. Finalmente, concluiu que “a verdadeira política é a arte de perceber e aplicar a Justiça, que deve preponderar em uma comunidade de almas”.

Amparada nas instituições do Estado de Direito e da economia de livre mercado, uma sociedade democrática, de acordo com os conservadores, deve promover os princípios da Ordem, da Liberdade e da Justiça como meios adequados para proteger os direitos humanos fundamentais à vida, à autonomia e à propriedade privada. Nesse sentido, a defesa do aborto como um direito é contrária ao respeito inalienável à vida e à dignidade da pessoa humana.

Na encíclica Centesimus Annus (1991), o Papa São João Paulo II (1920-2005) alertou que, “se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções políticas podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder”, tendo acrescentado que “uma democracia sem valores se converte facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”. O mesmo tipo de crítica ao “risco da aliança entre democracia e relativismo ético” foi denunciada pelo mesmo romano pontífice, na encíclica Veritatis Splendor (1993), ao ressaltar que tal conjunção “tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade”. Por fim, na encíclica Veritatis Splendor (1995), ao tratar, especificamente, do problema da noção de autonomia absoluta, que legitima a inaceitável prática do aborto, em sociedades democráticas, São João Paulo II afirmou que:

O primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte – mesmo que seja maioritária – da população. É o resultado nefasto de um relativismo que reina incontestado: O próprio “direito” deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Desse modo, e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a “casa comum”, onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.

Em outra passagem do mesmo documento pontifício, temos a advertência de que “reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros”, ao que João Paulo II concluiu que “isto é a morte da verdadeira liberdade”. Nessa mesma linha, em um dos capítulos do livro A Política da Prudência, encontramos a ressalva de Russell Kirk, segundo a qual “a defesa doutrinária da contracepção e do aborto pelos progressistas é uma prova do desejo de morte dominante”.

Infelizmente, ao ignorar tais princípios, a atual gestão federal anunciou, no dia 17 de janeiro de 2023, em nota conjunta à imprensa do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Saúde, do Ministério das Mulheres e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania o desligamento do Brasil do Consenso de Genebra, cujo documento firmado por diferentes países, além de reafirmar que “todos são iguais perante a lei” e que “os direitos das mulheres são inalienáveis, integrais e parte indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” defende que, “em caso algum deve o aborto ser promovido como método de planejamento familiar”, além de acentuar a necessidade de proteção do nascituro e ressaltar que “não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional da parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

Tal decisão equivocada do governo federal é um retrocesso na defesa da vida e da família, que, dentro da legalidade do Estado de Direito e do processo democrático, precisa ser combatida, não apenas por conservadores e/ou cristãos. Não é possível termos uma sociedade livre, próspera e justa sem defendermos o direito inalienável à vida, especialmente das crianças ainda não nascidas. Opor-se ao aborto é um dever de todos que defendem os princípios do verdadeiro conservadorismo.

As grandes potências miram a África

É importante registrar, nesse momento de mudanças no macro cenário internacional, que as grandes potências têm mostrado interesse em se aproximar do continente africano.

Os Estados Unidos promoveram, no período de 13 a 15 de dezembro de 2022, em Washington, reunião em que participaram 49 delegações de países africanos. Essa cúpula foi a primeira reunião abrangente realizada desde 2014, quando por iniciativa do então presidente americano Barack Obama realizou-se a primeira cúpula entre os EUA e países africanos. De acordo com o Departamento de Estado dos EUA a reunião daria prosseguimento a entendimentos estabelecidos pelo presidente norte americano durante suas visitas a países africanos. Teria como foco comércio, investimentos, segurança e democracia.

Antes da reunião de 2014 a China havia lançado em 2013, o importante programa Belt and Road, também chamado de Nova Rota da Seda, concentrado principalmente em investimentos em infraestrutura e que tinha como um de seus focos a África. A Nova Rota da Seda tem dado grande impulso à influência global da China. Embora a reunião de 2014 tenha sido inspirada também pelas ligações familiares do presidente Barack Obama com a África, não há dúvidas de que já havia uma reação dos EUA à crescente presença comercial da China no continente africano. Essa iniciativa americana não apresentou resultados relevantes, e durante a administração Trump a África não foi objeto de atenção. Trump chegou mesmo a se referir a países africanos de modo pejorativo, causando grande desgaste diplomático.

A cúpula de 2022 mostrou uma tentativa de recuperar terreno, pois desde 2013 a ofensiva chinesa com a concessão de créditos em condições favoráveis a países africanos têm reforçado os canais diplomáticos sino-africanos, apesar de críticas ao endividamento excessivo de países pobres e da utilização de mão de obra chinesa no lugar da africana em obras de infraestrutura. A China tem buscado garantir fontes de energia, e suprimentos minerais e agrícolas para a manutenção de seu crescimento econômico e sua política de aumentar o padrão de vida de sua população. Trata-se de estratégia consistente e de longo prazo, que os americanos buscam contrarrestar, mas por enquanto sem êxito.

A Rússia também tem buscado maior presença no continente africano, até mesmo como forma de mitigar seu isolamento internacional por causa da invasão da Ucrânia e das sançõesimpostas pela Europa e pelos EUA. Em Julho de 2022 o Ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov realizou um périplo pela África, tendo visitado o Egito, o Congo, a Etiópia e Uganda. Procurou afirmar a ajuda russa em termos de segurança alimentar, pois o continente africano tem sido muito prejudicado pelas interrupções no fornecimento de grãos causados pela guerra rusoo -ucraniana. Por outro lado, recorde-se que a Rússia herdou imagem favorável da antiga União Soviética de ser potência anti-imperialista, pois se deve recordar que durante a Guerra Fria, a URSS apoiou ativamente a luta contra as potências coloniais na África.

Depois de anos de ausência, por causa do desmantelamento da União Soviética, a Rússia busca ter maior presença e influência no continente africano. Vertente importante do papel russo é o fornecimento de armas, e estima-se que países africanos são responsáveis pela compra de aproximadamente vinte por cento das exportações de armas da Rússia. Ademais, sabe-se que o Wagner Group, exército privado, composto de mercenários que têm atuado em várias situações bélicas, teria ligações com o governo de Moscou, e funcionaria como braço auxiliar não oficial do governo russo para intervenções militares. Essa rede de mercenários tem presença em vários pontos da África e atua também no treinamento de tropas regulares.

De outra parte, as principais potências coloniais, o Reino Unido e a França, continuam a ter forte presença nas suas antigas colônias africanas, apesar de terem visto sua capacidade de projeção internacional de poder diminuir. Sua influência continua em termos comerciais, de venda de armas e treinamento militar e também com a utilização de “soft power “, com o qual o Reino Unido e a França mantêm vivos seus laços políticos e culturais com as antigas colônias.

Observe-se que algumas diretrizes de política externa americanas não têm tido a continuidade e a consistência necessárias para darem bons frutos. Há o exemplo da recente Cúpula afro-americana de 2022 que se caracterizou mais como reedição de ideias lançadas por ocasião da reunião de 2014, e sem um programa de investimentos robusto. Temos, ademais, o caso da Cúpula das Américas de 2022 que buscou corrigir o declínio da influência americana na América Latina, mas com escassas possibilidades de êxito, também pela falta de previsão realista de investimentos e de incentivos concretos ao comércio. Essas iniciativas não apresentaram consequências palpáveis e não tiveram continuidade, o que tem gerado frustrações e aberto espaço para a busca de influência da China, e mesmo da Rússia. Interessante observar que as ações dos EUA têm sido reativas, para se contrapor a situações com as quais a diplomacia norte-americana se defronta.

No que diz respeito ao Brasil, é importante que nossa diplomacia acompanhe acuradamente a ofensiva chinesa porque, em busca de fontes de fornecimento de “commodities” e minerais, o país asiático tem investido maciçamente na infraestrutura da África, o que pode abrir caminho para que alguns países africanos venham a ser concorrentes do Brasil na área de produtos de base.

Democracia e Cristianismo

Alguns defensores do regime democrático costumam recorrer ao ditado em latim “vox populi, vox Dei” [A voz do povo, a voz de Deus]. No entanto, o mais antigo registro dessa máxima se encontra em uma carta, do ano de 798, enviada para Carlos Magno (742-814) por Alcuíno de York (735-804), na qual o monge inglês afirmou que: “não se deve ouvir aqueles que costumam dizer: ‘A voz do povo, a voz de Deus’, pois o tumulto das pessoas comuns está sempre perto da loucura”. Em grande parte, a visão negativa de muitos cristãos acerca dos riscos da democracia repousa no fato de a massa ter escolhido libertar o criminoso Barrabás no lugar de Jesus, o que acarretou a crucificação de um inocente.

No entanto, as diversas igrejas cristãs, em suas advertências sobre os riscos inerentes ao regime democrático, também rejeitam as diferentes formas de governos autoritários, ao reconhecerem que tiranias, ditaduras ou modelos totalitários são incompatíveis com a correta visão sobre a natureza humana e os ditames da boa ordem social. Uma das melhores explanações sobre a apropriada relação entre democracia e cristianismo foi apresentada pelo saudoso Papa São João Paulo II, em vários documentos de seu magistério pontifício.

O grande Romano Pontífice, na encíclica “Centesimus Annus”, promulgada em 1º de maio de 1991, assim expressou a aprovação católica ao regime democrático:

“A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou de objetivos ideológicos” (CA §46).

Algumas décadas antes da promulgação da “Centesimus Annus”, na “Radiomensagem Natalina” proferida em 25 de dezembro de 1944, encontramos uma importante advertência do Papa Pio XII (1876-1958), que reconheceu a existência na modernidade de dois tipos de governos democráticos. O primeiro modelo, segundo o Romano Pontífice, transforma os integrantes da sociedade numa multidão amorfa, numa massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada por um governante ou por um partido político. O segundo tipo entende o povo como um conjunto de pessoas, cada uma das quais, no próprio lugar e a seu modo, apta a formar a própria opinião a respeito da coisa pública e da liberdade para exprimir a própria sensibilidade política e fazê-la valer em maneira consoante com o bem-comum. O primeiro tipo é a chamada democracia popular, vigente em diferentes países socialistas, como China, Coréia do Norte, Cuba, Nicarágua e Venezuela, dentre outros. O segundo tipo é o modelo anglo-saxão de democracia liberal.

De acordo com essas perspectivas defendidas pela Igreja Católica, não devemos aceitar qualquer forma de democracia. Em uma democracia liberal, mais importante do que a escolha democrática dos governantes pelos membros de uma comunidade política, a legitimidade desse modelo se fundamenta nas possibilidades tanto de mudar pacificamente os grupos dirigentes quanto de fiscalizar os atos administrativos e fiscais da gestão pública. O endosso do Papa João Paulo II ao modelo democrático anglo-saxão ficou explícito nas encíclicas “Veritatis Splendor”, de 6 de agosto de 1993, e em “Evangelium Vitae”, (1995), obras nas quais são defendidas as noções de lei civil como continuidade da lei moral e do Estado como protetor e promotor dos direitos individuais (VS §101 / EV §71), bem como na exigência da transparência administrativa por parte dos governantes (VS §101). Em uma passagem da já citada “Centesimus Annus”, o Romano Pontífice afirmou que:

“Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da ‘subjetividade’ da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e corresponsabilidade” (CA §46).

Em última instância, a verdade moral, o Estado de Direito e a liberdade econômica devem ser os fundamentos da democracia representativa. Existem limites éticos ao processo democrático que devem ser respeitados. Algo que seja, intrinsecamente, falso, errado, mau ou desprezível não poderá ser mudado pela vontade da maioria. Na encíclica “Evangelium Vitae”, o papa João Paulo II afirmou que:

“Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e congênitos que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover. Importa retomar, neste sentido, os ‘elementos fundamentais da visão entre lei civil e lei moral’, tal como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições jurídicas da humanidade” (EV §71).

Tal como defendido pela tradição conservadora desde seus primórdios, com Edmund Burke (1729-1797), até nossos dias, com Russell Kirk (1918-1994) e Sir Roger Scruton (1944-2020), a chamada Doutrina Social da Igreja compreende que uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito, que, por sua vez, não pode ser mantido sem realmente assegurar a efetividade da lei, cujos fundamentos se encontram na moral. Infelizmente, em nosso país, muitos que alegam defender o regime democrático parecem negligenciar esses princípios jurídicos e morais essenciais para a vigência da democracia.

Como as Big Techs se uniram para semear o divisionismo entre agentes reguladores

Big Techs superaram as diferenças entre si e se uniram para dividir republicanos e democratas que tentavam fazer uma regulamentação econômica para o setor. Não estamos falando de um movimento de discurso público apenas, mas do investimento de bilhões em lobby, acima até do investimento de indústrias como a farmacêutica e de armas.

A campanha foi classificada como épica pela Bloomberg, que ouviu 45 pessoas envolvidas nos esforços para esmagar duas legislações, uma de democratas e outra de republicanos. As Big Techs tiveram sucesso e as leis foram enterradas esta semana. Não farão parte do pacote final de votações do Congresso, divulgado na última segunda-feira. Podem eventualmente ser pautadas depois, mas o movimento foi marcante para os legisladores.

As iniciativas legislativas foram derivadas de uma investigação de 18 meses conduzida pelo democrata de Rhode Island David Cicilline. Não foi ele, no entanto, que sugeriu as leis.

A primeira era o “American Innovation and Choice Online Act” que impediria as Big Techs de usar suas plataformas para tirar vantagens de novos competidores e esmagar novos players do mercado. O “Open App Markets Act” seria a regulamentação de Apple e Google sobre as lojas de aplicativos dos telefones celulares.

Ambas iniciativas foram tratadas como uma ameaça à sobrevivência da indústria em si pela coalizão formada por Apple, Amazon, Facebook e Google. Democratas e republicanos pareciam ter as mesmas ideias sobre as leis, que tendiam a ser aprovadas. O lobby investiu em insuflar o divisionismo entre os partidos.

O lobby criou narrativas de publicidade e imprensa, financiar grupos de pressão, enviar lobistas a Washington e também investir em campanhas de políticos. Somente em publicidade voltada aos argumentos que amedrontavam republicanos e democratas com perda de votos foram gastos US$ 130 milhões. Outros USS 100 milhões foram gastos especificamente com lobby.

A artilharia contra os republicanos era focada em liberdade de expressão e liberdade de mercado. Campanhas ferozes, locais e nacionais, das Big Techs e de seus grupos financiados, argumentavam que a regulamentação castraria a liberdade.

Na realidade, era o oposto. Somente com a regulação haveria liberdade de mercado nesse segmento específico. Ele é controlado por um punhado de gigantes que usa seu poderio tecnológico para esmagar e tirar do cenário qualquer outro competidor.

A campanha que mirava os democratas era centrada nos argumentos de que a nova legislação seria prejudicial para as minorias e reduziria a privacidade online, já que o governo controlaria as empresas.

Novamente, a realidade é o oposto. Se apenas um punhado de empresas controla todo novo segmento da hipercomunicação, são elas que colocam as mãos sobre a privacidade das pessoas. As diversas brechas e problemas que já surgiram nesse campo no mundo todo deixam claro que deixar as coisas como estão não é solução.

Além disso, com poder global de comunicação e investimentos poderosos, as Big Techs investem no discurso divisionista do identitarismo, que impede qualquer tipo de avanço para as minorias. Ao fragmentar a sociedade em grupos de oprimidos colocados uns contra os outros, essas empresas se colocam como gatekeepers da inclusão.

O poder não é dado a nenhuma minoria, é cedido momentaneamente por quem já está no poder aos representantes de minorias que se mantenham na narrativa divisionista criada pelas Big Techs.

Elas e suas plataformas se tornam o símbolo da defesa de minorias, aniquilando qualquer possibilidade de avanço real ou diminuição do poderio de um setor tão predatório.

Houve obviamente problemas de negociação por parte dos autores das leis. Políticos sucumbiram ao discurso de que perderiam votos e muitas vezes se deixaram levar pelas rivalidades pessoais durante as negociações.

Divisionismo é uma das formas mais antigas de conquistar poder e, aparentemente, é uma ferramenta utilizada com frequência pelas Big Techs na defesa de seus interesses. São empresas pragmáticas que sabem colocar os antagonismos no armário quando interessa dividir grupos que possam regular sua atuação.

Os legisladores garantiam ter votos suficientes para aprovar as duas regulações ainda este ano. Elas deveriam ir a plenário, estavam prontas. O líder da maioria, senador Chuck Schumer, tomou a decisão de não levar nada a voto, garantindo que não havia número suficiente para aprovação. As filhas dele trabalham na Amazon e Facebook.

É uma derrota importante, mas o mesmo movimento foi feito na União Europeia e acabou vencido pelas autoridades. O Think Tank Economy Security project acredita que é apenas uma questão de tempo.

Para o diretor de relações governamentais, antimonopólio e políticas de competição da organização, Alex Harman, as Big Techs estão apenas adiando o inevitável. “Elas não estão ganhando, estão perdendo em câmera lenta”, sentencia.

Não há dúvidas que as Big Techs trazem muitas inovações importantíssimas que mudam as possibilidades e as vidas das pessoas. Isso não dá a elas o direito de substituir a institucionalidade e governar o mundo como bem queiram. Estamos justamente presenciando o freio de arrumação.

O Regime Democrático não é um Fim, mas um Meio

Uma das citações repetidas com maior frequência pelos defensores do regime democrático é a sentença do estadista conservador inglês Winston Churchill (1874-1965), segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas”. No entanto, os tendenciosos defensores acríticos da democracia tendem a negligenciar o caráter mais amplo dessa reflexão do grande líder britânico, que, em discurso proferido em 11 de novembro de 1947, afirmou o seguinte:

“Muitas formas de governo foram tentadas e serão tentadas neste mundo de pecado e aflição. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou onisciente. De fato, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras formas que foram tentadas de tempos em tempos”.

O ponto nessa fala de Winston Churchill que deve ser enfatizado por um conservador, além daquele que engloba a natureza pecaminosa de nosso mundo, é o da imperfectibilidade de todos os regimes políticos. Encontramos, na visão churchilliana, um aspecto distinto do conservadorismo, reflexo das concepções teológicas de Santo Agostinho (354-430), que se manifestou nas reflexões teóricas ou na prática política de eminentes conservadores, dentre os quais merecem destaque os nomes do irlandês Edmund Burke (1729-1797), do americano John Adams (1735-1826), do brasileiro Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), do francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), do inglês Benjamin de Disraeli (1804-1881) e, mais recentemente, tanto dos americanos Ronald Reagan (1911-2004) e Russell Kirk (1918-1994) quanto dos ingleses Margaret Thatcher (1925-2013) e Roger Scruton (1944-2020), dentre outros.

Todos esses pensadores ou estadistas, assim como Winston Churchill, aceitaram os aspectos positivos do sistema representativo democrático liberal enquanto um “meio” pacífico de mudança política, entretanto, todos rejeitaram a ideologia do democratismo, que adota a falsa noção da democracia como sendo um “fim” em si mesmo. Fundado nas propostas igualitaristas apresentadas nos escritos do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o democratismo é uma noção radical que serviu de inspiração para as errôneas concepções democráticas adotadas pelos jacobinos durante a Revolução Francesa, por liberais revolucionários e por diferentes tipos de socialistas.

De certo modo, o conflito entre duas concepções distintas acerca do regime democrático foi apresentado, em 1924, no livro Democracia e Liderança, pelo filósofo político e crítico literário americano Irving Babbitt (1865-1933), ao ter contraposto a “imaginação idílica” rousseauniana, fundamento do democratismo, à “imaginação moral” burkeana, que está de acordo com as práticas da representação política adotadas pelas democracias liberais modernas. A noção igualitarista do democratismo apresenta a democracia como um fim em si mesmo, que servirá como fármaco para as mazelas da sociedade, enquanto a concepção liberal defendida também pelos conservadores entende o regime democrático como um mero processo de escolha dos governantes, que precisa estar submetido à defesa dos direitos individuais, do Estado de Direito e da economia de mercado.

Ao tratar do problema do democratismo nos Estados Unidos da América, no capítulo 18, “Governo Popular e Mentes Imoderadas”, do famoso livro A Política da Prudência, de 1993, o conservador Russell Kirk advertiu que:

“Todas as ideologias, até mesmo o democratismo, levam os tolos à imoderação – e logo à servidão. O que o ideólogo-mestre busca é o poder, não a liberdade. Nas palavras de Edmund Burke, ‘Homens imoderados nunca podem ser livres. As paixões lhes forjam os grilhões’. A ideologia é fanatismo político e irrealidade. Longe de preservar nossa liberdade, a ideologia do democratismo já enfraqueceu a estrutura constitucional norte-americana, e fará ainda mais danos à causa da liberdade ordenada, a não ser que nós, norte-americanos, reconheçamos o perigo e renovemos os antigos limites ao impulso igualitarista”.

O democratismo representa uma ameaça à Ordem, à Justiça e à Liberdade em proporções semelhantes às das ideologias totalitárias. Um verdadeiro conservador deve rechaçar qualquer postura ideológica, até mesmo uma defesa imoderada da democracia.