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Lula é Kamala. Bolsonaro é Trump. E daí?

Se há algo que parece passar despercebido no calor das discussões políticas no Brasil, é a irrelevância absoluta das opiniões de Lula e Bolsonaro sobre as eleições dos Estados Unidos. Sim, isso mesmo: o que eles acham de Kamala Harris ou Donald Trump não tem impacto algum em Washington. Nenhum.

Vejamos o cenário atual. Lula, o presidente da República, declara seu apoio a Kamala como se isso fosse mover algum ponteiro na eleição norte-americana. Bolsonaro, fiel ao seu estilo, expressa abertamente seu apreço por Trump, como se os eleitores americanos estivessem ansiosos para saber o que ele pensa. Mas, honestamente, e daí? Não importa se o presidente do Brasil é fã de Kamala, Trump, ou até do Pato Donald. Lá nos Estados Unidos, isso é só ruído.

A questão é que o público brasileiro, ou pelo menos parte dele, parece incapaz de entender essa desconexão. Importamos o embate Lula versus Bolsonaro para dentro de temas internacionais como se isso fosse relevante para o eleitor norte-americano. A ilusão é de que, se um dos nossos líderes manifesta apoio a um candidato estrangeiro, ele realmente acredita estar influenciando alguma coisa. Não está. Essa dinâmica seria diferente se estivéssemos falando de um país vizinho, na América Latina. Um comentário do Brasil sobre a eleição argentina, ou mesmo paraguaia, poderia ter ressonância. Mas sobre uma potência como os Estados Unidos? É um jogo de aparências. E quem se ilude com ele é só o brasileiro.

Para ilustrar a inutilidade desse jogo, imagine se estivéssemos falando das eleições no Brasil, mas o apoio viesse de Angola. Digamos que o presidente angolano, João Lourenço, publicasse um vídeo apoiando Lula em nossa eleição presidencial. Isso mudaria o seu voto? É óbvio que não. E é óbvio que a opinião de Lula ou Bolsonaro sobre Trump ou Kamala não muda um único voto americano.

Ainda assim, seguimos nessa. Como se o mundo fosse acabar dependendo de quem ocupa a Casa Branca. “Kamala vai confiscar direitos, Trump vai erguer o muro”. Mas, vamos ser francos, o que realmente mudou quando Trump foi presidente? Ele tentou muita coisa, mas os guardrails da democracia americana, construídos e mantidos ao longo de duzentos anos, seguram qualquer um – até mesmo quem queira ou finja querer explodir o sistema. Nos EUA, o sistema é maior que o presidente. O Congresso, a Suprema Corte e as leis se mantêm intactos, segurando as rédeas da democracia. Algo que, convenhamos, não temos por aqui.

Aqui, no Brasil, a nossa democracia é frágil. Mudamos de Constituição como quem troca de roupa, o que coloca em perspectiva o quanto somos inconstantes em nossas “aventuras democráticas”. Nos EUA, há segurança estrutural. Lá, quem passa da linha, seja presidente ou peão, paga. O caso do Capitólio mostrou isso. Quem ousou desrespeitar o sistema foi punido e não foi um teatro para mostrar ao mundo “ficha limpa”. A punição foi para valer, sem essa história de salvar peixe grande e fazer show com os pequenos.

Mas, ainda assim, muitos aqui insistem em romantizar a eleição americana, como se tivéssemos que escolher lados e como se qualquer um dos lados fosse, de fato, nos representar. Sinto muito desapontá-los, mas o próximo presidente americano será irrelevante para nós. E não porque a política externa dos Estados Unidos é uma fantasia, mas porque, para eles, o que importa é o próprio sistema. Seja Trump, Kamala ou quem for, a democracia americana segue firme. Ela não precisa de salvadores; ela precisa de respeito ao que foi construído.

Então, meu conselho? Acompanhemos o show de camarote, mas sem apego emocional. No Brasil, há quem se emocione com tudo isso, com cada palavra de Lula ou Bolsonaro sobre política americana .Mas emoção, em política, nunca deu certo. E, para ser sincera, essa importação de brigas estrangeiras só serve para distrair do que realmente importa aqui.

Política e linguagem: onde está o extremismo político?

Não é problema que a conversa política entre cidadãos comuns na rua, nas mesas de bar, nas filas de banco ou nas redes sociais se dê em termos pouco ou quase nada rigorosos. Trata-se aí de um desabafo cotidiano sem maiores consequências.

Quando, porém, os próprios veículos de comunicação tido por confiáveis passam a expor sérias questões políticas com uma linguagem de mesa de bar ou de conversa de comadres em salão de beleza, pode-se dizer que há algum problema e que um mínimo de consenso em torno da definição de conceitos costumeiramente usados pela mídia torna-se necessário.

Por ocasião do recente resultado das eleições para o Parlamento Europeu, houve uma proliferação de manchetes no Brasil e em outros países expondo e analisando um suposto avanço da extrema direita na Europa e no mundo.

Ocorre que, embora partidos mais radicais de direita como o Rassemblement National (RN) da França ou o Alternative für Deutschland (AfD) da Alemanha tenham de fato crescido, o Parlamento Europeu continua sob o controle moderado, deslocando-se agora da centro-esquerda para a centro-direita.

Isso não significa que o crescimento do extremismo político não deva ser observado com cuidado. A questão é que, justamente por se tratar de um fenômeno importante, ele precisa ser analisado com honestidade, em termos corretos, sem a gritaria histérica de uma geração de jornalistas militantes que acham que o mundo vai acabar toda vez que a direita chega ao poder e que põem no mesmo balaio de gato de uma suposta extrema-direita “tudo aquilo que a esquerda considera ruim”, como bem explicou o jornalista e mestre em relações internacionais, Diogo Shelp, em um elucidativo artigo publicado na Crusoé.

De um extremo a outro

Shelp apresenta, no referido artigo, uma classificação esquematizada pelo cientista político holandês, Cas Mudde – o qual, confesso, desconhecia. O estudioso do extremismo político divide o campo da direita em extrema direita, direita radical, direita e centro direita. Da mesma forma, divide o campo da esquerda em extrema esquerda, esquerda radical, esquerda e centro esquerda. Para o autor, o extremismo, de um lado ou de outro, estaria ligado à rejeição à soberania popular por meio do voto, rejeição à ordem constitucional e, consequentemente, rejeição à própria democracia.

O filósofo político italiano, Norberto Bobbio, propõe um espectro político mais simples (extrema esquerda/centro esquerda/centro direita/extrema direita), mas, em um aspecto fundamental, as duas classificações convergem: ambos ligam o extremismo à rejeição da própria democracia.

Para Mudd, extrema direita e extrema esquerda almejam a substituição da democracia por uma ditadura; também para Bobbio, revolucionários de esquerda e reacionários de direita possuem como ponto de vista político comum a antidemocracia; extremistas de um lado e de outro têm aversão à democracia como conjunto de valores e como método.

Independentemente da classificação adotada, é importante que, pelo menos, se reconheça no campo político um espectro com nuances que não podem ser eliminadas como se tudo fosse um jogo preto no branco, ou seja, é importante que se reconheça, no debate público, a existência de posições intermediárias, de um centro político; aquilo que Bobbio também chama de região cinza:

Entre o branco e o preto pode existir o cinza. Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto, nem o crepúsculo elimina a diferença entre o dia e a noite.

O moderantismo “isentão”

Radicais tendem a não ver ou a ver e não aceitar as nuances: para eles ou se é de direita ou se é de esquerda. Um termo meio tosco tornou-se comum nos últimos anos, aqui no Brasil, para tentar rotular quem não adere cegamente à narrativa reducionista – e muitas vezes distorcida – de um lado ou de outro: seria o famoso “isentão.

Por não ecoarem a contento os discursos simplistas, facilmente manipuláveis por políticos hipócritas, os “isentões” são acusados pelos radiciais de não terem posições firmes. Na maioria das vezes, porém, os que são assim pejorativamente rotulados são aqueles que mais tiveram firmeza em suas posições, sustentadas a duras penas em meio à histeria e à intolerância a lhes exigir adesão.

O “isentão” seria o moderado. E esse moderantismo é tão importante que Bobbio chega a pensá-lo como uma nova díade. De um lado, o extremismo catastrófico, que interpreta a história como se ela desse saltos; de outro, o moderantismo gradualista, evolucionista e reformista.

Se considerarmos a definição proposta por Bobbio no livro “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política”, veremos que a liberdade, para ele, não é o critério para distinguir direita e esquerda, mas sim o critério para distinguir a ala política moderada da ala extremista.

Ele expõe um espectro político no qual a extrema-esquerda é concebida como um movimento igualitário e autoritário, a centro-esquerda como um movimento igualitário e libertário, a centro-direita como um movimento não-igualitário e libertário e a extrema-direita como um movimento não-igualitário e autoritário.

A igualdade, portanto, seria o critério para distinguir esquerda e direita, enquanto a liberdade seria o critério para distinguir a ala política moderada da ala extremista.

A extrema-direita está em marcha?

Voltando ao tema inicial da cobertura jornalística dos resultados das eleições do Parlamento Europeu como o sinal apocalíptico de uma extrema direita novamente em marcha na Europa, reiteramos a necessidade de mais prudência.

Como bem notou Douglas Murray, articulista da tradicional revista britânica, The Spectator, no artigo The trouble with calling everyone ‘far right’” (o problema de chamar todo mundo de ‘extrema direita’), o uso extensivo, abusivo e pouco rigoroso desse termo torna-o cada vez mais desprovido de significado.

Os principais meios de comunicação social descreveram recentemente os partidos europeus mais diversos como sendo de “extrema direita”: da Itália, tanto o partido de Giorgia Meloni,Fratelli d´Itália, quanto oLega Nord de Matteo Salvini e até os conservadores do país (Conservatori e Riformisti) receberam o mesmo rótulo que o Partij voor de Vrijheid (Partido pela Liberdade) dos países baixos, o Vox da Espanha, o Fidesz, de Orbán, na Hungria e dos partidos franceses Rassemblement National, de Le Pen e o Reconquête, de Éric Zemmour.

Esse apagamento das nuances no espectro político à direita, misturando sob o rótulo de extrema direita partidos e políticos extremistas ou radicais e os que não o são, só serve ao extremismo de lado oposto.

Aliás, alguém se alarmou com os quase 10% de votos obtidos pelo partido de extrema esquerda da França, La France Insoumise, no parlamento europeu? Trata-se de um partido radical, que vem atuando como um tipo de fascismo de esquerda antissemita e antidemocrático, com ostensiva demonstração de apoio ao grupo terrorista Hamas.

Rússia, Hamas e um novo critério de valor

O mundo está em guerra e as duas guerras que mais capturam o nosso interesse e atenção, a guerra entre Israel e Hamas e entre Rússia e Ucrânia servem, no meu entendimento, como pedra de toque, como novo critério de avaliação de partidos e de políticos nos tempos atuais.

Vimos que o extremismo de esquerda ou de direita têm em comum a aversão à democracia e a aversão às liberdades individuais. Pois bem, o mundo livre, o mundo democrático, o mundo onde os direitos individuais são protegidos é o mundo que está nesse momento sendo ameaçado por Putin e pelo fundamentalismo islâmico.

Por que, então, políticos como Giorgia Meloni da Itália ou Javier Milei da Argentina, que defendem a democracia e a liberdade, ao defenderem a Ucrânia e Israel, são rotulados de extremistas e um político como Lula, do Brasil, que fala e age claramente contra ambos, passa por político moderado?

Talvez porque alguns conceitos políticos tenham sido tão vulgarizados e deturpados que já não descrevem nada e deixaram de fazer sentido.