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Os escândalos e os abusos dos ministros do Supremo

Durante uma das sessões da CPI do Crime Organizado, o relator, senador Alessandro Vieira, criticou duramente o fato de ministros de tribunais superiores aceitarem privilégios ou demonstrarem proximidade com figuras envolvidas em investigações criminais. A fala foi feita no contexto da discussão do avanço do crime organizado e sua infiltração nos poderes da República:

Nós temos ministros que acham normal, cotidiano, caronas em jatinho, jatinho pago pelo crime organizado, notoriamente pelo crime organizado, não é surpresa. ‘Descobri hoje que era crime organizado…’ Não, o cara sabe que é crime organizado. Então, entra no jatinho, vai para uma viagem paga pelo crime organizado, acessa um evento de luxo pago pelo crime organizado, se hospeda em hotel de luxo pago pelo crime organizado.” 

Trata-se, como é sabido, de referência a episódio envolvendo o ministro Dias Toffoli, que tem se especializado no perdão de dívidas milionárias, causando robusto prejuízo aos cofres da União. 

“E aí eu volto ao ponto da minha provocação inicial – continuou Alessandro Vieira – Este é um país que já teve Presidente preso, que já teve ministro preso, Senador preso, Governador preso, Prefeito preso, Vereador, mas ainda não teve ministros de tribunais superiores. E me parece que este momento se avizinha.” 

O quadro, resumido nas palavras do senador Alessandro Vieira, relembra a sucessão de escândalos ocorridos na nossa inconstante República desde a chamada redemocratização e nos alerta para o fato de que, agora, até o próprio Supremo Tribunal Federal protagoniza as cenas escandalosas da nossa desvirtuada República.

Tendo por função precípua garantir o cumprimento da Constituição, o STF tem se esmerado em desrespeitá-la. Exemplo recente dessa audácia abusiva foi a liminar na qual o ministro Gilmar Mendes, legislando em causa própria para blindar a si mesmo e aos colegas, alterou trechos da Lei do Impeachment aplicáveis a ministros do STF.

O decano já recuou parcialmente da temerária empreitada inconstitucional; porém, vem sendo noticiado o encaminhamento de uma acomodação, com o Senado aceitando se prestar ao papel de providenciar um remendo constitucional que não desagrade totalmente os supremos ministros.

Enquanto isso, o ministro Alexandre de Moraes, reverenciado pela esquerda lulista como o salvador da nossa democracia, voltou aos holofotes por motivo nada republicano: o contrato de 129 milhões de reais do escritório de advocacia de sua esposa com o Banco Master.

Investigado e denunciado pela Polícia Federal por crimes financeiros, o Banco Master foi liquidado pelo Banco Central e teve alguns de seus dirigentes presos (punições abrandadas para medidas cautelares, com uso de tornozeleiras). 

Enquanto as investigações da PF ainda avançavam, o ministro Toffoli avocou o caso para o STF e estabeleceu rigoroso sigilo sobre todo o processo. Convém lembrar que um dos acompanhantes do ministro Toffolli na carona suspeita do jatinho era um dos advogados de um dos dirigentes do Banco Master.

Quanto à questão da contratação milionária do escritório de advocacia da mulher do ministro Alexandre de Moraes, deve-se considerar que os próprios ministros do STF já haviam, respondendo a uma demanda da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), mudado regra anterior proibitiva e decidido pela legalidade de casos desse tipo, estabelecendo que cônjuges e parentes de juízes podem advogar em causas em que seus clientes estejam em julgamento em qualquer Corte de Justiça. 

Cabe notar que o relator dessa causa de acintoso compadrio, ministro Edson Fachin, votou contra a demanda da AMB, tendo sido voto vencido. Fachin, que recentemente assumiu a presidência do STF, tenta no momento estabelecer um código de ética para os ministros da corte que preside. Sem surpresa, noticia-se que a resistência interna é grande.

Em uma perspectiva kantiana, a ética diz respeito à interioridade da ação, ao respeito à lei moral. A ética não pode ser imposta externamente: ninguém pode ser coagido a agir por dever. O campo da ética é o da autonomia, da consciência. 

Ora, se a casta dos supremos ministros trata com menosprezo a letra da lei constitucional, não se deixará constranger pela subjetividade de um código de ética. Não esperemos virtude onde já está claro que ela é inexistente. É preciso punir, pelo direito, aqueles que do direito abusam. 

Entre o tiroteio e a omissão: o colapso da segurança pública e o dever de valorizar quem protege a sociedade

A megaoperação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos, expõe um drama nacional: o Brasil ainda não encontrou o equilíbrio entre força legítima, coordenação institucional e presença social. A cada operação de grande escala, renova-se a sensação de que o Estado perdeu o controle de parte do território — e de que as respostas continuam sendo improvisadas.

A PEC 18 de 2025, em debate no Congresso, pretende constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e ampliar o papel da União na coordenação do setor. O objetivo é nobre — integrar políticas e garantir recursos —, mas o risco é transformar um problema de gestão em um problema de centralização. Segurança não se administra de Brasília. Ela se constrói com inteligência local, presença contínua e responsabilização real.

O SUSP já existe desde 2018, mas nunca funcionou plenamente. Faltam integração de dados, financiamento constante e mecanismos de controle. Constitucionalizar o sistema pode ser um avanço, desde que venha acompanhado de metas, transparência e fortalecimento das polícias estaduais, que são quem enfrenta o crime no dia a dia.

Também é necessário avaliar o impacto da decisão do STF na ADPF 635, a “ADPF das favelas”. Ao restringir operações durante a pandemia, buscou-se preservar vidas, mas o efeito colateral foi permitir que o crime organizado expandisse seu domínio em várias comunidades. Onde o Estado recua, o tráfico e as milícias ocupam o espaço.

O caminho para conter essa escalada passa por fortalecer a certeza da punição. Penas mais duras são necessárias, sim — mas de nada adiantam sem investigações eficazes, julgamentos céleres e presença institucional permanente. O que inibe o crime é a previsibilidade da lei e a autoridade do Estado, não apenas o tamanho da pena.

E é preciso dizer com clareza: os policiais militares merecem respeito e valorização. São homens e mulheres que arriscam a própria vida para proteger a sociedade, muitas vezes sem as condições adequadas de trabalho. Eles precisam de treinamento, tecnologia, apoio psicológico e respaldo jurídico — não de discursos vazios ou improvisos políticos.

A tragédia do Rio é um sinal de alerta. Se o Brasil não reconstruir seu modelo de segurança com base em inteligência, integração e valorização de quem protege o cidadão, continuaremos oscilando entre a omissão e o confronto.
O país precisa de uma política de segurança pública que una firmeza e humanidade — capaz de garantir paz com autoridade, e autoridade com responsabilidade.

Imagem gerada por inteligência artificial.

O crime do batom no país dos manés

Aqui, no país dos manés, onde a população sofre padecendo grandes necessidades, emendas parlamentares bilionárias seguem rotineiramente por caminhos desconhecidos indo, em muitos casos, para o bolso de corruptos.

Aqui, no país dos manés, os juízes, que, a começar pela Suprema Corte, deveriam garantir a Constituição e distribuir justiça para todos, tratam de distribuir para eles mesmos benesses e penduricalhos que elevam seus ganhos para muito além do teto constitucional.

Aqui, no país dos manés, os partidos políticos, cuja missão deveria ser mobilizar a sociedade para lutar contra tais abusos, mobilizam-se apenas para garantir para si uma boa fatia dos bilionários fundos partidário e eleitoral.

Aqui, no país dos manés, o crime organizado controla e estabelece suas leis em cidades e regiões inteiras.

É diante desse quadro desolador que a esquerda grita a expressão “Sem Anistia!” como principal bandeira de redenção nacional, preferindo punir e vingar-se de supostos inimigos a ocupar-se das inúmeras mazelas que oprimem o povo.

Instigado e validado pelo clamor dessa militância cega e raivosa, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido um rigor sem precedentes contra a “arraia miúda” que invadiu as sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023.

Muitos foram presos preventivamente e presos continuam; uns tantos já foram condenados a cumprir penas de até 17 anos de prisão.

Corre agora no Supremo o julgamento da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que usou batom para escrever a frase “perdeu mané” na estátua A Justiça (que fica em frente ao STF). O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, votou por uma condenação a 14 anos de prisão.

Muito se tem falado e escrito sobre isto; e é preciso que se continue a falar e escrever para que tais abusos de julgamento não prevaleçam.

É preciso enfrentar o estardalhaço da campanha Sem Anistia e perseverar na cobrança de que os possíveis delitos dos baderneiros do 8 de janeiro sejam julgados de forma individualizada em vez de serem entendidos todos como “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.”

O delito efetivo de Débora foi riscar uma estátua. Sua única “arma” era um batom. Por tal delito, uma daquelas penas alternativas de prestação de serviço público seria suficiente: um ano ajudando em serviços de limpeza estaria ótimo.

A pena de 14 anos para essa mãe de família, sem antecedentes criminais é um abuso, uma exorbitância, um descalabro jurídico, uma vingança política.

Quem reagiu politicamente a essa pena perversamente desproporcional foi o vigilante senador Alessandro Vieira, que apresentou um Projeto de Lei no sentido de corrigir distorções, não permitindo penas excessivas para quem cometeu atos “menos graves” durante as invasões do 8 de janeiro.

Do lado bolsonarista, porém, o que temos é a instrumentalização contínua do caso em favor do ex-presidente.

Misturam-se alhos com bugalhos como se Jair Bolsonaro e os que tramaram “virar a mesa” com ele estivessem na mesma condição de injustiçados quanto a cabeleireira com batom e outros presos pelo 8 de janeiro.

É preciso diferenciar entre massa de manobra e artífices reais da intentona bolsonarista. Punir devidamente os tubarões e soltar os peixes pequenos que foram arrastados a um ato impensado e irresponsável por quem efetivamente tramava um golpe.

Pena de 14 anos por pichar estátua é algo revoltante e comprova que Alexandre de Moraes tem se comportado mais como algoz do que como juiz.

Bolsonaro, porém, não é vítima. É preciso repudiar as penas excessivas sobre cidadãos comuns sem fazer o jogo vitimista e hipócrita daqueles que os colocaram nessa situação.

Voto crítico no órgão regional do Hemisfério Ocidental pode abrir a porta para a influência da China

Líderes no Hemisfério Ocidental enfrentam escolhas difíceis nos próximos meses enquanto se ajustam a uma nova administração dos EUA que está jogando por suas próprias regras em suas relações com a região. No entanto, uma escolha futura deve ser simples: a eleição de um novo secretário-geral para a Organização dos Estados Americanos em 10 de março.

O resultado da votação influenciará se a América Latina será capaz de conter regimes autoritários, combater o crime organizado e conter a crescente presença da China no hemisfério. Mais amplamente, moldará a capacidade da região de navegar no que está se configurando para ser um período tumultuado nas relações EUA-América Latina.

Após 10 anos sob a liderança do diplomata uruguaio Luis Almagro, a disputa entre o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai Rubén Ramírez Lezcano e o diplomata surinamês Albert Ramdin representa mais do que uma transição de liderança de rotina. É um referendo sobre se a OEA manterá seu papel tradicional como defensora da democracia ou mudará para acomodar influências autoritárias na região.

Ramírez enfatiza o papel crítico da OEA no apoio à democracia e direitos humanos e pede esforços mais concentrados contra o crime organizado e lavagem de dinheiro. O Paraguai é o último aliado diplomático da América do Sul de Taiwan e um dos aliados mais próximos de Israel na América Latina, e seu apoio à oposição democrática da Venezuela levou o regime de Maduro a romper relações diplomáticas com o Paraguai em janeiro.

Em contraste, Ramdin defende uma abordagem mais permissiva em relação ao regime autoritário da Venezuela, priorizando o diálogo em vez da responsabilidade democrática. Ramdin conhece bem a organização, tendo atuado como secretário-geral assistente de 2005 a 2015, e sugeriu que o potencial do Suriname como um grande produtor de petróleo o posicionaria para vencer a eleição. Embora o Suriname tenha relações amigáveis ​​com os Estados Unidos, ele é mais próximo da China, que apoia a candidatura de Ramdin. Ramdin falou calorosamente sobre o papel da China no desenvolvimento do Suriname, inclusive por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, à qual o Suriname aderiu em 2018.

Para alguns na região que já veem a OEA como muito amigável aos EUA, a tentação será apoiar o candidato que for menos atraente para Washington. Isso seria um erro. Os países da região estão experimentando uma série de desafios interconectados – insegurança, corrupção e erosão democrática entre eles – que exigem maior resolução coletiva e coordenação. A região precisa desesperadamente superar compromissos ideológicos e encontrar maneiras de se unir, ou corre o risco de se tornar um alvo mais fácil para atores malignos e perder relevância no cenário mundial.

O resultado da votação também importa para os Estados Unidos. A OEA continua a plataforma multilateral mais eficaz para o envolvimento dos EUA com o hemisfério. Ao contrário de outros fóruns, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, ou CELAC, onde os EUA não têm um assento à mesa, a OEA geralmente se alinhou com os objetivos dos EUA e promoveu valores democráticos nas Américas.

A estratégia atual do governo Trump de pressão bilateral para enfraquecer o envolvimento da região com a China pode render concessões em alguns casos, mas não é suficiente para a tarefa maior de reconstruir a influência dos EUA na região. A América precisa de uma agenda mais ampla e positiva, e uma OEA forte sob liderança com ideias semelhantes poderia fornecer a plataforma para isso, especialmente em áreas como segurança, estado de direito e desenvolvimento.

Alguns críticos podem argumentar que as limitações da OEA a tornam indigna de atenção séria, mas tal visão é míope. É verdade que a OEA exibe muitas das fraquezas comuns a órgãos multilaterais, com uma ênfase indevida no consenso e capacidade limitada de fazer cumprir decisões. Ela também é cronicamente subfinanciada.

No entanto, apesar de suas imperfeições, a OEA continua sendo um importante baluarte para a democracia na região. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA documentou vigorosamente os esforços sistemáticos da Venezuela para suprimir a participação da oposição na política, impedir eleições livres e incutir medo entre os venezuelanos. E em agosto de 2024, os estados-membros da OEA votaram para instar a Venezuela a divulgar as contagens eleitorais e fornecer verificação imparcial dos resultados.

A escolha que os estados-membros da OEA enfrentam não é apenas entre dois candidatos — é entre manter o compromisso da organização com a democracia e permitir que a OEA e o hemisfério se dividam ainda mais. Para governos que buscam virar a página da atual instabilidade e deriva democrática na região, apoiar Ramírez é um imperativo.

Além do G20

O Brasil, sob o governo Lula, já escolheu de qual lado ficará na disputa geopolítica mundial entre democracias e autocracias. E a resposta é clara: estamos alinhados ao eixo autocrático. A decisão foi consolidada com uma série de acordos que colocam o país em sinergia com o projeto global da China, mesmo que isso seja convenientemente disfarçado por discursos sobre interesses meramente comerciais.

A nova dinâmica foi celebrada pela embaixada chinesa, que não perdeu tempo em anunciar que as relações entre Brasil e China atingiram “um novo patamar”. Isso inclui a formação de um grupo de trabalho para alinhar as políticas de desenvolvimento brasileiras à Nova Rota da Seda, o plano de expansão econômica e política do governo chinês. A adesão oficial não foi anunciada, mas os mais de 40 acordos assinados, incluindo áreas sensíveis como inteligência e satélites, já indicam o caminho.

O discurso público do governo brasileiro, no entanto, joga com a ambiguidade. A narrativa oficial tenta afastar preocupações, enfatizando a natureza “comercial” da parceria. É a típica estratégia de soft power usada pelo governo chinês: sugerir um afastamento para não alarmar, enquanto os fatos mostram o contrário. Quem questiona esse alinhamento é rapidamente taxado de exagerado ou bolsonarista, como se fosse impossível criticar a aproximação com uma ditadura sem cair em extremos ideológicos.

O que muda?

Mas o que realmente muda com esse novo alinhamento? Não é apenas uma questão de acordos econômicos. É sobre os valores que o Brasil está disposto a endossar.

A China é uma autocracia que reprime dissidentes, proíbe religiões, mantém campos de concentração para a minoria Uigur e censura qualquer oposição. Essa postura ficou evidente durante o G20, realizado em território brasileiro, quando seguranças chineses foram rápidos ao intervir com manifestantes e jornalistas. E o governo brasileiro? Permaneceu calado.

Essa omissão não é apenas simbólica, ela reflete o novo posicionamento estratégico do Brasil. Ao ignorar ações antidemocráticas em seu próprio território, o país dá um recado claro sobre suas prioridades. Não se trata apenas de pragmatismo econômico, mas de uma escolha ideológica: sacrificar a transparência e os valores democráticos em nome de benefícios comerciais e alianças políticas convenientes.

“Anti-patriotismo”?

E quem critica essa aproximação com autocracias? Os apoiadores do governo rapidamente transformam qualquer crítica em uma afronta ao Brasil. A estratégia é conhecida: alinhar discordâncias a um discurso de “anti-patriotismo”, como se questionar relações com ditaduras fosse um ataque ao país e não uma defesa de seus princípios.

Paralelamente, a oposição política parece incapaz de formular uma resposta eficiente. Em vez de um discurso claro e fundamentado, opta por uma retórica do “eu avisei”, que mais parece birra de quinta série do que uma defesa séria da democracia.

O alinhamento do Brasil com a China de Xi Jinping não é um fato isolado, mas parte de um movimento maior que redefine o papel do país no cenário global. A questão não é apenas econômica, mas moral e estratégica. O governo Lula deve ser transparente sobre o custo dessa escolha porque os impactos não se limitam a balanças comerciais ou parcerias de infraestrutura. Eles dizem respeito ao tipo de nação que o Brasil deseja ser.

Democracia não se defende com boas intenções ou discursos genéricos. Ela exige ação consistente, clareza e coragem para enfrentar as consequências de escolhas difíceis. O tempo dirá se o Brasil optará por isso ou se contentará com a conveniência de alianças que comprometem os valores que uma democracia deveria sustentar.

Como o crime organizado deforma a democracia latino-americana

Quando o crime está em ascensão, a própria democracia sofre uma crise de confiança.

O assassinato do candidato presidencial equatoriano Fernando Villavicencio, há um mês, sublinha uma ameaça crescente à democracia em toda a América Latina: a influência crescente de grupos criminosos e de governos que parecem relutantes ou incapazes de enfrentar o crime organizado.

O poder do crime organizado põe em risco o futuro da região e, como importante motor da migração para os Estados Unidos, aponta para uma deterioração ainda maior da crise fronteiriça antes de melhorar.

O crime organizado está presente na América Latina há décadas, mas aumentou dramaticamente a sua presença geográfica nos últimos anos e evoluiu para se tornar mais adaptável e inovador. Mesmo com o aumento da produção e do tráfico de drogas, muitas organizações criminosas diversificaram-se para outras atividades, como a extorsão, a mineração de ouro e o tráfico de seres humanos. Em alguns países, grupos criminosos outrora dominantes dividiram-se em grupos menores. E as linhas entre organizações criminosas e grupos armados de orientação ideológica tornaram-se cada vez mais tênues.

Esta expansão do crime organizado ameaça a democracia latino-americana em vários níveis.

Primeiro, o fracasso dos governos democráticos em fazer progressos contra o crime reforça a crença de que a democracia não é adequada para resolver problemas. Isto é visto mais claramente na edição de 2023 da pesquisa de opinião pública Latinobarómetro, que conclui que apenas 48% dos latino-americanos preferem a democracia a outros sistemas de governo (abaixo dos 63% em 2010), e que um número crescente está aberto ao autoritarismo. A turbulência política em alguns países reduziu ainda mais o foco dos governos no crime, minando qualquer possibilidade de consenso sobre políticas anticrime e reduzindo a coordenação entre governos, criando mais oportunidades para a exploração do crime organizado.

As organizações criminosas também estão corroendo a democracia através das suas extensas ligações com as elites políticas da região. Antes de ser assassinado, Villavicencio denunciou a classe política do seu país por ter sido contaminada pelo crime organizado, num caso apresentando uma queixa contra 21 candidatos a presidente de câmara com alegadas ligações a grupos criminosos. À medida que o crime organizado se tornou mais fragmentado e se expandiu para novas atividades, procurou novas alianças políticas, o que foi facilitado pela fraqueza dos partidos políticos.

Em alguns países, o crime organizado também desafia diretamente a governança democrática, intimidando funcionários ou impedindo os governos de desempenharem funções básicas.

Na Colômbia, os grupos criminosos expandiram o seu controle territorial, ameaçando ou banindo funcionários eleitos que não cooperam, apropriando-se de fundos públicos destinados a infraestruturas e outros serviços, ou restringindo a circulação dos residentes. A Ouvidoria de Justiça da Colômbia alertou recentemente que as eleições regionais marcadas para 29 de outubro poderiam ser comprometidas pela expansão de grupos criminosos e pela sua interferência no processo eleitoral.

No México, os cartéis exibem regularmente a sua força, desafiando cada vez mais o monopólio governamental sobre a violência. O destacamento mais frequente de militares por parte do Presidente López Obrador para combater os cartéis não resultou em ganhos tangíveis para os mexicanos que estão sujeitos às depredações dos cartéis.

De acordo com um estudo da Universidade de Chicago, 13% da população da América Latina vive atualmente sob um sistema de governança criminal, no qual o crime organizado governa ou co-governa um território ou população. O exemplo mais extremo está na Venezuela, onde o regime de Nicolás Maduro preside um sistema em que grupos criminosos favorecidos colaboram com o regime para ajudá-lo a manter o controle e a explorar conjuntamente o tráfico de drogas e a mineração ilegal de ouro.

A criminalidade na região está criando um terreno fértil para regimes mais autoritários. Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele subjugou as notórias gangues de rua do país através de um programa de encarceramento em massa e mantendo um estado de emergência desde março de 2022. Ele agora tem o maior índice de aprovação de qualquer líder na região, está sendo copiado nos países vizinhos Honduras e está inspirando líderes com ideias semelhantes em toda a região. Ele também planeja concorrer à reeleição, embora a Constituição de El Salvador proíba a reeleição presidencial.

À medida que o crime organizado continua a evoluir e a expandir-se, os líderes democráticos da região devem trabalhar para demonstrar que é possível combater o crime organizado no contexto de uma democracia robusta. Isto exige que os governos mantenham um compromisso de longo prazo para construir sistemas de aplicação da lei e de justiça que possam resistir à influência corruptora dos criminosos, desenvolver abordagens localizadas que reflitam a natureza adaptável e fragmentada do crime organizado atual e cooperar entre si no combate às organizações transnacionais.

Também exige maior compromisso e urgência por parte dos Estados Unidos. A população da América Latina precisa de melhores opções do que os modelos da Venezuela e de El Salvador.

Publicado originalmente no Dallas Morning News.