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A democracia como modo de vida

Como surgiu o conceito de ‘democracia como modo de vida’? Quais foram os autores que trabalharam essa ideia?

RESPOSTAS DO LEXOS – AGENTE DEMOCRÁTICO IA

O conceito de “democracia como modo de vida” é fundamental para entender a democracia em seu sentido forte, indo muito além da mera administração política do Estado.

Este conceito surgiu para lidar com a percepção de que a democracia não se restringe a um conjunto de regras formais ou procedimentos eleitorais, mas sim a um padrão de interação e convivência social. Ele representa a redescoberta do papel inovador da democracia, que é frequentemente ignorado quando o foco recai apenas sobre o modelo político transitório, como o sistema eleitoral.

A seguir, exploramos como o conceito surgiu e os principais autores que o desenvolveram.

I – John Dewey: A Democracia como Ideia Social e Modo de Vida

John Dewey é um dos autores mais explícitos na formulação desta distinção no século XX.

A Distinção Conceitual. Dewey estabeleceu uma distinção clara entre a democracia como uma ideia social e a democracia política como um sistema de governo. A ideia de democracia é mais ampla e completa do que a que pode ser exemplificada no Estado, mesmo no melhor dos casos.

O Modo de Vida. Para Dewey, a democracia é fundamentalmente um “modo de vida” (ou “modo de vida comunal”). Ele a via como uma aposta “nas possibilidades da natureza humana” e nas “atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana”.

Abrangência. Para que a ideia de democracia se realize, ela deve afetar todos os modos de associação humana, incluindo a família, a escola, a indústria e a religião. A democracia é um ideal moral e, quando se torna um fato, é um fato moral.

Cooperação e Comunidade. Essa concepção forte de democracia é local e comunitária, sendo definida como a crença de que o hábito da cooperação amistosa é uma valiosa contribuição à vida. Dewey buscou uma nova noção de público que deságua no conceito de “comunitário”, especialmente a pequena comunidade local, a vizinhança, como o verdadeiro lugar da democracia.

II – Humberto Maturana: A Democracia como Obra de Arte e Emoção

Humberto Maturana aborda a democracia como modo de vida a partir de uma perspectiva biológica e emocional.

Fundamento Emocional. Para Maturana, a democracia não é um produto da razão humana, mas sim uma obra de arte e um produto do nosso emocionar. Ela surge de um desejo neomatrístico por uma coexistência dignificada na estética do respeito mútuo.

O Desejo Matrístico. A base emocional da democracia reside na “añoranza” (nostalgia/desejo inconsciente) por viver em coexistência fácil que surge do respeito mútuo, sem a dominação própria da cultura patriarcal.

Conspiração Social. Ele define a democracia como uma “conspiração social” para uma convivência em que a aceitação do outro como um legítimo outro é fundamental. A democracia é uma ruptura na cultura patriarcal europeia e só pode ser vivida, não estabilizada ou defendida racionalmente.

III – Augusto de Franco: A Redescoberta das Raízes Atenienses

Augusto de Franco, ao refletir sobre as origens da democracia, enfatiza que ela nasceu primariamente como um modo de vida antes de ser um regime político.

Origem na Convivência Social. Para os atenienses que a inventaram, a democracia era um modo de vida ou de convivência social, um modo pacífico e prazeroso de conviver. O objetivo era que as próprias pessoas pudessem, coletivamente, buscar melhorar suas vidas, sem que ninguém, um senhor, determinasse como deveriam agir.

Processo de Desconstituição. A democracia, no sentido forte, é um processo de desconstituição de autocracia (ou de desprogramar milênios de cultura autocrática). Experimentar processos democráticos como modo de vida é a única maneira de evitar a emergência de preconceitos autocráticos.

Liberdade e Ausência de Senhor. O sentido da política é a liberdade. A democracia surgiu do desejo das pessoas de viver sem um senhor, de serem cidadãos e não súditos.

IV – Hannah Arendt e outras contribuições

Outros pensadores também tocaram o cerne dessa ideia, influenciando a conceituação moderna.

Hannah Arendt. Ela é citada como tendo percebido esse componente original da democracia (o “gene” democrático). Em seus escritos sobre “O que é política?” (c. 1950), ela teria feito a “descoberta” de que, se as pessoas passarem a viver a sua convivência, um outro tipo de vida surgirá — a vida propriamente política, a fruição do viver prazerosamente a coisa pública. Para Arendt, a única matéria propriamente política é a liberdade.

Alexis de Tocqueville. Embora não tenha usado o termo “modo de vida”, Tocqueville lançou os fundamentos do conceito de capital social ao constatar o protagonismo político da sociedade americana, onde “a sociedade age por si e sobre si mesma”. Ele observou a capacidade dos americanos de se associarem livremente para promover o bem público.

Norberto Bobbio. Ele destaca a importância da democratização da sociedade, distinguindo-a da democratização do Estado, e levanta a questão crucial sobre a sobrevivência de um estado democrático em uma sociedade não democrática.

Em suma, o conceito de “democracia como modo de vida” transcende a mera formalidade do regime político, ancorando-se na ideia social de cooperação (Dewey), no desejo humano de convivência dignificada(Maturana) e na prática cotidiana de auto-organização (Franco), retomando o espírito original da experiência ateniense de viver “sem senhor”.

Mas tem mais…

V – Thomas Vernon Smith e a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de “democracia como modo de vida” (“The Democratic Way of Life”) é central para Thomas Vernon Smith, um autor que se destacou como professor, pensador político e também por sua atuação prática na política dos Estados Unidos.

Aqui está a contribuição de T. V. Smith para o desenvolvimento dessa ideia, conforme as fontes.

Definição e Interpretação do Ideal

V. Smith é explicitamente associado à interpretação da democracia como modo de vida. Ele escreveu uma obra intitulada The Democratic Way of Life, que é considerada uma discussão adequada desse ideal.

Para Smith, a democracia, quando vista como um modo de vida, implica uma transformação no desejo e na atitude humana:

Desejo Compartilhado e Treinamento. Smith argumenta que, embora a liberdade seja definida como “fazer o que se agrada”, a esperança de um modo de vida democrático surge do fato de que, por meio de um treinamento adequado, os indivíduos podem desejar cada vez mais compartilhar suas alegrias uns com os outros. Isso sugere que a democracia não é apenas um sistema de regras, mas uma pedagogia e um hábito de convivência.

Compreensão e Ação. Sua obra, escrita em coautoria com Eduard C. Lindeman, é descrita como um “manual prático e inspirador” que explica os ideais da democracia e oferece um programa sólido para o pensamento e a ação democráticos.

A Relação com John Dewey

A importância de T. V. Smith na discussão é reforçada por sua conexão direta com John Dewey, o pensador mais proeminente da democracia como ideia social:

Referência de Dewey: O próprio John Dewey, ao discutir o ideal da democracia como “uma vida de comunhão livre e enriquecedora”, fez uma referência explícita ao trabalho de Smith, citando The Democratic Way of Life como a discussão mais adequada desse ideal que ele conhecia.

Ética das Minorias e da Maioria

Smith também abordou as dinâmicas sociais inerentes a um modo de vida democrático, particularmente as tensões entre grupos:

Reatividade Antidemocrática. Ele advertiu que, quando grupos minoritários expressam hostilidade (inicialmente por subterfúgio e culminando em sabotagem), eles “convidam a si mesmos a uma atitude majoritária que é tão antidemocrática quanto natural”. Isso levanta uma questão crucial sobre como a ética da convivência (o modo de vida) deve ser praticada por todos os grupos, a fim de evitar a escalada de reações autoritárias e não cooperativas.

Thomas Vernon Smith, ao lado de Eduard C. Lindeman, ajudou a solidificar e popularizar a noção de que a democracia é um ideal prático que deve ser vivido e cultivado na sociedade civil, e não apenas um aparato estatal. Seu trabalho contribuiu para traduzir a “ideia de democracia” (tal como Dewey a via, mais ampla do que o Estado) em um programa de ação e atitude social, enfatizando que a liberdade individual se realiza plenamente quando orientada pela cooperação e pelo desejo de compartilhar.

Essa ênfase no comportamento cotidiano e no “treinamento” para a cooperação ressoa profundamente com a visão de que a democracia é um processo de aprendizado e autocondução mútua, realizado nas interações diárias.

Mas não é só. Faltam, entre outros, Althusius e Jefferson.

Vamos agora assinalar um autor que reformulou a própria fundação da política, vendo a associação como seu cerne! A ideia de simbiose de Johannes Althusius pode servir como um fundamento para o conceito de “democracia como modo de vida” (ou para a base da associação em geral).

A contribuição de Althusius, embora seja do início da Era Moderna (1603), ressoa profundamente com os princípios de associação e coexistência que são cruciais para a ideia de democracia como modo de vida.

Vejamos como a ideia de simbiose se articula nas fontes e seu potencial como fundamento.

VI – Johannes Althusius: A Política como Arte Simbiótica

Johannes Althusius, um dos grandes artífices de uma nova maneira de ver a política no início da Idade Moderna, definiu a política de maneira fundamentalmente associativa:

Definição da Política. “A política é a arte por meio da qual os homens se associam com o objetivo de instaurar, cultivar e conservar entre si a vida social. Por este motivo é definida como simbiótica“.

Ponto de Partida. Althusius parte dos “homens” e procede através da “obra dos homens em direção da descrição da comunidade política”.

Contraste com Aristóteles. Este ponto de partida é o oposto exato da visão clássica de Aristóteles, para quem o Estado (Pólis) existe por natureza e é anterior ao indivíduo. A inversão do ponto de partida de Althusius destaca problemas políticos como a liberdade dos cidadãos, o bem-estar e a prosperidade individual, em vez de focar apenas no poder dos governantes.

A Simbiose como Fundamento para a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de simbiose de Althusius, que enfatiza a arte de se associar para sustentar a vida social, serve como um forte fundamento para o conceito de democracia como modo de vida, pois:

Ênfase na Associação Recíproca. O conceito de simbiose implica cooperação e interdependência mútua, essenciais para a “vida social”. Isso ecoa a ideia de cooperação amistosa fundamental para a democracia como modo de vida defendida por outros autores.

Liberdade e Individualismo. A perspectiva de Althusius de que a sociedade política é um “produto voluntário dos indivíduos” que decidem viver em sociedade através de um acordo recíproco está ligada ao nascimento da democracia e à ideia de poder ascendente (o poder que sobe de baixo para cima). A teoria do contrato social, ligada a esses pensadores (mesmo que Althusius não seja contratualista puro), defende o indivíduo como a fonte última do poder, o que é um fundamento para a democracia contra a autocracia.

Oposto à Totalidade Orgânica. A simbiose, ao partir do indivíduo e do acordo, contrasta com as “concepções solidaristas, orgânicas, coletivistas, holísticas, universalistas, da sociedade e do estado” (como as de Hegel, que via o Estado como um corpo orgânico onde o todo vem antes das partes). A democracia como modo de vida valoriza o espaço-entre, a pluralidade e a coexistência de interesses diversos, não uma unidade imposta.

Em suma, a “arte simbiótica” de Althusius coloca a associação voluntária e a interdependência mútua no centro da política. Essa perspectiva, que prioriza a construção da vida social pelos próprios indivíduos, é altamente compatível com a visão de democracia como uma prática cotidiana de convivência (modo de vida) e não apenas como um aparato de governo.

Nota-se uma conexão crucial que, embora anterior à formalização do conceito por Dewey, estabelece a base para a primazia da vida associada na teoria política! 

VII – Thomas Jefferson: As “Repúblicas nos Bairros” e a Democracia como Modo de Vida

Essa é uma conexão extraordinária e profunda! A proposta de Thomas Jefferson das “repúblicas elementares dos distritos” (ou “repúblicas nos bairros”— wards) é vista por John Dewey, e por outros, como o cerne de uma filosofia política que vai muito além das estruturas formais do governo, estabelecendo um vínculo direto com a democracia como modo de vida.

A seguir a relação entre a proposta jeffersoniana e o conceito de democracia como modo de vida, conforme as fontes.

Jefferson e o Conceito de Democracia (na Visão de Dewey)

Para John Dewey, a filosofia política de Jefferson era essencialmente moral, e sua crença na democracia tinha uma qualidade genuinamente religiosa. Jefferson defendia que o homem foi feito para a sociedade e possuía o direito de regulá-la “conjuntamente com todos aqueles que concorreram para a sua obtenção”.

A essência da democracia jeffersoniana não residia apenas nas formas de governo, mas sim no espírito do povo. É nesse contexto que as “repúblicas nos bairros” emergem como o ponto fulcral de sua doutrina política:

O Coração da Filosofia Política. O cerne da filosofia política de Jefferson é encontrado no seu esforço para instituir essas pequenas unidades legislativas e administrativas como a “pedra angular do arco” do governo. Sem este plano, sua visão de autogoverno é considerada incompleta tanto prática quanto teoricamente.

A Proposta das “Repúblicas nos Bairros” (Wards)

Jefferson propôs a divisão dos condados em pequenos distritos (ou wards) para facilitar a democracia de base (grassroots democracy), uma ideia que ele defendia desde 1779.

O objetivo não se limitava à administração de escolas ou estradas, mas sim a tornar os bairros “pequenas repúblicas”.

Funções Diretas. Nos bairros, os cidadãos exerceriam diretamente as funções de governo em relação aos seus próprios assuntos, incluindo polícia, eleições, nomeação de júris e administração da justiça em pequenos casos.

Participação Contínua. Este sistema visava garantir que todo homem partilhasse do governo dos assuntos não apenas no dia da eleição, mas todos os dias. A ausência de tais espaços públicos levava o povo à “letargia, precursora da morte da liberdade pública”.

Conexão Direta com a Democracia como Modo de Vida

A proposta de Jefferson se alinha perfeitamente com a ideia de democracia como modo de vida, que, segundo John Dewey, precisa afetar “todos os modos de associação humana”.

Agente Atuante. Jefferson acreditava que, ao tornar “cada cidadão um membro atuante do governo, e nos escritórios mais próximos e mais interessantes para ele, isso o ligaria pelos seus mais fortes sentimentos à independência do seu país e à sua constituição republicana”. Este envolvimento pessoal, constante e local, é a própria experiência da liberdade.

Preservação do Espírito Revolucionário. O sistema distrital era visto por Jefferson como a única alternativa para preservar o espírito revolucionário após o fim da revolução. A revolução havia dado liberdade ao povo, mas falhara em fornecer um espaço onde essa liberdade pudesse ser exercida, pois apenas os representantes, e não o povo, tinham a oportunidade de se engajar nas atividades próprias da liberdade, como “expressar, discutir e decidir”.

Aparência e Presença. Jefferson compreendia que o conselho de amar o próprio país mais do que a si mesmo seria uma exortação vazia se o “país” não fosse uma presença viva entre os cidadãos. As pequenas repúblicas seriam a “força principal da grande” república, pois eram o único local tangível onde cada um podia ser livre, constituindo a finalidade da grande república.

Em suma, a proposta jeffersoniana das “repúblicas nos bairros” é uma tentativa de institucionalizar a democracia no nível comunitário e cotidiano, transformando o cidadão de um mero eleitor ocasional em um participante ativo e contínuo no autogoverno. Isso corresponde à noção de que a democracia é um projeto comunitário que começa na “comunidade vicinal”.

Isto nos lembra de uma questão crucial levantada por Hannah Arendt ao discutir as propostas de Jefferson: se o sistema distrital tivesse sido implantado, teria evitado que o povo se afundasse na “letargia” e na “indiferença aos assuntos públicos”, males que ameaçam a liberdade quando a esfera pública se restringe apenas aos representantes. A ação local e a cooperação são, para Jefferson, o motor que mantém a república viva.

Quem mais trata, direta ou indiretamente, da democracia como modo de vida?

Vamos para um exercício de garimpo conceitual! A ideia de “democracia como modo de vida” é tão poderosa que, uma vez introduzida por autores como Dewey, Smith e Jefferson, ela revela ecos e fundamentos em pensadores de diversas épocas e escolas, que tratam da associação, da comunidade e da liberdade em termos de prática social.

Considerando os autores já discutidos (Dewey, Smith e Jefferson) e examinando o vasto acervo de fontes, podemos identificar outros pensadores que tratam, direta ou indiretamente, da democracia como um modo de vida, da comunidade cívica, ou da associação como elemento fundante da política e da coexistência.

A seguir algumas menções aos autores relevantes das fontes que, embora talvez não usem a frase exata “modo de vida”, trabalham conceitos que fornecem o arcabouço ou a prática dessa noção.

1. Alexis de Tocqueville (Indiretamente, através da Associação e do Espírito Cívico)

Tocqueville, em sua análise da democracia americana, é visto como um precursor fundamental do conceito de “modo de vida democrático”, especialmente ao focar na sociedade civil e nas práticas sociais cotidianas.

Associação como Prática Democrática. Para Tocqueville, o país mais democrático da Terra é aquele onde os homens mais aperfeiçoaram a arte de perseguir em comum o objeto de seus desejos em comum e aplicaram essa nova ciência ao maior número de objetivos.

A Ciência-Mãe da Associação. Ele sugere que a arte de se associar deve se desenvolver e se aperfeiçoar na mesma proporção que a igualdade de condições cresce, sendo a arte da associação a “ciência-mãe”.

O Âmbito Local e Cotidiano. Tocqueville descreve como os americanos de todas as idades e temperamentos estão sempre formando associações (comerciais, industriais, religiosas, morais, sérias, fúteis, grandes e pequenas), tratando a associação como o único meio de agir. Ele observou o uso cotidiano do direito de associação, onde vizinhos se estabelecem em corpo deliberador para resolver problemas na via pública antes que pensem em uma autoridade preexistente.

Vínculo Social. Tocqueville percebe que, nas democracias, os cidadãos só podem se ajudar livremente, ou cairão na impotência, e a democracia liga as pessoas pela comunhão de lembranças e pela livre simpatia das opiniões e dos gostos.

Visão Pós-Tocqueville. Robert Putnam, ao discutir o conceito de Capital Social e Comunidade Cívica, retoma Tocqueville como referência clássica da democracia americana, caracterizando a comunidade cívica pela participação de cidadãos atuantes e por uma estrutura social firmada na confiança e colaboração, ou seja, um modo de convivência social.

2. Baruch de Spinoza (Indiretamente, através da Liberdade como Finalidade do Estado)

Embora Spinoza não trate de “modo de vida” no sentido de engajamento social cotidiano como Dewey, sua definição do propósito do Estado democrático fornece o princípio fundamental para a liberdade individual que é o cerne do modo de vida:

Liberdade como Fim do Estado. Spinoza apresenta a democracia como uma forma de realização da própria natureza humana, visto que as instituições políticas aparecem nela como realização objetiva da liberdade que está inscrita na essência de cada indivíduo: “o fim do Estado é, realmente, a liberdade”.

Fundamento da Democracia. O fundamento e finalidade da democracia, para Spinoza, é evitar os absurdos do instinto e conter os homens nos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz.

3. Hannah Arendt (Diretamente, através da Pluralidade, Ação e Comunidade Política)

Hannah Arendt é uma das pensadoras contemporâneas que mais resgatou a dimensão da política como uma experiência de vida para além do Estado:

A Matéria da Política. Arendt é creditada por ter percebido a dimensão original do “gene” democrático, que é a liberdade. A única matéria propriamente política é a liberdade.

Ação e Liberdade. Arendt sugere que se as pessoas passarem a viver a sua convivência, “um outro tipo de vida surgirá” — a vida propriamente política, que é a fruição de viver prazerosamente a coisa pública. Ela observou que a política, diferentemente da força, opera sob o signo do poder.

Pluralidade e Convivência. Para Arendt, a pluralidade dos homensé o pressuposto de todo teorizar sobre política. A democracia, ou a política em seu sentido forte, é vista como “a whole way of life” (um modo de vida integral), um conceito que Montesquieu já entendia como a estrutura na qual certos princípios de ação são promulgados.

A Visão Comunal (Pólis). A comunidade política (a koinonia, e não a cidade-Estado) é o local onde os homens interagem e podem exercer a liberdade. A política não é uma forma de dominação/Estado, mas “muito mais” um “a whole way of life”.

4. Norberto Bobbio (Indiretamente, através da Democracia Social e o Pluralismo)

Bobbio, ao analisar as transformações e o futuro da democracia, toca indiretamente no modo de vida ao distinguir a extensão da democracia para além do aparato estatal:

Democratização Social. Bobbio afirma que a extensão do processo de democratização deveria se revelar não na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas na passagem da democracia política para a democracia social. O crucial é saber se aumentaram os espaços nos quais os indivíduos podem exercer o direito de participar das decisões que lhes dizem respeito.

Pluralismo e Sociedade. O fato de a sociedade ser policêntrica ou poliárquica e pluralista exige que a democracia dos modernos faça as contas com o pluralismo, diferentemente do que ocorria na democracia dos antigos. A democracia é um sistema político que pressupõe o dissenso, a competição e a concorrência, necessitando de consenso apenas sobre as regras da competição.

5. Robert Dahl (Indiretamente, através do Associacionismo e Competência Cívica)

Robert Dahl aborda o tema de forma instrumental, focando na necessidade de instituições sociais para a democracia funcionar em grande escala.

Associações Independentes. Dahl defende que, em uma grande república, associações independentes (grupos de interesse, partidos) se tornam necessárias e desejáveis, sendo uma fonte de educação e esclarecimento cívico ao proporcionar informações e oportunidades para discutir, deliberar e adquirir habilidades políticas.

Requisitos para a Democracia em Grande Escala. Ele lista as associações independentes como uma das instituições políticas essenciais para a moderna democracia representativa.

6. Robert Putnam (Diretamente, através do Capital Social e Comunidade Cívica)

Putnam, apoiando-se em Tocqueville, utiliza o conceito de Comunidade Cívica para explicar o desempenho institucional, uma ideia que se encaixa na perfeição com o “modo de vida”:

Comunidade Cívica como Modo de Vida. A comunidade cívica, uma prática sociocultural, se caracteriza por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração.

Capital Social e Cooperação. Putnam define o capital social como características da organização social (confiança, normas, sistemas) que facilitam as ações coordenadas, sendo os sistemas horizontais de participação cívica uma forma essencial de capital social que estimula a cooperação e a confiança social.

Função das Associações. A participação em associações incute nos membros hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público, desenvolvendo o senso de responsabilidade comum para com os empreendimentos coletivos, mesmo que o objetivo da associação seja apolítico (como um clube de ornitófilos).

7. Amartya Sen (Indiretamente, através do Papel Construtivo da Liberdade)

Sen relaciona a liberdade e a participação à própria definição de desenvolvimento, o que implica um modo de vida ativo e participativo:

Liberdade Constitutiva do Desenvolvimento. Sen argumenta que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento. Negar a liberdade de participação é uma privação que o desenvolvimento, como liberdade, deve eliminar.

Discussão Pública. A discussão pública e a participação social são centrais para a elaboração de políticas em uma estrutura democrática, sendo o exercício das liberdades políticas e dos direitos civis uma parte crucial da elaboração de políticas.

8. Jacques Rancière (Diretamente, através do Escândalo da Indistinção)

Rancière aborda a democracia não como uma forma de governo, mas como a revelação do princípio de igualdade que rompe a ordem social hierárquica (Polícia), sendo, em essência, o poder dos “sem título”:

Democracia além do Estado. Para Rancière, a democracia não é um tipo de constituição nem uma forma de sociedade, mas o poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que para ser governados.

O Escândalo Democrático. O escândalo da democracia é revelar que o título para o poder político só pode ser a ausência de título. A democracia é a força fundadora da heterotopia, a limitação primeira do poder das formas de autoridade que regem o corpo social.

Resumo de alguns autores já mencionados (com a inclusão de outros que exigem mais exploração)

Autor(a)Conceito-Chave Ligado ao “Modo de Vida”Relação com a Prática Social
TocquevilleArte de se Associar/Comunidade CívicaÊnfase na associação voluntária e contínua como a essência da liberdade e do autogoverno social.
SpinozaLiberdade Objetiva/ConcórdiaFundamento ético que torna possível a coexistência em paz e concórdia, base para a realização da liberdade individual.
H. ArendtAção/Pluralidade/A Whole Way of LifeO sentido da política é a liberdade, que surge no “entre” os homens, na vida em comunidade (Pólis/Koinonia) e não no Estado.
N. BobbioDemocracia Social/PluralismoExpansão da democracia para além do Estado (onde se vota?), englobando centros de poder autocráticos na sociedade (empresa, burocracia).
R. DahlAssociações Independentes/Competência CívicaAssociações são essenciais para a educação cívica, o esclarecimento e a participação efetiva em grandes repúblicas.
R. PutnamCapital Social/Comunidade CívicaA eficácia democrática depende de um “estoque” social de confiança e cooperação, corporificado em sistemas horizontais de participação cívica.
A. SenLiberdade Constitutiva/Discussão PúblicaA participação política e a dissensão não são apenas meios, mas partes intrínsecas e avaliatórias do processo de desenvolvimento humano.
J. RancièrePoder dos sem Título/Ausência de HierarquiaA democracia é a revelação da igualdade fundamental que subverte a ordem natural de autoridade (polícia), sendo um poder da indistinção que desconstitui autocracia.

Esses autores, de diferentes ângulos — seja pela primazia da associação(Tocqueville, Putnam), o fundamento da liberdade (Spinoza, Sen), a prática da convivência plural (Arendt, Rancière) ou a extensão do espaço democrático (Bobbio) — demonstram que a visão da democracia como modo de vida é uma linha de pensamento que atravessa toda a teoria política, ligando a eficácia do governo à saúde da sociedade civil.

Direita e esquerda: os dois polos da estupidez

Direita e esquerda reduziram-se, no Brasil, a dois polos de estupidez. Isso chegou a um nível tal que não parece haver mais vida inteligente em nenhum dos lados dessa militância.

Cada um dos polos ideológicos, claro, vai se julgar superior; direitistas reacionários, principalmente aqueles que adquiriram seus conhecimentos políticos via Olavo de Carvalho e Brasil Paralelo medirão seu próprio conhecimento por contraposição à educação doutrinária e militante predominantemente de esquerda, a qual chamam depreciativamente (com uma dose de razão) de educação Paulo Freire.

Em ambos os lados, porém, há mero verniz intelectual encobrindo vasta ignorância. E aqui não faço apologia a um eruditismo vão e pedante. Pelo contrário, penso que faz falta nos dias de hoje a simplicidade da vida comum, o desprezo cético por teorias e discussões inócuas.

Temos vivenciado uma contínua subordinação das mais diversas esferas da vida às exigências políticas. Mas não há pensamento onde só há ideologia e, paradoxalmente, a politização de tudo equivale à própria destruição da política.

Isso tende a provocar nas pessoas mais sóbrias e ponderadas uma saturação, uma hostilidade e desprezo pela política e suas questões.

O debate público passa a padecer, com isso, de uma fuga de cérebros: aqueles que poderiam contribuir com alguma palavra sensata rendem-se ao cansaço e ao tédio, enquanto os exaltados, os fanáticos, os parvos e os mal-intencionados alçam a voz, preenchendo ruidosamente todos os espaços públicos, das redações de jornais aos púlpitos das igrejas, das tribunas às cátedras universitárias, das redes sociais aos quadros do funcionalismo público.

Essa extensão da visão político-partidária-ideológica para instâncias nas quais a importância política está justamente no caráter apolítico do exercício de tais funções é perigosa.

Há décadas, no importante ensaio “Verdade e Política”, a pensadora Hannah Arendt já alertava que determinadas instituições públicas, embora estabelecidas e apoiadas pelos poderes, precisam estar ciosamente protegidas da influência e da pressão política.

A politização, por exemplo, do judiciário e das instituições de ensino, algo tão gritante no Brasil, é inegavelmente prejudicial à cultura democrática, embora os que politizam tais setores o façam, na maioria das vezes, em nome da democracia.

Outro setor seriamente afetado pela estupidificação ideológica, pela má-fé e pelo servilismo dos que se curvam ao poder em detrimento de suas precípuas funções é a imprensa.

Em artigo recente, o jornalista Felipe Moura Brasil analisou o problema do ativismo no jornalismo mostrando os prejuízos da ausência de distinção entre informação e juízo de valor:

“No mercado da comunicação, além da eventual indistinção entre setores noticiosos, analíticos e opinativos, há profissionais e ´especialistas´ que buscam dar ares de informação a seus juízos de valor, enviesando o noticiário e turbinando um dos maiores problemas do nosso tempo: a perda da base comum de realidade objetiva, que finca as discussões públicas em alicerces factuais”, escreveu o diretor de Jornalismo desse portal O Antagonista e da revista Crusoé.

No já referido ensaio, Hannah Arendt analisa essa confusão entre fato e opinião, assim como a hostilidade à verdade factual quando esta se opõe ao lucro ou ao prazer de um determinado grupo. Esse aspecto também é abordado no artigo de Felipe Moura, que denuncia o ativismo político autoritário que busca deslegitimar com ofensas e distorções as poucas fontes idôneas de conhecimento factual.

Hannah Arendt foi uma filósofa judia, que fugiu do nazismo e se estabeleceu nos Estados Unidos, tornando-se uma pensadora mundialmente reconhecida por ocasião da publicação de As origens do totalitarismo (1951).

Sua obra analisa não apenas as entranhas de uma sociedade que se precipitou no abismo totalitário, mas expõe também os resquícios de tendências totalitárias que permanecem em germe nas sociedades atuais.

Não apenas na sociedade mundial, mas também aqui, na sociedade brasileira, há uma atmosfera autoritária perigosa, um ar difícil de respirar, politizado demais. Os sinais de que estamos no caminho da servidão voluntária são numerosos.

Esse caminho se alarga mais toda vez que o influente militante da direita aponta o dedo para toda a esquerda, amaldiçoando-a e o influente militante da esquerda aponta o dedo para toda a direita, defenestrando-a, como se apenas ali, no espectro político que não lhe diz respeito, estivesse todo o perigo e todo o mal.

A demonização do adversário político serve aos propósitos dos autoritários e o pendor autoritário é ambidestro.

O Brasil está mergulhado em um caos social. A raiva, o rancor, a decepção, a frustração dos brasileiros será mais uma vez manipulada, instrumentalizada se não rompermos a bolha da ignorância e do fanatismo.

Ainda somos uma democracia. Uma democracia disfuncional, agonizante. Cabe a nós, porém, revigorarmo-nos como nação livre, plural e tolerante ou deixarmos o nosso país se enterrar de vez ao som da trombeta apocalíptica de qualquer discurso político demagógico de ocasião.

Imagem: murathakanart/Shutterstock

Ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente

Há quem defenda que a terceira guerra mundial já começou. Há quem julgue que falar em terceira guerra mundial é exagero. O fato é que se desdobram diante dos nossos olhos sonolentos e incrédulos uma série de alianças e movimentações militares muito preocupantes. A sequência de lances da última semana não pode ser menosprezada:

Em resposta ao envio de tropas norte-coreanas para lutar pela Rússia na guerra de invasão contra a Ucrânia, o presidente cessante dos Estados Unidos, Joe Biden, liberou o uso de mísseis de longo alcance contra as regiões russas de fronteira. Ato contínuo, o tirano da Rússia, Vladimir Putin, revisou a doutrina nacional de defesa a fim de alargar as condições de uso do arsenal nuclear.

Na nova doutrina, o lançamento de mísseis de longo alcance contra a Rússia passou a ser motivo para uso de armas nucleares. Mísseis esses que logo foram disparados pela Ucrânia. Sergei Lavrov, o ministro das relações exteriores da Rússia declarou então – em solo brasileiro, pois aqui estava por ocasião da cúpula do G20 – que o ato era visto “como uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia” e que a Rússia responderia de maneira “apropriada”.

É verdade que Putin já levantou o espantalho nuclear dezenas de vezes, mas até para quem está acostumado com a retórica das trocas de ameaças bélicas, o momento é preocupante.

Poder de destruição e poder político

Recordo-me de um trabalho escolar de História que precisei fazer, em 1995, a fim de marcar os cinquenta anos do lançamento da bomba atômica sobre as cidades japoneses Hiroshima e Nagazaki. Aluna aplicada que eu era, fiz boa pesquisa; o que li e as imagens que vi foram impressionantes para os meus doze anos de idade. Quase consigo reviver a sensação de choque e angústia com que colei os recortes de uma edição especial sobre o tema em uma cartolina para a apresentação escolar.

Um clarão apocalíptico e milhares de vidas aniquiladas instantaneamente. A liberação de uma enorme concentração de energia e seus efeitos devastadores. A radioatividade como terrível subproduto da já pavorosa explosão. Se há um inconsciente coletivo, essa imagem provavelmente está lá, nas profundezas do nosso psiquismo, e os acontecimentos atuais são de modo a favorecer a sua eclosão em estranhos pesadelos.

Putin está, mais uma vez, blefando? Tal questão nos desperta para a enorme responsabilidade ética que pesa sobre a política atual.

Em fragmentos de textos nos quais disserta sobre a definição de Política, a pensadora Hannah Arendt explica que a pergunta sobre se a política ainda tem algum sentido é “forçosamente formulada em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição cujo monopólio os Estados detêm.” É no mínimo instável uma situação na qual “a continuidade da existência da humanidade e talvez de toda a vida orgânica da terra” depende da política; e de políticos que costumam blefar.

Questionada, em entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel, sobre a probabilidade real de uma guerra nuclear, além de toda a retórica, Sharon K. Weiner, uma professora de Relações Internacionais da Universidade de Princeton e especialista em estratégia de armas nucleares respondeu: “O que me incomoda é que, a despeito do fato de que morreríamos numa guerra nuclear, ambos não temos voz na questão de saber se as armas nucleares serão ou não utilizadas.”

Alguns trechos dessa interessante entrevista, publicada em abril deste ano, me chamaram atenção. Segundo a professora, “não existe nenhum acordo secreto para impedir o uso de armas nucleares antes que o mundo seja destruído”. Ninguém sabe bem o que acontecerá se a Rússia realmente usar armas nucleares contra a Ucrânia porque não há diretrizes de como evitar uma escalada. A única estratégica com a qual se trabalha é a lógica de que “a outra parte poderá, em algum momento, sentir-se compelida a desescalar – simplesmente para salvar o mundo.”

A hipótese de que não haverá uma guerra nuclear sustenta-se, portanto, em uma crença na racionalidade dos políticos que têm poder de decisão sobre o uso de tais armas. Ninguém usaria armas nucleares porque o mundo poderia acabar. “Ninguém é doido de começar uma coisa dessas”, ouço por aí. Não me parece que este seja um argumento decisivo e tranquilizador. Há, pois, alguma probabilidade de que o atual conflito se desenvolva da pior forma possível.

Verdade e liberdade: John Milton ou Alexandre de Moraes?

Há dois tipos de leitores: aqueles que querem ler o que ainda não sabem, confrontar suas ideias prévias e ampliar sua compreensão das coisas e aqueles que querem ler o que já sabem para ter mais certeza de que estão certos e confrontarem com mais confiança os que pensam diferente.

O debate público no Brasil é majoritariamente protagonizado por esse tipo que quer impôr sua verdade. São pessoas que adotam determinado ponto de vista sobre questões complexas e, em vez de ponderarem sua análise e refinarem sua opinião, apressam-se para encontrar e reproduzir interpretações reducionistas que corroborem a sua estreita visão.

O debate atual em torno de fake news, tentativa de golpe de estado, defesa da democracia, discurso de ódio, liberdade de expressão e seu alegado cerceamento suscita questões para as quais não há resposta rápida, fácil, única e definitiva.

A despeito disso, quando nuances do debate são apresentadas, o analista que ousou não aderir prontamente às narrativas em voga é execrado pela militância com o neologismo de “isentão”, criado pelos radicais que querem evitar a dissidência e homogeneizar o discurso.

Muitos dos que hoje se arrogam defensores da liberdade de expressão são reacionários autoritários que demonizam os seus adversários e que tentariam calá-los se tivessem poder para isso; muitos dos que tiveram suas contas nas redes sociais suspensas usaram-na, de fato, para pregar uma ruptura institucional.

Eles não querem que isso seja dito. Bolsonaristas ficam incomodados quando esses detalhes são trazidos ao debate. Eles querem ir ao exterior denunciar cerceamento da liberdade de expressão no Brasil sem tocar no mérito do tipo de expressão que está sendo cerceada; querem denunciar ao mundo que a democracia brasileira está sob ataque do Judiciário sem fazer menção ao ataque contra a democracia intentado pelo Executivo.

Por outro lado, aqueles que retoricamente se pintam como mais afeitos à democracia também incorrem em fake news, discursos de ódio e manifestações violentas sem que, no entanto, sofram a mesma retaliação jurídica. Se a força da lei só incide sobre o lado A e faz vista grossa para o lado B, quem assim instrumentaliza a lei é quem mais descaracteriza a democracia que diz querer preservar.

O ministro Alexandre de Moraes tomou para si a prerrogativa de vigiar e punir toda e qualquer suposta ameaça à democracia, mas, como bem resumiu Felipe Moura Brasil, ao usar “decisões obscuras em inquéritos viciados para censurar e pôr no mesmo saco publicações legítimas (fato incômodo, crítica, opinião) e criminosas (calúnia, ameaça etc.)” ele “permite que delinquentes virtuais se limpem na sujeira dele, em nome da liberdade de expressão”.

A democracia brasileira é ainda precária, frágil e disfuncional. Sua engrenagem atual retroalimenta um Estado corrupto que mantém um sistema de privilégios. O que havia de melhor nela era a liberdade que tínhamos para denunciar, criticar e, assim, manter a esperança de reformá-la gradualmente. Agora, porém, sob o pretexto de preservar o regime que torna a liberdade possível, a liberdade possível de criticar o regime está sendo minada.

Há intolerantes de ambos os lados, esquerda e direita, que querem homogeneizar o discurso, calar a oposição e, para piorar, há juízes censores que querem o poder de editar esse debate extremamente polarizado e caótico.

Política e verdade

Apesar da impaciência que talvez o estimado leitor possa ter com a filosofia e a literatura, tendo em vista a urgência política, teimarei em finalizar esse texto trazendo para a conversa uma filósofa e um poeta.

Para Hannah Arendt, a pretensão de verdade absoluta no âmbito político é uma pretensão tirânica porque política é lugar de doxa (opinião) e não de episteme (conhecimento teórico absoluto e rígido). Não deve haver verdade dogmática no âmbito político, mas há um outro tipo de verdade que a política não pode negligenciar: a verdade factual.

O fato é a matéria bruta da opinião e a opinião é a matéria-prima da política. Não se deve confundi-los. Quando uma opinião é considerada fato e um fato é considerado mera opinião, o pensamento político representativo e plural perde a sua base de apoio.

A opinião, diz Arendt, requer a verdade factual como suporte e a própria “liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação factual seja garantida.

A mentira ou, em linguagem mais atual, a disseminação de fake-news é, pois, um problema ou um desafio a ser enfrentado pela democracia. Ocorre, porém, que a censura não resolve e ainda piora o problema.

Como já foi dito, as controversas decisões censórias do ministro Alexandre de Moraes incorreram no grave erro de não fazer as devidas distinções entre fato, opinião, fake news e incitação ao crime.

Analisar é separar, distinguir. Diante da dificuldade de assim proceder, optou-se pela via fácil da repetição, generalização e ausência de fundamentação das decisões. Para não deixar passar nada, o ministro censurou tudo. Ao fazê-lo, violou direitos e garantias fundamentais de alguns cidadãos.

Milton contra Moraes

As redes sociais trazem novos desafios às sociedades democráticas, que são, antes de tudo, sociedades plurais e abertas, nas quais há heterogeneidade, profusão de discursos, conflito de ideias, oposição e dissenso. A polêmica atual em torno da regulamentação das redes favorece uma rápida digressão final, na forma de retorno a um clássico liberal.

Em 1644, John Milton publicava Areopagítica, um opúsculo contra a pretensão do parlamento inglês de reestabelecer a censura. Nessa obra, Milton tentou mostrar que a determinação do verdadeiro e do falso, do que deve ser publicado ou suprimido, não pode estar nas mãos de poucos homens que são, em geral, de juízo vulgar. Sua argumentação mais forte, porém, aponta para o valor intrínseco da liberdade.

A censura é ruim não apenas porque é ineficaz no combate ao erro e ao vício, mas porque viola a liberdade, que é um valor positivo e necessário para o progresso do conhecimento. A censura impede que, no confronto com o erro, a verdade possa emergir, uma vez que a verdade e a falsidade precisam lutar para que a primeira venha a se estabelecer, ainda que provisoriamente. Milton já apontava, portanto, a necessidade do pluralismo para o progresso da coletividade e registrava sua rejeição à autoridade dos censores.

Optar pela censura é o mesmo que dizer que as pessoas devem ser tratadas como crianças necessitadas de tutela. “Serão elas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento que não seriam capazes de engolir nada que não passasse pelo filtro de um censor?”, pergunta John Milton, em 1644.

Seremos os brasileiros tão ingênuos, infantilizados, manipuláveis e ignorantes que não somos capazes de julgar por nós mesmos uma postagem em rede social sem precisar do filtro do censor Alexandre de Moraes? Perguntamos nós, em 2024.

Hannah Arendt contra o antissemitismo de Lula, Janja e PT

Após ser detida, por alguns dias, pela Gestapo, por colaborar com envio de documentos para uma organização de resistência ao nazismo, a jovem judia alemã Hannah Arendt se refugiou na França. Entre 1934 e 1940, antes de ir parar em um campo de detenção na própria França, do qual conseguiu fugir, Arendt trabalhou em uma organização que conduzia judeus do leste europeu para a região do futuro Estado de Israel.

Em 1943, quando já morava nos Estados Unidos, Arendt tomou conhecimento da existência dos campos de extermínio nazistas espalhados pela Europa. Aquilo era tão absurdo que não parecia crível. Mas era real. A pavorosa perversidade do assassinato em massa, desprovido de qualquer critério utilitário, com o único objetivo de degenerar a natureza do ser humano e gerar uma pilha de cadáveres parecia-lhe algo sem sentido, sem motivo, sem fundamentação. Com os campos de concentração, o mal parecia atingir uma proporção inédita.

Esse empreendimento macabro, com toda a sua organização racional e técnica, que tinha por objetivo destruir por destruir, exterminar por exterminar, esse mal que se configurava até mesmo para além do interesse pessoal de quem o perpetrava é identificado inicialmente por Hannah Arendt como o mal absoluto: “Se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do mal”, escreverá Arendt no prefácio da obra As origens do totalitarismo.

Hannah Arendt, como boa pensadora, era rigorosa com os termos. O regime que tornou possível os campos de concentração (nazistas e soviéticos) era diferente das tiranias e das ditaduras. Sendo o regime totalitário uma forma de “domínio total” e “a única forma de governo com a qual não é possível coexistir”, teríamos, segundo ela, “todos os motivos para usar a palavra ‘totalitarismo’ com cautela”.

À especificidade do regime totalitário relaciona-se também, para Arendt, a qualificação técnico-jurídica do genocídio como crime contra a humanidade.

Genocídio 

A base inicial da tipificação deste crime, em texto internacional, encontra-se no ato constitutivo do Tribunal de Nürenberg, de 8 de agosto de 1945. Esse tribunal, criado para julgar e punir os grandes crimes de guerra dos países do Eixo, tinha competência e jurisdição, nos termos do art. 6.° do seu estatuto, em relação aos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade.

Enquanto crimes contra a paz e crimes de guerra já eram tidos como comportamentos ilícitos na perspectiva do Direito Internacional antes da II Guerra Mundial, “a concepção de crimes contra a humanidade, previstos no art. 6.° “c” do Estatuto do Tribunal de Nürenberg, procurava identificar algo novo, que não tinha precedente específico no passado; representava um primeiro esforço de tipificar, como ilícito penal, o ineditismo da dominação totalitária”, conforme explica Celso Lafer, no livro A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

Os princípios de Nürenberg foram oficialmente sistematizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, por solicitação da Assembleia Geral, em resolução de 1947. No que concerne ao genocídio, esses princípios converteram-se em norma internacional através da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, entrando em vigor em 12 de janeiro de 1951. Ali, a tipificação do crime de genocídio, no art. 2.°, estabelece nas letras “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, os aspectos objetivos do comportamento ilícito, e no seu caput o aspecto subjetivo, que é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Para Hannah Arendt, explica ainda Celso Laffer, “o genocídio, como crime, só pode ocorrer com base na lei criminosa de um Estado criminoso”. Não se trata de um crime qualquer que pode ser cometido por indivíduos isoladamente, mas um crime “estruturalmente ligado à gestão totalitária”, um crime que depende de uma estrutura de poder posta a serviço da perversidade e na qual o mal se converte em legalidade.

O genocídio “assume o ser humano como supérfluo”; “não é uma discriminação em relação a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de guerra nem um crime contra a paz. O genocídio é algo novo“, é, para usar as palavras da própria Arendt “um crime contra a humanidade perpetrado no corpo do povo judeu“.

O antissemitismo de Lula

Armados dessa compreensão, podemos agora dimensionar a gravidade da crise diplomática iniciada por Luís Inácio Lula da Silva ao discursar fazendo analogia entre o holocausto e a resposta de guerra de Israel contra um grupo terrorista que o atacou e acusando Israel de estar perpetrando um genocídio, o que equivale a considerar Israel como um Estado criminoso, negando-lhe, consequentemente, o direito à existência.

Se a rinha política hodierna nas redes sociais é marcada pela distorção de conceitos importantes, o mesmo uso ligeiro e irresponsável de palavras graves não deveria, de forma alguma, dar o tom do discurso de um presidente em uma coletiva internacional, em momento tão complexo como o atual.

O pior de tudo, porém, é que não foi apenas descuido e desleixo. Não foi uma gafe, um despropósito infeliz ou uma inadequação por simples ausência de bom senso. O Brasil já havia dado apoio à África do Sul na absurda acusação contra Israel (levada ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia), já havia prometido doações à UNRWA no momento mesmo em que outros países paralisaram as doações ao verem comprovadas as suspeitas de relações da agência com o Hamas.

Por fim, o Brasil não fez a menos questão de se retratar a fim de resolver a crise diplomática que Lula criou. Na verdade, a sua fala galvanizou o antissemitismo de esquerda, que, agora, mal sente a necessidade de se disfarçar.

Antissionismo como antissemitismo

Todas as tentativas de emenda do discurso de Lula saíram pior que o soneto. A sua esposa, Janja, defendeu o bom velhinho, que, segundo ela, defende a vida de mulheres e crianças e escreveu o seguinte: “a fala se referiu ao governo genocida e não ao povo judeu. Sejamos honestos nas análises.”

Para alcançar a sutileza necessária para uma análise honesta, recorro, mais uma vez, a Celso Lafer que, em artigo publicado no Estadão, escreveu: “Hoje muitas críticas à atuação de Israel em Gaza vão além do aceso das polêmicas sobre a aplicação das normas do direito humanitário ou da gravíssima situação humanitária em Gaza. Resvalam pela denegação de sua existência. Neste contexto, cabe a pergunta: de que maneira um antissionismo bastante presente na crítica a Israel é uma modalidade contemporânea de antissemitismo?”

O advogado, jurista, professor, ex-ministro das Relações Exteriores e também ex-aluno de Hannah Arendt socorre a ignorância petista lembrando que o sionismo “buscou a construção de um Estado como resposta às perseguições que os judeus padeceram como uma minoria discriminada”, conforme o princípio de autodeterminação dos povos e que essas aspirações se traduziram no reconhecimento de Israel.

A crescente negação do direito à existência de Israel, que se tem verificado desde o início da guerra em Gaza, apresenta, segundo Lafer, um caráter de seletividade, pois inexistem outras manifestações de denegação da existência de qualquer outro Estado reconhecido na vida internacional em consequência de críticas a suas políticas. Assim sendo “esta seletividade negacionista faz do antissionismo uma manifestação de antissemitismo. Comporta analogia com o negacionismo revisionista da denegação da verdade factual do Holocausto.”

O antissemitismo de Janja

O antissemitismo, Janja, tem várias facetas. A hostilidade em relação aos judeus pode vir um pouco disfarçada, como na sua postagem, que fala em um “governo genocida”, desconsiderando que a guerra em curso não é conduzida apenas por Benjamin Netanyahu, mas por uma coalizão que inclui, inclusive, a oposição. 

Referir-se a um “governo genocida” ou afirmar, como Lula o fez, que “na faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, é chamar Israel de Estado criminoso e negar-lhe, por conseguinte, o direito de existir.

Conforme explica Celso Lafer e outros autores, o antissemitismo moderno é distinto do tradicional, “por isso, pode-se falar com mais propriedade de antissemitismos, no plural. Uma das modalidades atuais do antissemitismo é o antissionismo”. 

É nessa modalidade de antissemitismo que a sua declaração e a de seu marido se encaixam.