Para melhor analisar algumas atitudes políticas recentes, é preciso distinguir duas concepções fundamentais de política. A primeira delas advém da tradição clássica e se desenvolve por um viés democrático e liberal; a segunda advém da ruptura moderna perpetrada por Maquiavel e se desenvolve por um viés autoritário antiliberal.
Na primeira concepção, a política está vinculada à ética, como busca do bem comum e do melhor regime, sendo um meio para a realização da justiça, tornada concretamente possível — dentro de humanos limites — pelo direito e pela moral, instâncias que circunscrevem o certo e o errado.
Na segunda concepção, a política está desvinculada da ética e identificada ao exercício do poder, sendo o direito e a moral um meio para realização da razão do Estado, instância que circunscreve o certo e o errado.
Saindo um pouco da argumentação puramente abstrata, a fim de não enfadar o leitor com excessos especulativos, analisemos os concretos gestos políticos aos quais me referi.
Cristina Kirchner
No começo deste mês, Lula foi à Argentina expressar apoio à ex-presidente Cristina Kirchner, que está presa em regime domiciliar, após ser condenada por corrupção. Lula se deixou fotografar com ela segurando um cartaz que dizia “Cristina libre”.
Com essa atitude, o presidente do Brasil intrometeu-se em um processo judicial da Argentina, em favor daquela por quem tem “uma amizade de muitos anos que vai muito além da relação institucional. Um carinho e afeto de amigos, companheiros de campo político”, conforme escreveu Lula em suas redes sociais.
Poucos dias depois, o presidente dos Estados Unidos mostrou que ele também não vê problema nenhum em se meter em assuntos jurídicos internos de outros países para defender seu companheiro de campo político — no caso Jair Bolsonaro que, segundo ele, é apenas um “perseguido”. Para Trump, o ex-presidente do Brasil “não é culpado de nada, exceto de ter lutado pelo povo”.
Qual a diferença entre o “Deixem Bolsonaro em Paz”, de Donald Trump, e o “Cristina libre” de Lula? Nenhuma. Ambos estão defendendo seus aliados políticos e se lixando para a justiça, para a verdade e para a soberania do país nos quais estão se intrometendo.
Lula, entretanto, afetou grande indignação contra a postagem de Trump nas redes sociais e, com a hipocrisia que lhe é peculiar, escreveu:
“A defesa da democracia no Brasil é um tema que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a liberdade e o estado de direito.”
Contradição
Seria uma postagem legítima e até louvável, caso tivesse sido escrita por alguém cujas atitudes fossem coerentes com aquilo que escreveu. Obviamente não é o caso. Lula defendendo rule of law é quase uma contradição performativa, tanto pelo seu histórico pessoal, quanto pela prontidão com que tenta blindar da aplicação da lei seus amigos corruptos.
Se ninguém está acima da lei, por que mandar buscar, de avião da FAB, a ex-primeira-dama do Peru Nadine Heredia, condenada por lavagem de dinheiro? Se aqueles que atentam contra a liberdade não estão acima da lei, por que apoiar, proteger e adular tiranos facínoras como Nicolás Maduro e Vladimir Putin? Se preza o Estado de direito por que se aliar à teocracia fundamentalista islâmica do Irã?
É que a concepção política de Lula e de seu entorno é aquela concepção maquiavélica, de viés autoritário à qual me referi no início deste texto. Lula age politicamente tendo por critério a distinção entre amigo e inimigo, ou seja, a definição exposta por Carl Schmitt na obra “O conceito do político”.
Amigo e inimigo
Para Schmitt, cada esfera da atividade humana tem seu critério específico: na moral, é o bem e o mal; na estética, é o belo e o feio, na economia, é o útil e o inútil (ou o lucro e o prejuízo), na política, é o amigo e o inimigo.
O ilustre Prof. Dr. Carl Schmitt, que escreveu, em 1934, no Deutsche Juristen-Zeitung que “o Führer protege o Direito”, defende a política como uma esfera autônoma, com suas próprias regras, que se impõe sobre normas morais ou jurídicas.
Ele é um dos grandes críticos do liberalismo político, uma vez que a tentativa liberal de mediar conflitos pela discussão racional e pelo consenso é entendida como uma neutralização ou moralização do político, que enfraquece o Estado.
Identificar o inimigo é uma questão de sobrevivência. A política aqui é vista pelo prisma do antagonismo e não da harmonia.
Populismo
Importa notar que o conceito de político de Carl Schmitt caracteriza políticas tanto de direita quanto de esquerda. É antes de tudo uma caracterização que orienta políticas de cunho autoritário e totalitário, de um lado ou do outro do espectro.
Não apenas a esquerda petista e a esquerda identitária se movem segundo tal concepção, mas também a direita populista e reacionária. Daí a semelhança das atitude de Trump e Lula, que estão se lixando para a justiça e para o estado de direito, embora vez ou outra utilizem tais conceitos para fins meramente retóricos.
O famoso “nós contra eles”, que está voltando com força total, é uma forma menos erudita de se referir a esse tipo de política tribal. Donald Trump, Viktor Orbán, Nicolás Maduro, Jair Bolsonaro, Lula — cada qual, à sua maneira, faz uso dessa lógica política schmittiana.
Qual o contraponto a isso? Claramente é a tradição democrática-liberal à qual pertencem moderados, tanto de direita quanto de esquerda, ou aqueles que não se identificam nem com a esquerda nem com a direita, mas apenas com os princípios basilares da civilização.
A fragmentação da sociedade em grupos identitários fechados, que muitas vezes não se reconhecem mutuamente como legítimos, recria o tipo de antagonismo existencial que Schmitt descreveu.
Contra isso talvez seja necessário resgatar um universalismo ético-político, de viés kantiano, baseado na razão, na dignidade humana e na possibilidade de uma ordem moral e jurídica universal.
Consenso moral mínimo
Para isso é necessário, porém, um consenso moral mínimo. Por exemplo, não legitimar como luta política a ação de um grupo de terroristas que sequestra e degola bebês em nome da causa palestina; não admitir aliança com o regime que financia esses mesmos terroristas, enforca homossexuais e espanca mulheres que ousam mostrar os cabelos; não fazer notinha diplomática na cúpula do Brics condenando um país invadido em vez de condenar o país invasor.
Vê-se, pois, que os valores que movem a política externa do atual governo Lula não são universalizáveis, o que é outra forma de dizer que Lula se move no âmbito de uma concepção amoral da política, que a sua concepção de política cavalga a moral ou, dito de forma mais rude, que Lula tem a moral de uma cavalgadura.
Um confronto entre as teorias de Carl Schmitt e Immanuel Kant é, em certo sentido, um confronto entre dois paradigmas opostos de filosofia política. O primeiro rejeita qualquer forma de universalismo político ou jurídico, enquanto o segundo defende um cosmopolitismo racional baseado no direito.
Para Schmitt, o direito depende da decisão política; para Kant, a decisão política subordina-se ao direito e à exigência da razão. De um lado, o avanço de nacionalismos, guerras e discursos contra os inimigos (à la Schmitt); de outro, a defesa de direitos humanos e do direito internacional (à la Kant).
Lula age à la Schmitt, mas discursa à la Kant. Isso porque, embora pouco letrado, ele é diplomado em cinismo e astúcia pela escola Nicolau Maquiavel.