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A Erosão da “Opção Nuclear”: O Caso Moraes e o Futuro da Lei Magnitsky

A Lei Global Magnitsky de Responsabilidade de Direitos Humanos é frequentemente descrita nos corredores de Washington como a “opção nuclear” da diplomacia americana moderna. Desenhada para ser uma ferramenta cirúrgica e devastadora contra indivíduos que operam na impunidade, a legislação permite aos Estados Unidos projetar poder moral e financeiro para além de suas fronteiras. No entanto, o recente e tumultuado episódio envolvendo o Ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro, Alexandre de Moraes — cuja inclusão na lista de sanções em julho de 2025 foi revertida apenas meses depois, em dezembro — levanta uma questão existencial para a eficácia desta política. Se uma lei criada para punir torturadores e cleptocratas passa a ser utilizada e recolhida como moeda de troca em disputas político-ideológicas, ela corre o risco iminente de perder sua capacidade de dissuasão global.

Para compreender a gravidade desse cenário, é fundamental retomar a gênese trágica da legislação. A lei carrega o nome de Sergei Magnitsky, um advogado e auditor russo que, em 2008, expôs uma fraude fiscal massiva de 230 milhões de dólares perpetrada por oficiais do próprio governo russo. Em vez de ser condecorado, Magnitsky foi preso, torturado e teve assistência médica negada até sua morte em uma prisão de Moscou, em 2009. A indignação global, liderada pelo financista Bill Browder, culminou na assinatura da lei pelo presidente Barack Obama em 2012, focada inicialmente na Rússia, e sua expansão global pelo Congresso em 2016. Desde então, a lei serve como um aviso de que as fronteiras nacionais não protegem violadores de direitos humanos do alcance do sistema financeiro americano.

A aplicação da Lei Magnitsky não é meramente simbólica; ela impõe uma “morte cível” econômica ao sancionado. Quando um indivíduo é incluído na lista de Cidadãos Especialmente Designados (SDN) do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC), as consequências são imediatas e catastróficas. Primeiramente, todos os bens e interesses em propriedade do alvo que estejam nos Estados Unidos ou em posse de cidadãos americanos são bloqueados e congelados. Isso vai muito além de imóveis em Miami ou Nova York, afeta qualquer ativo financeiro que transite pelo sistema bancário americano.

Ainda mais grave é o isolamento do sistema financeiro global. Embora a lei seja americana, a onipresença do dólar torna a sanção extraterritorial na prática. Bancos internacionais, temendo multas secundárias ou a perda de acesso ao mercado americano, cortam laços com o sancionado quase instantaneamente. O indivíduo perde a capacidade de realizar transações via SWIFT, o sistema de mensagens que sustenta as transferências internacionais, tornando-se um pária financeiro incapaz de manter contas bancárias, cartões de crédito internacionais ou realizar comércio exterior. Adicionalmente, a lei impõe restrições severas de visto, impedindo a entrada do sancionado e, frequentemente, de seus familiares imediatos nos Estados Unidos.

Diante desse poder de fogo, a aplicação da lei contra um juiz de uma suprema corte de uma democracia ocidental, como ocorreu com Alexandre de Moraes, foi um evento sem precedentes. A sanção foi impulsionada por alegações de censura e violação da liberdade de expressão, pautas fortemente defendidas por uma ala do Congresso americano. Contudo, a rápida retirada do nome de Moraes da lista, após ajustes nas políticas de plataformas digitais e negociações diplomáticas, sugere uma flexibilização perigosa dos critérios da lei. Ao remover a sanção tão rapidamente, os Estados Unidos enviaram um sinal de que a inclusão na lista Magnitsky pode ser revertida não necessariamente por uma mudança fundamental de caráter ou justiça, mas por realinhamentos políticos e concessões estratégicas.

Esse movimento de “vai e vem” alimenta o argumento de críticos e autocratas de que a lei é, na verdade, uma ferramenta de coerção política seletiva, e não um instrumento imparcial de justiça. Desde 2017, o programa Global Magnitsky sancionou mais de 740 entidades e indivíduos em mais de 50 países. A lista inclui figuras notórias, desde oficiais chineses envolvidos na repressão aos Uigures em Xinjiang até os assassinos do jornalista Jamal Khashoggi na Arábia Saudita, passando pelos irmãos Gupta na África do Sul. A eficácia da lei contra esses alvos reside na percepção de que a sanção é técnica e baseada em evidências robustas de atrocidades ou corrupção sistêmica.

A retirada de nomes da lista de sanções, conhecida como delisting, é historicamente rara e desenhada para ser difícil. Ela geralmente exige provas concretas de que o comportamento do sancionado mudou, que houve erro na designação original ou a morte do indivíduo. O precedente mais notório de volatilidade antes do caso brasileiro foi o do bilionário israelense Dan Gertler, sancionado por corrupção na República Democrática do Congo. Em um movimento controverso nos últimos dias do governo Trump, Gertler recebeu uma licença que suspendia as sanções, apenas para tê-las reimpostas semanas depois pela administração Biden, que citou a inconsistência da licença com os valores anticorrupção americanos.

O episódio de Alexandre de Moraes, somado ao precedente de Gertler, cria uma jurisprudência de instabilidade. Se ditadores e violadores de direitos humanos ao redor do mundo perceberem que a Lei Magnitsky é permeável ao lobby e à pressão política momentânea, o medo de serem sancionados diminuirá drasticamente. A força da lei reside na sua certeza e na sua perenidade; ao transformá-la em um interruptor que pode ser ligado e desligado conforme a temperatura política de Washington, os Estados Unidos correm o risco de embotar uma das armas mais importantes já criadas para a proteção dos direitos humanos globais. Para que a lei mantenha sua relevância e capacidade de pressão, sua aplicação deve permanecer blindada contra disputas ideológicas passageiras, focando-se estritamente naqueles crimes universais que a inspiraram: a tortura, a execução extrajudicial e o roubo massivo de recursos públicos.

O vício mais poderoso e perigoso do mundo não é mais uma substância

Durante décadas, quando se falava em vício, o imaginário social recorria a drogas, álcool, nicotina ou jogos de azar. Substâncias químicas e comportamentos já reconhecidos como destrutivos. O que mudou no nosso tempo não foi apenas o objeto do vício, mas sua forma de apresentação. O vício mais poderoso do mundo contemporâneo não tem cheiro, não deixa marcas físicas imediatas e raramente é percebido como ameaça enquanto se instala. Ele se apresenta como entretenimento leve, descanso mental e até como forma legítima de informação.

Um estudo publicado em 2025 no Psychological Bulletin oferece um mapa preciso desse fenômeno. Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise que reuniu dados de 71 estudos independentes, com quase 100 mil participantes, analisando os efeitos do consumo de vídeos de formato curto sobre a cognição e a saúde mental. O método é relevante justamente por eliminar impressões subjetivas e consolidar padrões que se repetem em diferentes contextos culturais e etários.

As conclusões são consistentes. O consumo frequente de vídeos curtos está associado a prejuízos significativos na atenção sustentada e no controle inibitório, isto é, na capacidade de manter foco e resistir a impulsos. Em um dos trechos, os autores afirmam que “o consumo de vídeos curtos está consistentemente associado a um funcionamento cognitivo mais fraco, especialmente em domínios relacionados à atenção e ao autocontrole”. Não se trata de um efeito marginal. Trata-se de uma reorganização do modo como a mente aprende a funcionar.

No campo da saúde mental, o padrão se repete. O estudo identifica associações claras entre uso intensivo desse tipo de conteúdo e níveis mais elevados de estresse e ansiedade, além de impactos negativos sobre o sono e o bem-estar geral. Os pesquisadores observam que “os efeitos negativos observados não se limitam a adolescentes, manifestando-se também de forma consistente em adultos”, desmontando a ideia de que estamos diante de um problema transitório ou geracional.

O ponto mais decisivo, porém, não está apenas nos números, mas no mecanismo. Plataformas baseadas em vídeos curtos operam com estímulos rápidos, recompensas imprevisíveis e rolagem infinita. Esse desenho favorece a formação de hábitos automáticos. O estudo descreve esse processo ao registrar que “os sistemas de design dessas plataformas promovem padrões de uso compulsivo, reforçando a fragmentação da atenção e a dificuldade de engajamento prolongado”. A mente passa a ser treinada para o imediato, para o fragmento, para o próximo estímulo.

É assim que a tecnologia deixa de ser ferramenta e se torna vício. E quando o vício se consolida, ele passa a moldar não apenas comportamentos, mas expectativas internas. O esforço começa a parecer sofrimento. O silêncio, ameaça. A continuidade, tédio. O vício mais poderoso não é aquele que paralisa, mas o que reconfigura silenciosamente o limiar do que é suportável para a mente humana.

Os próprios autores do estudo sugerem estratégias de mitigação, como limites de tempo, pausas deliberadas e estímulo a atividades que favoreçam atenção prolongada. Mas essa resposta, embora necessária, é insuficiente para compreender a dimensão do problema. O que está em jogo não é apenas desempenho cognitivo. É a própria relação do ser humano com a atenção, que sempre foi o fundamento da vida interior.

A tradição cristã nunca tratou a atenção como detalhe psicológico. Atenção é disposição da alma. Santo Agostinho já compreendia que o coração humano é inquieto porque se dispersa, e que a conversão envolve reunir o que foi espalhado. A palavra bíblica para conversão, metanoia, significa literalmente mudança da mente. Não há encontro com Deus sem uma mente capaz de permanecer.

É por isso que o Natal não pode ser reduzido a um sentimento vago de acolhimento. O nascimento de Cristo é a entrada do Logos no mundo. Logos não é emoção. É sentido, ordem, palavra que pede escuta.

Cristo não chama pela excitação, nem pela avalanche de estímulos. Ele chama pelo seguimento, que exige tempo, presença e fidelidade. “Permanecei em mim” não é uma metáfora confortável. É uma exigência espiritual.

O vício contemporâneo é especialmente corrosivo porque nos treina a fugir exatamente dessas condições. Ele nos educa a evitar o silêncio, a interromper qualquer desconforto, a substituir interioridade por estímulo. Não por acaso, as grandes práticas cristãs sempre caminharam na direção oposta. O deserto, o jejum, a vigília e a oração não são punições, mas pedagogias da atenção. Elas devolvem ao homem a capacidade de suportar a própria presença diante de Deus.

O Natal, nesse sentido, é um confronto direto com a lógica do vício moderno. A encarnação não acontece no barulho, nem na distração, mas na noite, no recolhimento, na espera. Em um mundo que nos treina a deslizar infinitamente para o próximo estímulo, o presépio nos obriga a parar. A olhar. A permanecer.

Talvez o aspecto mais perigoso desse vício aparentemente inofensivo seja exatamente este: ele não rouba apenas tempo ou foco. Ele compromete a condição interior necessária para reconhecer a verdade quando ela se apresenta.

Em uma cultura que nos quer permanentemente distraídos, proteger a atenção deixa de ser uma recomendação de bem-estar e se torna um ato espiritual. Porque seguir Cristo exige algo que o vício contemporâneo tenta corroer desde o início: a capacidade de permanecer quando tudo nos empurra a fugir.

Dosimetria: o primeiro reconhecimento político do excesso punitivo

A aprovação do PL da Dosimetria pelo Senado Federal representa um marco político e institucional que vai muito além de um ajuste técnico no cálculo de penas. É, na essência, o reconhecimento explícito de que houve excessos graves nas condenações relacionadas aos atos de 8 de janeiro. E esse reconhecimento, vindo do Parlamento, não é trivial.

É preciso começar pelo básico: dosimetria não é anistia. A dosimetria trata do modo como a pena é calculada, observando princípios constitucionais elementares como a proporcionalidade e a individualização da sanção. Anistia, por sua vez, extingue a punibilidade e é um instrumento político de pacificação social. O projeto aprovado não perdoa crimes, não absolve ninguém e não apaga condenações. Ele apenas corrige distorções evidentes, como a soma automática de penas sobrepostas, a equiparação entre líderes e participantes ocasionais e a aplicação de sanções desproporcionais a réus primários.

Ainda assim, é impossível ignorar a dimensão política do gesto. Ao aprovar a dosimetria, o Congresso admite que o sistema de punição adotado nesses casos ultrapassou limites razoáveis. Quando cidadãos sem antecedentes recebem penas superiores às aplicadas a criminosos violentos, algo está fora do eixo. Corrigir isso não é impunidade; é respeito ao Estado de Direito.

Causa estranheza, portanto, a reação de setores que hoje se colocam radicalmente contra qualquer correção dessas condenações. Muitos desses mesmos grupos e lideranças políticas foram beneficiários diretos de uma anistia ampla, geral e irrestrita no passado, defendida como condição necessária para a reconstrução democrática do país. A Constituição de 1988, inclusive, preservou conscientemente a anistia como instrumento legítimo de pacificação nacional. Negar agora essa possibilidade — ou mesmo demonizar qualquer passo nessa direção — é uma incoerência histórica difícil de justificar.

O PL da Dosimetria não resolve tudo. Ele próprio é reconhecido como um “remédio menor”, insuficiente diante das injustiças flagrantes que marcaram esses processos. Mas, politicamente, abre uma porta relevante: ao reconhecer o excesso, o Congresso sinaliza que o debate sobre a anistia não é ilegítimo, nem antidemocrático. Ao contrário, pode ser parte da solução.

A democracia não se fortalece com punições exemplares voltadas à intimidação política. Fortalece-se com justiça, proporcionalidade e capacidade de reconciliar a sociedade. A dosimetria é apenas o primeiro degrau. A pacificação nacional exige coragem para subir os próximos.

Os escândalos e os abusos dos ministros do Supremo

Durante uma das sessões da CPI do Crime Organizado, o relator, senador Alessandro Vieira, criticou duramente o fato de ministros de tribunais superiores aceitarem privilégios ou demonstrarem proximidade com figuras envolvidas em investigações criminais. A fala foi feita no contexto da discussão do avanço do crime organizado e sua infiltração nos poderes da República:

Nós temos ministros que acham normal, cotidiano, caronas em jatinho, jatinho pago pelo crime organizado, notoriamente pelo crime organizado, não é surpresa. ‘Descobri hoje que era crime organizado…’ Não, o cara sabe que é crime organizado. Então, entra no jatinho, vai para uma viagem paga pelo crime organizado, acessa um evento de luxo pago pelo crime organizado, se hospeda em hotel de luxo pago pelo crime organizado.” 

Trata-se, como é sabido, de referência a episódio envolvendo o ministro Dias Toffoli, que tem se especializado no perdão de dívidas milionárias, causando robusto prejuízo aos cofres da União. 

“E aí eu volto ao ponto da minha provocação inicial – continuou Alessandro Vieira – Este é um país que já teve Presidente preso, que já teve ministro preso, Senador preso, Governador preso, Prefeito preso, Vereador, mas ainda não teve ministros de tribunais superiores. E me parece que este momento se avizinha.” 

O quadro, resumido nas palavras do senador Alessandro Vieira, relembra a sucessão de escândalos ocorridos na nossa inconstante República desde a chamada redemocratização e nos alerta para o fato de que, agora, até o próprio Supremo Tribunal Federal protagoniza as cenas escandalosas da nossa desvirtuada República.

Tendo por função precípua garantir o cumprimento da Constituição, o STF tem se esmerado em desrespeitá-la. Exemplo recente dessa audácia abusiva foi a liminar na qual o ministro Gilmar Mendes, legislando em causa própria para blindar a si mesmo e aos colegas, alterou trechos da Lei do Impeachment aplicáveis a ministros do STF.

O decano já recuou parcialmente da temerária empreitada inconstitucional; porém, vem sendo noticiado o encaminhamento de uma acomodação, com o Senado aceitando se prestar ao papel de providenciar um remendo constitucional que não desagrade totalmente os supremos ministros.

Enquanto isso, o ministro Alexandre de Moraes, reverenciado pela esquerda lulista como o salvador da nossa democracia, voltou aos holofotes por motivo nada republicano: o contrato de 129 milhões de reais do escritório de advocacia de sua esposa com o Banco Master.

Investigado e denunciado pela Polícia Federal por crimes financeiros, o Banco Master foi liquidado pelo Banco Central e teve alguns de seus dirigentes presos (punições abrandadas para medidas cautelares, com uso de tornozeleiras). 

Enquanto as investigações da PF ainda avançavam, o ministro Toffoli avocou o caso para o STF e estabeleceu rigoroso sigilo sobre todo o processo. Convém lembrar que um dos acompanhantes do ministro Toffolli na carona suspeita do jatinho era um dos advogados de um dos dirigentes do Banco Master.

Quanto à questão da contratação milionária do escritório de advocacia da mulher do ministro Alexandre de Moraes, deve-se considerar que os próprios ministros do STF já haviam, respondendo a uma demanda da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), mudado regra anterior proibitiva e decidido pela legalidade de casos desse tipo, estabelecendo que cônjuges e parentes de juízes podem advogar em causas em que seus clientes estejam em julgamento em qualquer Corte de Justiça. 

Cabe notar que o relator dessa causa de acintoso compadrio, ministro Edson Fachin, votou contra a demanda da AMB, tendo sido voto vencido. Fachin, que recentemente assumiu a presidência do STF, tenta no momento estabelecer um código de ética para os ministros da corte que preside. Sem surpresa, noticia-se que a resistência interna é grande.

Em uma perspectiva kantiana, a ética diz respeito à interioridade da ação, ao respeito à lei moral. A ética não pode ser imposta externamente: ninguém pode ser coagido a agir por dever. O campo da ética é o da autonomia, da consciência. 

Ora, se a casta dos supremos ministros trata com menosprezo a letra da lei constitucional, não se deixará constranger pela subjetividade de um código de ética. Não esperemos virtude onde já está claro que ela é inexistente. É preciso punir, pelo direito, aqueles que do direito abusam. 

Os muros invisíveis do protecionismo europeu

A saga do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia, negociado há mais de duas décadas, atingiu um ponto de inflexão decisivo. Em 2025, o bloco sul-americano e Bruxelas enfrentam um verdadeiro “agora ou nunca” antes que a janela política se feche novamente, talvez por tempo indeterminado. A análise do cenário atual aponta para uma negociação complexa, tensa e repleta de contradições, especialmente após recentes diálogos em Bruxelas com as partes envolvidas, algo que acompanhei pessoalmente na Bélgica. A pergunta que paira, portanto, é crucial para o futuro do comércio exterior brasileiro: existe chance de assinatura ainda neste ano e, se sim, o acordo nas condições atuais será realmente bom para o Brasil?

A pressão para fechar o acordo em 2025 é palpável e ditada por um calendário político estrito. O Parlamento Europeu entrará em recesso no final do ano, e os próximos ciclos políticos, tanto na Europa quanto no Mercosul, trazem consigo o risco de uma mudança de prioridades que poderia levar o acordo de volta à estaca zero. Do lado do Mercosul, existe um consenso, liderado pelo Brasil, de que é preciso aproveitar o mandato da atual Comissão Europeia, que demonstrou o máximo empenho na conclusão, antes que o quadro político se altere. O que falta, contudo, é a superação de barreiras protecionistas internas na Europa, frequentemente disfarçadas de preocupações ambientais e sanitárias. Desde o ano passado, o principal entrave não é mais o texto principal de 2019, mas a chamada “Carta Adicional” (Side Letter), proposta pela UE em 2023. Esta carta visa reforçar o compromisso do Mercosul com o Acordo de Paris e introduzir sanções em caso de descumprimento de metas ambientais, sobretudo no que tange ao desmatamento. O Mercosul, em sua resposta, aceitou a maioria dos pontos ambientais, mas exigiu um compromisso recíproco: que a UE forneça apoio financeiro e tecnológico para o desenvolvimento sustentável. A negociação está hoje centrada em achar um meio-termo para esta reciprocidade.

Em meio a essas discussões, o Comitê de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu aprovou, nos últimos dias, uma medida que pode ser o golpe mais duro contra o espírito do acordo até agora. A decisão visa facilitar a adoção de medidas protecionistas contra produtos agrícolas do Mercosul por meio da reformulação das cláusulas de salvaguarda. As cláusulas de salvaguarda existem em qualquer acordo de livre-comércio para permitir que um país suspenda temporariamente a redução de tarifas em caso de um aumento repentino e significativo de importações que ameace seu setor produtivo. A manobra do INTA é sutil, mas perigosa. Primeiramente, propõe-se reduzir o limite para iniciar uma investigação de salvaguarda. Ao baixar o patamar de aumento de importações necessário para acionar a medida, a Europa torna quase automático o bloqueio temporário de produtos sensíveis, como a carne bovina e as aves do Mercosul, mesmo em condições normais de mercado. Em segundo lugar, o novo texto busca encurtar drasticamente o tempo necessário para a aplicação das medidas de proteção. Isso limita a capacidade do Mercosul de se defender ou de negociar soluções antes que as barreiras sejam impostas. Essa ação, vista em Bruxelas como uma forma de aplacar a forte oposição dos agricultores europeus (principalmente franceses), desvirtua o propósito de um acordo de livre-comércio. O que é vendido como uma rede de segurança vira, na prática, uma barreira não-tarifária flexível e de fácil aplicação.

Além das cláusulas de salvaguarda, um ponto técnico que muitas vezes escapa ao olhar do grande público é o impacto das regras de origem. A UE, por meio de seus regulamentos, é meticulosa sobre como um produto do Mercosul deve ser fabricado para ser considerado verdadeiramente “nosso” e, assim, se beneficiar da tarifa reduzida. Em setores complexos, como autopeças e químicos, as regras de origem europeias tendem a ser rígidas, exigindo um alto percentual de conteúdo regional do Mercosul para que o produto se qualifique. Esse rigor burocrático e técnico, somado às novas salvaguardas, pode criar um efeito cascata. Mesmo que a tarifa de importação seja zero no papel, a dificuldade em comprovar a origem, que alimenta a burocracia, ou o risco de ter a tarifa preferencial suspensa, a aplicação da salvaguarda, atua como um desincentivo para as empresas do Mercosul, limitando o potencial de crescimento das exportações. Na prática, a UE está construindo um muro invisível de burocracia e proteção legalista em torno do seu mercado agrícola, enquanto abre as portas apenas onde tem vantagens competitivas claras.

A resposta estratégica do Mercosul a essas manobras europeias deve ser firme, mas pragmática. A estratégia não pode ser simplesmente abandonar a mesa, dada a relevância do mercado europeu e a sinalização que o acordo daria ao mundo sobre a abertura de ambos os blocos. O Brasil precisa insistir que as salvaguardas permaneçam dentro dos parâmetros acordados originalmente e que a reciprocidade na Carta Adicional seja significativa. Um ponto de alavancagem para o Mercosul é o avanço de negociações comerciais com outros grandes blocos, como o Canadá e Cingapura. Esses acordos alternativos dão ao Mercosul a credibilidade necessária para dizer à UE quetemos outras opções. A Europa sabe que, se o Mercosul continuar a se abrir para parceiros que oferecem termos mais justos no comércio agrícola, a relevância estratégica e econômica do acordo com a UE diminuirá. É nesse jogo de xadrez diplomático que o Brasil deve usar sua experiência, transformando a pressão protecionista europeia em um catalisador para exigir um acordo que seja verdadeiramente equilibrado, em vez de uma mera formalização de vantagens assimétricas para o bloco europeu.

A conclusão é inequívoca: um acordo assinado sob estas condições será um acordo de livre-comércio “pela metade” para o Mercosul, onde a UE assegura seus ganhos industriais e tecnológicos, enquanto seu setor agrícola obtém um “seguro” robusto contra a principal vantagem comparativa do bloco sul-americano. O Brasil e seus parceiros do Mercosul devem usar a força de sua posição—o acordo é tão importante para a Europa quanto para o bloco sul-americano—para resistir a esta tentativa de protecionismo velado. O acordo só será bom se for equilibrado, e a abertura industrial brasileira deve ser compensada por um acesso agrícola genuíno e seguro, livre de gatilhos artificiais. O tempo urge, mas a pressa não pode comprometer a qualidade e a equidade do resultado final.

Partido Comunista Chinês está conseguindo remodelar o conceito de direitos humanos no mundo por meio de IA

Durante décadas, direitos humanos foram entendidos como limites impostos ao poder do Estado para proteger o indivíduo. Liberdade de expressão, privacidade, devido processo legal e proteção contra vigilância arbitrária formavam o núcleo desse conceito. O que está em disputa agora não é apenas o respeito a esses direitos, mas o próprio significado deles. Aos poucos, a ideia de liberdade vem sendo substituída pela noção de eficiência, estabilidade e desenvolvimento administrado.

É nesse ponto que a inteligência artificial se torna central. Quando a tecnologia passa a organizar a vida social, jurídica e informacional, o controle deixa de parecer coerção e passa a parecer funcionamento normal do sistema. A vigilância se transforma em gestão, a censura em moderação automatizada, a repressão em prevenção de riscos. Direitos não desaparecem formalmente, mas são redefinidos por meio do hábito.

É exatamente esse processo que um relatório do Australian Strategic Policy Institute descreve ao analisar o uso de inteligência artificial pelo Partido Comunista Chinês. O estudo mostra como grandes modelos de linguagem e outros sistemas avançados de IA estão sendo integrados ao aparato estatal para automatizar censura, ampliar vigilância, prever comportamentos e suprimir dissidências de forma preventiva. A tecnologia deixa de ser ferramenta auxiliar e passa a operar como infraestrutura permanente de controle.

O relatório detalha como a IA está sendo incorporada a áreas sensíveis como o sistema de justiça criminal, incluindo policiamento preditivo, tribunais inteligentes e prisões inteligentes. Essa automação aumenta a eficiência do Estado, mas reduz transparência, enfraquece mecanismos de responsabilização e amplia a assimetria de poder entre governo e cidadãos. Direitos humanos, nesse modelo, deixam de ser barreiras e passam a ser reinterpretados como variáveis administrativas.

Outro ponto central é a industrialização da censura. As exigências legais do regime criaram um mercado robusto de tecnologias de controle baseadas em IA. Grandes empresas chinesas passaram a desenvolver e vender sistemas de censura cada vez mais baratos, rápidos e eficazes, incorporando a repressão ao funcionamento normal da economia digital. A censura não é mais exceção, é parte do negócio.

Essa análise foi apresentada ao público brasileiro pelo meu amigo Augusto de Franco, pesquisador e analista político, especialista em democracia, por meio de um artigo publicado no site Dagobah. Ao examinar o relatório, Augusto destaca como a IA transforma o controle estatal em algo difuso, distribuído e quase invisível. O poder não se impõe apenas pela força, mas pela normalização tecnológica. Quando tudo funciona, ninguém questiona. E quando ninguém questiona, o conceito de direito se dissolve.

María Corina Machado em Oslo: a “jornada rumo à liberdade” da Venezuela

A líder opositora venezuelana María Corina Machado, figura que há anos encarna a resistência contra o regime autoritário de Nicolás Maduro, tornou-se um símbolo de luta pela democracia, marcando indelevelmente a história política venezuelana. 

Seu percurso da clandestinidade venezuelana à presença em Oslo – onde deveria receber o prêmio Nobel da Paz — é o retrato vivo do drama e da resistência de um povo cuja soberania tem sido usurpada pelo arbítrio e pela violência institucionalizada.

Oculta dos olhos públicos por mais de um ano, Machado vivia em clandestinidade desde meados de 2024, quando uma ofensiva do regime venezuelano contra opositores foi intensificada após a eleição presidencial daquele ano – disputada em condições dramáticas, vencida pela oposição e usurpada pelo ditador Nicolás Maduro. 

Encarada como ameaça pelo aparato estatal, Corina Machado passou a ser procurada sob acusação de “conspiração, incitamento e terrorismo” — termos usados pelo regime ditatorial venezuelano para criminalizar a dissidência política.

Com o objetivo de receber o reconhecimento internacional que lhe fora outorgado, ela empreendeu nos últimos dias uma fuga clandestina que mais parece saída de um roteiro cinematográfico. 

Disfarçada, com peruca e sob tensão constante, atravessou múltiplos postos de controle militar venezuelanos até alcançar uma embarcação de pescadores que a conduziu ao mar do Caribe, rumo à ilha de Curaçao. Em Curaçao, exaustão e alívio: uma noite em um quarto anônimo, um breve descanso e uma mensagem gravada para agradecer “tantas pessoas que arriscaram suas vidas”, e a espera por um avião privado que cruzaria o Atlântico em direção à Noruega.

Pouco antes da meia-noite do dia 11 de dezembro, na sacada do Grand Hotel de Oslo, essa mulher formidável apareceu, saudando a multidão e entoando o hino da Venezuela. 

Horas antes, a sua filha havia assegurado que ela viria: “minha mãe nunca quebra uma promessa. E é por isso que eu, com toda alegria no meu coração, posso dizer que, dentro de poucas horas, nós poderemos abraçá-la aqui, em Oslo, depois de dezesseis meses vivendo no exílio.”  

O discurso do Nobel da Paz

Embora María Corina Machado não tenha conseguido chegar a tempo de receber presencialmente o Nobel da Paz, ela foi bem representada por sua filha, Ana Corina Sosa Machado, que leu o seu discurso na cerimônia. 

Nesse texto há uma dupla dimensão: o testemunho histórico da Venezuela pré-autoritarismo e a denúncia contundente das práticas que corroeram a vida política daquele país.

Logo no início de sua intervenção, Machado articula a genealogia da liberdade venezuelana como um legado avesso ao totalitarismo: a Constituição de 1811, evocada como referência fundadora, ressoa não como mera evocação histórica, mas como fundamento ético de uma comunidade política que foi desfigurada. 

Desfigurada por Hugo Chavez, que iniciou o desmonte das instituições, e por Nicolás Maduro, que efetivou um terrorismo de Estado:

“Quando percebemos quão frágeis nossos institutos haviam se tornado, um homem que havia liderado um golpe militar para derrubar a democracia foi eleito presidente. Muitos acreditaram que o carisma poderia substituir o Estado de Direito. A partir de 1999, o regime desmontou nossa democracia: violou a Constituição, falsificou nossa história, corrompeu as Forças Armadas, expurgou juízes independentes, censurou a imprensa, manipulou eleições, perseguiu dissidentes.

[…] Enquanto isso, algo ainda mais profundo e corrosivo acontecia: um método deliberado de dividir a sociedade por ideologia, raça, origem e modos de vida, empurrando os venezuelanos a desconfiarem uns dos outros, a se calarem, a se verem como inimigos. Eles nos esmagaram. Nos prenderam, nos mataram e nos forçaram ao exílio. […]

Após quase três décadas lutando contra uma ditadura brutal, tentamos de tudo. […]

Edmundo González Urrutia venceu com 67% dos votos. Em todos os estados, cidades e povoados.

Em cada estado, cidade e vila, cada ata contava a mesma história. Em poucas horas, elas foram digitalizadas e publicadas em um site para o mundo ver. Mas a ditadura respondeu com terror.

Duas mil e quinhentas pessoas foram sequestradas, desapareceram e foram torturadas. Casas foram marcadas, famílias inteiras transformadas em reféns. Padres, professores, enfermeiros, estudantes. Qualquer pessoa que ousasse compartilhar uma ata foi caçada. Esses são crimes contra a humanidade documentados pelas Nações Unidas. Terrorismo de Estado usado para enterrar a vontade do povo.

Mais de 220 crianças detidas após as eleições foram eletrocutadas, espancadas e sufocadas até repetirem a mentira que o regime precisava: incriminarem-se falsamente, dizendo que haviam sido pagas por mim para protestar. […]”

A Venezuela, sob Maduro, não é apenas um país em crise política é um país destruído pela perversidade dos que sustentam tal regime. O discurso de Corina Machado expôs a captura autoritário do Estado venezuelano, transformado em instrumento de aniquilação da esfera pública; o testemunho de Corina Machado expôs os valores que regem sua alma ordenada e equilibrada; o reconhecimento de Corina Machado expôs que tais valores são reais, objetivos e compartilhados por todos aqueles que não estão entorpecidos por nefastas ideologias.

“Compreendemos que nossa luta era muito mais do que eleitoral. Era uma luta ética pela verdade, uma luta existencial pela vida, e uma luta espiritual pelo bem”, escreveu a ganhadora do prêmio Nobel da Paz. E continuou:

“A causa da Venezuela transcende nossas fronteiras. Um povo que escolhe a liberdade, escolhe contribuir não apenas para si mesmo, mas para a humanidade. Somente por meio desse alinhamento interior, dessa integridade vital, nos erguemos para encontrar nosso destino. Só então nos tornamos quem realmente somos, capazes de viver uma vida digna de ser vivida.” 

Tais palavras têm força porque não são meramente retóricas. Há total coerência entre seu discurso e suas ações. 

Maduro cairá. A História, se descrita com seriedade e fidedignidade, mostrará à posterioridade sua mediocridade e a covardia dos que, como o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula as Silva, o ajudaram a instaurar e a manter a tirania. E honrará a grandeza de uma heroína que liderou seu povo em uma jornada rumo à liberdade”.

País dos Privilégios

Frédéric Bastiat foi categórico ao descrever a expoliação legal: o uso da lei para pilhar o contribuinte. No Brasil, essa pilhagem atingiu níveis de obscenidade fiscal. A máquina pública, que deveria ser servidora da nação, transformou-se em oligarquia financiada compulsoriamente pelo setor produtivo. A inação diante da urgência de reforma não é um erro gerencial, mas uma escolha deliberada de manutenção de poder e privilégio.

Os números não admitem eufemismos. Levantamento do  Movimento Pessoas à Frente e República.org revelou que 53 mil servidores públicos recebem acima do teto constitucional. O custo anual dessa farra é de R$ 20 bilhões. Este montante não representa apenas um rombo, mas transferência regressiva de renda onde trabalhador e empresário, que geram a riqueza, são espoliados para financiar o luxo governamental.

A disparidade salarial é o indicador mais contundente da falência do modelo. Enquanto a maioria dos brasileiros luta contra a estagnação econômica, estudos do Banco Mundial indicam que o salarial do servidor federal atinge uma média 96% maior em comparação com pares do setor privado. Uma distorção que desincentiva os mais capazes talentos de gerar riqueza no setor privado para se acomodar no setor público, refugiados na estabilidade de seus vultosos proventos. 

O Judiciário, em particular, lidera esse festim fiscal. O custo do sistema de justiça brasileiro atinge alarmantes 1,6% do Produto Interno Bruto, um patamar que é quatro vezes maior do que a média dos países da OCDE. Pagamos um dos Judiciários mais caros do planeta para, ironicamente, termos um dos processos mais lentos e uma segurança jurídica questionável, com seus mais altos membros viajando de carona em jatinhos de investigados, ao mesmo tempo que enterram as mais importantes operação que miram combater a corrupção. Um escárnio.

O aspecto mais nefasto dessa crise é a covardia política que a sustenta. O governo Lula e sua base aliada demonstram uma inércia estratégica. A ausência de movimento pela Reforma Administrativa não se deve à complexidade técnica, mas à captura corporativista. Enfrentar os supersalários e a estabilidade desmedida significa confrontar sindicatos e corporações estatais que são bases de sustentação do governo. A prioridade é clara: aumentar a receita via impostos para acomodar a despesa para colher votos, em vez de racionalizar o gasto e confrontar os privilégios.

Vale lembrar que a manutenção de uma máquina pública extrativista e ineficiente não é apenas uma questão de números fiscais, é um atentado à equidade social. Os bilhões que irrigam os supersalários são subtraídos do investimento em saúde básica, educação de qualidade e infraestrutura. Urge, portanto, reposicionar o debate. A reforma administrativa não deve ser encarada meramente como um corte de gastos, mas como um imperativo moral e econômico para desarmar as armadilhas que fazem do Brasil um país subdesenvolvido. Enquanto bilhões forem drenados anualmente para sustentar excessos de uma elite burocrática, o país continuará a operar muito aquém de seu potencial, preso a um modelo onde alguns privilegiados servem-se do trabalho duro de uma legião de brasileiros que carregam a nação nas costas.

Segue a Guerra dos Gerrymanders

Como já expliquei neste mesmo espaço, o gerrymander consiste no caprichoso desenho de distritos eleitorais dos Estados Unidos (435 distritos, cada um correspondendo a uma cadeira na Câmara dos Representantes). De modo a facilitar a vitória de um dos partidos e a derrota do outro. Lembra o analista político Matthew Continetti que o termo foi cunhado em 1812, mas a prática é tão antiga quanto a Constituição…. Até o início deste século, o costume era os legislativos estaduais retraçarem os limites dos distritos no início de cada década à luz do resultado do censo demográfico. Mais recentemente, tornou-se frequente o redesenho distrital um ano antes das eleições de meio de mandato presidencial, as chamadas midterms, quando o partido do presidente tende a perder cadeiras para a oposição. Temendo ser ‘impichado’ por uma possível maioria Democrata a partir de 2027, Donald Trump urgiu que seus correligionários Republicanos tomassem providências para possibilitar a ampliação da estreita margem de vantagem do GOP nas duas Casas do Congresso (219 contra 214 cadeiras na Câmara, duas delas atualmente estão vagas; e 53 contra 47 no Senado, onde dois independentes votam com os Democratas).

Assim, em julho último, Trump – agora com pouco mais de 42% de aprovação na média das pesquisas –, obteve o governador do Texas, Gregg Abbott, a sanção de um novo mapa eleitoral, na expectativa de que esse redistritamento renda aos Republicanos mais cinco cadeiras na Câmara. Ocorre que os Democratas aceitaram o desafio e fizeram a mesma coisa em estados onde têm maioria. Além disso, estão recorrendo ao ‘tapetão’ Judiciário para impugnar gerrymanders adversos. Juízes federais já consideraram inconstitucional o novo mapa texano, que, em breve, dverá ser analisado pela Suprema Corte. Na Califórnia, o governador Gavin Newsom, pré-candidato Democrata à Casa Branca em 2028, liderou campanha para anular a possível vantagem Republicana do Texas no pleito do ano que vem, n o que foi seguido por outro presidenciável do seu partido, o governador de Maryland, Wes Moore. Os Democratas da Virgínia, agora energizados pela vitória de Abigail Spanberger, a governadora estadual recém-eleita, querem seguir o mesmo caminho. E em Utah, um juiz determinou a criação de um distrito tendencialmente pró-Democrata em Salt Lake City.

Ambos os partidos torcem por resultados opostos no julgamento no julgamento do caso Luisiana X Callais, marcado para 4 de dezembro próximo na Suprema Corte. Os Democratas invocam a Seção 2 da Lei do Direito de Voto (Voting Rights Act), de 1965, o qual autoriza a criação de distritos racialmente mistos, enquanto os Republicanos alegam que isso violaria a 14ª. emenda constitucional. Se este segundo ponto de vista for vitorioso, meia dúzia de distritos do estado da Luisiana terão que ser redesenhados.

Nem tudo, porém, confiança e otimismo em outros arraiais Republicanos. No estado ‘vermelho’ de Indiana, o governador e a maioria da legenda no legislativo estadual abriram mão de um novo gerrymander, temerosos de uma retaliação ‘azul’. No Kansas, os Republicanos não apoiaram uma “sessão especial” destinada ao redistritamento. E tanto na Carolina do Norte quanto no Missouri, os parcos ganhos que poderiam ser trazidos pelo redesenho dos mapas votados pelos legisladores do GOP enfrentam contestação judicial.

Ante a ameaça de perder o controle do Congresso, o presidente prometeu punir seus correligionários vacilantes apoiando adversários trumpistas-raiz nas próximas primárias. A ânsia de Trump para que o Congresso aprove logo medidas capazes de impulsionar a popularidade do governo, como a distribuição a cada cidadão de classe média ou baixa de “dividendos” oriundos de parte do saldo obtidos pelo tarifaço comercial, motiva a atual pressão da Casa Branca pela eliminação do venerando instituto senatorial do filibuster. Trata-se de mecanismo regimental de obstrução, que só permite que o processo legislativo avance se este contar com voto de 60% dos senadores. Os Republicanos da Casa não compartilham o entusiasmo presidencial com a inovação, por receio de que a quebra dessa regra tradicional redunde em futuro tiro pela culatra, quando a legenda passar de maioria para a minoria. Afinal, pau que dá em Chico também dá em Francisco, e filibuster que hoje prejudica John amanhã pode prejudicar Jack….

Pressão à Negociação: A Virada Estratégica do Bolsonarismo

O cenário político brasileiro vive um dos seus momentos mais tensos e reveladores. A prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro, baseada em um processo amplamente contestado, escancarou uma tentativa de retirá-lo do jogo até as eleições de 2026. Para muitos, trata-se de uma medida com claro impacto eleitoral, tomada com uma naturalidade preocupante por parte de quem deveria zelar pela estabilidade institucional.

Enquanto isso, setores do centro político e do mercado já tinham uma estratégia pronta: construir Tarcísio de Freitas como o candidato de consenso. A pressão sobre Bolsonaro era evidente. O recado era simples e direto: se ele apoiasse Tarcísio, a pauta da anistia poderia avançar — uma anistia que envolve dezenas de pessoas presas em processos considerados desproporcionais, além do próprio ex-presidente.

O erro do centro foi presumir que Bolsonaro estava politicamente imobilizado. Acreditaram que ele aceitaria o roteiro imposto. Mas a reação veio de forma inesperada: em vez de se alinhar à construção prevista, Bolsonaro lançou o nome de Flávio Bolsonaro como alternativa para 2026. E isso alterou completamente o tabuleiro.

Com esse movimento, Bolsonaro deixou de ser pressionado e passou a ser o agente que pressiona. Se a anistia não avançar, Flávio permanece na disputa. Isso divide o campo da direita, o que fortalece Lula e projeta um cenário que o mercado enxerga como negativo. O centro, antes confortável, agora precisa escolher entre negociar ou enfrentar a possibilidade de mais quatro anos de governo petista.

Há ainda um componente adicional: o STF, hoje aliado do governo, conduz investigações que atingem diretamente partidos do próprio centro, como o União Brasil. Ou seja, a disputa não é apenas eleitoral, mas de sobrevivência política.

Flávio Bolsonaro já declarou estar aberto ao diálogo, mas estabeleceu um ponto de partida: a anistia. A mensagem é óbvia. O eleitorado bolsonarista continua sendo determinante — e sem ele, ninguém vence eleição nenhuma. Esses votos não serão entregues sem contrapartida. A exigência é a liberdade de pessoas que, segundo grande parte da direita, jamais deveriam estar presas.

O fato é claro: quem acreditou que o bolsonarismo estava derrotado subestimou a força desse grupo. Bolsonaro saiu de alvo passivo para protagonista da negociação. E quem não entender essa dinâmica estará lendo o cenário pela metade.

O jogo virou — e, agora, a próxima jogada não pertence ao centro, mas ao próprio bolsonarismo.