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Nova Ordem Autoritária

A Organização para Cooperação de Xangai (OCS) se consolida como um bloco geopolítico marcado pelo antagonismo ao Ocidente e pela defesa de regimes autoritários. Sob a liderança de Xi Jinping, a entidade propõe uma “nova ordem mundial” que, na prática, significa a consolidação de um modelo de poder centralizador com supressão de direitos civis e enfraquecimento da democracia. Ao contrário de promover multilateralismo, a OCS funciona como um eixo de apoio mútuo entre autocracias que buscam reduzir a influência das instituições democráticas globais.

O encontro em Tianjin, que aprovou uma estratégia até 2035, mostra que o bloco pretende expandir sua influência. A criação de um Banco de Desenvolvimento próprio e iniciativas em energia e inovação reforçam a tentativa de construir um sistema paralelo ao ocidental, mas sem compromisso com direitos humanos, liberdade ou democracia. A Índia, tradicionalmente alinhada ao Ocidente, se aproxima de forma perigosa dos líderes da OCS e aprofunda o risco de legitimar práticas repressivas neste eixo autoritário, ampliando tensões regionais e globais, colocando em xeque sua imagem internacional.

Essa confluência de autocracias gera efeitos diretos no equilíbrio global agindo sobre a guerra na Ucrânia e a estabilidade da Europa. Ao se reunir em fóruns e desfiles que projetam poder militar, líderes como Xi Jinping demonstram apoio tácito e claro à invasão russa, enfraquecendo pressões internacionais por uma solução pacífica. A complacência desses regimes autoritários não apenas prolonga o conflito e a tragédia humanitária ucraniana, como também mina o sistema internacional baseado em regras e instituições democráticas. O recado é claro: ditadores unidos desafiam abertamente os valores do Ocidente, abrindo espaço para uma nova era de conflitos.

Esse movimento ganhou contornos ainda mais nítidos em Pequim, no desfile organizado como parte das comemorações dos 80 anos do fim da 2ª Guerra Mundial. Lá, Xi Jinping exibiu pela primeira vez a tríade nuclear chinesa, sinalizando poder bélico em vez de cooperação pacífica. Ao seu lado, estavam ditadores e líderes autoritários de diferentes continentes — de Putin a Lukashenko, passando por figuras ligadas a regimes terroristas, como Masoud Pezeshkian do Irã e outros que também perseguem opositores e sufocam liberdades, com Kim Jong-un e Miguel Díaz-Canel, ditadores da Coreia do Norte e de Cuba. Um convescote autocrático que sinaliza o esboço de uma nova ordem autoritária. 

O Brasil, ao se fazer presente nestes eventos e se aproximar desse grupo, compromete sua tradição diplomática de defesa do multilateralismo democrático. A imagem projetada não é de liderança equilibrada, mas de cumplicidade com regimes que desprezam liberdades individuais, manipulam eleições e governam pela intimidação. Ao invés de se orgulhar de ocupar esse espaço, o país deveria se envergonhar. Estar ao lado de autocratas em desfiles militares ou fóruns controlados por ditadores significa renunciar a valores históricos da nossa política externa, corroendo a credibilidade internacional do Brasil e manchando sua identidade democrática.

No mundo atual, já marcado por conflitos e polarizações, a associação com a OCS e com espetáculos autoritários em Pequim não fortalece o Brasil. Apenas o coloca no lado errado da História — aquele que celebra o poder dos ditadores ao invés da liberdade dos povos.

A “salvação da democracia”: Lula, STF e o novo contrato social do Brasil

Recentemente participei de um evento com a função de comentar um dado artigo acadêmico que tratava das diferenças entre liberalismo e conservadorismo. 

O artigo, de muito rigor metodológico, sugere que a divergência mais relevante entre as referidas vertentes políticas está na forma como definem, hierarquizam e justificam as noções de ordem e liberdade, sendo consequentemente simplistas as tentativas de estabelecer diferenças tomando por critério apenas agendas políticas e outros elementos contingentes.

Meu papel na conferência foi defender que ambas as tendências se inserem no fluxo natural de desenvolvimento saudável da tradição política ocidental da qual são vetores resultantes que se reequilibram mutuamente quando uma das duas tende a sair do campo mais abrangente de valores que lhes sãos comuns.

O liberalismo foi fundamental na reinterpretação moderna da noção de soberania. No final do século XVI, tal noção aparecia ligada à plenitude do poder estatal; com a teoria da separação dos poderes, desenvolvida no século XVIII, em pleno iluminismo, freios jurídicos lhe são impostos.

A ideia é antiga. Se, por um lado, seria um óbvio anacronismo referir-se, por exemplo, a Aristóteles como o primeiro liberal, não é sem relevância notar que há, em sua reflexão política, uma valorização do equilíbrio de poder, uma tipologia de governos, uma noção de lei como expressão da razão, além de uma defesa da propriedade: sementes de preocupações que podem ser lidas como tipicamente liberais. Além disso, alguns autores medievais e renascentistas também teorizaram acerca de tais questões.

O filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704), constantemente referido como “pai do liberalismo”, retoma, portanto, uma tradição, embora reformule-a dentro de um paradigma moderno de ruptura com a cosmovisão clássica e medieval.

Diferentemente de Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã, para quem o poder soberano não conhece limite jurídico nem limite ético, para Locke os direitos naturais do homem (vida, liberdade, propriedade) são o limite diante do qual a interferência do poder estatal haverá sempre de recuar. A razão de ser do próprio Estado é assegurar a não-violação de tais direitos. O direito inglês, na verdade, era centrado na common law e qualquer lei do parlamento que com ela contrastasse deveria ser considerada nula e sem efeito.

Os franceses Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1778), dois grandes expoentes do iluminismo, foram ambos admiradores do sistema político britânico e, após estadia na ilha, confrontaram as liberdades ingleses ao absolutismo monárquico vivido na França.

Em suas Lettres philosophiques (também conhecida como cartas inglesas), Voltaire descreve e elogia os costumes e as instituições inglesas, destacando a limitação da soberania real pelo parlamento, assim como a liberdade de imprensa, de comércio e a tolerância religiosa como alicerces de um governo justo e eficaz.

Montesquieu expõe igualmente elevada opinião acerca das estruturas políticas da Inglaterra, cuja excelência estaria na divisão de poderes do Estado. Sua visão acerca disso ficou imortalizada na célebre obra O espírito das leis, na qual a divisão do poder é apresentada como condição da fruição da liberdade.

Montesquieu expõe a necessidade da moderação, da limitação do poder, da sua descentralização e distribuição institucional em diferentes órgãos. Tal disposição das coisas faz-se necessária “para que não se possa abusar do poder”, para que “o poder pare o poder.

Tal teoria, sabemos, é o cerne do Estado de direito e da democracia, se por democracia entendermos a exigência de distribuição de poder, modernamente realizada como democracia representativa e cuja ênfase recai menos no ideal da igualdade e mais no conjunto das regras que precisam ser obedecidas para que o poder político seja distribuído.

Essa concepção formal de democracia, como bem explica Norberto Bobbio, na obra “Liberalismo e Democracia”, é a que está historicamente ligada à formação do Estado liberal. 

Existe outro significado de democracia também historicamente legítimo: aquele que apela para uma democracia substancial e que está sempre buscando aprofundá-la.

Esse outro significado, porém, dificilmente é compatível com a tradição política que acabamos de descrever porque pressupõe a ruptura com valores essenciais que liberais e conservadores – modulando-se e corrigindo-se mutuamente – lutam para preservar.

O contrato social de Rousseau e a democracia totalitária

Qual seria, então, a referência teórica moderna dos “democratas” iliberais? Arrisco-me a dizer que a maioria dos que se arvoram defensores da democracia, no Brasil atual, são, consciente ou inconscientemente, herdeiros das ideias mais radicais de Jean-Jacques Rousseau, o genial, controverso, ambíguo e paradoxal genebrino, a quem o poeta Heinrich Heine referiu-se como sendo “a cabeça revolucionária da qual Robespierre não foi senão a mão executora.

Para uns, um iluminista, para outros, um anti-iluminista – a depender do que se entenda pelas luzes – Rousseau provocou uma inflexão na forma como a filosofia política ocidental vinha se desenvolvendo.

Em seu Discurso sobre a desigualdade, ele apresenta impactante e poética crítica à propriedade. Eis a célebre passagem, consagrada e reverenciada por todos que se identificam com tal visão de mundo:

“O primeiro que, após ter cercado um terreno, pensou dizer ´isto é meu´, e encontrou muito outros ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, conflitos, homicídios, quantas desgraças e quantos horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os marcos ou ultrapassando o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes: ´cuidado para não dar ouvidos a esse impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos e a terra não é de ninguém´”

A sociedade civil, a civilização, portanto, é uma desgraça. Com o pessimismo de Rousseau, a ótica interpretativa da história se inverte; o progresso festejado pelos iluministas é uma ilusão. A situação é de tal modo grave que não há possibilidade de curar a doença da sociedade apenas com reformas. É preciso um novo pacto social, fundado em novos pressupostos.

Se, na modernidade, Locke cultiva brotos nascidos das sementes liberais d´A Política de Aristóteles, Rousseau, rega, por sua vez, as sementes coletivistas d´A República de Platão.

A radical inflexão rousseauniana é decisiva para afastar a França da saudável influência de um iluminismo jurídico reformador e prudente, inspirado no modelo inglês, e encaminhar a nação para um iluminismo jurídico revolucionário que apregoa a necessidade de um novo contrato e de um novo homem.

Rousseau leva ao extremo a problemática identificação entre política e moral, fazendo do Estado um lugar de salvação individual e coletiva e propugnando a religião civil, em detrimento do cristianismo o qual, segundo ele, é totalmente contrário ao espírito social.

Por ser “uma religião totalmente espiritual que separa os homens da terra”, o cristianismo, segundo Rousseau, afasta os homens da vida cívica e enfraquece a República. Por não ter qualquer relação especial com o corpo político, “deixa às leis somente a força que tiram de si mesmas, sem acrescentarem nenhuma”.

A religião civil, por outro lado, teria por dogma a santidade do contrato e das leis, sustentando a coesão moral da República. Sob o pretexto da defesa do bem comum, o cidadão deve se deixar absorver no todo do corpo social, sacrificando sua individualidade no altar da “Vontade geral”

Estamos lidando aqui com uma concepção religiosa de política ou com uma das etapas da virada antiliberal que colocou a política no lugar da religião, exigindo que o cidadão deposite no Estado a mesma fé que um cristão deposita em Deus.

Não é incorreto dizer que o contrato social postulado por Rousseau dá origem a um estado democrático, na medida em que postula que o poder soberano deve estar nas mãos não de um príncipe ou de uma aristocracia, mas da coletividade. 

Por outro lado, ao eliminar as mediações institucionais que limitariam tal poder, o contrato enseja a tirania da maioria ou a democracia totalitária, tão temida por conservadores e liberais.

Revolução francesa e conservadorimo moderno

Solicitado pelo rei da Polônia, Estanislau II, a ajudá-lo a refletir sobre como salvar e reformar a Polônia, Rousseau chegou a escrever: “jamais se viu um povo corrompido voltar à virtude […]. Não há mais remédio, a não ser o de uma grande revolução quase tão terrível quanto o mal que poderia curar, e que é reprovável desejar e impossível prever”.

A revolução terrível em nome da virtude não aconteceu na Polônia, mas ocorreu na França, quando o “incorruptível” Robespierre, conduzindo com mãos de ferro o Comitê de Salvação Pública, endurecendo a revolução liberal até o terror, fez descer a guilhotina sobre todas as cabeças que supostamente conspiravam contra a República.

Antes mesmo de Robespierre adquirir poder relevante, quando a revolução estava ainda em seus primeiros estágios, após a queda da Bastilha, o irlandês Edmund Burke (1729-1797) publicou Reflections on the Revolution in France, obra considerada marco do conservadorismo moderno, na qual explica que a destruição das instituições históricas, iniciada pela revolução francesa, ameaçava o próprio tecido da civilização europeia.

A ambiguidade disso está no fato de que Burke era membro do partido Whig, ou seja, o partido liberal da Inglaterra do século XVIII, que defendia a limitação do poder real, a constituição e eram herdeiros da revolução gloriosa, em contraposição aos Tories, que compunham uma visão de mundo mais reacionária.

O conservadorismo moderno nasce, portanto, não de um reacionarismo anti-iluminista, mas de uma reflexão sobre os descaminhos que o ímpeto radical, transgressor e revolucionário poderia tomar. Não de uma defesa do absolutismo, mas sim de uma crítica à ruptura revolucionária.

E o Lula? E o STF?

A essa altura já deve estar impaciente o desprevenido leitor que, seduzido pelo título, deitou os olhos nesse artigo esperando considerações acerca da politicalha ordinária do Brasil atual.

Não julgue que ajo com má-fé ao sugerir reflexões e evitar, nesse quesito, verdades acabadas. A digressão político-filosófica aliada ao título sugestivo do artigo já dá por si só o que pensar. Mas sigamos juntos um pouco mais.

O que entendem por democracia aqueles que por aqui se arrogam seus defensores? Que tipo de democracia desejam? uma democracia liberal ou uma democracia totalitária? Lula já deixou claro, inúmeras vezes, seu desapreço pela democracia liberal.

“A democracia liberal demonstrou-se insuficiente e frustrou as expectativas de milhões”, discursou o presidente do Brasil, ano passado, no evento “Em defesa da democracia: lutando contra o extremismo”, organizado por ele e pelo presidente espanhol, o socialista Pedro Sanchez.

A democracia liberal não foi capaz de responder aos anseios e necessidades contemporâneas”, insistiu Lula em julho deste ano, no evento “Democracia sempre”, reunião realizada no Palácio de La Moneda, Chile, ao lado dos presidentes Boric, Pedro Sanchez, Petro e Yamandu.

Outro ponto que merece reflexão é a pública e notória defesa que o ministro Luís Roberto Barroso faz da função de “vanguarda iluminista” do STF. 

Ele próprio declara ser dever do tribunal “empurrar a história” para frente. Mas que tipo de iluminismo defendem os ministros do Supremo que se julgam iluminados? O iluminismo comedido de um Montesquieu, que pregava a divisão e harmonia dos três poderes, ou o iluminismo fanático de um Robespierre?

Robespierre também se considerava um iluminista e também esteve à frente de um Tribunal. No caso, o Tribunal Révoluttionaire, que julgava de forma rápida e sumária, condenando à morte os acusados de conspirar contra a República. 

Inspirado em Rousseau, Robespierre “iluminava” a sociedade de forma coercitiva, tomando medidas extremas para criar uma república virtuosa.

Claro, não temos mais guilhotinas. Está fora de moda. Mas temos leis. Leis pervertidas, como já prenunciava F. Bastiat (1801-1850), em seu opúsculo Le Loi. Não leis que servem à justiça ao protegerem a vida, a liberdade e a propriedade, mas leis distanciadas de sua própria finalidade, leis voltadas para a consecução de um objetivo inteiramente oposto: “A lei transformada em instrumento de qualquer tipo de ambição, em vez de ser usada como freio para reprimi-la! A lei servindo à iniquidade, em vez de, como deveria ser sua função, puni-la!

Dentre os ilustres togados, Barroso não é dos piores. Seu exemplo apenas veio a calhar devido à sua arrogante pretensão iluminista. Alexandre de Moraes, cuja retórica está centrada na “defesa da democracia”, tem sido mais eficaz em descaracterizá-la, minando seus alicerces ao combater seus mais atabalhoados adversários.

Em matéria de ataque à liberdade de expressão, Dias Toffoli disputa com Moraes o troféu de censor da República, mas, em matéria de perverter a lei, de transformá-la em “instrumento de qualquer tipo de ambição”, o criador do Fórum Jurídico de Lisboa é hors conscours. Mas não falemos dele. Bolsonaro não deixa. “Esqueça qualquer crítica ao Gilmar”, escreveu o ex-presidente em mensagem ao seu filho, divulgada no relatório da Polícia Federal.

Eis a situação caótica do Brasil: o Supremo Tribunal Federal que, revisando sua própria jurisprudência, possibilitou a saída do presidente Lula da prisão, vê-se hoje na iminência de condenar um ex-presidente que tentou dar um golpe de Estado.

Golpe que precisa de militar, que escancara o desejo de instaurar uma ditadura e é planejado por pessoas broncas, pouco ilustradas, abertamente reacionárias é coisa antiga e ineficaz. Mas serviu muito bem de pretexto para algo mais sutil: justificar o pacto entre Lula e o STF e o novo “contrato social” por meio do qual eles salvarão a “democracia” no Brasil.

Renascimento Nuclear na Era da Inteligência Artificial

A energia nuclear está ressurgindo como uma das mais promissoras respostas às demandas energéticas trazidas pelo advento da inteligência artificial. Data centers, redes neurais avançadas e a crescente infraestrutura digital consomem quantidades colossais de eletricidade, pressionando sistemas energéticos já fragilizados. Nesse contexto, o nuclear reaparece não apenas como tecnologia, mas como símbolo de um futuro possível: limpo, estável e capaz de sustentar a era da informação.

O que surpreende, porém, é que quem encabeça esse movimento não é uma autoridade política ou um magnata da energia, mas sim uma ativista e criadora de conteúdo: Isabelle Boemeke, conhecida mundialmente como Isodope. Em agosto de 2025, ela foi tema de reportagens internacionais após o lançamento de seu livro Rad Future: The Untold Story of Nuclear Electricity and How It Will Save the World. O título já revela a ambição da obra: recontar a história de uma tecnologia marcada pelo medo e transformá-la em promessa de futuro.

Do espectro da destruição à promessa de esperança

Por décadas, a energia nuclear esteve associada ao espectro da destruição. Hiroshima e Chernobyl cristalizaram a imagem de um poder humano desmedido, capaz de criar e ao mesmo tempo aniquilar. Essa herança moldou não apenas políticas públicas e movimentos sociais, mas também o silêncio coletivo sobre seus possíveis benefícios.

É justamente esse legado que Isabelle confronta. Rad Future parte do paradoxo nuclear — destruição e criação, risco e promessa, ameaça e esperança — para propor uma nova narrativa. Seu gesto é ousado: unir ciência, ativismo e arte para mostrar que o nuclear não é apenas tecnologia, mas também imaginário social. Ao transformar essa história em estética e linguagem acessíveis, Isabelle abre o debate a jovens, artistas e ativistas climáticos, rompendo com décadas de tecnocracia e burocracia.

Cultura e política: uma convergência histórica

O impacto cultural de Rad Future não acontece no vácuo. Em agosto de 2025, quase simultaneamente ao lançamento do livro, a Federal Energy Regulatory Commission (FERC) autorizou a retomada da usina nuclear Duane Arnold, em Iowa (EUA). A decisão foi considerada histórica: após anos de desativação, uma planta nuclear voltou à rede elétrica para atender à crescente demanda por energia limpa e confiável (Howland, 2025).

Esse episódio sinaliza algo maior. Cultura e política, que tantas vezes caminharam em direções opostas no tema nuclear, começam a se alinhar. O nuclear deixa de ser apenas uma questão técnica e passa a ser também uma questão social e cultural, legitimada por símbolos, narrativas e vozes capazes de mobilizar a imaginação coletiva.

O Brasil diante do paradoxo

Há, nesse movimento, uma ironia poderosa. A principal voz cultural do nuclear no mundo é brasileira. Nascida em Passo Fundo (RS), Isabelle Boemeke tornou-se referência internacional ao redesenhar a imagem da energia nuclear, mas continua pouco reconhecida em seu país de origem.

O Brasil possui Angra 1 e 2, a promessa inconclusa de Angra 3, algumas das maiores reservas de urânio do planeta e um programa nuclear naval sofisticado, conduzido pela Marinha. Apesar desse potencial, o debate público segue paralisado, preso a estigmas e à memória de catástrofes passadas. O país hesita, enquanto sua voz mais criativa e ousada ecoa no exterior.

A energia do futuro é também narrativa

O mérito maior de Rad Future não está apenas em reabilitar a energia nuclear diante de argumentos técnicos, mas em revelar que o futuro energético será decidido também no campo da cultura. Energia, afinal, não é apenas um conjunto de reatores, turbinas ou painéis: é também símbolo, estética, imaginação coletiva.

Isabelle Boemeke compreendeu esse aspecto com clareza. Ao trazer moda, arte e comunicação digital para o debate nuclear, ela inaugura uma nova fase em que a energia deixa de ser monopólio dos engenheiros e se torna parte da cultura jovem global.

O desafio, portanto, não é apenas técnico: é simbólico. Rad Future nos lembra que escolher a energia do futuro é também escolher a narrativa que desejamos contar sobre nós mesmos. E talvez seja justamente aí que a inteligência artificial e o nuclear se encontrem: como expressões da ambivalência humana, capazes de ampliar tanto nossa capacidade de criar quanto nosso poder de destruir.

Referências

  • Boemeke, I. (2025). Rad Future: The Untold Story of Nuclear Electricity and How It Will Save the World. [Amazon Publishing].
  • Howland, E. (2025, August 26). FERC approves NextEra waiver needed for Duane Arnold nuclear plant restart. Utility Dive.
  • International Energy Agency. (2023). Electricity 2023: Analysis and forecast to 2025. Paris: IEA.
  • World Nuclear Association. (2024). World Nuclear Performance Report 2024. Londres: WNA

O Julgamento de Bolsonaro: Um Teste Crítico para o STF e a Democracia Brasileira

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, marcado para 2 de setembro de 2025 no Supremo Tribunal Federal (STF), vai além da figura de um político acusado de tentativa de golpe. Trata-se de um momento definidor para a democracia e, sobretudo, para a credibilidade do STF, que enfrenta crescente desgaste diante da opinião pública. Alegações de parcialidade, fragilidade de provas, cerceamento de defesa e medidas consideradas arbitrárias levantam dúvidas sobre a imparcialidade da Corte. O Supremo terá de escolher entre reforçar sua legitimidade como guardião da Constituição ou aprofundar a percepção de que se tornou um tribunal politizado.

Tradicionalmente visto como pilar democrático, o STF atravessa uma crise de imagem. A condução do processo por Alexandre de Moraes gera críticas que vão além dos círculos bolsonaristas. Sua atuação simultânea como relator e figura central do inquérito, somada a decisões como bloqueios de perfis, uso de tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar de Bolsonaro em agosto de 2025, alimenta a narrativa de um Judiciário que extrapola seus limites. Entidades como a Human Rights Watch e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertaram para riscos de abuso de poder e enfraquecimento do devido processo legal.

A escolha de manter o julgamento na 1ª Turma do STF, composta por apenas 5 ministros, em vez do Plenário, é um erro grave. Casos de grande impacto — como o mensalão (2012) ou a prisão em segunda instância (2016) — foram julgados pelos 11 ministros em sessões públicas, o que fortaleceu a legitimidade das decisões. No caso Bolsonaro, limitar a decisão a uma turma reduzida reforça a percepção de falta de transparência.

O julgamento não diz respeito apenas a um ex-presidente, mas ao futuro da accountability política no Brasil. A sociedade, já polarizada, acompanha cada passo. Se o processo for visto como injusto, poderá inflamar tensões, legitimar narrativas de perseguição e minar a confiança em outras instituições. Por outro lado, um julgamento transparente e equilibrado pode reafirmar que ninguém está acima da lei.

As delações frágeis — como a de Mauro Cid, questionada por juristas pela ausência de provas materiais — e decisões céleres que sugerem presunção de culpa aumentam a desconfiança. A expectativa não é apenas por condenação ou absolvição, mas por um processo justo em forma e conteúdo.

O julgamento de 2 de setembro é um divisor de águas. O STF precisa demonstrar que é capaz de julgar com imparcialidade e sem aparência de perseguição política. Um processo opaco enfraquecerá a Corte e, com ela, a própria democracia. A sociedade brasileira merece um julgamento à altura da Constituição.

O Brasil é dos Chineses

A recente negociação envolvendo a venda das minas de níquel da Anglo American para a MMG, subsidiária da estatal China Minmetals, escancara a vulnerabilidade do Brasil diante de investimentos estrangeiros que não apenas movimentam cifras bilionárias, mas tocam o coração da soberania nacional: o controle sobre recursos estratégicos. O negócio, avaliado em US$ 500 milhões, foi concretizado em condições que levantam fortes suspeitas. Outra interessada, a Corex Holding, ofereceu quase o dobro do valor — US$ 900 milhões — e mesmo assim foi preterida, em uma decisão que reforça a percepção de que a Anglo American priorizou interesses políticos e comerciais ligados à China, ainda que em detrimento da transparência e da competitividade.

O caso se torna ainda mais grave quando se analisam seus impactos sobre o mercado. Se confirmada, a transação entregará à MMG o controle de mais de 50% do mercado brasileiro de níquel, praticamente 100% do mercado nacional de ferro-níquel e cerca de 60% do mercado global. Estamos falando de um insumo central para a economia do futuro, essencial na produção de baterias, veículos elétricos e aço inoxidável. Ou seja, o Brasil corre o risco de se tornar conscientemente refém de uma potência estrangeira justamente em um setor estratégico para a transição energética e a indústria de ponta.

Esse episódio ilustra porque o Projeto de Lei 1051/2025, que cria o Comitê de Triagem e Cooperação para Investimentos Estrangeiros Diretos (CTIE) não é apenas necessário, mas urgente. A ausência de uma estrutura robusta de avaliação de investimentos abre espaço para que decisões de curto prazo comprometam o futuro da economia nacional. O CTIE teria a missão de filtrar operações que afetam diretamente a segurança nacional e a autonomia estratégica do país. Trata-se de mecanismo de defesa que países desenvolvidos já utilizam para conter a expansão predatória em setores sensíveis, prática comum entre os membros da OCDE.

Não se trata de xenofobia econômica, mas de realismo geopolítico. A China, por meio de suas estatais, persegue deliberadamente o controle de cadeias globais de suprimento de minerais críticos. A lógica é clara: quem domina os insumos controla os preços, define os prazos e estabelece condições comerciais e controle econômico. O Brasil, dono de vastas reservas minerais, assiste passivamente à entrega de seu patrimônio estratégico.

É simbólico que até o Instituto Americano do Ferro e do Aço busque pressão diplomática contra o acordo, denunciando a crescente ação global da China pelo controle dos minerais críticos. O país domina hoje o refino de minerais como níquel, cobalto e terras raras, mas ainda depende de minas no exterior para alimentar suas fundições. Por isso, corre para adquirir ativos estratégicos em diferentes continentes. 

A soberania nacional está além de manter fronteiras, mas também resguardar a capacidade de decidir sobre nossos recursos. Portanto, a venda das minas de níquel não é apenas um negócio isolado: é um alerta. Sem instrumentos institucionais como o CTIE, o Brasil segue vulnerável a operações que comprometem seu futuro. O PL 1051/25 surge como uma salvaguarda indispensável, garantindo que decisões estratégicas sobre setores críticos não sejam tomadas sob a lógica do oportunismo financeiro, mas sob o imperativo maior da soberania nacional. O governo diz que o Brasil é dos brasileiros, porém, a verdade é que, até o momento, o Brasil caminha para ser propriedade dos chineses.

“A verdadeira direita do Brasil”?

Minas Gerais, Romeu Zema, como pré-candidato à eleição presidencial de 2026. O convite, postado no WhatsApp pelo Instituto Libertas, ressaltava a seguinte mensagem: “Vamos unir a verdadeira direita do Brasil”.

A frase é ambígua. Pode significar uma avaliação crítica ao bolsonarismo, que há alguns anos se impôs no Brasil como principal referência da direita, mas pode também ser um apelo para unir essa direita bolsonarista em torno da candidatura do Novo, ambas sendo tomadas pela “verdadeira direita” em contraposição a uma “falsa direita” e a toda a esquerda, tomada aqui por um bloco homogêneo excluído de antemão.

De uma forma ou de outra, há na referida frase uma irrefletida valoração positiva da “direita”, além de perigoso purismo, ausência de distinção, eliminação de nuance e reivindicação de hegemonia.

Parece-me problemático que um partido dito liberal tome a ideologia ou categoria política “direita” por um valor positivo absoluto em torno do qual se busca uma união em detrimento do restante do espectro político.

O liberalismo, no decurso dos eventos históricos que protagonizou enquanto ideologia moderna, aproximou-se tanto da esquerda quanto da direita. Liberais e socialistas já se uniram contra estruturas conservadoras; liberais e conservadores já se uniram contra abruptas rupturas revolucionárias.

Se o malfamado “neoliberalismo” da segunda metade do século XX identifica-se mais com o espectro da direita, o liberalismo social do século XIX e início do século XX encontra mais pontos de contato com a esquerda social-democrata.

Parece-me, pois, contraproducente – até do ponto de vista eleitoral – que o partido Novo, por ocasião do lançamento de uma candidatura presidencial, opte por um chamado de união à “verdadeira direita” excluindo de antemão o eleitorado do centro ou da esquerda moderada com a qual poderia vir a compor.

A refutação clara do radicalismo de direita e o aceno aos moderados de ambos os espectros políticos parece-me um caminho mais correto, mais saudável e mais coerente para um partido em cujos princípios estão citados o império da lei e a democracia.

O partido Novo, na figura de Romeu Zema, se apresenta para a disputa em um momento muito difícil para a política brasileira e de descaminho do próprio partido. 

Tal descaminho tem sido a excessiva proximidade com o bolsonarismo que, com sua ignorância boçal e seu autoritarismo escancarado, já se tornou um espantalho. Um espantalho que espanta votos, embora não tenha esgotado todo seu capital político.

Entendo que haja um pragmatismo que visa herdar o espólio do bolsonarismo agonizante, mas contra esse pensamento utilitário reclamo uma ética mais kantiana que afirma ser necessário defender o certo e condenar o errado, a despeito das consequências.

Não é certo fazer de conta que as ações de Jair Bolsonaro, de seus filhos e de seu entorno não foram erradas.

Se o Novo for capaz de se descolar da direita radical, do populismo reacionário que o bolsonarismo representa, o partido pode vir a ser um representante legítimo não da “verdadeira direita” – expressão infeliz, de tom autoritário – mas de uma direita plural, de boa inspiração liberal-conservadora, democrática e humanista.

É preciso fugir dos extremos e tomar cuidado com a retórica belicosa e simplista que apaga as nuances dos espectros políticos.

No livro intitulado “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política“, Norberto Bobbio reconhece que direita e esquerda não são blocos monolíticos e que existem nuances dentro de cada campo, podendo as posições inclusive serem deslocadas.

Contra aqueles que insistem em afirmar que ou se é de esquerda ou se é de direita, ele reivindica a importância de uma zona cinza que se nutre de elementos de ambos os espectros.

Embora a igualdade seja o critério primário para a distinção entre as duas vertentes políticas, Bobbio também discute a liberdade e a autoridade como critérios secundários que, em certas circunstâncias, podem se sobrepor ou complementar a questão da igualdade.

A posição de direita ou esquerda em relação à liberdade e autoridade não é fixa, podendo variar. A partir dos critérios de igualdade e liberdade, ele sugere então o seguinte espectro das doutrinas e movimentos políticos:

1) Extrema esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e autoritários

2) Centro esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e libertários

3) Centro direita: movimentos simultaneamente libertários e inigualitários

4) Extrema direita: movimentos simultaneamente antiliberais e anti-igualitários.

Enquanto o moderantismo (à esquerda ou à direita) tende a ser gradualista, evolucionista e a considerar como guia para ação a noção de desenvolvimento, o extremismo (à esquerda ou à direita) tende a ser catastrófico e a interpretar a história como se ela desse saltos.

Outro ponto importante destacado por Bobbio é que extremistas de esquerda e extremistas de direita têm em comum, do ponto de vista político, a aversão pela democracia como conjunto de valores e como método e, do ponto de vista histórico-filosófico, o anti-iluminismo.

Se trago para um artigo jornalístico essas sutilizas conceituais – mesmo sem ter espaço para explicá-las pormenorizadamente – é apenas para alertar o perigo que há na propagação de um discurso no qual um partido se apresenta como “a verdadeira direita” ou como “o único partido 100% de direita.”

Um partido 100% à direita é um partido de extrema direita. Um regime de extrema direita é um regime sem liberdade, sem igualdade, onde Estado subjuga e esmaga o indivíduo. É um Estado totalitário. Certamente não é isso que o partido Novo defende, mas a ausência de cultura política pode levar a exortações irrefletidas.

Sendo assim, seria bom para o partido rever seus slogans, revisitar seus fundamentos e reajustar sua retórica a fim de se apresentar como uma opção viável não apenas para a “verdadeira direita”, mas para a maioria dos brasileiros que almeja um país livre não apenas do PT, mas dos Bolsonaro também.

Principais características dos democratas

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

2 – Quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

3 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

4 – Democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

5 – Democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

6 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

7 – Democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

8 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

9 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

10 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

11 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

12 – Democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

13 – Democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

14 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

15 – Democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Silêncio em Pequim

Entre os muros da Cidade Proibida, símbolo de um passado marcado pela discrição, ressoa hoje um eco que se projeta sobre Zhongnanhai, o atual centro nervoso do poder chinês. Ali, atrás de portões fechados e corredores vigiados, definem-se em silêncio os destinos da política externa de uma das grandes potências do planeta. Naquele mundo, a regra é simples: decisões cruciais não são explicadas, apenas sentidas pelo mundo.

Foi nesse cenário que a diplomata Sun Haiyan, ex-embaixadora em Singapura e vice-chefe do Departamento Internacional do Partido Comunista, desapareceu da cena política. Seu superior, Liu Jianchao — nome tratado como sucessor natural de Wang Yi, atual Ministro das Relações Exteriores — teve destino similar: interrogatórios, rumores e silêncio. Ambos seguem nos registros oficiais como se ainda estivessem em seus cargos. A burocracia se encarrega de manter a ilusão; a realidade, porém, já os apagou.

Estes não são casos isolados. Em 2023, Qin Gang, então Chanceler, foi igualmente removido sem explicação. Esses desaparecimentos sucessivos revelam algo mais profundo: até mesmo a diplomacia chinesa, que deveria sinalizar estabilidade e continuidade, na verdade é vulnerável à lógica interna e regras do Partido Comunista, que privilegia disciplina e lealdade acima da previsibilidade e estabilidade política.

O problema é que essa opacidade não se limita às paredes de Zhongnanhai. Ela vaza para além de suas fronteiras, tornando-se risco exportado. Parceiros comerciais, governos e investidores precisam lidar com uma China em que os interlocutores podem sumir de um dia para o outro. A pergunta que fica é: Como negociar compromissos estratégicos em condições tão incertas? O comércio e a geopolítica exigem confiança, mas Pequim oferece em seu cardápio apenas mistério e incerteza.

Sob Xi Jinping, a diplomacia passou a refletir o estilo do próprio regime: centralizada, rígida, pouco transparente — e, por isso mesmo, imprevisível. O resultado é um mundo forçado a interpretar ausências, decifrar sinais, ler entrelinhas. A instabilidade interna do Partido, em vez de assunto doméstico, tornou-se elemento de insegurança global.

A lição que se impõe é dura: nos corredores de Zhongnanhai, o silêncio não é vazio, mas instrumento de poder. Quanto menos se explica, mais espaço há para a disciplina interna, mas também para a incerteza. É nesse contraste entre opacidade e influência global que reside o paradoxo da China contemporânea: uma potência que aspira confiança, mas cultiva o segredo como método.

O Brasil, maior parceiro comercial da China na América Latina, deveria observar esses movimentos com atenção redobrada. Não basta comemorar os números do agronegócio ou a expansão do comércio bilateral. É preciso compreender que, ao atravessar Xinhuamen (Portão da Nova China), e adentrar em Zhongnanhai, onde o poder realmente se move, não há espaço para ingenuidade. Ali, a política externa não se conduz à luz do dia, mas entre sombras — as mesmas que têm provocado reiterados episódios de instabilidade em sua diplomacia.

O “isentão” é, antes de tudo, um forte

Cursei jornalismo por uns dois anos. Foi minha primeira faculdade, mas abandonei-a, dentre outros motivos, por não conseguir me adaptar à urgência da notícia. 

Sou paradoxalmente ansiosa e contemplativa, apressada e reflexiva. Minha natureza, por assim dizer, “ruminante”, para usar uma expressão de Nietzsche, empurrou-me para a Filosofia. Por ironia do destino, porém, mesmo não sendo jornalista, cá estou, atuando nesse meio.

Em 2015, comecei a sair um pouco da bolha universitária. Há dez anos dou a cara a bater no debate público, expondo minhas opiniões e análises políticas em diversos think tanks, portais e jornais. O que prejudicou, inclusive, minha carreira acadêmica, que estou tentando retomar.

Fui a primeira mulher nordestina a assinar, toda segunda feira, a página A2 da Folha de S.Paulo. Consegui romper a barreira regional e de gênero sem apadrinhamento, sem ceder um milímetro nas minhas convicções e princípios, sem precisar de qualquer tipo de cota.

Acabei abrindo mão desse espaço por ingenuidade. Em um desvio de rota, achei que fazia algum sentido para mim a política partidária. Não fazia. Minha relação com a política é uma relação externa, de análise. 

Não sou militante política, não sou jornalista militante. Sou simplesmente alguém inclinada a tentar compreender o mundo em que vivo, tanto em seu aspecto metafísico/ontológico quanto em seu aspecto social/político.

A incursão frustrada na política partidária deu-me, porém, algo de inestimável valor: a experiência da desilusão. 

Perder as ilusões em relação à política é um rito de passagem fundamental para começar a refletir bem sobre esse campo do saber. Quando me tornei colunista aqui, no portal O Antagonista, eu já havia passado por esse rito.

Isso não significa que eu não tenha ideais. Tenho-os sim, mas não deposito em nenhum político ou agrupamento político a esperança de realizá-los. 

O ideal existe para mim como ponto de referência, de parâmetro para a apreciação das formas sociais efetivas, não como crença passível de manipulação por demagogos astuciosos e cínicos como o são quase todos os profissionais da política.

Não é razoável, portanto, que eu ou qualquer outro colunista minimamente isento em suas análises seja objeto não apenas de crítica, mas de ódio, xingamentos e difamação justamente pelo quesito da isenção.

“Qual é o problema de ser isentão?”, perguntou o colega Eduardo Affonso, em sua crônica no jornal O Globo. 

O aumentativo pode conotar admiração ou desprezo, mas ´isento´ quer dizer liberto, desembaraçado, imune. Limpo, justo, desapaixonado. Imparcial. Sensato. Neutro”, escreve Affonso, desnudando também, em seu texto, a irracionalidade e a intolerância dos leitores que exigem que colunistas façam eco às suas paixões políticas sob pena de serem defenestrados.

Alguém poderá retorquir fazendo notar que, por trás da pretendida isenção, há inevitavelmente uma tomada de posição.

De certa forma sim. Não diria, porém, uma posição política propriamente dita, mas certa tendência ou inclinação, que, de resto, está explícita naquilo mesmo que se defende e se escreve. Isso é diferente de tomar partido, de se colocar a serviço de um partido ou de servir aos próprios interesses servindo a interesses escusos.

No meu caso específico, difícil não perceber, por tudo que já escrevi, que me insiro ideologicamente em um espectro que oscila do campo liberal-conservador à esquerda social-democrata, ou seja, tenho por campo político mais familiar a centro-direita, mas aceno favorável e complacentemente à centro- esquerda.

Uma legítima “isentona”, sentenciarão alguns. Que seja. No Brasil de hoje, o “isentão” é antes de tudo um forte.

O “isentão” digno desse nome é tarimbado na lida com a pressão dos extremos alucinados da política hodierna, já declinou vantagens pessoais que poderiam advir do adesismo descarado a um dos polos ideológicos em contenda e é dotado de uma sobriedade forjada no ato de resistir à gritaria histérica dos que exigem o sacrifício da razão no altar do fanatismo.

O “isentão” é a resistência do indivíduo autônomo, do sujeito pensante e do espírito livre, em meio à rebelião das massas.

Entendo que nosso país vive momento delicadíssimo, de muita tensão e turbulência. Estou consciente de que o discurso de defesa da democracia tem servido de fachada para o avanço das práticas mais autoritárias. 

Como, porém, tomar um lado nessa briga se aqueles que acusam as práticas autoritárias de uns são os mesmos que apoiam as práticas autoritárias de outros? Se não há lado certo, por que se juntar a um dos lados errados em vez de apontar o erro de ambos?

Tenho recebido ataques e xingamentos de alguns seguidores nas redes sociais por supostamente estar ao lado do STF, visto que não estou berrando por aí com os bolsonaristas pelo impeachment de Alexandre de Moraes. Não consigo, porém, defender ardorosamente uma bandeira política quando percebo claramente a sua instrumentalização por pessoas torpes mal-intencionadas.

Denunciar os abusos do ministro Moraes é importante e eu mesma não me furtei a isso; mas o problema do Brasil não é apenas Alexandre de Moraes. 

Por que bolsonaristas esbravejam apenas contra ele e fazem vista grossa para os atos abusivos e pouco republicanos de outros ministros como Gilmar Mendes ou Dias Toffoli?

Ora, retrucarão alguns, os bolsonaristas querem o fim do STF como um todo. Para isso invadiram a Praça dos Três Poderes e um bolsonarista até se explodiu em frente ao prédio do Supremo Tribunal. 

Aí é que está o problema. Não querem reformar a instituição por meios legítimos, querem destruí-la. Não se incomodam com o poder centralizado, incomodam-se com o poder centralizado nas mãos daqueles que julgam ser seus inimigos.

O problema do Brasil não é apenas o autoritarismo de Moraes, mas a falta de legitimidade de todo o sistema político; é a crise de legitimidade que existe em cada um dos três poderes porque aqueles que lá estão não honram suas funções, não atuam com lisura, não têm probidade, não são íntegros.

Ocorre que, nessa democracia disfuncional em que vivemos, ainda não estamos sob uma ditadura escancarada. O povo vota, escolhe seus representantes e o brasileiro tem insistido em escolher mal, muito mal.

A massa esquerdista que gritava Lula livre na porta da cadeia e os parlamentares lulistas que protestaram durante sessões do Congresso por ocasião da sua prisão atrasam tanto o Brasil quanto a massa direitista que invadiu a praça dos três poderes e os parlamentares que ocuparam recentemente as casas legislativas com o objetivo de livrar Bolsonaro da prisão.

O brasileiro comum politizou a sua vida privada permitindo que suas relações pessoais fossem envenenadas pelo fanatismo político enquanto aqueles por quem deterioram os seus sagrados laços de família sequer partilham dos seus ideais; são meros profissionais da política cujo ofício é alardear retoricamente como sendo de interesse nacional ou comum aquilo que é interesse pessoal ou grupal.

O Brasil precisa romper o ciclo nefasto da corrupção, do patrimonialismo e do populismo. Para tanto, precisamos exigir dos nossos representantes lisura, seriedade, coerência. Se continuarmos servindo apenas de massa de manobra conduzida ao bel prazer dos demagogos de ocasião ou dos sofistas inveterados, retroalimentaremos a mesma política que já sabemos perniciosa.

Ao cidadão cabe sempre o ceticismo quanto àqueles que exercem o poder ou detêm carisma capaz de atrair multidões. Em relação aos políticos, nossa atitude deveria ser sempre a fiscalização constante, a cobrança séria e não a bajulação que tapa os olhos para os erros em nome de uma suposta ideologia comum.

O fanatismo político nos trouxe até aqui. A prudência e a escolha criteriosa do eleitor “isentão” em 2026 pode ser o primeiro passo para nos retirar dessa lama.

Consciência e IA: Desafio Contemporâneo para os direitos humanos

A dignidade da pessoa humana constitui o fundamento ético e jurídico de todo edifício dos direitos humanos. Contudo, frequentemente se interpreta essa noção em termos predominantemente objetivos, como a proteção da vida, da integridade física ou da proteção material. Embora tais dimensões sejam indispensáveis, elas não esgotam a densidade normativa do conceito. É preciso reconhecer que a dignidade repousa, em seu núcleo mais íntimo, na experiência subjetiva que é em última análise o que nos caracteriza como seres humanos.

Vemos a centralidade da subjetividade se manifestar de forma clara na prática dos direitos humanos. A proibição absoluta da tortura, por exemplo, não se explica apenas como defesa da integridade física do corpo, mas como proteção contra o ataque intolerável à consciência vivida da dor, o ataque intencional a integridade física e moral é uma experiência considerada degradante para a condição humana. A violação aqui não é apenas corporal, mas fenomenológica: representa destruição da interioridade subjetiva que fundamenta a humanidade do indivíduo.

Do mesmo modo, a proteção da liberdade de expressão ou de religião não pode ser reduzida a meras prerrogativas externas de manifestação. Esses direitos têm como finalidade resguardar a expressão da autenticidade da experiência interior.Seja ela de pensamento, crença ou convicção, assegurando que cada pessoa possa viver de acordo com sua própria consciência. O valor protegido é, portanto, a subjetividade representada pelo termo consciência e que dá consistência à liberdade.

Essa leitura se torna ainda mais urgente no cenário contemporâneo, marcado pela inteligência artificial, pela governança algorítmica e pelo avanço das neurotecnologias. Os debates recentes sobre neurodireitos já reconhecem que, na era digital, não basta proteger corpos ou dados. O que está em risco é a própria autonomia cognitiva, isto é, a experiência subjetiva que sustenta a possibilidade de escolhas livres e conscientes. Algoritmos que manipulam preferências ou falseiam percepções atuam diretamente sobre a autenticidade da experiência humana, comprometendo inclusive o núcleo do livre-arbítrio jurídico.

Nesse contexto, quando se afirma que a dignidade da pessoa humana é o fundamento dos direitos humanos, deve-se reconhecer que esse fundamento repousa na experiência vivida. Sem a preservação do livre experienciar interior que se entrelaça na consciência humana — seja diante da violência física, da manipulação informacional ou da opacidade algorítmica — a própria noção de dignidade corre o risco de esvaziar-se. O desafio contemporâneo dos direitos humanos, portanto, é expandir seu alcance protetivo para além da integridade corporal e patrimonial, abarcando de forma explícita a de proteção da consciência humana como condição indispensável à liberdade e da humanidade.