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Voto crítico no órgão regional do Hemisfério Ocidental pode abrir a porta para a influência da China

Líderes no Hemisfério Ocidental enfrentam escolhas difíceis nos próximos meses enquanto se ajustam a uma nova administração dos EUA que está jogando por suas próprias regras em suas relações com a região. No entanto, uma escolha futura deve ser simples: a eleição de um novo secretário-geral para a Organização dos Estados Americanos em 10 de março.

O resultado da votação influenciará se a América Latina será capaz de conter regimes autoritários, combater o crime organizado e conter a crescente presença da China no hemisfério. Mais amplamente, moldará a capacidade da região de navegar no que está se configurando para ser um período tumultuado nas relações EUA-América Latina.

Após 10 anos sob a liderança do diplomata uruguaio Luis Almagro, a disputa entre o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai Rubén Ramírez Lezcano e o diplomata surinamês Albert Ramdin representa mais do que uma transição de liderança de rotina. É um referendo sobre se a OEA manterá seu papel tradicional como defensora da democracia ou mudará para acomodar influências autoritárias na região.

Ramírez enfatiza o papel crítico da OEA no apoio à democracia e direitos humanos e pede esforços mais concentrados contra o crime organizado e lavagem de dinheiro. O Paraguai é o último aliado diplomático da América do Sul de Taiwan e um dos aliados mais próximos de Israel na América Latina, e seu apoio à oposição democrática da Venezuela levou o regime de Maduro a romper relações diplomáticas com o Paraguai em janeiro.

Em contraste, Ramdin defende uma abordagem mais permissiva em relação ao regime autoritário da Venezuela, priorizando o diálogo em vez da responsabilidade democrática. Ramdin conhece bem a organização, tendo atuado como secretário-geral assistente de 2005 a 2015, e sugeriu que o potencial do Suriname como um grande produtor de petróleo o posicionaria para vencer a eleição. Embora o Suriname tenha relações amigáveis ​​com os Estados Unidos, ele é mais próximo da China, que apoia a candidatura de Ramdin. Ramdin falou calorosamente sobre o papel da China no desenvolvimento do Suriname, inclusive por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, à qual o Suriname aderiu em 2018.

Para alguns na região que já veem a OEA como muito amigável aos EUA, a tentação será apoiar o candidato que for menos atraente para Washington. Isso seria um erro. Os países da região estão experimentando uma série de desafios interconectados – insegurança, corrupção e erosão democrática entre eles – que exigem maior resolução coletiva e coordenação. A região precisa desesperadamente superar compromissos ideológicos e encontrar maneiras de se unir, ou corre o risco de se tornar um alvo mais fácil para atores malignos e perder relevância no cenário mundial.

O resultado da votação também importa para os Estados Unidos. A OEA continua a plataforma multilateral mais eficaz para o envolvimento dos EUA com o hemisfério. Ao contrário de outros fóruns, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, ou CELAC, onde os EUA não têm um assento à mesa, a OEA geralmente se alinhou com os objetivos dos EUA e promoveu valores democráticos nas Américas.

A estratégia atual do governo Trump de pressão bilateral para enfraquecer o envolvimento da região com a China pode render concessões em alguns casos, mas não é suficiente para a tarefa maior de reconstruir a influência dos EUA na região. A América precisa de uma agenda mais ampla e positiva, e uma OEA forte sob liderança com ideias semelhantes poderia fornecer a plataforma para isso, especialmente em áreas como segurança, estado de direito e desenvolvimento.

Alguns críticos podem argumentar que as limitações da OEA a tornam indigna de atenção séria, mas tal visão é míope. É verdade que a OEA exibe muitas das fraquezas comuns a órgãos multilaterais, com uma ênfase indevida no consenso e capacidade limitada de fazer cumprir decisões. Ela também é cronicamente subfinanciada.

No entanto, apesar de suas imperfeições, a OEA continua sendo um importante baluarte para a democracia na região. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA documentou vigorosamente os esforços sistemáticos da Venezuela para suprimir a participação da oposição na política, impedir eleições livres e incutir medo entre os venezuelanos. E em agosto de 2024, os estados-membros da OEA votaram para instar a Venezuela a divulgar as contagens eleitorais e fornecer verificação imparcial dos resultados.

A escolha que os estados-membros da OEA enfrentam não é apenas entre dois candidatos — é entre manter o compromisso da organização com a democracia e permitir que a OEA e o hemisfério se dividam ainda mais. Para governos que buscam virar a página da atual instabilidade e deriva democrática na região, apoiar Ramírez é um imperativo.

Foto: Roque de Sá.

O que eu disse ao relator de Liberdade de Expressão da OEA

Na última quinta-feira, participei de uma audiência fechada com o relator de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Pedro Vaca Villareal, que visitou o Brasil esta semana para produzir um relatório.

Fui ouvida como representante do Instituto Direito de Fala, que fundei para reunir pessoas em defesa da liberdade de expressão após um episódio em que eu fui cerceada. Também participaram representantes de outras organizações como Instituto Brasileiro de Direito e Religião, Instituto Millenium e Instituto Liberal, entre outros.

Cada um de nós teve 5 minutos para sua exposição verbal. Nenhum tema foi proposto ou restrito, todos falamos livremente. Também tivemos a oportunidade de enviar documentos à relatoria para embasar nossos relatos.

Podíamos fazer nossas manifestações em inglês e espanhol normalmente. Quem optasse pelo português precisaria falar pausadamente. Optei pelo inglês. Segue a tradução para o português da minha fala.

Prezado Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villareal,

Meu nome é Madeleine Lacsko. Sou jornalista há 28 anos, colunista em O Antagonista, Gazeta do Povo e UOL News, escritora, autora do livro Cancelando o Cancelamento, e fundadora do Instituto Direito de Fala. Já fui assessora da presidência do Supremo Tribunal Federal e da comissão de Direitos  Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. Fiz parte do time do Unicef que erradicou a pólio em Angola. Dedico minha carreira à defesa da liberdade de expressão e do livre debate, pilares essenciais da democracia.

Fui condenada judicialmente por um suposto ato de “transfobia”, embora este conceito não exista no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão foi fundamentada exclusivamente em uma interpretação subjetiva da linguagem, baseada na ideia de que usei uma palavra “indevida” para me referir a um influenciador transgênero.

A expressão “cara” pode ser usada informalmente de forma neutra, mas no contexto específico em que utilizei, tratava-se da forma formal e necessariamente feminina. Ou seja, sequer houve “misgendering”.

A condenação não teve como base a lei brasileira, mas ideologias que dizem buscar justiça social. Isso abre um perigoso precedente para a violação do devido processo legal.

Além disso, o julgamento partiu do pressuposto de que eu teria uma intenção maliciosa ao usar essa palavra, sem que eu sequer tenha sido ouvida pelo Judiciário. Meu último recurso está no Supremo Tribunal Federal.

Além da total ausência de base legal, esse julgamento desconsidera completamente meus direitos como mulher, jornalista e cristã. Como qualquer cidadão em uma democracia, tenho o direito de expressar minha visão sobre a pauta trans e meu conceito de mulher.

Da mesma forma, tenho o direito, como cristã, de professar minha fé, o que inclui a concepção biológica e espiritual do que é ser mulher. No entanto, esses direitos sequer foram levados em conta na decisão, que me trata como se eu não fosse sujeito de liberdade de expressão, de crença e de opinião.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião elaborou um parecer sobre o meu caso porque tem enfrentado desafios semelhantes na área de liberdade religiosa. Há uma tendência crescente de decisões judiciais que ignoram o arcabouço legal, amparando-se em conceitos fluidos que podem ser interpretados de forma arbitrária. Como alerta o parecer do IBDR: “O Judiciário, ao se afastar da legislação objetiva e basear-se em doutrinas ideológicas, coloca em risco não apenas a liberdade de expressão, mas a própria segurança jurídica”.

A tentativa de calar a imprensa não começou agora.

Lembro de um episódio emblemático há 21 anos, quando o presidente Lula tentou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times Larry Rohter por não gostar de uma reportagem.

A perseguição vai além da censura direta. No Brasil, é comum que políticos peçam a demissão de jornalistas, promovam campanhas difamatórias e incitem seguidores a hostilizar e ameaçar profissionais da imprensa e suas famílias.

O Poder Judiciário costumava ser o anteparo aos arroubos autoritários dos políticos. Há um ponto de inflexão quando se torna parte dessa engrenagem.

O marco importante é a censura direta à Revista Crusoé, em 2019, pela reportagem O Amigo do Amigo do Meu Pai, acerca de um ministro do STF. Essa decisão marca uma guinada na cultura judicial, consolidando um ambiente onde a censura se tornou ferramenta recorrente. O deputado Marcel Van Hattem já apresentou esse caso à Relatoria, e a própria Crusoé dará seu testemunho.

A censura também se estendeu ao humor. Humoristas como Léo Lins e Danilo Gentili acumulam dezenas de processos judiciais simplesmente por fazerem piadas.

O caso de Léo Lins é especialmente emblemático: ele teve um especial de stand-up banido, suas redes sociais suspensas, foi proibido de deixar o estado de São Paulo e não pode mais fazer piadas com uma lista de temas elaborada pela Justiça. Shows seus foram cancelados mais de 50 vezes porque políticos locais se sentiram ofendidos. Hoje, ele enfrenta cerca de 80 processos, sendo 20 deles criminais.

Há uma tendência crescente e preocupante. Vale ressaltar que a Justiça brasileira tem não apenas o poder de censurar, mas também de aplicar multas de milhares de dólares e bloquear automaticamente contas bancárias dos réus em punições. É um cenário que tem sido muito eficaz no incentivo à autocensura e ao silêncio. Inclusive das vozes dissonantes dentro do próprio judiciário.

Diante desse cenário, fundei o Instituto Direito de Fala. Nosso objetivo é reunir e apoiar aqueles que compreendem que a liberdade de expressão é a base para todas as outras liberdades. Sem ela, não há debate, não há pluralidade, não há avanços sociais.

O que está em jogo não é apenas minha liberdade de expressão, mas o próprio alicerce da democracia brasileira. Quando o Judiciário abandona a imparcialidade para agir como guardião de ideologias específicas, instala-se um regime onde o arbítrio se sobrepõe ao direito, e a intimidação substitui o debate.

Hoje sou eu a condenada por um crime inexistente, mas amanhã qualquer voz dissonante pode ser silenciada da mesma forma. A liberdade não é um privilégio concedido pelo Estado, é um direito inalienável de cada cidadão. Permitir que ela seja corroída pelo medo e pela censura é aceitar a morte da democracia em silêncio.

Muito obrigada

Foto: AFP

Tristeza, incerteza e esperança na Venezuela de 2025

Enquanto o mundo começou o ano de 2025 com alegria, na Venezuela predominou ao mesmo tempo um sentimento de tristeza, incerteza e esperança. A alegria de final de ano que caracterizou a Venezuela do passado ao ritmo do tambor, da salsa e do merengue esteve ausente este ano. Ruas vazias, casas em luto, famílias empobrecidas. Nem mesmo o absurdo Decreto do Governo que obriga a celebração do Natal a começar no mês de Outubro conseguiu motivar um eleitorado que indicou claramente nas urnas de 28 de Julho que rejeitava a continuação de uma “revolução” falhada e repressiva.

As chamadas obrigatórias aos funcionários públicos em frente ao Palácio Miraflores para celebrar o novo ano não conseguiram esconder o nervosismo de um Regime que já não sabe o que oferecer porque tudo corre mal. Nem sequer o ajudou a apresentar-se como vítima da suposta “invasão estrangeira”. Para disfarçar o seu isolamento internacional, promove a presença no país de viajantes alegres, desconhecidos nos seus respectivos países, mas convidados de luxo para atender todos os tipos. de Congressos laudatórios.

Ao mesmo tempo, há um sentimento de incerteza. O Governo do PSUV sabe que perdeu o apoio popular mas agarra-se ao Poder porque não quer perder os seus “privilégios”. É por isso que em suas ações ele tenta gerar medo. Os principais líderes da oposição estão presos, exilados, clandestinos ou humilhados numa Embaixada que teve a electricidade e a água cortadas e o direito ao asilo violado. A polícia política e os grupos armados aterrorizaram indiscriminadamente a população em geral, maltratando mais de dois mil detidos sem qualquer justificação, incluindo crianças, mulheres e idosos. Os canais de televisão do Estado não denunciam estes abusos, uma vez que se tornaram emissões de propaganda oficial e plataforma de insultos e zombarias de todos aqueles que não cumprem o Regime.

Apesar de tudo isto, o sentimento de esperança não se perdeu. A vontade de mudar através de meios pacíficos parece irreversível. Ninguém sabe quando a mudança se concretizará, mas existe a convicção de que será alcançada em 2025. A história recente, como no caso da Síria, mostra que não existe uma ditadura eterna.

A partir de 10 de janeiro começa uma nova etapa dessa esperança. É a data em que o vencedor das eleições, Edmundo González, deverá assumir a Presidência. Da clandestinidade, a grande estrategista e estadista María Corina Machado dirige diariamente suas mensagens dentro e fora da Venezuela e mostra o caminho de um modelo de Unidade. É ela quem, em qualquer situação que surja no futuro, deverá ser a principal porta-voz que estabelece, com o apoio nacional e internacional, os alicerces da transição pacífica e democrática. A sua luta corajosa, lúcida e persistente é a melhor credencial.

Os sinais de solidariedade internacional são encorajadores. Os países democráticos e defensores dos direitos humanos são um incentivo para reconstruirmos juntos uma América Latina unida na sua diversidade. Soma-se a isso a expectativa de que a partir de 20 de janeiro o Presidente Trump, acompanhado de altos funcionários familiarizados com a realidade venezuelana, aprofunde ainda mais os passos da diplomacia de Biden, unindo a sua coordenação com a América Latina e com o Parlamento Europeu que permitirá à Venezuela alcançar a desejada mudança pacífica na democracia e na liberdade antes do final deste ano.

Cena de Ainda Estou Aqui. Foto: Alile Dara Onawale

Ainda estou aqui

Eis que chega o dia de escrever meu último artigo do ano. E nesses dias – de festas para alguns, de reflexão para outros, de nostalgia para muitos – senti-me impelida a escrever sobre o filme brasileiro “Ainda estou aqui.”

Não sendo eu crítica de cinema, não escrevo como especialista, apenas como espectadora. E, como tal, já antecipo meu juízo de valor: o filme é bonito, é bem feito, é comovente.

É surpreendente que seja assim, uma vez que o tema da ditadura brasileira já foi tão explorado nas telas que se tornou um clichê pouco atrativo. O referido longa-metragem, porém, teve o grande mérito de tratar o tema sem distorções, sem tornar a arte serva da política.

Daí minha surpresa ao ler, em um desses sites mais à direita, uma crítica superficial e rasteira cujo título é “apesar de badalado pela mídia, ´ainda estou aqui não vale a ida ao cinema.” A referida crítica, maldosa e mal escrita, faz aquilo que injustamente acusa o filme de fazer: deixa a ideologia falar mais alto.

“Ainda estou aqui” não deixa transparecer em nenhum momento qualquer traço de servilismo ideológico. Apesar do pano de fundo político, a pretensão não é fazer proselitismo de esquerda; o filme é um drama, não um panfleto.

Claro que há um componente político, claro que uma mensagem política é passada, mas ela é passada com êxito porque flui naturalmente como algo que se vai depositando em nosso cérebro enquanto nossa emoção está envolvida com sentimentos universais.

O longa-metragem dirigido por Walter Salles, como muitos já sabem, é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva e conta a história de sua mãe, Eunice Paiva (interpretada magistralmente por Fernanda Torres), uma mulher com cinco filhos que teve a vida bruscamente modificada após o sequestro e assassinato de seu marido (Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello) por agentes do regime militar.

Uma longa parte do filme é bem gasta retratando “a poética cotidiana na casa da família, que vai sendo gradativamente interrompida pela escalada do autoritarismo”, como bem notou o cineasta Josias Teófilo, em sua resenha na Crusoé.

De repente, seguem-se cenas intermináveis de tensão e a narrativa passa a focar a força de Eunice, a forma como ela passa a conduzir com coragem e firmeza de ânimo a sua vida e a dos seus filhos.

Há um tema que corre em paralelo que, a meu ver, dá o tom especial do filme: o tempo. O tempo em suas várias expressões: o tempo que passa, as memórias que ficam, as memórias que se vão ou que se escondem no fundo da alma, presa no corpo já velho e cansado que sucumbiu ao mal de Alzheimer.

É tocante a aparição de Fernanda Montenegro como Eunice. Aquela que foi a fortaleza moral da família e a protagonista durante todo o filme, aparece, em uma tomada de vídeo, em plano secundário, no canto da mesa, alheia ao burburinho, à azafama do entorno, absorta em si mesma.

O filme, em suma, faz jus ao sucesso. É delicado e profundo. E quisera eu parar por aqui meu comentário, apenas atestando a sua excelência. Mas, assim como apontei a insensatez de um crítico de direita, não me furtarei a apontar o absurdo das críticas da militância da esquerda identitária.

De modo geral, militantes identitários criticaram o filme porque ele abordou o tema da ditadura pelo recorte de uma família branca, abastarda, burguesa, moradora do Leblon.

Foi constrangedor ver o já bastante esquerdista Marcelo Rubens Paiva (filho de Eunice e autor do livro que embasou o filme) ter que dar satisfação sobre isso, no programa Roda Viva, confrontado com a crítica de “questão de classe” e “recorte racial” de um tal youtuber chamado “chavoso da USP”, que viralizou nas redes sociais.

Esse processo autofágico da esquerda por meio do identitarismo é assunto longo, ao qual pretendo voltar em artigo posterior. De momento, chamo atenção para algo que não me sai da cabeça: todo esse drama que os brasileiros enfrentaram entre 1964 e 1985 e que hoje rememoram através da arte é a realidade atual dos nossos irmãos venezuelanos.

Quem se compadece verdadeiramente das vítimas da ditadura brasileira deveria se compadecer igualmente das vítimas da atual ditadura venezuelana. Que uma ditadura tenha sido de direita e que a outra seja de esquerda, pouco importa. Já passa da hora de amadurecermos como nação democrática e livre. Livre de ideologias perversas que justificam tais aberrações e atrocidades.

Há muitos “Rubens Paivas” sendo mortos pelo regime de Nicolás Maduro; há muitas mulheres como Eunice, suportando a dor da perda de seus maridos e seus filhos sequestrados, torturados e assassinados por esse cruel regime, que já se vai tornando pior do que uma ditadura e se transformando em um Estado totalitário.

Aos que criticam os negacionistas da ditadura militar brasileira e que, com razão, combatem os reacionários que pretenderam reinstaurá-la, fica o meu apelo para que condenem toda e qualquer ditadura, inclusive aquela que se diz socialista.

Defesa de Maduro e a demência fanática da extrema esquerda

A eleição presidencial já não é mais a questão central no drama atual da Venezuela, dado que a fraude já se consumou. O episódio de 28 de julho tornou-se pano de fundo catalisador nos discursos de mobilização das partes em luta: de um lado, o povo lutando por liberdade e democracia; do outro, a repressão de uma ditadura cujo objetivo é aquele de todas as tiranias: manter-se no poder.

A repressão de Maduro avança no prometido “banho de sangue”, assassinando dezenas de cidadãos. O ditador inflama seus sequazes bradando que já prendeu mais de 2 mil opositores e prenderá outros mais, enviando-os para prisões de segurança máxima (onde são praticadas torturas).

A sacrificada luta do povo venezuelano impõe-se como objeto de maior preocupação dos países democráticos de todo o mundo e à consciência das pessoas que sinceramente defendem a liberdade e os direitos humanos. Não é o caso do presidente do Brasil, nem dos seus assessores internacionais, nem do seu partido.

Internacionalmente, cresce a repulsa democrática, humanista e civilizatória a uma ditadura assassina, fraudulenta, mentirosa, corrupta e bizarra que é esta do ditador Nicolás Maduro. Inúmeros países já reconhecem Edmundo Gonzáles como o legítimo vencedor das eleições na Venezuela. Vergonhosamente, o Brasil não está entre eles.

É bem verdade que há certa pressão da imprensa, de políticos e da sociedade civil para que Lula não escancare de vez sua índole autoritária e devolva o Brasil aos trilhos da civilização, dando um passo atrás na sua diplomacia do mal. Não menos verdade, porém, é que há uma pressão do lado oposto.

A esquerda fanática

Mario Vitor Santos, por exemplo – que já foi ombudsman da Folha e hoje é colunista e apresentador de um site desprezível cujo nome nem convém citar – escreveu o espantoso texto “Maduro, não entregue as atas.”

Dirigindo-se retoricamente ao tirano da Venezuela como “presidente” que acabou de ter uma “vitória consagradora”, o militante escreve que “alguns inimigos inexplicavelmente inclusive o Brasil, se juntaram a seus arquinimigos para humilhá-lo e a seu povo”.

O patético texto foi pinçado aleatoriamente como uma amostra do grau de retração intelectual ao qual a mentalidade de certa parte da esquerda está submetida.

Mario Vitor acha que a cumplicidade do governo Lula com a ditadura de Maduro é de pouca monta e exige uma entrega total aos caprichos do ditador. Ele é a espécime de um tipo. Um tipo fanático, intolerante, autoritário e liberticida.

Ao permitir a nota do PT parabenizando Nicolás Maduro pela sua vitória, Lula estava testando a força dessa ala mais radical e extrema; ao declarar cinicamente que o pleito eleitoral na Venezuela foi “teoricamente pacífico”, um processo que “não tem nada de grave, nada de assustador”, Lula estava testando até que ponto ele pode continuar tratando os brasileiros como idiotas.

Como Lula não é burro, já deve ter percebido que não será tão fácil quanto ele esperava construir uma narrativa por meio da qual Nicolás Maduro se mantenha no poder sem que isso implique para ele (Lula) uma grande perda de popularidade.

Não é pragmatismo; é cumplicidade cínica

Muitas vozes da esquerda já se levantaram contra Maduro e sua fraude eleitoral. Até mesmo alguns lulopetistas notórios repeliram Maduro abertamente. Tudo isso é bem-vindo porque torcemos pelo aumento da pressão contra o ditador, venha ela de onde vier.

É preciso, porém, perceber as nuances da forma como a crítica contra Maduro está sendo apresentada pela esquerda. Como bem disse o jornalista Rodolfo Borges, em recente artigo em O Antagonista, o “governo Lula não é mediador na Venezuela, é cúmplice.”

Isso deveria estar óbvio, mas chama atenção os vários artigos que circularam nos quais se tenta passar a ideia de que a diplomacia do Brasil, em relação à Venezuela, estaria sendo prudente e pragmática.

Na análise da jornalista Eliane Cantanhêde, para citar um exemplo, Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira sabem que Maduro perdeu a eleição e conversam sobre isso a portas fechadas, mas a portas abertas “é preciso manter a frieza e aguentar firme a pancadaria interna para buscar soluções.”

Para Cantanhêde, esses homens virtuosos “estão agindo com cautela e estratégia para não romper pontes com Maduro”. Segundo ela, eles estariam muito preocupados em evitar o prometido banho de sangue ou um golpe militar. Como se ambas as coisas já não tivessem acontecido! Como se o país já não fosse há anos uma ditadura militar e como se o banho de sangue já não estivesse em curso.

Em um artigo posterior ao acima citado, Cantanhêde continua batendo na mesma tecla: o Brasil aliou-se a México e Colômbia “para manter o diálogo” com a ditadura venezuelana com “o sonho de chamar Maduro à razão”.

A jornalista reconhece a inegável fraude, a “coragem impressionante” dos oposicionistas e a loucura autoritária de Maduro, mas insiste em colar no governo Lula uma boa intenção que claramente não existe.

A intenção do PT, de Celso Amorim e de Lula sempre foi garantir a perpetuação do poder de Nicolás Maduro e criar justificativas que tornassem essa ignomínia um pouco menos indigesta aos eleitores brasileiros.

A tese da colunista de que Maduro fez “todo mundo de bobo” não é apenas infantil, é também perniciosa porque escamoteia a verdade e tenta manter na cara de Lula a máscara de democrata e humanista que o mundo todo está vendo cair.

Espero, realmente, que o governo brasileiro não se deixe arrastar pelo surto de demência fanática da extrema-esquerda, saia das cordas do acovardamento diplomático e venha a cumprir o papel que pode cumprir na transição de poder de Maduro para a oposição vitoriosa.

Espero isso porque torço pela libertação da Venezuela e porque acredito no instinto de sobrevivência do animal político Lula e não porque acredito nas suas boas intenções em relação a um povo que ele mesmo ajudou a escravizar.

Más Companhias

Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Foto: Ricardo Stuckert

Brasil: diplomacia humanista ou aliança com o mal?

Desde a retumbante vitória de Maria Corina Machado nas eleições primárias da oposição na Venezuela, Maduro recrudesceu ainda mais seu já ditatorial regime com cassação de direitos políticos dos opositores e prisões arbitrárias. No arroubo autoritário mais recente, o ditador mandou prender a ativista de direitos humanos Rocío San Miguel em uma prisão chamada El Helicoide, considerado o maior centro de tortura do chavismo, e expulsou da Venezuela os funcionários do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos por terem criticado a prisão e exigido a libertação da presa política.

Diante do grave ocorrido, os países latino-americanos Argentina, Equador, Paraguai, Uruguai e Costa Rica assinaram nota conjunta expressando “profunda preocupação” pela “detenção arbitrária da ativista de direitos humanos Rocío San Miguel” na Venezuela e exigindo sua libertação imediata. Da mesma forma rechaçaram as medidas de contra o Gabinete de Assessoria Técnica do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na Venezuela e exigiram “o pleno respeito pelos direitos humanos, a validade do Estado de direito e a convocação de eleições transparentes, livres, democráticas e competitivas, sem banimentos de qualquer tipo.” O Brasil não assinou o documento.

Na última sexta-feira, 17 de fevereiro, Alexei Navalny, o principal opositor de Vladimir Putin, que estava preso em um antigo gulag, perto do Ártico, passou a integrar — ao lado de Boris Nemtsov, Anna Politkovskaya, Alexander Litvinenko, Evgeni Prigojin e outros — a lista de opositores mortos desde que Putin chegou ao poder.

O presidente americano Joe Biden declarou que Putin é responsável pela morte de Navalny e disse estar “indignado mas não surpreso” com o ocorrido; o presidente francês, Emmanuel Macron escreveu: “na Rússia de hoje, os espíritos livres são colocados no gulag e condenado à morte. Raiva e indignação”; o chanceler alemão Olaf Scholz desabafou: “estou profundamente triste com a morte de Alexei Navalny. Ele defendeu a democracia e a liberdade na Rússia – e aparentemente pagou pela sua coragem com a vida”; a presidente da União Europeia, Ursula von der Leyen, decalrou:“Putin teme a dissidência de seu próprio povo mais do que tudo. O mundo perdeu um lutador pela liberdade em Alexei Navalny. Honraremos seu nome e, em seu nome, defenderemos a democracia e nossos valores.”

Inúmeros outros líderes e estadistas expressaram imediata solidariedade à família de Navalny e indignação pelo ocorrido. O Brasil não se manifestou. 

Nesse domingo, 18, dois dias após o ocorrido, ao ser questionado sobre o motivo de não ter se manifestado sobre a morte do principal opositor do autocrata russo Vladimir Putin, Lula afirmou que a causa da morte é desconhecida e que não lhe cabe fazer acusações.

Lula não é humanista

Lula não assinou a carta em repúdio às prisões arbitrárias na Venezuela, não comentou o assassinato do opositor de Putin, mas prometeu apoio moral e financeiro a ditaduras na África e assegurou dinheiro para os que querem destruir Israel.

No momento mesmo em que os mais importantes países ocidentais suspenderam o financiamento da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA), após terem provas cabais de que as escolas mantidas por essa organização doutrinavam crianças e jovens para odiarem judeus e praticarem a jihad e que vários de seus funcionários estavam envolvidos direta e indiretamente com o terrorismo islâmico, Lula achou por bem agir de modo contrário.

Em 15 de fevereiro, durante seu discurso na sessão extraordinária da Liga dos Estados Árabes, no Cairo, Egito, o presidente Lula informou que o Brasil fará novos aportes de recursos para a UNRWA e estimulou todos os países a manterem e reforçarem suas contribuições.

No sábado, 17 de fevereiro, durante reunião da 37ª Cúpula da União Africana, na Etiópia, Lula fez um discurso no qual tratou da guerra no Oriente Médio e abusou de sofismas, retorcendo os fatos e o valor das coisas até o ponto de dar a entender que ser humanista hoje é ser contra Israel.

Lula não deixou de mencionar a importância dos BRICS, esse estranho conglomerado dos países menos democráticos do mundo, que ele considera um contraponto adequado ao que chamou de “mazelas da globalização neoliberal.

No mesmo discurso, o presidente Lula criticou a paralisia da ONU em relação ao conflito entre Rússia e Ucrânia que, segundo ele, não terá solução militar, mas diplomática.

Aqui, é preciso lembrar que Lula, o pacificista, disse, em abril de 2023, que para acabar com a guerra, a Ucrânia deveria devolver a Crimeia, território ucraniano anexado pela Rússia. Além disso, Lula também já culpou a Ucrânia por ter sido invadida, condenou a ajuda dada pelos Estados Unidos e pela Europa ao país invadido, recusou-se a encontrar o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e, por meio de sua Assessoria Especial, na figura de Celso Amorim, ofereceu tapete vermelho para a vinda de Putin ao Brasil em 2024, por ocasião do encontro do G20, que será realizado no Rio de Janeiro.

Por mais que se esmere em se vender como tal, Lula não é um humanista. Ele é apenas um político no sentido mais chão e menos nobre que se possa dar a essa palavra. O humanismo enquanto movimento filosófico é o contrário do que conhecemos como política no sentido lato porque ele conforma as coisas não à ideologia, mas ao paradigma humano na sua excelência, guiando-se por princípios norteadores de conduta e não por pragmatismos e conveniências.

Islã e Putin: uma ameaça global 

O escrutínio das questões atuais pressupõe primeiramente uma separação entre a realidade e o discurso. Por mais que se queira fantasiar em torno da realidade, a realidade se impõe e é com ela que devemos lidar. A realidade do momento atual é um mundo em ebulição onde países em vias de uma guerra de extermínio recorrem à retórica para justificar seus atos. Cabe a nós julgarmos não os discursos isolados dos fatos, mas os fatos por trás dos discursos.

Se o perigo da guerra fosse apenas a escalada da violência em um conflito local, talvez pudéssemos aceitar o distanciamento indiferente em torno das questões pungentes que os países em guerra enfrentam, mas o fato é que não há território neutro diante do potencial expansionista de quem já decidiu se enredar em uma guerra de conquista.

E esse é o caso tanto do tirano russo, Vladimir Putin, que intenta reinventar o império russo, quanto do movimento fundamentalista islâmico, que intenta impor a sua visão de mundo teocrática a todos os países que conseguir subjugar. Estamos diante de dois extremos: um império que quer se expandir e uma religião tribal que quer subjugar. Trata-se, portanto, de uma ofensiva global e não local.

Não se pode resumir a guerra no Oriente Médio como algo circunscrito à questão palestina. Uma vez que a expansão islâmica é o objetivo, não há razões para crermos que não haverá um entendimento entre todos os países islâmicos para a obtenção do triunfo final. A vitória deles, dos fundamentalistas, implicaria o extermínio de Israel e a derrota do Ocidente e daquilo que o Ocidente significa.

Da mesma forma, não se pode resumir o jogo macabro de Putin a uma aventura limitada à Ucrânia. Uma vez que a expansão da “Mãe Rússia” é o objetivo, não há razão para crermos que os países com uma história passível de ser manipulada pela retórica que evoca um passado glorioso haverão de ser poupados da anexação. Isso implicaria a reorganização da Europa e a derrota do Ocidente e daquilo que o Ocidente significa.

Mas o que, afinal, significa o Ocidente? Será só uma localização geográfica? Ou significa o legado específico de uma tradição? A segunda resposta é a verdadeira. O Ocidente significa a lenta e sofrida consolidação do humanismo perpassado pelo amor cristão, do ideal de fraternidade e justiça que respeita e exalta a dignidade e a liberdade do homem.

Não significa que esses valores estejam limitados ao Ocidente, mas que eles se consolidaram em instituições tradicionalmente ocidentais. O sistema político-jurídico no qual o ser humano tem a sua individualidade respeitada, preservada, protegida é aquele que se costuma traduzir por democracia ou Estado de direito.

Não vamos aqui fazer concessões aos demagogos, que usam o termo democracia distorcendo-o em seus fundamentos, pois sabemos que o esteio da democracia é o respeito aos direitos individuais e o império da lei. Sem isso, sem a certeza de que somos respeitados na nossa dignidade própria e que nem o Estado nem outro indivíduo pode se impor pela força sobre nós, não se pode falar em democracia.

Voltemos então à situação das guerras em curso e da postura dos que se arrogam democratas e humanistas. Será compatível com a visão de mundo democrática apoiar a ala mais radical do mundo islâmico, que se move por ódio, que perpetua o ódio e que prega o ódio em nome da fé? Será compatível com uma postura humanista apoiar um tirano que mata opositores, invade países vizinhos, sequestra crianças e ameaça o mundo com a apavorante expectativa de um ataque nuclear?

Pois bem, em torno de Putin e do fundamentalismo islâmico estão sendo feitas alianças. De um lado temos a República Islâmica (Irã), o Hamas, o Hezbollah, os Houthis, a Turquia, os demais países árabes ditatoriais e os numerosos grupos terroristas islâmicos de denominações menos conhecidas. Flertando com eles contra o inimigo comum temos a própria Rússia, a Coreia do Norte, a China, além de países de menor expressão como os arremedos de ditaduras socialistas da América Latina.

Do outro lado temos as democracias liberais, as tais potências ocidentais, com as qualidades e defeitos que já conhecemos. É o chamado “mundo livre”, a sociedade aberta. Um grupo de países nos quais as conquistas civilizacionais tendem a não mais retroceder; um grupo de países que já aprendeu com duas guerras mundiais insanas e que tenta, por todos os meios, evitar uma terceira. Um grupo de países que está longe da justiça perfeita, mas bem mais próximo da justiça factível do que os países cujo povo é subjugado por ditadores ou aiatolás fanáticos e inconsequentes.

Esse é o cenário global. O mundo se bifurca em duas tendências: uma tendência autocrática e uma tendência democrática. O Brasil tem, nesse momento, um presidente que se diz democrata mas acena positivamente para os regimes autocráticos.

Não é essa a nossa tradição diplomática. Não somos obrigados a engolir essa postura equivocada sem criticar.

O que importa, dizíamos, não é o discurso, mas a realidade que por trás dele se esconde. E a realidade é que, nesse delicado momento que o mundo vive, o presidente Lula está aproximando o Brasil do eixo do mal.

O papel dos democratas na idade das trevas

O atual debate polarizado sobre a guerra do Hamas contra Israel evidenciou como o analfabetismo democrático é profundo e generalizado entre nós. Sobre isso, no dia 25 de novembro de 2023, publiquei no X (antigo Twitter) a seguinte declaração que tem como título a imagem de três velas acesas (para lembrar que a democracia não é a luz de um holofote, mas a de miríades de pequenas velas).

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Não adianta tentar convencer da democracia pessoas que não fazem a menor ideia do que é democracia (tomando-a como sinônimo de regime eleitoral) e, se sabem o que é, não apostam na democracia. Elas não acham que a democracia seja um valor universal, mas apenas ocidental, quando não imperialista e colonialista. Elas nem sabem que existem ou não acreditam nos grandes centros que monitoram a democracia no mundo, como a Freedom House, a The Economist Intelligence Unit e o V-Dem.

Então essas pessoas defendem um Estado palestino, mas estão pouco se lixando se esse Estado, comandado pelo Hamas ou por outra organização do jihadismo ofensivo islâmico, for uma tirania teocrática (como o Irã) ou uma autocracia genocida (como a Síria). Estão assobiando e andando se uma sociedade dominada por um Estado desse tipo for misógina e com altos graus de violência doméstica, onde LGBTs são reprimidos e mortos, onde não vigora a liberdade de opinião pela própria ausência do conceito de opinião (doxa), onde fazer oposição é um ato de traição.

Seria preciso um longo processo de conversão para que uma pessoa que pensa assim pudesse participar constutivamente de conversações democráticas.

Toda uma geração que foi doutrinada com ideias antidemocráticas (como a maioria dos combatentes atuais do Hamas, da Jihad Islâmica, do Hezbollah) e ensinada a reproduzir comportamentos autocráticos não virará, em sua imensa maioria, defensora da democracia só porque agora têm um Estado para chamar de seu. E não deixará de querer exterminar Israel só porque têm sua própria ditadura reconhecida internacionalmente. Se fosse assim, o Irã, a Rússia e outras autocracias onde vive a maior parte da população mundial – que são Estados reconhecidos – não estariam financiando ou apoiando o terrorismo e a guerra contra as democracias liberais em escala global.

Infelizmente é forçoso reconhecer que isso significa que, para a maioria da humanidade, no curto (e talvez no médio) prazo não haverá democracia, não haverá paz, nem haverá respeito aos direitos humanos. É a terceira onda de autocratização na qual já estamos imersos, que não sabemos quanto durará.

O papel dos democratas durante essa idade das trevas é manter vivas conversações democráticas onde for possível, multiplicando – mesmo que em iniciativas locais – o número de democratas, encontrando e palmilhando novos caminhos na escuridão e usando suas pequenas luzes para usinar novas matrizes de interação com o mundo que tenham a ver com comportamentos consonantes com ideias de liberdade como sentido da política, de autonomia, de colaboração, de auto-organização, de rede (mais distribuída do que centralizada) e de convivencialidade (amistosa ou não-adversarial).