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A(s) política(s) externa(s) do Governo Trump2

Em 1971, Graham T. Allison, então jovem cientista político de Harvard, lançou uma obra hoje clássica para os estudos de processos decisórios de políticas públicas. Essence of Decision analisa a tomada de decisões do governo do presidente John F. Kennedy num dos mais dramáticos episódios da Guerra Fria: a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (outubro de 1962). Fotos aéreas da Inteligência dos Estados Unidos revelaram que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares apontados para o território norte-americano, a alguns quilômetros de distância, com o beneplácito do governo comunista de Fidel Castro. Naquele momento, o mundo jamais esteve tão próximo de um holocausto termonuclear.

As cúpulas burocráticas civis e militares do governo Kennedy — Departamento de Estado, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional, Estado- Maior das Forças Armadas — competiam entre si para ‘fazer a cabeça’ do presidente quanto à melhor opção para enfrentar aquele desafio da URSS: conversações diplomáticas? Bombardeio aéreo? Invasão terrestre? Bloqueio naval das águas cubanas? Kennedy optou pela última alternativa. Na sequência, o presidente do Conselho de Ministros e primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética, Nikita S. Khrushchev acabou cedendo e ordenando o desmonte das plataformas de lançamento dos foguetes. E, num toma-lá-dá-cá à época não divulgado, os Estados Unidos concordaram com a retirada de mísseis da Otan apontados para a URSS..

Allison questionou a ‘falácia da composição’ subjacente ao paradigma do estudo das Relações Internacionais: o modelo do “ator racional unificado” (a União Soviética agiu assim, os Estados Unidos reagiram assado etc), como se todas as decisões emanassem de um estadista onisciente, frio, cem por cento racional, confrontando-o com dois outros. Um deles refletia a queda de braço entre os interesses das diversas organizações governamentais envolvidas; e o outro, a “política burocrática”, ora de competição, ora de cooperação, das autoridades de diferentes repartições. (Em 1999, com a colaboração de Philip Zelikow e graças à divulgação do conteúdo de arquivos diplomáticos e militares soviéticos mantidos sob sigilo absoluto até a implosão da URSS, Allison publicou uma segunda edição de Essence of Decision: Explaining the Cuban Missile Crisis, substancialmente revista e ampliada.

No início deste mês de fevereiro, em sua coluna para a Bloomberg, Hal Brands, docente da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais)/Universidade Johns Hopkins, Washington, D. C., e pesquisador do American Enterprise Institute, reforçou a perene validade dos insights allissonianos.

Na visão de Brands, o segundo governo Trump tem não uma, mas cinco diferentes políticas externas, cada uma delas defendida por um segmento da coalizão Republicana hoje no poder e todas dispostas a garantir que os seus pontos de vista prevaleçam no processo decisório.

Em primeiro lugar, vêm os “Falcões Globais”, liderados pelo secretário de Estado Marco Rubio e pelo assessor-chefe de Segurança Nacional Mike Waltz. Esse grupo procura se manter fiel ao desejo de Trump no sentido de renegociar as alianças estratégicas dos Estados Unidos (países membros da Otan, Japão, Taiwan, Arábia Saudita etc), mas permanece convicto de que os desafios colocados pelo ‘eixo autoritário’ Pequim/Moscou/Pyongyang/Teerã só podem ser vitoriosamente confrontados mediante a estreita colaboração com esses e outros parceiros estrangeiros.

Em segundo lugar, Brands aponta a clique dos “Guardiões da Ásia”, capitaneada por nomes como Elbridge Colby, subsecretário de Defesa, e o senador Republicano Josh Hawley, do Missouri. Eles acreditam que o risco cada vez mais eminente de uma guerra com os chineses justifica e exige o redirecionamento dos recursos militares da América, hoje concentrados na Europa (guerra Rússia X Ucrânia) e no Oriente Médio, para o Indo-Pacífico, objetivando fortalecer a proteção de Taiwan diante das cada vez mais frequentes ameaças de invasão transmitidas por Pequim; incrementar os pactos armados já existentes com Austrália e Reino Unido (Aukus) e com Japão, Austrália e Índia (Quad, ou Diálogo Quadrilateral de Segurança); bem como celebrar novas alianças com outras nações da região, igualmente temerosas do expansionismo chinês no Mar do Sul da China, a exemplo das Filipinas e do antigo inimigo, o Vietnam).

Em terceiro lugar está a turma da “América, Volte para Casa!”. O vice-presidente J. D. Vance e a diretora da Inteligência Nacional Tulsi Gabbard (ex-deputada Democrata pelo Havaí) advogam um drástico enxugamento dos gastos e compromissos militares dos Estados Unidos mundo afora em troca de mais dinheiro do orçamento federal para turbinar programas domésticos de bem-estar social (Medicare e Medicaid são dois exemplos).

Em quarto lugar, Brands identifica os “Nacionalistas Econômicos”, destacando os secretários do Tesouro (Scott Bessent) e do Comércio (Howard Lutnick). Esta clique enxerga a política externa sob o prisma dos interesses comerciais dos Estados Unidos: uso, ou ameaça do uso, de barreiras tarifárias e não tarifárias como ferramentas para a abertura de mercados aos investimentos e exportações americanos. Esse grupo se alinha com o interesse de Trump em assegurar a hegemonia dos Estados Unidos em setores sensíveis como Inteligência Artificial e recursos energéticos. Diferentemente dos “Guardiões da Ásia”, os “Nacionalistas Econômicos” privilegiam a dimensão comercial e financeira da rivalidade com a China, em detrimento da dimensão militar.

Por último, mas não em último, a “Linha-Dura do MAGA, encabeçada pelo subchefe da Casa Civil Stephen Miller, se opõe a qualquer tipo de ajuda externa e subordinam a política externa às prioridades de sua agenda doméstica: imigração ilegal, em primeiríssimo lugar.

Sempre segundo Hal Brands, as disputas entre essas cinco facções elevam o grau de imprevisibilidade da política externa e de segurança nacional. Os “Falcões Globais” batem de frente com a “Linda-Dura do MAGA”, no exemplo mais óbvio; ou então, “Nacionalistas Econômicos” e “Guardiões da Ásia” procuram solapar as iniciativas recíprocas.

Ao mesmo tempo, ele aponta zonas de convergência importantes, o que pode abrir oportunidades de alianças táticas entre facções como as dos “Falcões Globais” e dos “Guardiões da Ásia”, ou até mesmo destes com a clique da “América, Volte para Casa”, ao menos no que respeita à redução de compromissos militares na Europa e no Oriente Médio….

Ao fim e ao cabo, o professor adverte as autoridades da nova administração contra o que considera falsas e perigosas soluções, entre as quais a vulgarização dos tarifaços comerciais a ponto de uma orgia protecionista enfraquecer as relações da América com aliados preciosos. Ou então, uma pressão tão descabida sobre a Aliança Atlântica, para que esta assuma parcela maior de responsabilidade financeira na estabilização da ordem internacional, a ponto de mergulhar os Estados Unidos, superpotência indispensável, num imprevisível isolacionismo.

Desafios da Geopolítica

Estamos diante de um inédito movimento de abalo das placas tectônicas da estabilidade internacional construídas no pós-guerra. Os níveis de democracia nunca foram tão baixos e governos antidemocráticos nunca foram tão robustos. O risco de mudança real no equilíbrio de forças mundial nunca foi tão presente, em grande parte pelo perfil das lideranças que comandam importantes nações, e a reorganização gerada pelos recentes conflitos. Todo este contexto se tornou peça central para entender o mundo e seu desenho geopolítico em tempos recentes.

No Oriente Médio, uma reação em cadeia desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 impulsionou um ano de mudanças impressionantes. Israel enterrou o Hamas sob escombros, degradou a rede regional de representantes não estatais dos aiatolás, demoliu as próprias defesas de Teerã, e, inadvertidamente, preparou o cenário para que rebeldes islâmicos derrubassem a ditadura de meio século da família Assad na Síria.

Na Ásia, onde a China compete com os Estados Unidos e seus aliados pela primazia, os pontos críticos no Mar da China Meridional, as águas e os céus ao redor de Taiwan e a Península Coreana parecem cada vez mais desafiadores. O ataque da Rússia à Ucrânia é, a julgar pelas ameaças do presidente Vladimir Putin, parte de uma luta para revisar os arranjos pós-Guerra Fria, e ameaça levar a um confronto mais amplo na Europa.

Em outros lugares, uma onda de conflitos — incluindo a guerra civil de Mianmar, uma rebelião apoiada por Ruanda no leste da República Democrática do Congo, uma tomada de poder por gangues que deixou milhões de haitianos em condições de guerra, além da devastação no Sudão — está aumentando a contagem global de pessoas mortas, deslocadas e famintas devido aos combates, que é maior do que em qualquer outro momento em décadas.

Estamos também diante de blocos antidemocráticos mais unidos. Falar de um eixo formal entre China, Rússia, Coreia do Norte e Irã pode soar exagerado. Porém, é preciso pontuar que estamos falando de governos que cada vez atuam em cooperação estreita. Armas iranianas e norte-coreanas, componentes de uso duplo da China, e agora tropas norte-coreanas ajudam a sustentar a ofensiva do Kremlin na Ucrânia. O pacto de defesa que Putin assinou com o líder norte-coreano Kim Jong Un em novembro, vincula Pyongyang, e potencialmente a segurança peninsular, à guerra na Europa.

Aconteça o que acontecer, a queda para a ilegalidade parece destinada a continuar. Os beligerantes darão ainda menos atenção ao sofrimento civil. Outros líderes podem testar se podem tomar pedaços do território de um vizinho. A maioria das guerras de hoje parece destinada a continuar, talvez em alguns casos pontuadas por cessar-fogo que duram até que os ventos geopolíticos mudem ou surjam outras oportunidades para acabar com os rivais.

À medida que o ritmo da mudança acelera, o mundo parece se movimentar para uma nova mudança de paradigma. A questão é se isso acontecerá na mesa de negociações ou no campo de batalha.

O Encolhimento da População: Desafio Mundial

Para _baby boomers_ como eu, que cresceram lendo nos jornais ou ouvindo os comentaristas da TV vaticinarem que a “explosão demográfica” representaria a maior ameaça ao futuro da civilização — comparável ou quiçá mais tenebrosa que uma guerra nuclear —, o recente artigo do demógrafo e economista americano Nicholas Eberstadt em _National Affairs_ (novembro/dezembro de 2024) soa como uma retumbante ‘implosão’….

Segundo Eberstadt, pela primeira vez na história da humanidade desde a Peste Negra do século XIV, “a população do planeta irá declinar” (o número de óbitos superando o de nascimentos). Só que agora não mais por causa de uma doença mortal transmitida pelas pulgas que infestam os ratos, mas, sim, em razão de “escolhas” humanas.

A nova tendência de despovoamento do mundo segue-se a um longo e impressionante período de crescimento populacional: nos 700 anos posteriores à Peste Negra a população da Terra se multiplicou por 20, tendo quadriplicado no século passado. Agora, sociedades e governos precisam correr contra o relógio para adaptar suas políticas a um contexto de acelerado encolhimento (e envelhecimento) demográfico.

Olhando no retrovisor da história contemporânea, a ‘explosão’ que inquietava nossos pais e avós se devia menos ao aumento do número  de nascimentos por mulher (“taxa de fertilidade”) do que à melhora das condições gerais de higiene e saúde, o que reduziu drasticamente os índices de mortalidade infantil e esticou as expectativas de vida mesmo nos países subdesenvolvidos.

Dos anos 1960 em diante, então, a fertilidade mundial simplesmente despencou. Em 2015, a fertilidade planetária já era a metade da de 1965, fenômeno verificado em praticamente todos os países. Hoje, a imensa maioria dos seres humanos vive em países cuja taxa de fertilidade é inferior ao nível mínimo de reposição populacional (2,1 filhos por mulher nas nações desenvolvidas, ou um pouco mais do que isso naquelas mais pobres, caracterizadas por maior mortalidade infantil ou evidentes desequilíbrios entre os números de meninos e meninas).

Sempre de acordo com os dados coligidos por Eberstadt, em 2019, pouco antes da pandemia da Covid19, dois terços da população global viviam em países cuja taxa de fertilidade se situava abaixo do nível de reposição. Mais recentemente, essa tendência ganhou ainda mais velocidade.

Na Ásia do Pacífico, outrora um caldeirão fervilhante em matéria de crescimento demográfico, hoje, o Japão está 40% abaixo da taxa de reposição; a China, 50%, Taiwan, 60%; e a Coreia do Sul, 65%. Na Tailândia, o número de óbitos já supera o de nascimentos. A Índia, atualmente com a maior população do planeta, também registra significativo declínio de  fertilidade, assim como seus vizinhos Nepal, Sri Lanka (Ceilão) e Bangladesh.

A China, que recentemente perdeu o campeonato demográfico mundial para a Índia, deverá ter sua atual população de 1,4 bilhão de habitantes reduzida à metade daqui a meio século.

Na América Latina, a mesma coisa. Em cidades como Bogotá, capital da Colômbia, e a capital do México, a fertilidade já é inferior a um nascimento por mulher. Enquanto isso, em Cuba (1,1% de fertilidade), o número de mortes já supera o de partos. No Uruguai e no Chile, as taxas de fertilidade são de 1,3% e 1,1%, respectivamente.

Até mesmo no Norte da África e no Oriente Médio, a queda da fertilidade desafia as exortações pró-natalistas do Islã. Em Istambul, na Turquia, a taxa de 1,2 filho por mulher é inferior à de Berlim.

Rússia: desde a queda do comunismo, já houve 17 milhões de óbitos a mais que nascimentos. Em média, os países membros da União Europeia estão 30% abaixo do nível de reportagem (em 2022, a proporção foi de quatro mortes para cada três nascimentos). No mundo rico, os Estados Unidos sobressaem por uma taxa de fertilidade comparativamente elevada: 1,6 bebê por mãe no ano passado. Ainda assim, o birô do censo projeta para o ano de 2080 o início de um contínuo declínio da população americana.

A única exceção à essa tendência global de encolhimento demográfico é a África ao sul do Saara (em média 4,3 filhos por mulher). Contudo, lá também a taxa de fertilidade está 35% abaixo daquela registrada no final da década de 1970.

Se atualmente um quarto do planeta já enfrenta declínio populacional, computando um número de óbitos superior ao de nascimentos, não demorará para que o restante do mundo siga no mesmo rumo.

Variados são os fatores explicativos desse generalizado fenômeno: acesso ampliado aos métodos contraconceptivos, aumento do nível educacional/redução do analfabetismo, crescente incorporação das mulheres ao mercado de trabalho. Mas, até mesmo, nos países menos desenvolvidos, a tendência à despopulação se faz presente: Myanmar (antiga Birmânia) e o Nepal já estão abaixo do nível de reposição. Subjacentemente a tudo isso, como assinala Eberstadt referindo-se à descoberta do economista americano Lant Pritchett, um fator ainda mais fundamental: a opção das mulheres por menos filhos, ou mesmo por nenhum, não importa o que pensem ou queiram seus parceiros ou familiares.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a mulher se situa na  vanguarda de um novo estilo de vida que, em escala mundial, privilegia a autonomia,  a autorrealização acadêmico-profissional, a maternidade ou paternidade  tardia e a preferência de muitas pessoas por se manterem ‘descasadas’, acentuando o declínio de tradicionais valores e normas religiosos e comunitários.

Eberstadt reconhece que são grandes e complexos os desafios de um mundo menos populoso e mais idoso. Um mundo que contará com cada vez menos trabalhadores empresários e inovadores e cada vez mais aposentados, pensionistas e pessoas dependentes de assistência social. Há vinte anos, menos de 425 milhões pessoas em todo o mundo tinham alcançado os 65 anos de idade; daqui a 25 anos, ou menos, esse mesmo número de habitantes do planeta terá 80 anos! Em 2050, a previsão para a Coreia do Sul é de que o país terá três óbitos para cada nascimento; no mínimo, um sexto da população estará com 80 anos de idade ou mais; e haverá 1,2 pessoa em idade de trabalhar para cada idoso.

Esses encargos se afigurarão ainda mais pesados para aqueles países que até hoje não acumularam riqueza suficiente para financiar a avalanche de despesas com bem-estar social. Envelhecerão sem terem se tornado prósperos….

Os deslocamentos geopolíticos condicionados pelo novo panorama demográfico tampouco podem ser desconsiderados. Para ficar num único exemplo, como China, Rússia, Irã e, provavelmente também, a Coreia do Norte, hoje empenhadas em consolidar um eixo de contestação à hegemonia global dos Estados Unidos, poderão concretizar suas ambições a longo prazo se enfrentam profunda e acelerada retração populacional?

Apesar de tudo, Eberstadt conclui seu ensaio numa chave de otimismo moderado e realista. Ao menos, ele acredita que grande parte dos políticos e tecnocratas do mundo inteiro já sabem o que precisam fazer. Por toda parte, os sistemas previdenciários deverão ser reformados, de maneira a prolongar o tempo das pessoas no mercado de trabalho e retardar sua aposentadoria; as estruturas de incentivos (principalmente a tributação) terão que mudar a fim de privilegiar a poupança e o investimento a longo prazo; as famílias, cada vez menores e mais atomizadas, necessitarão contar com suporte do Estado e da comunidade a fim de assegurar conforto e dignidade aos seus idosos; políticas de imigração requererão alterações profundas para garantir suprimento suficiente de capital humano àquelas nações cujo funcionamento econômico estará comprometido pelo predomínio de idosos sem condições de permanecer na força de trabalho.

Acima de tudo, uma macrotransição demográfica capaz de evitar o agravamento das desigualdades e da pobreza em escala global demandará o compromisso de governantes e governados do mundo inteiro com o aumento da produtividade do trabalho (melhorar quantitativa e qualitativamente a produção de bens e serviços por trabalhador, num contexto de baixa disponibilidade de mão de obra). E a chave para esse futuro é uma educação de qualidade, estimuladora da curiosidade, da criatividade, do talento, da iniciativa e da cooperação das crianças e dos jovens — recursos humanos cada vez mais escassos e preciosos. Infelizmente, muitos sistemas escolares, sobretudo em economias   de renda média (a exemplo do Brasil) ou baixa, ainda não conseguem transmitir e fomentar  competências básicas, como a habilidade de ler, escrever e fazer cálculos. Para essas nações, portanto, o futuro de despovoamento e envelhecimento se traduz num cenário sombrio e ameaçador.

Foto: Natalia KOLESNIKOVA AFP.

Imperialismo Autoritário

O imperialismo é um conjunto de ideias, medidas e mecanismos que, sob determinação de um país, procuram efetivar políticas de expansão, domínio territorial, econômico ou cultural sobre outras regiões geográficas. Apesar do conceito de imperialismo, derivado de uma prática assente na teoria econômica, ter somente surgido no início do século XX, sua prática é recorrente ao longo dos séculos por muitas nações, civilizações e mais recentemente por Estados-nação.

Existem alguns países que possuem o imperialismo como elemento norteador de suas ações, um verdadeiro traço de suas personalidades como nação. Este elemento está claramente presente no pivot da Ásia, a Rússia, que ao longo dos séculos foi palco de políticas expansionistas. É possível identificar este elemento no domínio soviético em países da Ásia Central e do Leste da Europa, tornando-se suas repúblicas. Em tempos mais recentes, este elemento está presente na tentativa de domínio econômico, político e cultural dos mesmos países, agora independentes, atingindo seu ápice com a invasão territorial da Ucrânia ordenada pelo Kremlin.

O imperialismo também sempre foi presente na Ásia, seja na Mongólia, o maior império de terras contíguas da história, mas passando também pelo Império Khmer, atualmente o Camboja, pela ascensão do poderio nipônico na expansão e domínio do Japão pelo continente e mais recentemente em escala local e global pela China, que passou a ser governada pelo Partido Comunista desde a Guerra Civil que terminou em 1949, levando o antigo líder, Chiang Kai-shek, a viver no exílio, em uma ilha conhecida como Taiwan.

Assim como a Rússia, que ainda sente o gosto amargo do fim do império soviético, quando possuía duas dezenas de repúblicas, hoje países independentes, na sua esfera de influência e domínio, a China também custa a aceitar a realidade de que ao longo de décadas Taiwan se tornou um país independente. Pequim se expandiu para o Tibete e outras regiões da península asiática, porém jamais conseguiu controlar Taiwan, um desejo antigo que mexe com as placas tectônicas da geopolítica internacional.

Isso se explica porque Taiwan se tornou um país independente de fato e de direito ao longo dos anos, adotando todos os passos necessários para firmar-se como economia relevante, parceiro comercial confiável, uma democracia plena e centro vibrante na área de inovação e tecnologia, com índices altíssimos de educação. O país que produz hoje cerca 66% da produção mundial de chips, com 56% destes semicondutores saindo da lavra da TSMC, possui em torno de si um chamado “escudo de silício” que o protege, uma vez que um abalo econômico causado por uma guerra na região seria algo devastador para a economia de todo o planeta.

O imperialismo tornou-se um risco no atual plano das relações internacionais, pois tem sido usado de forma sistemática por regimes antidemocráticos para consolidar e ampliar o poder de líderes autoritários. Os casos são vários e começam pelos aqui já citados, ou seja, pelo avanço da Rússia pela Ucrânia, das ameaças chinesas em direção a Taiwan, porém também nas ameaças da Venezuela à Guiana, do expansionismo iraniano no Oriente Médio, da instabilidade causada pela Coréia do Norte em direção ao Seoul. O gene do autoritarismo, uma prática que se tornou popular em tempos recentes, carrega consigo os riscos do imperialismo, colocando o mundo em situação cada vez mais instável e perigosa em tempos recentes.

Taiwan: depois da eleição, sinais de alerta

Todo ano, em março, o regime chinês encena as chamadas “Duas Sessões”: paralelamente à plenária do Congresso Nacional do Povo-CNP (poder legislativo nominal exibindo um pluralismo de fachada: oito partidos-satélites permitidos e representantes de numerosas entidades, todos instrumentalizados pela estratégia política de  “Frente Única”, sob supervisão do Departamento do Trabalho de Frente Única do Comitê Central do Partido Comunista da China) reúne-se o Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. O CN-CCPPC, outro instrumento dessa estratégia, reforça a legitimação da supremacia do Partido Comunista, tendo como missão oficial debater, vocalizar e encaminhar propostas apresentadas pelos representantes dos numerosos segmentos da sociedade. Na sequência, o CNP e o governo chancelam essas propostas transformando-as em projetos de lei e diretrizes de política pública. Tudo isso é um cerimonial meramente ‘carimbador’, pois nada é aprovado que não tenha sido previamente proposto e permitido pelos altos dirigentes do PC.

Vértice de uma pirâmide edificada, na base, por “comitês locais” (em níveis de províncias, condados, municipios etc), o Comitê Nacional compõe-se de 2.169 membros, com mandatos de cinco anos. Desse total, 544 representam o PC e os partidos satélites — a exemplo do Comitê Revolucionário do Kuomintang (Partido Nacional do Povo) Chinês e do Partido Democrático dos Camponeses e Operários Chineses, entre outros; 313 são delegados de organizações populares (e.g., Liga da Juventude Comunista, Federação Chinesa dos Sindicatos, Federação das Mulheres da China etc); 1.076 representam grupos de interesse relevantes (agricultura, ciência & tecnologia, educação, artes e literatura, entre outros); e mais de duas centenas pertencem às categorias de personalidades nominalmente “independentes” e “convidados especiais”, entre os quais o ator hollywoodiano chinês Jackie Chan.

Como não poderia deixar de ser, a anexação de Taiwan, meta obsessiva do comunismo chinês, figurou com destaque na pauta do CN. Numa reunião a que estiveram presentes militantes do ‘satélite partidário’ Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês, Xi Jinping, presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido Comunista, exortou os presentes a “contribuir [. . .] ativamente para a união de todos os patriotas — dentro e fora da China; dentro e fora de Taiwan — e o fortalecimento da oposição à independência” da ilha, “expandir o apoio à reunificação e impulsionar conjuntamente a reunificação [. . .]”. Prosseguindo, o orador ressaltou: “Devemos promover ativamente o intercâmbio e a cooperação entre os dois lados do Estreito em ciência & tecnologia, agricultura, desenvolvimento da juventude e outros campos e aprofundar o desenvolvimento integrado de ambos os lados do Estreito”.

Estratégia multifacetada – Na prática, a China vai continuar explorando as fissuras político-sociais na opinião pública taiwanesa, agora mirando o governo do recém-eleito presidente William Lai, que tomará posse em maio.

Lai, que é o vice da atual presidente Tsai Ing-wen obteve uma terceira vitória consecutiva para o seu Partido Democrático-Popular (DPP) no pleito de janeiro último à chefia do Poder Executivo.

Contudo, como alerta o ex-diplomata americano, atualmente pesquisador do think tank Fundação para o Desenvolvimento das Democracias, sediado em Washington, D. C., Craig Singleton, por trás do triunfo de Lai e do DPP, subsistem fragilidades que não escapam ao olhar vigilante e hostil de Pequim.

Para começar, Singleton observa em recente artigo para o portal da revista Foreign Policy, essa vitória foi por maioria relativa (40%), com os restantes 60% divididos entre os candidatos dos dois partidos de oposição: Hou You-yi (Kuomintang-KMT) e Ko Wen-je (Partido do Povo de Taiwan, fundado em 2019). Ambos defendem uma linha acomodacionista em relação à China continental. Já o DPP, muito embora não chegue ao extremo de desafiar Pequim com uma ‘bandeira’ oficial pró-independência, pretende manter indefinidamente a  atual autonomia de facto da República da China, nome oficial de Taiwan.

Comparativamente, tanto em 2016 quanto em 2020, Tsai venceu por maioria absoluta, respectivamente com 16 e 17 pontos percentuais acima da votação obtida agora pelo seu vice.

Ao mesmo tempo, o DPP acaba de perder a maioria no Yuan Legislativo (parlamento), que passará a ser presidido por Hou, do KMT. Enquanto o KMT conquistou 14 novas cadeiras e o TPP, três, o DPP perdeu 10 deputados.    Isso lança uma sombra de incerteza sobre o prosseguimento de projetos importantes da atual administração, como a ampliação do período de serviço militar obrigatório (dos atuais quatro meses para um ano) e o desenvolvimento de um submarino taiwanês.

Consultorias especializadas na análise de redes digitais, como o Doublethink Lab, entre outras, descobriram que, durante a campanha eleitoral, o aplicativo TikTok, controlado pelo grupo chinês ByteDance, divulgou propaganda favorável aos dois presidenciáveis oposicionistas e veiculou desinformação contra o partido do governo, incluindo fake news sobre um suposto apoio do governo Tsai a programas de armas biológicas dos Estados Unidos, o que, aliás, repete propaganda do regime Putin contra a Ucrânia….

A milícia digital da China também criou perfis falsos de portais noticiosos tradicionais, a fim de espalhar notícias inverídicas favoráveis à reunificação.

Outro fator que pode ter contribuído para enfraquecer o desempenho da candidatura Lai foi a ‘guerra de nervos’ representada por longos meses de manobras e ‘exercícios’ militares intimidatórios do Exército de Libertação Popular, imiscuindo-se no espaço aeronaval de Taiwan.

Por último, mas não em último, Singleton nota que, curiosamente, depois das eleições taiwanesas, a revista teórica do PC da China, Qiushi, reproduziu o texto de um discurso proferido por Xi Jinping 18 meses antes, condenando supostas atitudes separatistas de Taiwan à época da visita à ilha de delegação de congressistas dos Estados Unidos encabeçada pela então presidente da Câmara dos Representantes, a deputada Democrata Nancy Pelosi.

Para concluir, tudo indica que o regime de Pequim prosseguirá com suas campanhas de desinformação, manobras militares de intimidação e pressões econômicas sobre os parceiros comerciais de Taiwan, uma estratégia multifacetada visando predispor o povo da ilha favoravelmente à anexação, o que traduziria uma séria derrota para a causa da democracia liberal em todo o mundo.