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A OTAN, a Rússia e a Ucrânia

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados Unidos, que lideraram a aliança vitoriosa, empenharam-se em estabelecer políticas que, de um lado, consolidassem sua posição de liderança, e, de outro, que contivessem a União Soviética e o comunismo em expansão.

De início, assistiu-se a uma reversão das alianças: os países derrotados, que compunham o Eixo – composto por Alemanha, Itália e Japão –, foram cooptados pelos vencedores e aproximaram-se da coalizão que venceu a guerra. Para essa reversão das alianças, foi essencial o Plano Marshall, que, iniciado em 1948, forneceu recursos para a recuperação e a reconstrução dos países europeus atingidos pelo conflito. Os países derrotados foram desarmados e passaram a enfrentar fortes restrições ao desenvolvimento de suas forças armadas e de sua indústria bélica, não podendo mais ter ou fabricar armas ou equipamentos de ataque, mas apenas de caráter estritamente defensivo. Já em 1952, os países europeus participantes do Plano Marshall atingiram os níveis de produção do período anterior à Guerra, o que abriu caminho ao futuro mercado comum europeu1.

Esse progresso econômico, com forte ajuda das subvenções americanas, contribuiu para frear o avanço do comunismo na Europa Ocidental, onde os partidos de inclinação marxista aumentavam sua participação – a exemplo do que ocorria na Itália e na França. No entanto, no Centro e no Leste europeu o comunismo aumentava sua presença e foi-se formando um bloco de países comunistas, liderados pela União Soviética. O mundo dividia-se em dois campos antagônicos e consolidava-se o período da Guerra Fria, no qual os blocos rivais se digladiavam, disputando influência política, econômica, industrial e tecnológica. A corrida armamentista entre os dois polos acirrava-se continuamente. Tratava-se de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um lado correspondia direta e simetricamente à perda do outro, e os líderes, os Estados Unidos e a União Soviética, impunham exigências de alinhamento e lealdade extremamente rígidas.

A expansão do comunismo, incentivada pela União Soviética, bem como pela China, sua aliada, atingia ou ameaçava países em várias partes do mundo, o que levou os Estados Unidos a empreenderem uma política de contenção, ou containment. Essa política deve muito de sua base teórica ao diplomata norte-americano George Kennan, que, em 1947, servindo em Moscou, redigiu o famoso long telegram , depois publicado na revista Foreign Affairs sob o pseudônimo “X”. Observe-se que a China, que se tornou comunista em 1949, era ainda um país subdesenvolvido, e o começo do seu crescimento econômico, tecnológico e militar data das décadas de 1970 e 1980. Assim, a principal preocupação dos EUA durante toda a Guerra Fria era a URSS, situação que perdurou até a derrocada da União Soviética no início da década de 1990.

Ao ter a estrutura estatal comunista desmontada, a então União Soviética, sucedida pela Rússia, viveu forte crise institucional, econômica e social. As poderosas forças militares soviéticas chegaram a ficar sem recursos para honrar os salários dos soldados, situação humilhante para uma antiga superpotência. A estrutura do bloco

soviético também ruiu. Os EUA poderiam então ter tentado atrair a Rússia para o sistema economico ocidental e buscar atrai-la também para valores e costumes ocidentais, pelos quais a juventude de então tinha fascinação.

Em 1949, formou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, sob a égide dos Estados Unidos. Tratava-se de mecanismo regional de defesa coletiva: seu tratado constitutivo previa que um ataque a qualquer de seus membros seria considerado um ataque contra todos (capítulo 5 do tratado constitutivo); todos os demais membros, portanto, tinha a obrigação de repelir agressões bélicas contra qualquer de seus integrantes. A reação soviética e de seus aliados europeus à criação da OTAN foi a fundação, em 1955, do Pacto de Varsóvia, estrutura igualmente defensiva.

A OTAN perdeu seu objeto principal que era defender o Ocidente da União Soviética e da expansão do comunismo quando ocorreu o desmantelamento da URSS e o consequente fim do regime comunista entre seus aliados do Leste europeu. No entanto, o acordo atlântico foi mantido e expandiu-se dos 12 membros iniciais para os atuais 31, contando a Finlândia2 e a Suécia, que está em processo final de adesão. A expansão da OTAN foi um dos motivos alegados pelo Kremlin para a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, quando seria iminente a colocação de baterias de mísseis próximo à fronteira russa, em território ucraniano, e mesmo a adesão da Ucrânia à OTAN. A expansão da OTAN aumentou o sentimento de cerco da Rússia, que existe desde os tempos imperiais.

A OTAN tem sido crucial na defesa da Ucrânia por meio do fornecimento de armamentos e de informações, além do treinamento de tropas. O apoio dos países da OTAN tem permitido à Ucrânia resistir à invasão de uma potência que conta com forças muito superiores. A aliança atlântica, que se encontrava dividida antes da invasão, uniu-se contra a ameaça russa, movimento que não era esperado pelo governo do Kremlin.

As próximas eleições nos Estados Unidos serão importantes para definir os rumos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O governo anterior dos EUA caracterizou- se por críticas acerbas à Aliança Atlântica, alegando que o peso da defesa da Europa recaía principalmente sobre os norte-americanos. No caso de vitória dos Republicanos no sufrágio deste ano, é possível projetar que em um Governo Trump, se retomar sua política do primeiro mandato, haverá uma significativa diminuição do apoio dos EUA à Ucrânia, deixando a Europa responsável pela defesa ucraniana, o que desequilibraria a guerra a favor da Rússia.

Artigo Embaixador Marcio Florencio Nunes Cambraia em conjunto com o Cientista Político Marcio Rodrigo Penna Borges Nunes Cambraia.

Índia: nova potência no cenário internacional?

Vivemos um período de transformações no cenário internacional, com as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, a crescente afirmação da China no plano mundial, as mudanças nas cadeias produtivas, o desenvolvimento tecnológico na Ásia e a relativa estagnação da economia norte-americana. Um aspecto que deve ser acompanhado é a possibilidade de a Índia passar, a curto prazo, de sua posição de potência regional ao status de grande potência, uma vez que o país asiático conta com a terceira economia mundial e é detentor de uma das forças armadas mais poderosas da atualidade.

A Índia ultrapassou a população da China em 2023 e seu produto interno bruto (PIB) tem crescido a taxas superiores às chinesas. Ademais, sua população tem perfil mais jovem, com mais de 40% de sua população abaixo dos 25 anos. Embora tenha problemas graves como o analfabetismo, o baixo padrão de vida de sua população e enormes desigualdades sociais, trata-se de uma democracia consolidada e com instituições bem estabelecidas, que busca ativamente a modernização de sua economia. A agricultura do país asiático tem-se fortalecido, o que levou a uma mudança no perfil de seu comércio exterior, de importador a exportador de produtos agrícolas e alimentos.

Desde sua independência do Reino Unido, em 1947, a Índia tem passado por uma profunda transformação em sua economia, que era tradicionalmente concentrada em investimento em indústrias pesadas; atualmente, o país investe, cada vez mais, em tecnologia de ponta. Após privilegiar a planificação econômica com base no modelo soviético, a Índia adotou a liberalização da sua economia na década de 1990, com ênfase na abertura internacional e na livre iniciativa, medidas que têm dado impulso ao seu progresso acelerado. De um modelo de controle estatal rígido com exigência de licença do governo para o funcionamento de vários setores industriais, bem como para importações, passou a um regime de mais liberdade, que tem permitido a absorção de novas tecnologias. O governo indiano tem estimulado os investimentos em tecnologia de informação, o que tem levado a um rápido desenvolvimento em hardware e software – atualmente, importantes produtos de exportação. 

Acrescente-se, ainda, que a Índia tem feito grandes progressos no setor aeroespacial, tendo em 2023 pousado veículo espacial na lua. Em 2024, o país colocou em órbita uma sonda para o estudo mais aprofundado do sol.

Situada em posição estratégica, vizinha da China, com quem tem problemas de limites ainda não resolvidos, e próxima da Rússia, seu grande fornecedor de armamentos, a Índia tem aumentado sua projeção internacional, com crescente atuação no cenário mundial. A Índia conta com mais de um milhão e quinhentos mil homens em armas, e suas forças armadas estão entre as mais poderosas e bem treinadas e equipadas do mundo. O país tem investido na indústria de defesa vem procurando reduzir sua tradicional dependência da Rússia nessa área, tanto pelo desenvolvimento da sua própria indústria bélica quanto pela diversificação de fornecedores, recorrendo a importações americanas e europeias. Os indianos fabricam mísseis modernos de terra, mar e ar, além de aviões de combate. O país possui dois porta-aviões e 16 submarinos, dos quais dois com propulsão nuclear, além de mais de cinquenta belonaves. Sua Força Aérea opera mais de seiscentos aviões, além de helicópteros de combate. 

A Índia tem buscado uma posição de equidistância entre os principais atores no concerto internacional. Nesse sentido, o país não condenou explicitamente a Rússia pela invasão da Ucrânia e tem aumentado as importações de petróleo russo, bem como de fertilizantes, o que tem ajudado a Rússia a contornar as sanções europeias e americanas. Nos foros e organismos internacionais, como a ONU, a Índia adota discurso contrário à guerra, embora se abstenha constantemente de condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia.

Ainda no tocante à projeção internacional da Índia, é importante ressaltar que o país asiático é membro originário do grupo político BRICs, que inclui, outrossim, o Brasil, a Rússia, a China e a África do Sul. O acrônimo BRICs – criado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs – foi o nome oficialmente atribuído ao foro informal de coordenação política e econômica, fundado em 2006. Dos primeiros membros do BRICS, a China e a Índia passaram a ter posição econômicas proeminentes desde então, ao passo que o Brasil (apesar do enorme incremento nas exportações de produtos minerais e agrícolas) e a África do Sul não corresponderam à expectativa de muitos economistas do começo da década de 2000. Tem sido crescente a distância entre as economias da China e da Índia e as dos demais membros do BRICS. 

Em 2022, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, a Índia passou a ocupar o lugar do Reino Unido, sua antiga metrópole colonial, como quinta economia mundial, e parece encaminhar-se para ser a terceira economia do mundo. Com a maior população mundial, uma das mais numerosas e equipadas forças armadas do mundo, indústria bélica em desenvolvimento, economia dinâmica e firmando-se em tecnologia de ponta, a Índia parece caminhar de seu atual status de potência regional para a posição de grande potência. Os Estados Unidos, preocupados com o crescimento econômico e a crescente capacidade militar da China, veem a Índia como um ator importante na contenção das ambições chinesas. 

Rotas do petróleo e o conflito Israel-Hamas

As grandes potências e as potências regionais estão tendo um comportamento comedido em relação ao conflito entre Israel e o Hamas, com exceção dos Estados Unidos e do Reino Unido, que enviaram forças tarefas navais para a região.

A Rússia, que está preocupada com a guerra contra a Ucrânia e vem lutando para superar os problemas causados pelas sanções, procura não se envolver no atual conflito no Oriente Médio. A Rússia tem presença forte na Síria e apoia militarmente o regime sírio, ameaçado desde 2011, no contexto da Primavera Árabe. Aumentando a complexidade do problema do Oriente Médio, Israel revidou ataques de milicianos iranianos em território sírio, e os EUA, que têm três mil soldados na Síria, também reagiram a ataques a seu pessoal militar no país.

Os americanos e os britânicos, por sua vez, embora manifestem sua lealdade a Israel e contribuam com o fornecimento de equipamentos bélicos e informações, não pretendem se engajar em operações de combate. Ademais, têm procurado exercer uma função moderadora em relação à intensidade dos ataques de retaliação de Israel em Gaza, pois as perdas de civis têm sido elevadas e têm causado uma onda de mal estar e protestos contra os israelenses na comunidade internacional.

Apesar da rivalidade com Israel, a liderança do Hezbollah, organização política e militar sediada no Líbano, tem se contido e evitado declarar guerra aberta contra os judeus.

Um fator que pode levar a uma maior intensidade da crise diz respeito aos ataques dos rebeldes Hutis do Iêmen contra navios de várias bandeiras, incluindo porta containers, cargueiros, e principalmente petroleiros que trafegam pela costa iemenita. Os Hutis são financiados pelo Irã xiita, ao passo que o Governo iemenita é apoiado pela sunita Arabia Saudita.

Os ataques hutis têm feito que as embarcações dos principais armadores do mundo deixem de utilizar a rota que passa pelo canal de Suez e passem a utilizar a rota via que circunavega o continente africano pela Cidade do Cabo na África do Sul, caminho mais longo e com maiores custos operacionais. A empresa petrolífera britânica BP e a transportadora dinamarquesa Maersk, uma das maiores operadoras de contêineres do mundo, já utilizam a via do Cabo, com significativo aumento de despesas, o que se reflete na elevação do preço dos fretes.

Embora o aumento de custos se reflita nos preços do petróleo e do transporte de outras mercadorias, não se verificou, pelo menos por enquanto, um pânico no mercado do petróleo e do gás, tal como ocorreu na crise do petróleo de 1973, na esteira da Guerra do Yom Kippur, que afetou a economia mundial e atingiu fortemente o Brasil. Na ocasião, o governo brasileiro reagiu prontamente e foi pioneiro na busca de combustível alternativo, instituindo o Proálcool; atualmente, o etanol é fabricado em larga escala no país. Apesar de a nossa dependência energética do exterior ter diminuído consideravelmente, e a produção nacional de petróleo ter aumentado muito, ainda importamos petróleo devido à deficiência de refino. Ademais, nossa economia é fortemente dependente do transporte rodoviário.

As ameaças às rotas marítimas no Oriente Médio causam distúrbio em vários fluxos de comércio, prejudicando as chamadas cadeias globais de produção e distribuição, o que pode prejudicar o Brasil. Com uma economia que se apoia principalmente nas exportações de commodities (sobretudo produtos agrícolas e minerais), o Brasil é dependente de importação de fertilizantes e, para tanto, carece de vias marítimas seguras. No setor industrial, temos a importação de componentes eletrônicos de alta tecnologia, que também podem sofrer com perturbações nas rotas oceânicas, a depender da evolução da situação no Oriente Médio.

Embora atualmente a preocupação imediata seja o suprimento de petróleo, potencialmente o conflito Israel-Hamas pode vir a nos prejudicar em várias áreas da economia. Neste momento, cabe à diplomacia brasileira obter e processar informações sobre os vários cenários possíveis no desenvolvimento da crise, e o governo deve preparar planos de contingência para enfrentar os perigos que podem advir nesses cenários.

Brasil-Argentina. Geopolítica na América do Sul

Às vésperas da posse do novo presidente argentino Javier Milei, cabe lembrar uma das mais audazes e bem sucedidas ações estratégicas da nossa diplomacia, pela qual o Brasil logrou superar uma rivalidade histórica que era ameaça constante à paz e à estabilidade na América do Sul. Na década de 1980, o Brasil tomou a iniciativa de aproximar-se da Argentina, seu tradicional adversário.

 A rivalidade entre brasileiros e argentinos data mesmo dos tempos coloniais, quando as Coroas portuguesa e espanhola buscavam a ocupação da América do Sul, e agravou-se com a Guerra da Cisplatina, de 1825 a 1828, na qual o Brasil, já independente, lutou contra as Províncias Unidas do Rio da Prata, que viriam a formar a Argentina. A antiga província brasileira da Cisplatina foi perdida, e, em 1825, o Império Britânico, com fortes interesses econômicos na Argentina e no Uruguai e também interessado na livre navegação do Rio da Prata, patrocinou a independência do Uruguai, com a intenção de estabelecer um buffer state, ou estado tampão, no território do Uruguai – que foi chamado de “um algodão entre dois cristais”.

 Potências regionais que disputavam a hegemonia na América do Sul, o Brasil e a Argentina alimentavam uma rivalidade acerba. As forças armadas dos dois países mantinham importantes guarnições na fronteira, e os planos de estado maior dos militares dos dois países contemplavam sempre a hipótese de guerra. 

 Na década de 1970, o Brasil teve uma fase de crescimento acelerado de sua economia, ao passo que a Argentina, apesar de contar com uma agricultura pujante e com uma indústria relativamente avançada, sofria crescentemente com as consequências de medidas populistas que vinham sendo adotadas desde o peronismo na década de 1940.

A aceleração do crescimento do Brasil e a decadência argentina trouxeram a percepção de que, do ponto de vista econômico, o equilíbrio entre as duas potências regionais estava rompido, na medida em que o Brasil tomava a dianteira. Essa percepção tornou-se mais aguda no serviço diplomático brasileiro, onde se percebeu que o momento era propício a uma aproximação entre os dois países, embora os militares ainda continuassem com a convicção de que a Argentina era o nosso principal oponente.

No início dos anos oitenta, a diplomacia pátria elaborava estratégia para uma aproximação com a Argentina. Essa estratégia baseava-se na construção de uma rede de interesses comuns, fazendo que as áreas de concordância sobrepujassem os pontos de atrito e divergência. Buscou-se, ao mesmo tempo, diminuir a resistência das forças armadas a uma distensão com o país que consideravam potencial inimigo.

A reaproximação bilateral levou a um histórico encontro entre o presidente do Brasil, José Sarney, e o da Argentina, Raúl Alfonsín, em 30 de novembro de 1985. Na reunião, que ocorreu na fronteira entre Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, Sarney e Alfonsín assinaram a “Declaração do Iguaçu”, base para o início de uma nova era de integração regional. Os chefes de Estado assinaram, ainda, a “Declaração Conjunta sobre Política Nuclear”, na qual as duas nações concordaram com o desenvolvimento pacífico de tecnologia nuclear conjunta.

O aprofundamento da chamada “diplomacia das cataratas”, por meio dos acordos diplomáticos em Iguaçu, consistiu em um marco do rapprochement, ou reaproximação, entre as duas potências regionais, que deixavam para trás a rivalidade histórica. Houve, no entanto, a necessidade de tomar diversas medidas para construir uma confiança mútua e sólida, as chamadas confidence building measures, pois o nível de suspicácia entre o Brasil e a Argentina estava em nível elevado e eram necessárias iniciativas que elevassem o grau de confiança entre as nações vizinhas. Entre as iniciativas, a mais importante foi a abertura de informações recíprocas sobre os programas nucleares das duas potências regionais, o que resultou na criação da Agência Brasileiro-Argentina de Controle e Contabilidade de Material Nuclear (ABACC). Essa medida contou com a supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), das Nações Unidas, o que serviu para dar mais legitimidade ao arranjo, cujo objetivo precípuo era o de promover aproximação e confiança recíproca. 

A seguir tivemos, no cenário internacional, a derrocada da União Soviética e o fim da Guerra Fria, acontecimentos que abriram espaço para a aceleração da globalização. Nesse contexto, o governo brasileiro envidou esforços para a criação de uma zona de livre comércio Brasil-Argentina. Esse mecanismo de abertura comercial, a princípio restrito às trocas entre as duas potências sul-americanas, chamou a atenção dos vizinhos do Cone Sul, o Uruguai e o Paraguai. Outrora rivais históricos, os dois países solicitaram formalmente sua adesão à área de livre comércio, para não ficarem à margem da união entre as duas maiores economias da América do Sul.

Como consequência da aproximação diplomática entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, os quatro países assinaram, em 1991,  o Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, o Mercado Comum do Sul. Embora o Mercosul tenha enfrentado várias dificuldades, algumas como consequência da diversidade da dimensão das economias que o integram, outras derivadas dos entraves normais em todo processo de integração econômica, sua existência simboliza a paz na América do Sul, que algum tempo atrás estivera ameaçada por risco real de guerra entre as potências regionais.

A iniciativa diplomática do Brasil de se aproximar da Argentina a partir da década de 1980, neutralizando uma potencial e acirrada rivalidade, tem contribuído, desde então, para a paz e a estabilidade na América Latina como um todo. A superação da rivalidade histórica entre ambos não somente evitou um confronto bélico que seria destrutivo para o Cone Sul, como também representou o embrião de um projeto muito mais amplo de integração regional, o qual, por meio do chamado spillover effect, irradiou seus efeitos para o entorno geográfico, atraindo as parcerias de Paraguai e Uruguai, além de servir como base para novas iniciativas e arranjos de concertação política e econômica na região. 

Mudanças Ambientais: oportunidade para o Brasil?

O tema das mudanças ambientais e suas ameaças para o planeta tem alcançado dimensões inusitadas e adquiriu aspecto primordial entre os valores compartilhados pela comunidade internacional. Os valores ligados ao meio ambiente, como a necessidade de deter o aquecimento global, diminuir o consumo de combustíveis fósseis, reduzir a pressão sobre os recursos naturais do planeta, evitar a poluição, que eram adotados por minorias cinquenta anos atrás, disseminaram-se e são hoje considerados princípios comuns a toda a comunidade internacional. Governos, organizações multilaterais internacionais, empresas e organizações não-governamentais (ONGs) passaram a reger suas ações com base em considerações ambientais. Multiplicam-se os acordos multilaterais que visam a proteção do meio ambiente.  O apelo dos valores ambientais espraiou-se principalmente entre as novas gerações que os incorporam cada vez mais e conformam seu comportamento por parâmetros ecologicamente saudáveis. Do ponto de vista do consumo, surgem novos hábitos que, por sua vez, afetam os próprios mercados.

A dimensão dessas mudanças deve mesmo influenciar os jogos internacionais do poder, com potencial para modificar a posição internacional do Brasil. A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, e a consequente guerra – atualmente em situação de impasse – perturbaram as cadeias produtivas e de fornecimento de matérias primas mundiais, inclusive de combustíveis como petróleo e gás. A guerra na Europa mostrou a vulnerabilidade do continente europeu em relação à energia importada da Rússia.

Desde outubro de 2023, a beligerância entre Israel e o Hamas pode vir a envolver países grandes produtores de petróleo como o Irã, que financia o Hamas na faixa de Gaza e o Hezbollah no Líbano, além da Arabia Saudita, que combate os hutis no Iêmen, facção rebelde que já tem bombardeado Israel. Potencialmente, trata-se de situação que pode englobar potências como os Estados Unidos e o Reino Unido, já presentes nas imediações de Israel com forças navais, e a Rússia, que apoia o regime sírio de Bashar Al-Assad. O crescimento do sentimento antissemita e anti-islâmico pode levar outras nações a participarem de uma eventual ampliação do conflito. Há uma confluência das causas ecológicas e geopolíticas, e a mudança na matriz energética mundial para menor consumo de petróleo e gás, com maior utilização de fontes renováveis de energia, pode ser apressada por uma crise do petróleo. 

No entanto, as grandes potências têm adotado uma posição cautelosa. A França, com importante minoria Islâmica e judaica, busca manter-se afastada do conflito. A China, buscando recuperar seus índices de crescimento, prejudicados pela crise imobiliária, e pela vulnerabilidade dos chamados bancos paralelos, interessa-se pela estabilidade internacional. A Rússia, envolvida em guerra difícil e onerosa, não deseja envolver-se no conflito Israel-Hamas. Apenas os EUA e o Reino Unido, prontificam-se a defender Israel pelas armas, se necessário.

O Brasil, geograficamente distante das áreas de conflito, encontra-se em situação privilegiada nesse período de transição mundial de fontes de energia. De um lado, nosso país detém reservas importantes de petróleo, embora tenha deficiências em refino. Por outro lado, o Brasil foi pioneiro na busca de fontes renováveis: em 1975, na esteira da guerra do Yom Kippur de 1968 que levou à crise do petróleo de 1973, iniciou o Proálcool, durante o Governo do Presidente Ernesto Geisel, programa governamental que subsidiava a produção de álcool combustível derivado da cana de açúcar. Desde então, o petróleo teve oscilações de preço, mas a produção de álcool firmou-se e passou a não depender mais de apoio oficial. Essa iniciativa, de reação construtiva e inovadora a um cenário internacional desfavorável, pode servir de referência nesse momento em que existe uma situação de crise geopolítica, com conflagrações na Europa e no Oriente Médio, além de enormes pressões internacionais pela proteção ao meio ambiente. 

Nosso país conta com várias condições, ou vantagens, para, no momento atual, não somente continuar a busca de desenvolvimento econômico e melhores condições de vida para uma enorme população carente, como também para assumir um papel preponderante como potência ambiental. Apesar da abrangência e eficácia de nossas medidas de proteção do meio ambiente – por exemplo, temos o código florestal mais avançado do mundo, que restringe a exploração das propriedades rurais a 20% de seu tamanho (50% no caso da Amazônia), o Brasil continua sendo atacado pela opinião pública internacional, acusado de não proteger o meio ambiente, em especial a floresta amazônica. Devemos registrar que a opinião pública, em especial a europeia, atiçada por grupos ativistas e setores da imprensa, atende frequentemente a interesses protecionistas de um setor agrícola que é muito protegido por subsídios e, portanto, pouco eficiente e pouco competitivo. 

O Brasil promoveu e organizou a Conferencia de Cupula da ONU chamada de Rio 92 e foi pioneiro também ao promover e organizar a Conferência de Cúpula da ONU chamada de Rio 92, durante o governo do Presidente Fernando Collor. Essa conferência teve a participação de 157 países e foi um marco na luta pela preservação do meio ambiente. Nessa ocasiao verificou-se a Primeira Conferencia das Parte, a COP, que estabeleceu importantes metas climaticas, em um mundo que tem, cada vez mais, sofrido com graves disturbios do clima. Posteriormente realizou-se o encontro de avaliacao que ficou conhecido como Rio+20. Várias reunioes  ocorreram após essa iniciativa pioneira, e o Brasil sediarah a proxima COP. em Belem do Para, em 2025. Paulatinamente alarga-se a consciência ecológica no mundo, enraizando valores como a diminuição do consumo de produtos nocivos ao meio ambiente e a proteção ambiental.

O desenvolvimento tecnológico tem ajudado nosso país na transição energética e na busca de uma economia ecologicamente responsável. A agricultura brasileira tem aumentado sua produção e competitividade sem a necessidade de incorporação de novas áreas e o Brasil firmou-se como um dos maiores produtores e exportadores de alimentos e produtos agrícolas do mundo. Novas oportunidades se abrem, como a produção de energia solar e eólica, que se somam a nossa matriz energética baseada fundamentalmente em fonte renovável, como a eletricidade obtida de usinas hidrelétricas. O hidrogênio verde está se firmando como economicamente viável e poderá vir a ser uma commodityexportável. Ademais, consolida-se o mercado de créditos de carbono, que permitirá ao país manter intactas suas imensas reservas florestais e ao mesmo tempo transformá-las em fonte de renda. O mercado de creditos de carbono funciona por meio de  sistema de compensacao, pelo qual se negociam creditos de empresas e entidades que possuem ativos ecologicamente corretos, florestas por exemplo, que sao trocados por deficits ambientais de empresas ou entidades emissoras de carbono. A a semelhanca dos mercados acionarios, de titulos financeiros, ou de mercadorias, ja funcionam bolsas de valores que negociam “creditos ou titulos verdes”, em grande incentivo aa busca pelo controle do efeito estufa. 

Percebe-se que os ataques ecologistas ao Brasil, por parte de imprensa, grupos ativistas e até mesmo governos, têm frequentemente origem  em vested interests, de caráter protecionista ou ideológico. Um dos exemplos mais evidentes é a imposição de condições rígidas na negociação do acordo Mercosul-União Europeia, em que os europeus, além de exigências sobre compras governamentais, buscam justificar fortes barreiras ambientais.  Esses ataques prejudicam nossa imagem junto aos consumidores e têm grande potencial de influir negativamente nas nossas exportações, por meio de restrições como medidas tarifárias e não tarifárias, e mesmo boicotes. Urge que o governo brasileiro faça uma campanha agressiva, dinâmica e moderna para combater a injusta deterioração de nossa imagem. O Itamaraty, com a capilaridade de sua rede de Embaixadas e outros postos como os Consulados Gerais, pode encarregar-se  dessa campanha, mostrando nossa legislação florestal e nossas medidas de proteção ambiental, com o apoio de peças de propaganda modernas e profissionais a serem veiculadas. Contamos com um serviço diplomático bem preparado, que sofre com os ataques injustificados e que abraçará com entusiasmo essa tarefa de recuperação de imagem. 

Foto: ANAS BABA/GETTY IMAGES

Israel X Hamas e o macro cenário internacional 

A compreensão do atual estado de beligerância entre Israel e o Hamas deve remontar à criação do Estado de Israel em 1948, auspiciada por resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que também previa a criação de um Estado palestino. A região da Palestina, território escolhido para os novos Estados, estava sob mandato britânico desde 1923. A criação de Israel, impulsionada pelo movimento sionista, foi desde o início contestada pelos palestinos e pelos países islâmicos. Os palestinos sentiram-se esbulhados em seus direitos territoriais, o que causou uma rivalidade geopolítica, ao lado da tradicional rivalidade religiosa entre judeus e islamitas. Ademais, Israel adotou política de instalar assentamentos que são vistos pelos palestinos como ofensa e provocação.

Em 7 de outubro de 2023, o Hamas (“Movimento de Resistência Islâmica” em árabe), organização terrorista com base na faixa de Gaza, financiado principalmente pelo Irã, mas também pelo Catar, atacou Israel com inusitada amplitude de meios – por terra, pelo mar e pelo ar. Essa ação colheu os órgãos de informação e de defesa de Israel de surpresa, o que causou estranheza, porque tanto os serviços de informação quanto as forças armadas israelenses têm reputação de excelência e são tecnologicamente muito avançados. Pelo menos duas hipóteses podem ser aventadas para as falhas dos órgãos de informação. De um lado, o excesso de confiança em recursos eletrônicos para obter dados sobre o Hamas, em detrimento da capacidade analítica dos agentes de informação, o que teria levado a uma inanição do sistema, incapaz de levar informações suficientes aos níveis decisórios. De outro lado, o sistema teria sido inundado com excesso de informações, além de sua capacidade de processamento, ou seja, os canais de informação estariam sobrecarregados e, portanto, pouco operantes. Outra possibilidade é que informações teriam chegado à cúpula do estado israelense, que, assoberbado pela crise política envolvendo o próprio Primeiro Ministro, não teria tomado as decisões adequadas em resposta ao ataque do Hamas.  Por fim, a dimensão e a eficiência do ataque do Hamas demonstram que houve uma longa e cuidadosa preparação, que não teria sido detectada pelos israelenses. Não é crível que o Hamas tenha empreendido um ataque dessa envergadura sem o conhecimento e até mesmo o consentimento de seu principal patrocinador e financiador, o Irã. 

Potência regional, o Irã foi aliado das potências ocidentais e dos Estados Unidos até a Revolução Islâmica de 1979, quando se instalou uma teocracia sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini. Detentor de uma das maiores reservas de petróleo do mundo, com bem equipadas forças armadas de mais de 500 mil homens, o Irã beneficiou-se da invasão norte-americana do Iraque, que terminou com o equilíbrio de poder regional entre Irã e Iraque, ao ocupar este último e anular sua capacidade bélica. Além do Hamas, o Irã também apoia o grupo radical xiita Hezbollah, que atua principalmente no Líbano e que também lançou foguetes contra Israel, que tem conseguido diminuir suas perdas pela utilização do sofisticado sistema defensivo “Iron Dome” que detecta e destrói foguetes antes de atingirem seu território. Deve-se registrar que tanto o Hamas quanto o Hezbollah atuam como partidos políticos em seus territórios.

O Irã é ator fundamental no cenário do Oriente Médio, pois, além de potência regional inimiga de Israel e das potências ocidentais, margeia o estreito de Ormuz, uma das principais rotas do petróleo e do gás do mundo e que pode ser facilmente fechado. Os Estados Unidos, tradicional aliado de Israel, enviaram dois porta-aviões e o Reino Unido enviou uma força naval para as imediações de Israel. Essa mobilização parece visar mais a uma dissuasão ao Irã do que a uma eventual defesa direta de Israel.

Com o ataque do Hamas, Israel tomou represálias imediatas bombardeando a faixa de Gaza e empreendendo depois uma invasão terrestre que apresenta graves dificuldades, dentre as quais a necessidade de realizar combate urbano em área populosa e a existência de ampla rede de túneis construídos pelo Hamas. Israel tem manifestado o desejo de exterminar o Hamas, objetivo difícil de ser atingido, porque os ressentimentos entre os palestinos e os judeus são muito enraizados e se refletem nos países islâmicos. 

Além dos ataques do Hamas e do Hezbollah, os Hutis, também lançaram foguetes contra o território israelense. Trata-se de um grupo xiita do Iêmen, apoiado pelo Irã e combatido por coalizão liderada pela Arábia Saudita, aliada dos EUA.

Outra frente que se abriu no conflito foi com foguetes vindos do território sírio, que atingiram as Colinas do Golã, as quais faziam parte de território sírio ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias de 1967. A Síria, desde a Primavera Árabe de 2011, tem visto seu Governo ser contestado, mas o regime não caiu porque tem contado com o apoio decisivo do Hezbollah, da Rússia e do Irã. O Irã tem fornecido drones utilizados pela Rússia em ataques na Ucrânia. 

De sua parte, a Turquia, que é membro da OTAN desde a Guerra Fria mas que tem mantido uma política de equilibro entre o Ocidente e sua liderança islâmica, condenou a represália de Israel na Faixa de Gaza como terrorismo. 

A China apoia a solução de dois estados para Israel e Palestina, mas tem adotado um perfil discreto. A caminho de consolidar-se como uma superpotência rivalizando com os EUA, a China tem interesse em uma situação internacional sem grandes transtornos, para não prejudicar seus fluxos de comércio nem suas linhas de suprimento de matérias primas, alimentos e petróleo. O gigante asiático é grande comprador de petróleo da Rússia, do Irã e da Venezuela. 

Esse quadro mostra a complexidade e a extensão das alianças de países que estão imediatamente interessados na disputa Israel-Hamas, ou potencialmente podem ser envolvidos na situação de beligerância, o que pode levar a um aumento dos países intervindo no conflito. Outro fator que pode contribuir fortemente para o espraiamento da luta Israel-Hamas é o crescimento do antissemitismo, bem como do sentimento anti-islâmico, que potencialmente poderá levar os governos, pressionados pela opinião pública, a contemplarem participação mais direta no conflito.

O Itamaraty e a Força Aérea Brasileira vêm realizando operação de repatriação de brasileiros, com êxito parcial. Não há perspectiva, contudo, de que o governo brasileiro possa atuar como mediador para a solução da crise, mesmo porque o Brasil não tem peso específico internacional para agir em cenário em que estão interessadas diretamente as grandes potências.  

A ONU tem se mostrado ineficaz na missão precípua de seu Conselho de Segurança, que é a manutenção da paz. Uma das razões preponderantes é o sistema de poder de veto das potências-membro, os Estados Unidos, a China, a Rússia, o Reino Unido e a França. As Nações Unidas têm funcionado como fórum de repercussão das posições, e têm atuado também para amenizar a crise humanitária. 

Brasil : vantagens e vulnerabilidades na Política Externa

O atual cenário internacional, complexo e em rápida transformação, caminha para a bipolaridade, com duas superpotências, os Estados Unidos e a China, já em postura de rivalidade crescente. Essa bipolaridade que se vislumbra é mitigada por grandes potências, as vencedoras da Segunda Guerra Mundial, como o Reino Unido, a França e a Rússia. Ademais, temos as potências regionais ou médias, como a Índia, a Indonésia, o Egito, o Irã e o Brasil. A Alemanha e o Japão, com economias extremamente importantes e tecnologicamente sofisticadas, estão se rearmando pela primeira vez desde sua derrota na Segunda Guerra Mundial e se grandes potências novamente. Essa transformação verifica-se na esteira da invasão russa na Ucrânia e da escalada chinesa. A Alemanha deve ter papel importante na contenção da Rússia, no âmbito da OTAN, e o Japão será essencial no estabelecimento de um “cordon sanitaire” cercando a China, de que fazem parte também a Austrália, a Coreia do Sul e a Índia. Quad diálogo quadrilateral, embora busque equilibrar-se entre suas relações com a China e a Rússia e seus laços ocidentais. Em outra vertente, deve-se registrar que o “pivot” da economia, do comércio e da tecnologia mundial tem se movido para a Ásia.

Nesse cenário que se delineia o planejamento da política externa brasileira deve, necessariamente levar em conta, racional e realisticamente, as vantagens e vulnerabilidades na busca dos objetivos básicos de segurança internacional e desenvolvimento econômico.

Entre as vantagens, estão o território continental e a diversidade de recursos energéticos, minerais e de terras agrícolas, que têm permitido o crescimento da produção de matérias primas industriais e de alimentos sem prejudicar o meio ambiente. No caso da agricultura desenvolvemos tecnologia avançada, que permite a expansão da produção sem alargamento da fronteira agrícola sem a necessidade de incorporação de novas terras, o que nos proporciona uma das maiores áreas preservadas do mundo. No entanto, essa tecnologia pode ser obtida por outros países produtores, futuros concorrentes, como temos exemplos históricos. Disso, a China, em busca de garantir suprimentos, tem investido em infraestrutura em países agrícolas e ricos em minerais africanos por meio de seu programa “Belt and Road”. Outra vulnerabilidade importante é a nossa dependência de fertilizantes, como ficou demonstrado pela guerra da Ucrânia. Também é preocupante a precariedade da estrutura de transporte e armazenamento de grãos, em um país das dimensões do Brasil, que depende maciçamente de transporte rodoviário, mais caro e ineficiente do que o ferroviário.

No que diz respeito à indústria, o Brasil não tem tido desenvolvimento tecnológico adequado e está ultrapassado em relação a países de economias muito menores como por exemplo Taiwan, maior produtor de semicondutores do mundo, e a Coreia do Sul. O atraso na tecnologia de ponta tem impedido a integração da nossa indústria às cadeias de produção internacionais e somos levados a constante dependência de exportação de ”commodities”, com menor valor agregado e mais sujeitas às instabilidades de preços. De a economia brasileira ser ainda relativamente fechada, a indústria reflete as graves deficiências do nosso ensino. Embora tenhamos áreas de excelência, existe no Brasil uma enorme massa de analfabetos funcionais.

Deve-se observar que embora a dimensão territorial do país e de sua costa marítima sejam vantagens em termos de produção agrícola, mineral e energética, representam vulnerabilidade em termos de segurança. As fronteiras brasileiras pela sua enorme dimensão são expostas ao tráfico de armas, drogas e contrabando de mercadorias. A entrada de armas e a circulação de drogas suprem o crime e o tráfico, cada vez mais organizado. Facções criminosas dominam áreas inteiras na periferia das grandes cidades, onde as forças de segurança têm entrada restrita e onde se digladiam facções rivais. Está se gerando uma situação de anomia, em que não se reconhecem regras sociais. O Estado perde controle de seu próprio território, de sua jurisdição, e o governo chega a ter partes de sua estrutura colonizadas pelo crime. Essa perda de controle do Estado tem se espraiado por regiões portuárias e áreas de fronteira como na Amazônia, no Sul e no Centro Oeste do país, facilitando  as conexões com grupos criminosos estrangeiros. As forças de segurança encontram crescente dificuldade em manter presença efetiva do governo.

Brasil não tem autossuficiência energética, principalmente no refino de petróleo, o que aumenta nossa dependência do mercado internacional de combustíveis.

A localização do país, distante dos atuais focos de tensão, representa inegável vantagem, embora tenhamos também como fator negativo a distância de centros atualmente mais dinâmicos da indústria, comércio e tecnologia mundiais, o que dificulta, junto com nosso atraso em tecnologia de ponta, o acesso a mercados e a integração nas cadeias produtivas.

A política externa multidirecional e ecumênica que o Brasil tem adotado tradicionalmente contribui para minorar algumas dessas vulnerabilidades, como demonstrou-se no período da pandemia de Covid19 e desde o início da guerra da Ucrânia. O Brasil deve persistir na abordagem pragmática que lhe tem permitido atenuar os efeitos de crises internacionais. A bipolaridade, embora ainda mitigada, que se parece avizinhar no cenário estratégico internacional deve aumentar pressões por lealdades e alinhamentos, “zero sum game”, ganhos e perdas de um núcleo de poder correspondem direta e simetricamente a perdas do outro. Quanto mais rígida for a bipolaridade, maiores serão as pressões.

Em outra vertente, o Brasil não tem problemas de relacionamento com seu entorno. A perigosa rivalidade com a Argentina terminou com a pragmática iniciativa da diplomacia brasileira nos anos 1980 e 1990, que possibilitou ações de integração como o Mercosul. É essencial para o Brasil ter uma presença forte e dinâmica na América do Sul, tanto para garantir nossa segurança estratégica e econômica, quanto para termos um peso específico mais adequado no cenário internacional. É imperativo, no entanto, que a política externa do Brasil não ceda às tentações de caráter populista e ideológico.

Os Jogos das Potências

Busca-se aqui analisar a evolução recente do macro sistema internacional, adotando essencialmente a visão realista das Relações Internacionais. Tomou-se como referência o período que vai do final de 2021 até o primeiro trimestre de 2023, repleto de acontecimentos que indicam profundas transformações no cenário internacional. Destacam-se a crescente afirmação econômica, tecnológica e estratégica da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse período foi estudado buscando organizar os fatos de forma a torná-los mais inteligíveis e fazer que uma realidade cambiante nos pareça mais clara. O foco são as iniciativas, ações e reações, principalmente das grandes potências, que têm capacidade de projetar seu poder internacionalmente, contribuindo para modificar a configuração mundial de poder. As mudanças, que já vinham ocorrendo, foram aprofundadas na época em exame e tendem a ser duradouras, conformando um cenário internacional com duas superpotências em quadro de hostilidade, buscando formar e consolidar suas alianças. 

As potências médias e regionais, com capacidade de projeção de poder limitada no espaço de sua área de influência regional, já sofrem pressão para se alinharem aos estados líderes no cenário geopolítico em formação. A invasão da Ucrânia pela Rússia e o crescimento da China são aspectos decisivos na conformação de uma estrutura de poder de caráter essencialmente bipolar, com dois centros principais, duas superpotências, os Estados Unidos e a China, mitigada pela presença de grandes potências e potências médias ou regionais. As grandes potências são o Reino Unido, a França e a Rússia, todas integrantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, detentoras de arsenal nuclear e de poder de veto na ONU. Potências médias ou regionais são a Índia, a Indonésia, o Irã, o Egito e o Brasil, capazes de exercer seu poder regionalmente, no seu entorno. 

Dois países merecem atenção especial, a Alemanha e o Japão. Ambos foram derrotados na Segunda Guerra Mundial e tiveram fortes restrições em termos de suas forças armadas e seus armamentos, que passaram a ter caráter limitado, apenas defensivo. No entanto, as recentes tendências do teatro internacional, como o crescimento econômico, tecnológico e bélico da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, têm levado tanto a Alemanha quanto o Japão a se rearmarem. Contam com o apoio firme da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos. Tendo em vista a dimensão de suas economias e seu avanço tecnológico, esses dois países podem rapidamente passar a ter o status de grandes potências. Como pano de fundo desse rearmamento alemão e japonês, temos a estratégia da OTAN e dos americanos de contenção da Rússia na Europa, e da China na Ásia, onde teriam papel importante. No que diz respeito ao Japão, o país tem ainda a função de contrabalançar o poderio chinês no caso de uma tentativa de retomada de Taiwan, bem como a capacidade de se contrapor às ameaças da Coreia do Norte. 

A Índia, que ultrapassou a população chinesa e está em crescimento econômico e tecnológico acelerado, tem laços fortes com potências ocidentais como os Estados Unidos e o Reino Unido e é importante importadora de armas da Rússia. Embora tenha relações comerciais de vulto com a China, permanecem sem solução os conflitos de fronteira sino-indianos. A Índia tem tentado adotar uma posição de equilíbrio na reorganização de forças que se desenha no cenário internacional. Procura manter as relações comerciais com a China, continuar tendo a Rússia como fornecedor de petróleo e armas, ao mesmo tempo em que participa do QUAD, foro informal de coordenação de defesa de que fazem parte, além da Índia, o Japão, os Estados Unidos e a Austrália. Essa coordenação quadrilateral, que foi criada por iniciativa do Japão em 2007 para contrabalançar a crescente presença e influência chinesa, e foi revigorada em 2017 pelos americanos, realiza exercícios militares conjuntos regularmente.

A proximidade sino-russa foi intensa durante a Guerra Fria e agora tem ajudado a Rússia a aliviar os efeitos das sanções impostas pelas potências ocidentais por causa da invasão da Ucrânia. Essa aliança da China e da Rússia cristaliza um poderoso bloco em contraposição aos Estados Unidos e à Aliança Atlântica.

Outra vertente importante na definição de uma nova configuração internacional tem sido o deslocamento do eixo econômico para a Ásia, região com crescente protagonismo tecnológico, industrial  e comercial, em detrimento dos EUA e da Europa, que têm perdido paulatinamente sua antiga hegemonia. Esse deslocamento já influencia as cadeias mundiais de produção e de suprimento e a economia brasileira terá, necessariamente, de se adaptar à nova realidade. 

De outra parte, é interessante notar a utilização pioneira e intensa de novos meios de combate na guerra russo-ucraniana, com o uso intensivo de drones e da cibernética, ao lado de meios convencionais como os blindados. Esses novos meios de combate, testados nos campos de batalha da Ucrânia, devem alterar profundamente as futuras guerras, junto com o uso de inteligência artificial e a nanotecnologia. 

Do ponto de vista macro-estratégico, registre-se a revigoração da OTAN. A Aliança Atlântica, que se encontrava dividida e em estado próximo à letargia durante o anterior governo norte-americano, que a criticava constantemente, tornou-se mais coesa devido à ameaça russa e está tornando efetiva a antiga recomendação de que seus membros devem alocar 2% do PIB para defesa. Ademais, dois países europeus lindeiros com a Rússia, a Finlândia e a Suécia, solicitaram participar da OTAN, abrindo mão de posição de neutralidade longamente estabelecida. A Finlândia já está integrada na Aliança e a Suécia realiza os trâmites necessários. Embora aumentem a capacidade estratégico-militar da OTAN, esse alargamento de participantes na Aliança Atlântica contribui para a sensação de cerco da Rússia. É importante recordar que a possível entrada da Ucrânia na OTAN foi uma das causas alegadas pelo governo russo para a invasão.

Outra vertente que merece ser considerada é a crescente afirmação do  grupo BRICS no cenário internacional. Espaço informal de concertação política e econômica, o BRICS compõe-se do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, ou seja, integram-no dois membros permanentes e com poder de veto do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A China tem utilizado sua presença no BRICS para aumentar seus contatos e sua influência em relação a países de menor desenvolvimento e tem advogado o aumento de sua composição. Esse objetivo, que foi alcançado na Cúpula de 2023 com o processo de aceitação da Argentina, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, do Egito e do Irã, aumenta a dimensão geográfica do BRICS, o que deve levar o fórum, no entanto, a uma diluição e dispersão de seu peso diplomático. A grande beneficiada pelo alargamento do número de membros é sem dúvida a China, que aperfeiçoa sua busca de aproximação com países do terceiro mundo, ao passo que o Brasil perde protagonismo. 

Deve-se observar que, se realmente houver uma bipolaridade essencial e rígida, os países em desenvolvimento, principalmente as potências médias regionais, se confrontarão com escolhas estratégicas difíceis, em cenário de fundamental bipolaridade entre os principais centros de poder, como foram os EUA e a União Soviética no pós Segunda Guerra Mundial, e possivelmente no futuro previsível como deverão ser os Estados Unidos e a China. Nesse quadro, os núcleos de poder exercerão intensa pressão para obterem alinhamentos e  lealdades. O Brasil já tem sido pressionado, mas tem resistido pragmaticamente. Além de ter a China como seu principal parceiro comercial, há uma grande dependência do fornecimento de fertilizantes da Rússia. Ademais, temos uma vocação universalista em termos de política externa, com relações diplomáticas com praticamente todas as nações, além de ter relações comerciais amplas e diversificadas. No que diz respeito à campanha da diplomacia brasileira por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, e nossa participação no Conselho de Segurança, deve-se registrar que existe a possibilidade dessa reforma e da nossa acessão. No entanto, seria provavelmente uma participação sem poder de veto, pois não é crível que os atuais membros abram mão de sua prerrogativa de recusar resoluções que considerem prejudiciais a seus interesses estratégicos. Ademais, apesar de sua pujança agrícola e mineral, o Brasil não tem capacidade bélica que justifique sua presença em um órgão que se responsabiliza pela paz e segurança internacionais, segundo a Carta da ONU.

Focos de Tensão – Coreia do Norte

Assim como a situação de Taiwan e do Irã, já abordadas em textos anteriores, a análise da Coreia do Norte como foco de tensão no cenário internacional deve fundamentar-se em aspectos históricos.

A península coreana, conquistada pelo Império Japonês em 1910, foi dividida em zonas de ocupação pela União Soviética e pelos Estados Unidos com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 1945. Essas zonas de ocupação foram delimitadas pelo paralelo 38, ao norte pela URSS e ao sul pelos EUA.

Em 1948, formaram-se dois governos antagônicos, a República Democrática Popular da Coreia, a chamada Coreia do Norte, comunista, e a República da Coreia, democrática, no sul. Recorde-se que estávamos em plena Guerra Fria, com a divisão do mundo em dois campos opostos, o ocidental liderado pelos Estados Unidos, e o campo oriental, encabeçado pela União Soviética.

Em 1950, a Coreia do Norte invadiu o sul com apoio soviético, e seguiu-se guerra que durou até 1953. É interessante notar que, embora tenha havido um armistício, nunca se assinou um tratado de paz, o que significa que os dois países continuam tecnicamente em estado de guerra, separados pela zona desmilitarizada do paralelo 38.

Após o colapso da União Soviética no começo da década de 1990, a Coreia do Norte, que contava até então com firme apoio soviético, passou por profunda crise, principalmente na produção de alimentos. Sem a assistência da URSS, a Coreia do Norte passou a buscar cada vez maior aproximação com a China, ao mesmo tempo em que reforçava suas forças armadas e sua capacidade nuclear, que existe desde a década de 1980. Regime comunista, totalitário, o governo da Coreia do Norte tem sua origem nas forças armadas, que constituem sua estrutura principal, a que se soma o culto da família de seu fundador Kim-il Sung, cuja liderança firmou-se na luta contra os japoneses. À ideologia marxista Kim-il Sung acrescentou suas próprias ideias de autossuficiência nacional, transformando a Coreia do Norte em país extremamente fechado. As forças armadas coreanas do norte são extremamente poderosas e formam a espinha dorsal do estado.

Essa posição das forças armadas norte coreanas deriva da doutrina chamada Sogun, elaborada por Kim il Sung, que desde seu período de guerrilheiro contra os invasores do Império japonês, dava primazia aos militares como elemento essencial para a independência do país. Assim, as forças armadas têm prioridade na alocação de recursos econômicos e estão interligadas com a economia, que é estatizada. Ademais, as forças militares têm importante papel na legitimação do regime, ao lado do culto da família Kim. Ambos os aspectos são objeto de propaganda maciça. É interessante notar que a doutrina Sogun de supremacia militar chega mesmo a substituir o proletariado da ideologia marxista pela função dos militares na construção do socialismo.

A concentração de recursos econômicos na área de defesa explica porque a Coreia do Norte, país pobre e ameaçado pela fome, além de ter um dos maiores exércitos convencionais do mundo, com mais de um milhão de homens em armas, consegue desenvolver mísseis balísticos sofisticados. A Coreia do Norte mantém um grau de tensão elevado com a Coreia do Sul e as potências ocidentais, com testes de armamentos e retórica agressiva que ajudam na coesão da população. Usam-se constantemente a ideia do inimigo externo e a sensação de cerco para a mobilização dos norte-coreanos, a quem o governo permite pouquíssimo acesso ao mundo exterior. Desde a derrocada da União Soviética, a Coreia do Norte tem incrementado suas relações comerciais com a China, seu principal aliado, e mesmo com a Coreia do Sul, o que a tem ajudado a sobreviver às sanções.

O poderio militar da Coreia do Norte, junto com seu regime político específico, com concentração de poder no líder Kim Jong Un e no estamento militar, torna o país um foco de tensão de grande imprevisibilidade. Sistema monolítico, o regime pode, a qualquer momento em que se sentir ameaçado, reagir com o lançamento de mísseis, que podem ter capacidade nuclear. Dos focos de tensão que temos abordado (o Irã e Taiwan), a Coreia do Norte é o que representa maior risco de uma ação impulsiva.

Devemos registrar, no entanto, que a liderança da China pode exercer um poder moderador sobre o governo norte-coreano. E que se disporia a fazê-lo, pois não se interessa por uma situação de instabilidade no momento em que busca firmar-se no cenário internacional como superpotência responsável e de projeção diplomática global. Xi Jinping, que alcançou seu terceiro mandato como líder chines e acaba de mediar o reatamento de relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irã, e apresentou proposta inicial de acordo entre a Rússia e a Ucrânia, veria com bons olhos um papel de contenção de ímpetos belicistas norte-coreanos, que ameaçassem a paz e a segurança globais.

Focos de tensão – Taiwan

A compreensão da situação de Taiwan como um dos mais importantes focos de tensão no atual cenário internacional, em que a invasão russa na Ucrânia completa um ano deve ter como base as suas origens históricas.

A Revolução Comunista chinesa, que tem como data símbolo 1949, culminou com a consolidação do poder do Partido Comunista da China sobre todo o território continental e com a fuga de seus oponentes para a ilha de Formosa, atual Taiwan, onde as forças derrotadas estabeleceram uma República.  Nesse período, a Guerra Fria estava em pleno curso e a República em Formosa passou a contar com o apoio dos Estados Unidos da América e do campo ocidental. Deve-se observar que a China Comunista nunca reconheceu Formosa como estado independente e a considera como uma província rebelde, parte inalienável da China continental. A República da China (Taiwan) representou o país na ONU até 1971 e fazia parte como membro Permanente, com poder de veto, do Conselho de Segurança (CSNU), pois foi um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. A partir de 1971, a China Comunista passou a ter a representação plena, com a desistência dos Estados Unidos de se opor ao país comunista como um dos membros do Conselho.

A política de uma só China, que vigora desde então, fez que Taiwan passasse a ter uma atuação internacional limitada pela falta de reconhecimento externo. A ilha, contudo, tem tido relações comerciais intensas com inúmeros países, e desenvolveu-se como um polo de tecnologia avançada, destacando-se na produção de semicondutores. O Brasil, por exemplo, tem importantes relações comerciais com Formosa, embora não se relacione diplomaticamente com Taiwan desde que reconheceu a China comunista em 1974. Os dois países mantêm escritórios comerciais e culturais, e a pauta de exportações brasileira é essencialmente de produtos de base como soja, minério de ferro, café, ao passo que importamos produtos  industrializados, principalmente eletrônicos de alta tecnologia.

Tendo em vista que a China nunca aceitou a existência de Taiwan como um estado autônomo, e sempre considerou que a ilha deverá ser incorporada a seu território continental como província, os Estados Unidos, desde os primórdios da Guerra Fria, veem Taiwan como um bastião anticomunista. Os americanos têm a visão de Formosa como um posto avançado na defesa do Ocidente e adotam uma política intensa de fornecimento de armas para aquela República. É interessante observar que, conquanto venham armando Taiwan, os EUA na verdade não se têm comprometido a defendê-la diretamente – ou seja, mobilizando suas próprias tropas – no caso de uma tentativa chinesa de ocupação.

Trata-se de política denominada “ambiguidade estratégica”, significando o envio de armamentos, sem envolvimento direto.

A firme caminhada da China no rumo de se firmar como superpotência econômica, industrial, comercial e tecnológica, e sua política de modernização militar tem causado crescente preocupação nos Estados Unidos, que sentem a hegemonia de que desfrutam desde a derrocada da União Soviética no início da década de 1990 ameaçada por um novo contendor que, rapidamente, parece equiparar-se a seu porte de superpotência. Ademais, a renovação do mandato do atual líder chines no Vigésimo Congresso do Partido Comunista de 2022, quando se reafirmou a possibilidade de ocupação de Taiwan por meios pacíficos (“se possível”), tem causado preocupação entre os norte-americanos.

Ainda em 2022, delegações do Congresso dos EUA realizaram visitas oficiais a Formosa, que foram objeto de protestos pelo governo de Pequim. Em reação às visitas, a China imediatamente realizou exercícios militares no entorno da ilha. Os chineses consideraram essas visitas como provocação, mas não foram além dos exercícios militares. Também em 2022, o Presidente dos Estados Unidos chegou a declarar para a imprensa que seu país poderia pegar em armas para defender o “status quo” de Formosa, mas suas declarações foram prontamente qualificadas e amenizadas pela diplomacia americana, e houve posteriormente o anúncio de reforço no fornecimento de armas para Taiwan, no âmbito da chamada ambiguidade estratégica.

A China, que tenta recuperar-se de períodos de baixo crescimento econômico por causa de sua diretriz de covid zero, problemas no mercado imobiliário, e de baixo crescimento populacional, com envelhecimento de sua população, mantém a perspectiva de continuar sua rota de afirmação no cenário estratégico mundial. Seu atual interesse preponderante é uma situação de estabilidade internacional que lhe permita seguir essa trajetória. A posição chinesa em relação ao conflito russo-ucraniano tem buscado um equilíbrio pragmático, com o menor envolvimento possível, ainda que já tenha manifestado desagrado com a invasão.

A apresentação do recente plano de paz chines relativo à guerra na Ucrânia, conflito que claramente está em um impasse, mostra a preocupação chinesa com a estabilidade do sistema internacional. A China é um ator internacional que, pelo seu peso estratégico atual, e pela proximidade com a Rússia, aliada tradicional desde a Guerra Fria, e a quem tem ajudado a contornar as sanções ocidentais, parece ser um dos únicos países capazes de mediar uma iniciativa de paz.

Em síntese, no que diz respeito a Taiwan, a China não deverá tomar a iniciativa de uma invasão no futuro previsível, pois prefere consolidar-se em ambiente de estabilidade e só recuperar sua chamada província rebelde quando as condições lhe forem inteiramente favoráveis.