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A democracia como modo de vida

Como surgiu o conceito de ‘democracia como modo de vida’? Quais foram os autores que trabalharam essa ideia?

RESPOSTAS DO LEXOS – AGENTE DEMOCRÁTICO IA

O conceito de “democracia como modo de vida” é fundamental para entender a democracia em seu sentido forte, indo muito além da mera administração política do Estado.

Este conceito surgiu para lidar com a percepção de que a democracia não se restringe a um conjunto de regras formais ou procedimentos eleitorais, mas sim a um padrão de interação e convivência social. Ele representa a redescoberta do papel inovador da democracia, que é frequentemente ignorado quando o foco recai apenas sobre o modelo político transitório, como o sistema eleitoral.

A seguir, exploramos como o conceito surgiu e os principais autores que o desenvolveram.

I – John Dewey: A Democracia como Ideia Social e Modo de Vida

John Dewey é um dos autores mais explícitos na formulação desta distinção no século XX.

A Distinção Conceitual. Dewey estabeleceu uma distinção clara entre a democracia como uma ideia social e a democracia política como um sistema de governo. A ideia de democracia é mais ampla e completa do que a que pode ser exemplificada no Estado, mesmo no melhor dos casos.

O Modo de Vida. Para Dewey, a democracia é fundamentalmente um “modo de vida” (ou “modo de vida comunal”). Ele a via como uma aposta “nas possibilidades da natureza humana” e nas “atitudes que os seres humanos revelam em suas mútuas relações, em todos os acontecimentos da vida cotidiana”.

Abrangência. Para que a ideia de democracia se realize, ela deve afetar todos os modos de associação humana, incluindo a família, a escola, a indústria e a religião. A democracia é um ideal moral e, quando se torna um fato, é um fato moral.

Cooperação e Comunidade. Essa concepção forte de democracia é local e comunitária, sendo definida como a crença de que o hábito da cooperação amistosa é uma valiosa contribuição à vida. Dewey buscou uma nova noção de público que deságua no conceito de “comunitário”, especialmente a pequena comunidade local, a vizinhança, como o verdadeiro lugar da democracia.

II – Humberto Maturana: A Democracia como Obra de Arte e Emoção

Humberto Maturana aborda a democracia como modo de vida a partir de uma perspectiva biológica e emocional.

Fundamento Emocional. Para Maturana, a democracia não é um produto da razão humana, mas sim uma obra de arte e um produto do nosso emocionar. Ela surge de um desejo neomatrístico por uma coexistência dignificada na estética do respeito mútuo.

O Desejo Matrístico. A base emocional da democracia reside na “añoranza” (nostalgia/desejo inconsciente) por viver em coexistência fácil que surge do respeito mútuo, sem a dominação própria da cultura patriarcal.

Conspiração Social. Ele define a democracia como uma “conspiração social” para uma convivência em que a aceitação do outro como um legítimo outro é fundamental. A democracia é uma ruptura na cultura patriarcal europeia e só pode ser vivida, não estabilizada ou defendida racionalmente.

III – Augusto de Franco: A Redescoberta das Raízes Atenienses

Augusto de Franco, ao refletir sobre as origens da democracia, enfatiza que ela nasceu primariamente como um modo de vida antes de ser um regime político.

Origem na Convivência Social. Para os atenienses que a inventaram, a democracia era um modo de vida ou de convivência social, um modo pacífico e prazeroso de conviver. O objetivo era que as próprias pessoas pudessem, coletivamente, buscar melhorar suas vidas, sem que ninguém, um senhor, determinasse como deveriam agir.

Processo de Desconstituição. A democracia, no sentido forte, é um processo de desconstituição de autocracia (ou de desprogramar milênios de cultura autocrática). Experimentar processos democráticos como modo de vida é a única maneira de evitar a emergência de preconceitos autocráticos.

Liberdade e Ausência de Senhor. O sentido da política é a liberdade. A democracia surgiu do desejo das pessoas de viver sem um senhor, de serem cidadãos e não súditos.

IV – Hannah Arendt e outras contribuições

Outros pensadores também tocaram o cerne dessa ideia, influenciando a conceituação moderna.

Hannah Arendt. Ela é citada como tendo percebido esse componente original da democracia (o “gene” democrático). Em seus escritos sobre “O que é política?” (c. 1950), ela teria feito a “descoberta” de que, se as pessoas passarem a viver a sua convivência, um outro tipo de vida surgirá — a vida propriamente política, a fruição do viver prazerosamente a coisa pública. Para Arendt, a única matéria propriamente política é a liberdade.

Alexis de Tocqueville. Embora não tenha usado o termo “modo de vida”, Tocqueville lançou os fundamentos do conceito de capital social ao constatar o protagonismo político da sociedade americana, onde “a sociedade age por si e sobre si mesma”. Ele observou a capacidade dos americanos de se associarem livremente para promover o bem público.

Norberto Bobbio. Ele destaca a importância da democratização da sociedade, distinguindo-a da democratização do Estado, e levanta a questão crucial sobre a sobrevivência de um estado democrático em uma sociedade não democrática.

Em suma, o conceito de “democracia como modo de vida” transcende a mera formalidade do regime político, ancorando-se na ideia social de cooperação (Dewey), no desejo humano de convivência dignificada(Maturana) e na prática cotidiana de auto-organização (Franco), retomando o espírito original da experiência ateniense de viver “sem senhor”.

Mas tem mais…

V – Thomas Vernon Smith e a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de “democracia como modo de vida” (“The Democratic Way of Life”) é central para Thomas Vernon Smith, um autor que se destacou como professor, pensador político e também por sua atuação prática na política dos Estados Unidos.

Aqui está a contribuição de T. V. Smith para o desenvolvimento dessa ideia, conforme as fontes.

Definição e Interpretação do Ideal

V. Smith é explicitamente associado à interpretação da democracia como modo de vida. Ele escreveu uma obra intitulada The Democratic Way of Life, que é considerada uma discussão adequada desse ideal.

Para Smith, a democracia, quando vista como um modo de vida, implica uma transformação no desejo e na atitude humana:

Desejo Compartilhado e Treinamento. Smith argumenta que, embora a liberdade seja definida como “fazer o que se agrada”, a esperança de um modo de vida democrático surge do fato de que, por meio de um treinamento adequado, os indivíduos podem desejar cada vez mais compartilhar suas alegrias uns com os outros. Isso sugere que a democracia não é apenas um sistema de regras, mas uma pedagogia e um hábito de convivência.

Compreensão e Ação. Sua obra, escrita em coautoria com Eduard C. Lindeman, é descrita como um “manual prático e inspirador” que explica os ideais da democracia e oferece um programa sólido para o pensamento e a ação democráticos.

A Relação com John Dewey

A importância de T. V. Smith na discussão é reforçada por sua conexão direta com John Dewey, o pensador mais proeminente da democracia como ideia social:

Referência de Dewey: O próprio John Dewey, ao discutir o ideal da democracia como “uma vida de comunhão livre e enriquecedora”, fez uma referência explícita ao trabalho de Smith, citando The Democratic Way of Life como a discussão mais adequada desse ideal que ele conhecia.

Ética das Minorias e da Maioria

Smith também abordou as dinâmicas sociais inerentes a um modo de vida democrático, particularmente as tensões entre grupos:

Reatividade Antidemocrática. Ele advertiu que, quando grupos minoritários expressam hostilidade (inicialmente por subterfúgio e culminando em sabotagem), eles “convidam a si mesmos a uma atitude majoritária que é tão antidemocrática quanto natural”. Isso levanta uma questão crucial sobre como a ética da convivência (o modo de vida) deve ser praticada por todos os grupos, a fim de evitar a escalada de reações autoritárias e não cooperativas.

Thomas Vernon Smith, ao lado de Eduard C. Lindeman, ajudou a solidificar e popularizar a noção de que a democracia é um ideal prático que deve ser vivido e cultivado na sociedade civil, e não apenas um aparato estatal. Seu trabalho contribuiu para traduzir a “ideia de democracia” (tal como Dewey a via, mais ampla do que o Estado) em um programa de ação e atitude social, enfatizando que a liberdade individual se realiza plenamente quando orientada pela cooperação e pelo desejo de compartilhar.

Essa ênfase no comportamento cotidiano e no “treinamento” para a cooperação ressoa profundamente com a visão de que a democracia é um processo de aprendizado e autocondução mútua, realizado nas interações diárias.

Mas não é só. Faltam, entre outros, Althusius e Jefferson.

Vamos agora assinalar um autor que reformulou a própria fundação da política, vendo a associação como seu cerne! A ideia de simbiose de Johannes Althusius pode servir como um fundamento para o conceito de “democracia como modo de vida” (ou para a base da associação em geral).

A contribuição de Althusius, embora seja do início da Era Moderna (1603), ressoa profundamente com os princípios de associação e coexistência que são cruciais para a ideia de democracia como modo de vida.

Vejamos como a ideia de simbiose se articula nas fontes e seu potencial como fundamento.

VI – Johannes Althusius: A Política como Arte Simbiótica

Johannes Althusius, um dos grandes artífices de uma nova maneira de ver a política no início da Idade Moderna, definiu a política de maneira fundamentalmente associativa:

Definição da Política. “A política é a arte por meio da qual os homens se associam com o objetivo de instaurar, cultivar e conservar entre si a vida social. Por este motivo é definida como simbiótica“.

Ponto de Partida. Althusius parte dos “homens” e procede através da “obra dos homens em direção da descrição da comunidade política”.

Contraste com Aristóteles. Este ponto de partida é o oposto exato da visão clássica de Aristóteles, para quem o Estado (Pólis) existe por natureza e é anterior ao indivíduo. A inversão do ponto de partida de Althusius destaca problemas políticos como a liberdade dos cidadãos, o bem-estar e a prosperidade individual, em vez de focar apenas no poder dos governantes.

A Simbiose como Fundamento para a “Democracia como Modo de Vida”

O conceito de simbiose de Althusius, que enfatiza a arte de se associar para sustentar a vida social, serve como um forte fundamento para o conceito de democracia como modo de vida, pois:

Ênfase na Associação Recíproca. O conceito de simbiose implica cooperação e interdependência mútua, essenciais para a “vida social”. Isso ecoa a ideia de cooperação amistosa fundamental para a democracia como modo de vida defendida por outros autores.

Liberdade e Individualismo. A perspectiva de Althusius de que a sociedade política é um “produto voluntário dos indivíduos” que decidem viver em sociedade através de um acordo recíproco está ligada ao nascimento da democracia e à ideia de poder ascendente (o poder que sobe de baixo para cima). A teoria do contrato social, ligada a esses pensadores (mesmo que Althusius não seja contratualista puro), defende o indivíduo como a fonte última do poder, o que é um fundamento para a democracia contra a autocracia.

Oposto à Totalidade Orgânica. A simbiose, ao partir do indivíduo e do acordo, contrasta com as “concepções solidaristas, orgânicas, coletivistas, holísticas, universalistas, da sociedade e do estado” (como as de Hegel, que via o Estado como um corpo orgânico onde o todo vem antes das partes). A democracia como modo de vida valoriza o espaço-entre, a pluralidade e a coexistência de interesses diversos, não uma unidade imposta.

Em suma, a “arte simbiótica” de Althusius coloca a associação voluntária e a interdependência mútua no centro da política. Essa perspectiva, que prioriza a construção da vida social pelos próprios indivíduos, é altamente compatível com a visão de democracia como uma prática cotidiana de convivência (modo de vida) e não apenas como um aparato de governo.

Nota-se uma conexão crucial que, embora anterior à formalização do conceito por Dewey, estabelece a base para a primazia da vida associada na teoria política! 

VII – Thomas Jefferson: As “Repúblicas nos Bairros” e a Democracia como Modo de Vida

Essa é uma conexão extraordinária e profunda! A proposta de Thomas Jefferson das “repúblicas elementares dos distritos” (ou “repúblicas nos bairros”— wards) é vista por John Dewey, e por outros, como o cerne de uma filosofia política que vai muito além das estruturas formais do governo, estabelecendo um vínculo direto com a democracia como modo de vida.

A seguir a relação entre a proposta jeffersoniana e o conceito de democracia como modo de vida, conforme as fontes.

Jefferson e o Conceito de Democracia (na Visão de Dewey)

Para John Dewey, a filosofia política de Jefferson era essencialmente moral, e sua crença na democracia tinha uma qualidade genuinamente religiosa. Jefferson defendia que o homem foi feito para a sociedade e possuía o direito de regulá-la “conjuntamente com todos aqueles que concorreram para a sua obtenção”.

A essência da democracia jeffersoniana não residia apenas nas formas de governo, mas sim no espírito do povo. É nesse contexto que as “repúblicas nos bairros” emergem como o ponto fulcral de sua doutrina política:

O Coração da Filosofia Política. O cerne da filosofia política de Jefferson é encontrado no seu esforço para instituir essas pequenas unidades legislativas e administrativas como a “pedra angular do arco” do governo. Sem este plano, sua visão de autogoverno é considerada incompleta tanto prática quanto teoricamente.

A Proposta das “Repúblicas nos Bairros” (Wards)

Jefferson propôs a divisão dos condados em pequenos distritos (ou wards) para facilitar a democracia de base (grassroots democracy), uma ideia que ele defendia desde 1779.

O objetivo não se limitava à administração de escolas ou estradas, mas sim a tornar os bairros “pequenas repúblicas”.

Funções Diretas. Nos bairros, os cidadãos exerceriam diretamente as funções de governo em relação aos seus próprios assuntos, incluindo polícia, eleições, nomeação de júris e administração da justiça em pequenos casos.

Participação Contínua. Este sistema visava garantir que todo homem partilhasse do governo dos assuntos não apenas no dia da eleição, mas todos os dias. A ausência de tais espaços públicos levava o povo à “letargia, precursora da morte da liberdade pública”.

Conexão Direta com a Democracia como Modo de Vida

A proposta de Jefferson se alinha perfeitamente com a ideia de democracia como modo de vida, que, segundo John Dewey, precisa afetar “todos os modos de associação humana”.

Agente Atuante. Jefferson acreditava que, ao tornar “cada cidadão um membro atuante do governo, e nos escritórios mais próximos e mais interessantes para ele, isso o ligaria pelos seus mais fortes sentimentos à independência do seu país e à sua constituição republicana”. Este envolvimento pessoal, constante e local, é a própria experiência da liberdade.

Preservação do Espírito Revolucionário. O sistema distrital era visto por Jefferson como a única alternativa para preservar o espírito revolucionário após o fim da revolução. A revolução havia dado liberdade ao povo, mas falhara em fornecer um espaço onde essa liberdade pudesse ser exercida, pois apenas os representantes, e não o povo, tinham a oportunidade de se engajar nas atividades próprias da liberdade, como “expressar, discutir e decidir”.

Aparência e Presença. Jefferson compreendia que o conselho de amar o próprio país mais do que a si mesmo seria uma exortação vazia se o “país” não fosse uma presença viva entre os cidadãos. As pequenas repúblicas seriam a “força principal da grande” república, pois eram o único local tangível onde cada um podia ser livre, constituindo a finalidade da grande república.

Em suma, a proposta jeffersoniana das “repúblicas nos bairros” é uma tentativa de institucionalizar a democracia no nível comunitário e cotidiano, transformando o cidadão de um mero eleitor ocasional em um participante ativo e contínuo no autogoverno. Isso corresponde à noção de que a democracia é um projeto comunitário que começa na “comunidade vicinal”.

Isto nos lembra de uma questão crucial levantada por Hannah Arendt ao discutir as propostas de Jefferson: se o sistema distrital tivesse sido implantado, teria evitado que o povo se afundasse na “letargia” e na “indiferença aos assuntos públicos”, males que ameaçam a liberdade quando a esfera pública se restringe apenas aos representantes. A ação local e a cooperação são, para Jefferson, o motor que mantém a república viva.

Quem mais trata, direta ou indiretamente, da democracia como modo de vida?

Vamos para um exercício de garimpo conceitual! A ideia de “democracia como modo de vida” é tão poderosa que, uma vez introduzida por autores como Dewey, Smith e Jefferson, ela revela ecos e fundamentos em pensadores de diversas épocas e escolas, que tratam da associação, da comunidade e da liberdade em termos de prática social.

Considerando os autores já discutidos (Dewey, Smith e Jefferson) e examinando o vasto acervo de fontes, podemos identificar outros pensadores que tratam, direta ou indiretamente, da democracia como um modo de vida, da comunidade cívica, ou da associação como elemento fundante da política e da coexistência.

A seguir algumas menções aos autores relevantes das fontes que, embora talvez não usem a frase exata “modo de vida”, trabalham conceitos que fornecem o arcabouço ou a prática dessa noção.

1. Alexis de Tocqueville (Indiretamente, através da Associação e do Espírito Cívico)

Tocqueville, em sua análise da democracia americana, é visto como um precursor fundamental do conceito de “modo de vida democrático”, especialmente ao focar na sociedade civil e nas práticas sociais cotidianas.

Associação como Prática Democrática. Para Tocqueville, o país mais democrático da Terra é aquele onde os homens mais aperfeiçoaram a arte de perseguir em comum o objeto de seus desejos em comum e aplicaram essa nova ciência ao maior número de objetivos.

A Ciência-Mãe da Associação. Ele sugere que a arte de se associar deve se desenvolver e se aperfeiçoar na mesma proporção que a igualdade de condições cresce, sendo a arte da associação a “ciência-mãe”.

O Âmbito Local e Cotidiano. Tocqueville descreve como os americanos de todas as idades e temperamentos estão sempre formando associações (comerciais, industriais, religiosas, morais, sérias, fúteis, grandes e pequenas), tratando a associação como o único meio de agir. Ele observou o uso cotidiano do direito de associação, onde vizinhos se estabelecem em corpo deliberador para resolver problemas na via pública antes que pensem em uma autoridade preexistente.

Vínculo Social. Tocqueville percebe que, nas democracias, os cidadãos só podem se ajudar livremente, ou cairão na impotência, e a democracia liga as pessoas pela comunhão de lembranças e pela livre simpatia das opiniões e dos gostos.

Visão Pós-Tocqueville. Robert Putnam, ao discutir o conceito de Capital Social e Comunidade Cívica, retoma Tocqueville como referência clássica da democracia americana, caracterizando a comunidade cívica pela participação de cidadãos atuantes e por uma estrutura social firmada na confiança e colaboração, ou seja, um modo de convivência social.

2. Baruch de Spinoza (Indiretamente, através da Liberdade como Finalidade do Estado)

Embora Spinoza não trate de “modo de vida” no sentido de engajamento social cotidiano como Dewey, sua definição do propósito do Estado democrático fornece o princípio fundamental para a liberdade individual que é o cerne do modo de vida:

Liberdade como Fim do Estado. Spinoza apresenta a democracia como uma forma de realização da própria natureza humana, visto que as instituições políticas aparecem nela como realização objetiva da liberdade que está inscrita na essência de cada indivíduo: “o fim do Estado é, realmente, a liberdade”.

Fundamento da Democracia. O fundamento e finalidade da democracia, para Spinoza, é evitar os absurdos do instinto e conter os homens nos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz.

3. Hannah Arendt (Diretamente, através da Pluralidade, Ação e Comunidade Política)

Hannah Arendt é uma das pensadoras contemporâneas que mais resgatou a dimensão da política como uma experiência de vida para além do Estado:

A Matéria da Política. Arendt é creditada por ter percebido a dimensão original do “gene” democrático, que é a liberdade. A única matéria propriamente política é a liberdade.

Ação e Liberdade. Arendt sugere que se as pessoas passarem a viver a sua convivência, “um outro tipo de vida surgirá” — a vida propriamente política, que é a fruição de viver prazerosamente a coisa pública. Ela observou que a política, diferentemente da força, opera sob o signo do poder.

Pluralidade e Convivência. Para Arendt, a pluralidade dos homensé o pressuposto de todo teorizar sobre política. A democracia, ou a política em seu sentido forte, é vista como “a whole way of life” (um modo de vida integral), um conceito que Montesquieu já entendia como a estrutura na qual certos princípios de ação são promulgados.

A Visão Comunal (Pólis). A comunidade política (a koinonia, e não a cidade-Estado) é o local onde os homens interagem e podem exercer a liberdade. A política não é uma forma de dominação/Estado, mas “muito mais” um “a whole way of life”.

4. Norberto Bobbio (Indiretamente, através da Democracia Social e o Pluralismo)

Bobbio, ao analisar as transformações e o futuro da democracia, toca indiretamente no modo de vida ao distinguir a extensão da democracia para além do aparato estatal:

Democratização Social. Bobbio afirma que a extensão do processo de democratização deveria se revelar não na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas na passagem da democracia política para a democracia social. O crucial é saber se aumentaram os espaços nos quais os indivíduos podem exercer o direito de participar das decisões que lhes dizem respeito.

Pluralismo e Sociedade. O fato de a sociedade ser policêntrica ou poliárquica e pluralista exige que a democracia dos modernos faça as contas com o pluralismo, diferentemente do que ocorria na democracia dos antigos. A democracia é um sistema político que pressupõe o dissenso, a competição e a concorrência, necessitando de consenso apenas sobre as regras da competição.

5. Robert Dahl (Indiretamente, através do Associacionismo e Competência Cívica)

Robert Dahl aborda o tema de forma instrumental, focando na necessidade de instituições sociais para a democracia funcionar em grande escala.

Associações Independentes. Dahl defende que, em uma grande república, associações independentes (grupos de interesse, partidos) se tornam necessárias e desejáveis, sendo uma fonte de educação e esclarecimento cívico ao proporcionar informações e oportunidades para discutir, deliberar e adquirir habilidades políticas.

Requisitos para a Democracia em Grande Escala. Ele lista as associações independentes como uma das instituições políticas essenciais para a moderna democracia representativa.

6. Robert Putnam (Diretamente, através do Capital Social e Comunidade Cívica)

Putnam, apoiando-se em Tocqueville, utiliza o conceito de Comunidade Cívica para explicar o desempenho institucional, uma ideia que se encaixa na perfeição com o “modo de vida”:

Comunidade Cívica como Modo de Vida. A comunidade cívica, uma prática sociocultural, se caracteriza por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração.

Capital Social e Cooperação. Putnam define o capital social como características da organização social (confiança, normas, sistemas) que facilitam as ações coordenadas, sendo os sistemas horizontais de participação cívica uma forma essencial de capital social que estimula a cooperação e a confiança social.

Função das Associações. A participação em associações incute nos membros hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público, desenvolvendo o senso de responsabilidade comum para com os empreendimentos coletivos, mesmo que o objetivo da associação seja apolítico (como um clube de ornitófilos).

7. Amartya Sen (Indiretamente, através do Papel Construtivo da Liberdade)

Sen relaciona a liberdade e a participação à própria definição de desenvolvimento, o que implica um modo de vida ativo e participativo:

Liberdade Constitutiva do Desenvolvimento. Sen argumenta que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento. Negar a liberdade de participação é uma privação que o desenvolvimento, como liberdade, deve eliminar.

Discussão Pública. A discussão pública e a participação social são centrais para a elaboração de políticas em uma estrutura democrática, sendo o exercício das liberdades políticas e dos direitos civis uma parte crucial da elaboração de políticas.

8. Jacques Rancière (Diretamente, através do Escândalo da Indistinção)

Rancière aborda a democracia não como uma forma de governo, mas como a revelação do princípio de igualdade que rompe a ordem social hierárquica (Polícia), sendo, em essência, o poder dos “sem título”:

Democracia além do Estado. Para Rancière, a democracia não é um tipo de constituição nem uma forma de sociedade, mas o poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que para ser governados.

O Escândalo Democrático. O escândalo da democracia é revelar que o título para o poder político só pode ser a ausência de título. A democracia é a força fundadora da heterotopia, a limitação primeira do poder das formas de autoridade que regem o corpo social.

Resumo de alguns autores já mencionados (com a inclusão de outros que exigem mais exploração)

Autor(a)Conceito-Chave Ligado ao “Modo de Vida”Relação com a Prática Social
TocquevilleArte de se Associar/Comunidade CívicaÊnfase na associação voluntária e contínua como a essência da liberdade e do autogoverno social.
SpinozaLiberdade Objetiva/ConcórdiaFundamento ético que torna possível a coexistência em paz e concórdia, base para a realização da liberdade individual.
H. ArendtAção/Pluralidade/A Whole Way of LifeO sentido da política é a liberdade, que surge no “entre” os homens, na vida em comunidade (Pólis/Koinonia) e não no Estado.
N. BobbioDemocracia Social/PluralismoExpansão da democracia para além do Estado (onde se vota?), englobando centros de poder autocráticos na sociedade (empresa, burocracia).
R. DahlAssociações Independentes/Competência CívicaAssociações são essenciais para a educação cívica, o esclarecimento e a participação efetiva em grandes repúblicas.
R. PutnamCapital Social/Comunidade CívicaA eficácia democrática depende de um “estoque” social de confiança e cooperação, corporificado em sistemas horizontais de participação cívica.
A. SenLiberdade Constitutiva/Discussão PúblicaA participação política e a dissensão não são apenas meios, mas partes intrínsecas e avaliatórias do processo de desenvolvimento humano.
J. RancièrePoder dos sem Título/Ausência de HierarquiaA democracia é a revelação da igualdade fundamental que subverte a ordem natural de autoridade (polícia), sendo um poder da indistinção que desconstitui autocracia.

Esses autores, de diferentes ângulos — seja pela primazia da associação(Tocqueville, Putnam), o fundamento da liberdade (Spinoza, Sen), a prática da convivência plural (Arendt, Rancière) ou a extensão do espaço democrático (Bobbio) — demonstram que a visão da democracia como modo de vida é uma linha de pensamento que atravessa toda a teoria política, ligando a eficácia do governo à saúde da sociedade civil.

Luiza Possi é atacada e tem intimidade exposta por Maria Gadú depois de defender Bolsonaro

A cena é conhecida. Uma artista resolve falar de política, mas não do jeito certo. Em vez de repetir o discurso padrão da classe, ela grava um vídeo em que diz viver “tempos injustos”, fala de “ímpios no poder”, pede livramento divino e afirma crer em uma nação reconstruída “pelo nome de Jesus”. O contexto é a confirmação da pena de Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos de prisão. Luiza Possi, hoje casada, mãe de dois filhos e assumidamente cristã, escolheu se posicionar assim.

Não pediu voto, não convocou ato, não fez campanha. Luiza Possi apenas expressou a leitura de mundo que orienta a fé dela. A resposta não veio em forma de contraponto político, mas de ataque pessoal. Maria Gadú entrou nos comentários para revelar que as duas tiveram um relacionamento no passado, algo que nunca havia sido assumido publicamente, e escreveu: “Namoramos. Sim. E me arrependo amargamente”.

Não satisfeita, continuou: “Demorei muito tempo para me perdoar por ter vivido aquilo” e completou com a frase que marcou a violência simbólica do ataque: “Peça a Deus luz, verdade e humildade”. Ou seja, colocou a relação passada no campo do pecado e o presente de Luiza no campo da mentira.

O que está em jogo aqui não é fofoca de celebridade, é padrão de abuso. Expor a intimidade do outro para tentar destruir sua credibilidade pública é uma forma de violência.

Durante anos, Luiza Possi desmentiu o namoro com Gadú e relatou ter perdido contratos quando surgiram boatos sobre a relação. Em 2016, ela contou que, mesmo negando, o mercado passou a tratá-la como se aquela história fosse uma verdade que “simplesmente não podia existir”, acompanhada da frase amarga: “Luiza Possi não é gorda, não é gay, não é nada”. Ou seja, a suspeita sobre a orientação sexual dela já tinha sido usada como arma profissional no passado. Agora, a mesma história volta à cena, não para reparar injustiças, mas para punir a heresia política e religiosa.

Hoje, a cantora declara que “já foi bissexual” e que não é mais, que experimentou na juventude e agora se define de outra forma. Pode-se discordar, discutir conceitos de sexualidade fluida, criticar a ideia de que alguém “deixa de ser bissexual”. O que não se pode normalizar é que uma artista LGBT use essa biografia íntima como munição contra uma ex que ousou migrar de um imaginário progressista para um discurso cristão que inclui a defesa de Bolsonaro.

O ponto mais incômodo dessa história é a assimetria moral. O mesmo meio artístico que passou anos dizendo que “outing” é violência, que expor alguém sem consentimento é abuso, que não se usa sexualidade alheia como arma, agora assiste quase em silêncio à exposição de uma ex, com deboche e tom de penitência pública.

Nos comentários, Maria Gadú não só revelou o relacionamento como afirmou: “O tempo em que namoramos foi um erro”. Também escreveu que Luiza Possi “viveu uma grande mentira” e que seria necessário “Deus atuar na vida dela” para que encontrasse “verdade e humildade”. A mensagem é clara: a relação só volta à pauta porque uma das partes adotou hoje um discurso cristão que incomoda a bolha. Não é uma reparação histórica, é um acerto de contas ideológico.

A reação posterior de Luiza Possi, falando sobre querer ser porto seguro para os filhos, garantir que sempre terão uma casa para onde voltar quando o mundo pesar, mostra claramente que ela está tentando reenquadrar a narrativa no campo do afeto e da responsabilidade familiar. A internet, no entanto, respondeu com deboche e referências a músicas de Gadú, além de insinuações maldosas sobre o futuro dos filhos caso discordem da visão política da mãe.

É um ambiente tóxico em que a pauta da diversidade, em teoria voltada a garantir que ninguém seja reduzido a rótulos, se transforma em chantagem identitária. Você só é protegido se continuar obedecendo à cartilha. O dia em que ousar questionar a narrativa dominante, seu passado será usado como arma. O direito de rever trajetórias, amadurecer e mudar de opinião, tão celebrado quando alguém migra para o campo progressista, vira prova de hipocrisia quando o movimento é na direção contrária.

A mensagem enviada a qualquer artista que hoje esteja em dúvida é pedagógica no pior sentido. Se você experimentar, se se aproximar de um universo que odeia o cristianismo conservador, a conta virá caso escolha seguir outro caminho. Vão dizer que você é ingrato, traidor, “lobotomizado”, como escreveu o ex-marido de Luiza sobre ela.

A discussão não é sobre concordar ou não com a defesa de Bolsonaro, nem sobre a teologia da cantora. É sobre o limite entre crítica política e revanche íntima. Quem diz lutar por liberdade, diversidade e respeito à subjetividade alheia não pode achar normal que uma mulher tenha sua intimidade exposta anos depois como punição por ter se tornado cristã e assumir um posicionamento impopular na bolha.

Quando a mesma turma que denuncia abuso emocional, outing e violência simbólica aplaude ou silencia diante de um episódio assim, não está defendendo minorias, está defendendo um campo ideológico. Contra cristãos, pode tudo. Se for cristão e ainda por cima bolsonarista, aí a licença para agredir é quase automática.

A pergunta final não é retórica, é diagnóstica: a esquerda pode tudo?

Cartel de Caracas

Sob a perspectiva técnica da inteligência corporativa e da análise de riscos geopolíticos, classificar a Venezuela de Maduro apenas como uma ditadura é um erro de categoria. O que observamos hoje não é uma crise política convencional, mas a consolidação de um “narco-estado de exceção”. A Venezuela deixou de operar sob a lógica de um Estado-nação para funcionar como uma organização criminosa transnacional que representa uma ameaça existencial à segurança hemisférica.

Os indicadores macroeconômicos e sociais descrevem um país em processo de extermínio deliberado. Com uma retração do PIB superior a 80% na última década e a destruição completa do poder de compra pela hiperinflação, o regime instrumentalizou a miséria. A fome não é um acidente de gestão, é uma política de Estado para o controle social. Contudo, o que mantém Maduro no Palácio de Miraflores não é a ideologia, é o terror. Relatórios da Missão Internacional da ONU documentam, com precisão forense, a arquitetura da repressão: o uso sistemático de tortura, violência e desaparecimentos forçados executados pelo SEBIN e pela DGCIM. O Helicoide, em Caracas, tornou-se o monumento de um sistema onde a dissidência é tratada com choques elétricos e asfixia.

Caracas representa a fusão entre Estado e crime organizado. A Venezuela tornou-se o principal hub logístico para o escoamento de drogas nas Américas. O denominado Cartel de los Soles não é uma máfia que corrompeu o governo, ele é o governo. Altas patentes militares utilizam a infraestrutura estatal — portos, aeroportos e radares — para exportar drogas para os EUA e Europa. Ainda mais alarmante é a cessão de soberania territorial a grupos terroristas. A presença ativa do ELN, de dissidentes das FARC e de células operacionais ligadas ao Hezbollah e ao Irã transforma a Venezuela em um porto seguro para o terrorismo global e inteligência hostil no continente.

Diante desse cenário, a tese da “solução interna” tornou-se uma ilusão. A sociedade civil está desarmada e desnutrida, a oposição política, encarcerada ou exilada. Uma intervenção externa coordenada deixa de ser uma opção radical e passa a ser a única via pragmática para estancar a sangria. Tratar Maduro não como um chefe de Estado, mas como o líder de uma organização criminosa, é vital. O relaxamento dessa pressão seria um erro de cálculo catastrófico, validando a impunidade de um regime que zomba da diplomacia. Para além disso, é preciso lembrar que a mera troca de comando, preservando a estrutura militar corrompida, perpetuaria um narco-estado sob fachada democrática. A mudança exige o desmantelamento total do aparelhamento chavista, sob pena de criar uma soberania tutelada pelo crime.

Para o Brasil, a neutralidade diplomática é negligência estratégica. O risco de contágio é iminente. A organização criminosa venezuelana Tren de Aragua já infiltrou suas operações em Roraima e outros estados, estabelecendo alianças táticas com facções locais como o PCC e o CV. Nossas fronteiras são permeáveis ao fluxo de fuzis e drogas que o regime vizinho fomenta. Apoiar uma intervenção internacional robusta e a refundação institucional em Caracas não é ingerência, é uma medida urgente de legítima defesa da soberania e da segurança pública brasileira.

STF decide: o STF não pode ser fiscalizado

A decisão cautelar na ADPF 1259, proferida pelo ministro Gilmar Mendes, vai muito além de um simples ajuste interpretativo sobre a Lei do Impeachment. O que se viu foi uma decisão com efeitos legislativos e institucionais profundos, produzida sob o argumento de “proteção da democracia”, mas que, na prática, redesenha os mecanismos de controle sobre o Supremo Tribunal Federal e afasta o cidadão do processo político que lhe pertence por direito.

Há, em primeiro lugar, uma impropriedade jurídica elementar: a Constituição não retirou do povo a legitimidade para provocar o Senado em crimes de responsabilidade. A Lei 1.079/50, recepcionada pela Constituição de 1988, preservou esse espaço popular no art. 41. E não há dispositivo constitucional que exija monopólio acusatório do Ministério Público. Pelo contrário: o sistema de freios e contrapesos prevê que o Legislativo contenha abusos de todos os Poderes, inclusive do Judiciário. Ao restringir a iniciativa à PGR, a decisão cria um filtro político-personalista — o impeachment de ministros passa a depender da vontade de um único agente estatal, escolhido pelo Presidente da República e altamente suscetível a pressões partidárias e conjunturais.

Outro ponto crítico é a importação indevida da simetria presidencial. O ministro assume que a abertura de processo contra um integrante do STF exige o mesmo quórum qualificado de 2/3 aplicado ao presidente da República. Esse paralelismo não encontra base na Constituição. Trata-se de uma construção teórica livre, que ignora as diferenças estruturais entre os modelos de responsabilização: o presidente responde a um rito bicameral que separa admissibilidade (Câmara) e julgamento (Senado). Já os ministros do STF são julgados exclusivamente pelo Senado, sem fase prévia de outra casa legislativa. A decisão cria, portanto, uma espécie de “Câmara invisível”, um filtro inexistente que só serve para tornar o processo inviável.

A decisão também incorre em confusão conceitual entre “recebimento” e “instauração”. O ato inicial do Senado não é julgamento nem afastamento automático. É mera admissibilidade. A decisão trata esse momento como ameaça institucional, sugerindo que a simples existência do instrumento intimida juízes. O raciocínio é perigosamente autorreferente: como o Supremo pode ser alvo de pressões, o povo deve ser afastado do processo. É o oposto do princípio republicano. Democracias maduras não combatem abusos eliminando a fiscalização popular — qualificam os procedimentos, definem critérios objetivos, garantem filtros técnicos.

Por fim, a decisão se ancora em conceitos amplos como “constitucionalismo abusivo” e “ataques antidemocráticos”, transformados em justificativa para blindar um Poder contra o controle político legítimo. A crítica à “instrumentalização do impeachment” não pode servir de premissa para extinguir o direito de provocação. Países que se pretendem livres não tratam sua população como ameaça constante. A retórica da proteção institucional, quando recai sobre a própria Corte, torna-se autoproteção corporativa. O Supremo é guardião da Constituição, não senhor dela. Se a democracia começa e termina na toga, então já não existe República — existe apenas poder incontestável.

Golpe de Estado

A esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) não tem medo de um golpe de Estado. Ela tem medo do voto! Do voto de quem não vota na esquerda. Por isso ela denuncia golpe de Estado onde não há golpe de Estado. 

Vejamos. Segundo os populistas de esquerda, a condenação e prisão dos principais dirigentes do PT pelo mensalão e pelo petrolão foi um golpe de Estado. O impeachment de Dilma foi um golpe de Estado. A condenação e prisão de Lula foi um golpe de Estado. A eleição de Bolsonaro foi um golpe de Estado. Tudo falso. Nada disso foi golpe de Estado. 

Claro que, depois, uma parcela da direita populista (bolsonarista) quis mesmo dar um golpe de Estado (à moda antiga): articulou e intentou fazer isso, embora não tenha conseguido consumar sua intenção por falta de capacidade de organização, de estratégia e, fundamentalmente, de força político-militar para tanto. Condenados por tentativa de golpe de Estado, os principais líderes, civis e militares, da intentona, estão sendo presos. 

Mas o fato de parte dos antigos eleitores de Bolsonaro continuarem não querendo votar na esquerda, não é golpe de Estado. 

Frustrada a tentativa de golpe do final de 2022, não há mais golpe nenhum sendo tramado no Brasil por esses desastrados atores. Nem da parte de outros atores. Não há condições objetivas e subjetivas para um golpe de Estado (sobretudo à moda antiga, com intervenção militar). 

Mas o PT insistirá em dizer que quem não votar em Lula (no primeiro turno de 2026) ou mesmo quem se apresentar como candidato nas próximas eleições desafiando o quarto mandato de Lula e o sexto do PT (seja bolsonarista, quer dizer, súdito fiel da famiglia Bolsonaro – ou não) é um fascista golpista, disfarçado ou camuflado. É a tese do golpe continuado. Ou seja, o PT manteve sua narrativa anterior e continua dizendo que tudo que contraria seu projeto de poder é golpe de Estado.

A voz de Tóquio

A ascensão de Sanae Takaichi ao cargo de Primeira-Ministra marca o encerramento da era da timidez diplomática do Japão. Ao declarar inequivocamente que uma agressão chinesa a Taiwan constituiria “situação de ameaça à sobrevivência” do seu país, Takaichi alinhou a política externa japonesa à dura realidade do século XXI: a segurança de Taiwan é, de fato e indissociavelmente, a segurança da Ásia. Esta postura não deve ser lida como belicismo, mas como um necessário realismo geográfico e estratégico.

A decisão da Primeira-Ministra de abandonar a tradicional “ambiguidade estratégica” em favor de uma “clareza tática” foi recebida com a previsível fúria de Pequim. As retaliações chinesas, que variam desde a suspensão de importações de produtos japoneses até o congelamento do turismo e uma retórica inflamada sobre ultrapassar “linhas vermelhas”, acabam por expor a fragilidade dos argumentos do vizinho comunista. Quando uma nação soberana reage a uma postura defensiva de um vizinho com coerção econômica e ameaças veladas, ela apenas valida a necessidade urgente dessa defesa. A liderança de Takaichi, ao recusar-se a ceder a essa chantagem, envia uma mensagem crucial ao mundo: o Japão não será refém de seu maior parceiro comercial quando sua existência estiver em jogo.

Essa audácia política não ocorre no vácuo, encontrando forte ressonância na renovada aliança com Washington e no apoio de uma comunidade internacional cada vez mais cautelosa com o expansionismo chinês. A comunicação direta com a Casa Branca sugere que Washington vê em Takaichi a parceira ideal para a manutenção de um “Indo-Pacífico Livre e Aberto”. Ao verbalizar o que muitos líderes ocidentais pensam, mas hesitam em dizer por temor econômico, o Japão assume a liderança política que condiz com seu peso global. No centro desta disputa está a recusa em aceitar a ficção diplomática de que a ilha democrática de Taiwan seria apenas uma simples província rebelde.

A análise técnica e jurídica corrobora a posição japonesa, pois Taiwan opera como um país pleno sob qualquer critério objetivo de direito internacional. A ilha preenche todos os requisitos da clássica Convenção de Montevidéu para a personalidade jurídica de um Estado: possui uma população permanente de 23 milhões de habitantes com identidade própria, detém território definido com fronteiras claras e jurisdição efetiva, é gerida por um governo democrático, funcional e autônomo que cobra impostos, emite passaportes e demonstra plena capacidade de estabelecer relações com outras nações. Ao tratar Taiwan como parceiro estratégico, Takaichi não está inventando uma nova realidade, mas apenas reconhecendo a existência de um Estado que possui suas próprias leis, forças armadas, moeda e plena autonomia.

Em última análise, a atitude de Sanae Takaichi representa um divisor de águas na geopolítica asiática. Diante das ameaças de Pequim, a resposta do Japão sob sua liderança não foi o recuo habitual, mas a firmeza baseada em princípios. Ao defender o direito de Taiwan de existir livre de coerção, a Primeira-Ministra defende também a ordem internacional baseada em regras, lembrando que a complacência com regimes expansionistas historicamente apenas convida a maiores agressões. O Japão posiciona-se agora não apenas como um observador ansioso, mas como um guardião ativo da liberdade e da estabilidade no Pacífico.

Senado aprova voto de censura a chanceler alemão por falar a verdade sobre a COP 30

O Brasil conseguiu transformar um alerta internacional em farsa diplomática. Em vez de reconhecer falhas e aproveitar a oportunidade para preparar a COP 30 com o mínimo de seriedade, o governo Lula escolheu teatralizar indignação contra uma crítica que era verdadeira. Friedrich Merz, líder alemão, afirmou que os alemães que participaram da COP da Amazônia em Belém ficaram contentes ao ir embora. A frase parece ríspida, mas descreve com precisão o que qualquer participante do evento testemunhou. Belém não ofereceu estrutura mínima. E o pior ainda estava por vir.

A reação do governo brasileiro expôs mais do que sensibilidade ferida. Lula respondeu que Merz deveria ter visitado um boteco no Pará. Janja declarou que o alemão foi infeliz e insinuou que ele estava na cidade apenas a passeio. O curioso é que essa interpretação só faz sentido se presumirmos que a COP da Amazônia foi planejada como roteiro de turismo político. Talvez esse seja o problema de origem. O próprio discurso de Lula sobre a COP 30 tem sido o de um anfitrião que quer exibir a Amazônia como atração exótica. Janja reforça a mesma lógica em diversas entrevistas. Parece que o governo imagina que chefes de Estado viajam para contemplar cenários, não para participar de uma conferência decisiva sobre o futuro climático do planeta. A resposta que deram a Merz diz muito sobre o que Lula e Janja devem fazer nas viagens internacionais.

A situação degringolou quando o Senado brasileiro aprovou um voto de censura contra Merz. Não houve mentira, ofensa deliberada ou desinformação. Houve crítica. E houve verdade. Transformar essa crítica em ofensa nacional é o subdesenvolvimento convertido em coreografia oficial. O Brasil não se incomodou com o vexame que produziu, mas sim com o fato de alguém tê-lo notado. É como se a função do Estado fosse obrigar o mundo a participar da fantasia, nunca da realidade.

A verdade é que os relatos vindos de Belém não podiam ser mascarados. Calor insuportável, filas absurdas para conseguir água, falta de energia elétrica, ambientes improvisados, participantes passando mal. Vídeos mostram estandes que não resistiram à chuva. A estrutura que mais tarde pegaria fogo custou pelo menos 211 milhões de reais. Um montante que, na prática, só comprou risco. O ministro do Turismo, Celso Sabino, afirmou que incêndio pode acontecer em qualquer lugar. É verdade. Acontece em qualquer lugar onde um evento internacional é entregue a pessoas que confundem logística com vitrine e responsabilidade com marketing governamental.

É aqui que entra o ponto central. A COP 30 já nasceu com uma herança tóxica produzida pelo próprio governo brasileiro. Em vez de compromisso, oferece cosmética. Em vez de planejamento, oferece performance. Em vez de autocrítica, oferece constrangimento alheio. O que queimou em Belém não foi apenas uma estrutura. Foi uma oportunidade de ajustar rumos antes que o mundo estivesse presente, olhando tudo de perto.

Deus é brasileiro e por isso a COP da Amazônia terminou apenas como fiasco. Não como tragédia. O evento já havia sido alvo de alertas da ONU quando manifestantes invadiram a estrutura, toda revestida de tecido e materiais inflamáveis. As autoridades sabiam dos riscos. Mesmo assim, insistiram na encenação. Se Deus não fosse brasileiro, estaríamos discutindo hoje vítimas fatais, não apenas o desempenho diplomático do governo.

A COP 30 é um retrato fiel do Brasil. A parte que Deus fez e cuida é deslumbrante. A parte que entregamos aos políticos é um acúmulo de improviso, vaidade e irresponsabilidade. Ainda assim, o governo preferiu reagir como quem foi afrontado por uma crítica injusta, quando a única injustiça real é com o próprio país. Belém não falhou porque foi criticada. Belém falhou porque foi mal administrada e porque o PT, no seu quinto mandato neste século, jamais cuidou como deveria do desenvolvimento da Amazônia.

A Prisão de Jair Bolsonaro: um ataque à legalidade, uma arma de guerra política e o prenúncio de um 2026 turbulento

A prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros condenados pelo STF não é apenas um episódio jurídico. É o ápice de um processo marcado por arbitrariedades que colocam em xeque o Estado de Direito e revelam um Judiciário profundamente contaminado por interesses políticos. Não se trata de justiça — trata-se de engenharia eleitoral às vésperas de 2026.

O processo que levou Bolsonaro à prisão é, no mínimo, um manual de como driblar garantias constitucionais. A ausência de iniciativa do Ministério Público — que deveria ser o titular da ação penal — é uma agressão direta ao princípio do devido processo legal. Quando o juiz assume o papel de acusador, não temos Justiça; temos perseguição. Some-se a isso a imposição de censura prévia nas redes sociais, um dispositivo que remete aos períodos mais sombrios da história brasileira, com a nítida intenção de silenciar um líder político e sua base social. Não há respaldo jurídico sólido para esse tipo de intervenção: há apenas decisão monocrática com verniz de legalidade.

Ainda mais grave é o uso de teorias jurídicas artificiais, como a “autoria mediata”, para transformar opinião política em crime. Esse malabarismo conceitual é típico de regimes que não conseguem derrotar adversários nas urnas e recorrem ao tapetão institucional. A Justiça, que deveria ser o freio das arbitrariedades do poder, tornou-se sua extensão ideológica.

O impacto disso no cenário eleitoral de 2026 é devastador. O Judiciário, ao tentar afastar Bolsonaro do jogo político, cria exatamente o contrário: uma narrativa de mártir, capaz de reorganizar a direita e reacender o espírito de reação das bases conservadoras. Quanto mais se aperta, mais se alimenta a mobilização popular. O eleitorado percebe a perseguição — e a perseguição gera resistência. A esquerda, por sua vez, aposta tudo nessa estratégia: eliminar pela força aquilo que não consegue derrotar pela ideia.

Mas a realidade cobra. Um país cuja Justiça age como parte interessada deixa de ser uma democracia funcional e passa a ser uma república de exceção. A credibilidade institucional, elemento central para a estabilidade política, está sendo corroída por decisões que soam como vingança. Nesse ambiente, as eleições de 2026 não serão disputadas apenas por propostas — serão travadas sob o peso da insegurança jurídica, da polarização agravada e da erosão da confiança pública.

Se o Brasil deseja evitar um abismo institucional, precisa recuperar urgentemente o respeito pelo devido processo legal e pelo equilíbrio entre os poderes. Democracia não se sustenta com sentenças que silenciam adversários. Democracia exige disputa limpa, justiça imparcial e instituições que não sejam instrumentos de facção. O caminho para um 2026 menos tóxico começa com algo simples: o Judiciário assumindo novamente o seu papel de guardião da Constituição — e não o de inquisidor da política.

O mapa do caminho

Descobrimos então que a COP 30 era muito mais importante para a esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) do que imaginamos. Eles jogaram tudo para fazer da COP 30 um tipping point

Para o governo Lula foi um ato de campanha, pleno de marquetagens: “a maior COP do mundo”, “a COP do povo liderada por Lula” – o guia genial, o grande timoneiro. Basta ver que o último discurso de Lula na COP 30 foi tipicamente eleitoral. Uma fala populista num palanque para dentro. O tal “mapa do caminho” mesmo só teremos… nas próximas COPs. Compromissos com metas necessárias e críveis ocorrerão… nas próximas COPs. Para Lula, o mais importante vem antes: nas urnas de 2026.

Para a esquerda, órfã das grandes narrativas totalizantes do século 20, era para ser uma espécie de “enchente amazônica”, uma “explosão atlântica” onde os excluídos, os condenados da Terra, os povos originários e todas as minorias acordaram (woke) para dizer ao mundo dos ricos que não aceitam mais a situação de injustiça instalada. O climático serviu como um gancho perfeito para o social. Injustiça climática. Exclusão climática. Racismo climático. A discriminação climática é estrutural.

Uma revivescência da luta de classes e da luta contra a discriminação. O início de uma verdadeira revolução social. Uma sublevação do Sul Global. A esquerda agora não só lidera, mas se apropria da causa climática… contra a direita. 

Foi aí que apareceu a proposta do Mapa do Caminho para redução das emissões de CO2, lavando a contradição do Brasil querer liderar essa caminhada mantendo a exploração dos combustíveis fósseis. Porque no futuro, ah!, no futuro, não será mais assim. Vamos para o reino da liberdade e da abundância: mas amanhã, não hoje. Sim, vamos extinguir o Estado: mas amanhã, não hoje. Hoje, nós, os socialistas, fortalecemos o Estado para enfraquecê-lo. Mas hoje só amanhã.

(Se você não quiser deixar de fazer alguma coisa julgada reprovável, proponha um “mapa do caminho” para deixar de fazer essa coisa no futuro. Com esse truque você obtém uma licença para continuar fazendo o que não deve. É como uma ditadura prometendo um reino da liberdade amanhã). 

O Mapa do Caminho era um mapa para a reeleição de Lula e para o renascimento da esquerda como portadora da salvação universal.

Os países do eixo autocrático e os EUA trumpista, porém, não toparam essa parada. E o mapa ficou sem caminho; ou o caminho ficou sem mapa. A proposta de um plano de ação com etapas e metas para acabar com o uso de petróleo, gás natural e carvão mineral não avançou. China, Índia, Arábia Saudita e Nigéria não aceitam – pelo menos até agora – nenhum texto sobre o tema. E se aceitarem não irão realizar suas prescrições. Sem falar dos EUA, é claro. E da Rússia.

O ambientalismo, parasitado pelos órfãos das narrativas totalizantes do século 20, está alimentando o surgimento de uma militância proto-fundamentalista que passou a assombrar a humanidade com o apocalipse do aquecimento global. Não é que o aquecimento global não seja uma ameaça real. É que tratar isso na base do medo, crucificando como negacionistas climáticos os que não são fiéis do novo credo, instalará uma nova cruzada do bem contra o mal cujos resultados serão nocivos à liberdade. 

Entenda-se bem. O problema existe. E não há como resolvê-lo com uma grande vassourada. Como escreveu Quico Toro, o processo COP não funciona porque “imagina as emissões [de CO₂] como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato” (1). Não há como resolver o problema derrotando os negacionistas climáticos e, para tanto, incentivando uma nova polarização em que os militantes ambientalistas vão abrir uma guerra contra os negacionistas climáticos. 

Se a chamada esquerda, que sempre se acha do lado do bem, abrir esse tipo de guerra contra a chamada direita negacionista, sempre avaliada, pela esquerda, como estando do lado do mal, isso não contribuirá em nada para resolver o problema. 

Não é uma guerra universal que precise ser vencida, com a derrota definitiva dos inimigos incréus para nos salvar do apocalipse. É preciso ver o que se pode fazer agora, a começar pelos nossos atos singulares e precários em todos os âmbitos, das pessoas e comunidades, dos pesquisadores e empreendedores inovadores, das empresas e dos governos dos municípios, regiões e países e das organizações internacionais.


Nota

(1) Como escreveu Quico Toro, em Persuasion (13/11/2025), o processo COP não funciona “porque se baseia em um modelo errado sobre o que determina o nível de emissões de gases de efeito estufa de um país. A COP imagina essas emissões como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato. Mas as emissões são mais parecidas com o PIB: o resultado de um processo complexo que os políticos gostariam de controlar, mas que na realidade não controlam. Assim como o PIB, as emissões climáticas são o resultado cumulativo de bilhões de decisões tomadas por bilhões de atores — negociadores climáticos, empresas de serviços públicos, operadores de redes elétricas, reguladores, políticos, burocratas, banqueiros, investidores, empresas e famílias — cada um dos quais precisa ponderar uma série de compensações. Essas compensações incluem a qualidade do ar e as emissões de carbono, sim, mas também a acessibilidade, a confiabilidade, a soberania, a disponibilidade de recursos naturais e o nível de prontidão tecnológica. Nos países desenvolvidos, o resultado combinado dessas decisões tem sido uma queda gradual das emissões nas últimas duas décadas. Desde o pico em 2007, as emissões de CO₂ dos países desenvolvidos caíram de 15,7 gigatoneladas para 12,9 gigatoneladas em 2023. (Uma gigatonelada equivale a um bilhão de toneladas.) Também em 2023, pela primeira vez, a China emitiu mais dióxido de carbono do que todos os países desenvolvidos juntos. Entre 1970 e 2023, as emissões chinesas cresceram de 7,6 gigatoneladas por ano para 13,3 gigatoneladas por ano, e as emissões do restante do mundo em desenvolvimento aumentaram de 7,9 para 11,7 gigatoneladas. Para cada molécula de CO₂ que os países ricos reduziram suas emissões desde 2007, os países em desenvolvimento emitiram três a mais”.

Os Tentáculos de Teerã

Enquanto a atenção mundial se concentrava nos conflitos abertos no Oriente Médio, um plano ousado, gestado nos porões de Teerã, foi desmontado a tempo de evitar uma tragédia de proporções internacionais. Poucos meses atrás, o governo mexicano, em coordenação com agências de outros países, frustrou uma conspiração orquestrada pela Força Quds, unidade de elite da Guarda Revolucionária do Irã, para assassinar Einat Kranz-Neiger, Embaixadora de Israel no México. O caso, que recebeu escassa atenção da imprensa brasileira, serve como alerta contundente: a máquina de desestabilização iraniana não apenas permanece ativa, mas opera com audácia crescente em territórios distantes, mesmo após os reveses de seus aliados mais visíveis.

O modus operandi envolvia o recrutamento de um cidadão mexicano, seguindo ordens diretas de um agente iraniano. A estratégia de recrutamento local evidencia uma nova tática da Guarda Revolucionária dos aiatolás na América Latina, operando desde a Venezuela. O objetivo principal é minimizar riscos e aumentar as chances de sucesso em solo estrangeiro, demonstrando uma sofisticação funcional que vai além do teatro de guerra convencional.

Este episódio é um exemplo emblemático da doutrina de “guerra híbrida” iraniana. Num momento em que Hamas, Hezbollah e Houthis enfrentam significativa pressão militar e diplomática, Teerã responde estendendo seus tentáculos. Ao mirar uma alta figura diplomática em um terceiro país como o México, o regime sinaliza que sua campanha de antagonismo não conhece fronteiras. A escolha do alvo – uma mulher que representa Israel diplomaticamente – foi claramente calculada para infligir um golpe estratégico e simbólico, criando uma crise internacional de grandes proporções.

A contenção bem-sucedida deste complô, um triunfo silencioso da cooperação em inteligência, evitou uma catástrofe. No entanto, a tentativa em si é a mensagem mais alarmante. Ela desmente qualquer narrativa de que um Irã sob sanções (e com seus proxies enfraquecidos) estaria contido. Pelo contrário, revela um regime que, quando pressionado, pode tornar-se mais ousado e imprevisível, recorrendo a operações de alto risco em territórios alheios ao seu teatro de operações para projetar poder e vingança.

Este evento não é um incidente isolado. Deve ser analisado em conjunto como uma prática já utilizada pelo regime dos aiatolás. A Austrália expulsou o embaixador iraniano após apontar envolvimento de Teerã em um ataque contra uma sinagoga em Melbourne e outro contra um restaurante kosher em Sydney. Na América Latina, o atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, em Buenos Aires, que deixou 85 mortos. Um ataque cometido pelo Hezbollah a pedido do Irã. 

A lição do atentado frustrado na Cidade do México é cristalina: a comunidade internacional não pode expor-se ao risco. Subestimar a resiliência e a capacidade de adaptação do regime iraniano é um erro estratégico perigoso. A abordagem ocidental não pode se limitar a conter grupos proxy, deve confrontar com vigor a fonte primária da instabilidade e regimes aliados, como em Caracas. É imperativo intensificar a pressão diplomática, ampliar a cooperação em inteligência e fechar as brechas nas sanções que permitem a Guarda Revolucionária financiar operações globais. Ignorar a persistência da ameaça iraniana é convidar a uma crise ainda mais severa no futuro. O perigo não se dissipou, simplesmente se transmutou e expandiu seu raio de ação.