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O valor e a humildade de Maria Corina Machado

Pela primeira vez, fiquei emocionada após a divulgação de um prêmio Nobel da paz. A honraria, algo sempre tão distante, pareceu-me, dessa vez, ter sido concedida a alguém que me era próximo. Não estranhei minha reação. Sou mesmo emotiva; meus olhos marejam facilmente.

A razão logo acorreu, justificando-me: claro que se tratava de alguém próximo. A pessoa laureada era alguém cuja luta observo há mais de uma década, alguém cuja coragem me inspira e com cujos ideais me identifico. Ademais, é uma mulher. E é latina. Chama-se Maria, esse nome simples e familiar.

Maria Corina Machado receceu o Prêmio Nobel da Paz, 2025, “por seu trabalho incansável na promoção dos direitos democráticos do povo da Venezuela e por sua luta para alcançar uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”, conforme as palavras do Comitê Nobel norueguês.

Ela “é um dos mais extraordinários exemplos de coragem civil na América Latina nos últimos tempos”, acrescentou o comitê.

Assisti ao vídeo em que o diretor do Instituto Nobel Norueguês, Kristian Berg Harpviken, compartilhou com Corina, por ligação telefônica, a notícia de sua premiação, antes que fosse anunciada ao mundo. Foi bem tocante. Não apenas ela, mas o próprio representante do Instituto estavam emocionados.

Ah! A emoção genuína e nobre! Não a emoção confusa, patética e febril advinda de impulsos irracionais e primitivos, mas a emoção suave, espécie de abalo sutil e desabafo da alma que se sente movida por e impulsada para valores altos, universais e eternos.

Ambos, Corina e Harpviken se emocionaram, naquele momento, porque estavam provavelmente envolvidos pelo mesmo sentimento moral.

Segundo o filósofo Max Scheler (1874-1928), há um universo de valores hierarquicamente organizados, que são percebidos pela visão emocional ou intuição sentimental. 

Há basicamente quatro níveis nessa hierarquia. No terceiro nível, abaixo apenas dos valores religiosos (sagrado-profano), estão os valores culturais ou espirituais, dentre os quais os valores ético-jurídicos (justo-injusto).

Nem todos são capazes de perceber a manifestação no mundo dos valores espirituais. Isso porque estão ainda embotados, ora seduzidos por valores hierarquicamente inferiores, ora emocionalmente conturbados por ideologias.

Para aqueles, porém, dotados de certa sensibilidade, a premiação de Maria Corina foi um tributo à coragem, à liberdade e à justiça, valores objetivos que a sua luta política representa. 

O prêmio emociona porque, ao reconhecer valores morais onde eles realmente existem, o mundo se mostra um pouco menos doente.

Foi feliz o editorial do Estadão ao escrever que, ao premiar Corina, “o Comitê Norueguês do Nobel lembrou a todos que a luta pelo regime das liberdades ainda exige firmeza de caráter e sacrifício pessoal

Sim! Sacrifício. Isso se dá porque a percepção dos valores espirituais leva à clara evidência de que os valores inferiores devem ser sacrificados perante eles. 

O colega Duda Teixeira foi igualmente feliz quando destacou, no programa Papo Antagonista, transmitido no mesmo dia da divulgação do prêmio Nobel, que, de forma alguma, Corina é movida por um projeto pessoal de poder:

Ela está realmente se doando para a causa da democracia na Venezuela. E, de fato, a vida dela toda, está em função disso. A Maria Corina tem três filhos e um marido. Os filhos estão em diferentes países por questão de segurança. O marido também já não vive com ela, pois ela vive praticamente na clandestinidade devido a ameaças constantes e reais da ditadura. Então, essa é uma mulher que não tem momento de ócio, de lazer com a família, de descontração. A vida dela é vinte e quatro horas por dia fugir da ditadura e lutar por democracia”.

Olhando por esse ângulo, enfatizado por Duda Teixeira, a concessão do Nobel da Paz a Maria Corina torna-se ainda mais importante. Ele dá a quem enfrentou e enfrenta, de peito aberto, uma brutal ditadura, um enorme respaldo internacional que lhe servirá também como forma de proteção. 

A inveja de Lula e Trump

A inesperada premiação de Maria Corina recebeu, naturalmente, atenção internacional. As reações foram de fortes elogios a críticas histéricas. Tanto se fala sobre esse assunto que o silêncio de quem cala se torna eloquente.

Tem quem faça pior e não fale nem silencie, mas apenas enrole; foi o caso do governo brasileiro, que se escondeu na omissão, mas mandou o secretário Celso Amorim falar qualquer coisa.

Amorim, contumaz adulador do ditador Nicolás Maduro, tentou desmerecer Maria Corina dizendo que, em detrimento da paz, o Prêmio Nobel havia priorizado a política. Ele estava apenas repetindo o que a Casa Branca – revelando a mágoa do presidente Donald Trump por não ter sido o premiado – havia exposto horas antes.

Ora, o Prêmio Nobel da Paz é geralmente considerado a mais importante honraria política do mundo; isto porque um dos principais instrumentos para a construção da paz é justamente a política. Mas o prêmio costuma honrar a boa política, aquela que a baixa envergadura moral do atual governo brasileiro não permite reconhecer.

María Corina e Donald Trump, no entanto, logo se acertaram. Pessoas humildes não têm muita dificuldade em lidar com pessoas vaidosas, pois não disputam com elas. Sabem do próprio valor e não precisam ostentá-lo, mas tentam até diminuí-lo para que outros brilhem em seu lugar.

A líder venezuelana dedicou seu prêmio primeiramente ao povo venezuelano, mas também ao vaidoso presidente norte-americano, a fim de mitigar-lhe a mágoa de ter sido preterido. Em seguida, conversaram por telefone. Trump referiu-se à conversa nos seguintes termos:

A pessoa que recebeu o Prêmio Nobel hoje me ligou e me disse: ‘Estou aceitando isso em sua homenagem, porque realmente você merecia’. Foi algo muito amável da parte dela. Eu não disse ‘então me dê’, embora eu ache que ela poderia ter feito isso. Ela foi muito legal“, disse o presidente americano.

Chega a ser cômico o contraste entre um perfil e outro. Corina é comunicada do prêmio e afirma, emocionada ao diretor do Instituto Nobel: “Esta é uma conquista de toda uma sociedade. Eu sou apenas, sabe, uma pessoa. Eu certamente não mereço isso”. Trump, por sua vez, clama aos quatro ventos que o merece.

É como diz canção de Vinícius: “O homem que diz sou (não é); porque quem é mesmo é (não sou)”. 

A verdadeira virtude é silenciosa, não se afirma; é descoberta, revelada. E, algumas vezes, merecidamente premiada.

O grito de Oslo: o Nobel que desmascara o autoritarismo latino-americano

A decisão do Comitê Nobel de Oslo de conceder o Prêmio da Paz de 2025 a María Corina Machado, a incansável opositora venezuelana, transcende o reconhecimento individual: é um ato de denúncia moral e um grito universal em defesa da democracia em agonia. Em um cenário global onde o autoritarismo avança com inquietante naturalidade — como evidencia o Relatório de Democracia 2025 do V-Dem, que pela primeira vez em duas décadas registra mais autocracias (91) do que democracias (88) —, a escolha de Machado emerge como farol ético e político em meio à penumbra das tiranias.

Machado encarna a essência do testamento de Alfred Nobel — a busca da paz por meio da dignidade humana e da liberdade política. Fundadora da organização Súmate e líder do Vente Venezuela, há mais de vinte anos ela desafia um regime que transformou o país em laboratório do autoritarismo contemporâneo. Banida como candidata presidencial em 2024, ela não se rendeu: apoiou Edmundo González e organizou uma rede de observadores que documentou a vitória opositora antes que o regime de Nicolás Maduro destruísse as urnas e adulterasse o resultado. O Comitê Nobel descreveu seus esforços como “inovadores e corajosos, pacíficos e democráticos” — um tributo à fé inabalável de quem, mesmo ameaçada de prisão e tortura, recusou o exílio para continuar lutando dentro do país que ama. Nas palavras do presidente do Comitê, Jørgen Watne Frydnes, “foi a urna contra as balas”.

O prêmio expõe, com clareza quase cruel, o abismo humanitário cavado pelo regime chavista. Uma nação outrora próspera foi reduzida a um Estado em decomposição, onde a escassez, a violência e a corrupção substituíram a esperança. Segundo o Comitê Nobel, quase 8 milhões de venezuelanos foram forçados ao exílio desde 2014, em uma das maiores diásporas do século XXI. O ACNUR estima 7,8 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos espalhados pela região, enquanto dentro das fronteiras do país 3,3 milhões de pessoas, entre elas 1,8 milhão de crianças, dependem de ajuda humanitária imediata, conforme relatório da UNICEF de junho de 2025.

Enquanto isso, a elite bolivariana — empoleirada sobre uma economia destruída, corroída por hiperinflação e colapso produtivo — enriquece em meio à miséria coletiva. O Freedom House, em seu relatório de 2025, apontou a Venezuela como paradigma do declínio global da liberdade, onde a repressão eleitoral, as prisões arbitrárias e a censura de Estado tornaram-se instrumentos rotineiros de sobrevivência do poder.

A lição de Machado é inequívoca: a democracia não é ornamento institucional, é condição de paz duradoura. Como lembrou Nina Græger, diretora do Peace Research Institute Oslo, em 2024 o planeta registrou número recorde de eleições — mas pouquíssimas foram autênticas. O voto, cada vez mais, é sequestrado pela coerção, pela manipulação e pela mentira. Ao proclamar “votos em vez de balas”, Machado recorda ao mundo que a resistência civil, quando sustentada pela coragem moral, pode ainda inverter o curso da história.

E é aqui que o eco do Nobel reverbera mais dolorosamente — no Brasil. A honraria concedida por Oslo deveria provocar constrangimento à diplomacia brasileira e à presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto o Comitê denuncia com clareza o “regime autoritário” de Maduro e a tragédia humanitária que ele perpetua, Brasília mantém uma complacência disfarçada de pragmatismo, oferecendo aval político a eleições fraudulentas e refúgio diplomático a um ditador deslegitimado.
Lula hesita em romper com um aliado ideológico cuja permanência no poder depende da aniquilação das liberdades básicas. Essa ambiguidade não é neutralidade — é conivência com o despotismo. Apoiar Maduro, sob o pretexto da solidariedade latino-americana, é trair o próprio ideal de integração democrática que o Brasil historicamente defendeu.

O Prêmio Nobel da Paz a María Corina Machado não é apenas uma homenagem: é uma convocação moral. Um lembrete de que a democracia não se sustenta sem solidariedade entre democratas. Que o Brasil — berço de lutas cívicas e democracias vibrantes — abandone a tibieza diplomática e se alinhe ao coro global em defesa da liberdade. Como advertiu Frydnes, num mundo com menos urnas e mais correntes, é a própria paz que se dissolve.

Por que a mídia não fala do genocídio cristão na Nigéria?

Bill Maher não é conhecido por suavizar opiniões. Comediante, roteirista e apresentador de televisão, há décadas provoca polêmica em seu programa Real Time with Bill Maher na HBO. Frequentemente ácido em relação à fé cristã, surpreendeu parte da audiência ao destacar, em setembro, uma tragédia que raramente ocupa espaço no noticiário internacional: o massacre de cristãos na Nigéria.

“Não sou cristão, mas eles estão matando sistematicamente os cristãos na Nigéria”, afirmou Maher. “Eles já mataram mais de 100 mil desde 2009. Já queimaram 18 mil igrejas. Isso é muito mais uma tentativa de genocídio do que o que está acontecendo em Gaza. Eles estão literalmente tentando exterminar a população cristã de um país inteiro. Onde estão os jovens protestando contra isso?”

A contundência da fala quebrou o silêncio ensurdecedor da grande imprensa. E a pergunta se espalhou rapidamente pelas redes sociais: por que uma crise humanitária dessa magnitude só veio ganhar visibilidade porque um comediante ateu a mencionou na televisão? Onde estão os correspondentes internacionais, os repórteres investigativos e as manchetes indignadas que surgem quando o tema interessa às agendas de poder?

Os dados estão disponíveis há anos. A Open Doors, organização internacional dedicada a apoiar cristãos perseguidos, coloca a Nigéria como o sétimo pior país do mundo para quem professa a fé em Cristo. Não é um ranking simbólico: ali morrem mais cristãos do que em qualquer outro lugar do planeta. O último relatório da entidade afirma que os ataques não são episódios isolados, mas parte de uma campanha sistemática de extermínio religioso. Boko Haram, ISWAP e milícias de pastores Fulani seguem um roteiro conhecido: homens executados em praça pública, mulheres sequestradas e violentadas, aldeias inteiras queimadas, igrejas demolidas. O saldo é um país com milhões de deslocados internos, famílias vivendo em campos improvisados, sem comida, sem abrigo e sem perspectivas.

Em junho, o massacre no Estado de Benue escancarou mais uma vez essa realidade. Milicianos armados atacaram comunidades cristãs durante a noite e deixaram mais de duzentos mortos. “Eles mataram muitos do nosso povo, incluindo vários da família do meu marido”, relatou Imma, sobrevivente que perdeu parentes diante de seus olhos. Outro sobrevivente, chamado Simon, descreveu como os militantes incendiaram armazéns onde mulheres e crianças dormiam. O fogo consumiu tudo. O terror, porém, não se limita a esses números: cada ataque deixa comunidades inteiras deslocadas, aterrorizadas e sem condições de recomeçar.

Nada disso é um acidente histórico. Desde a independência, a Nigéria viveu como uma república costurada às pressas. Em 1914, os britânicos unificaram territórios que até pouco antes compunham o império islâmico do Califado de Sokoto. Após a Primeira Guerra Mundial, a incorporação do norte dos Camarões aumentou ainda mais a população muçulmana do país. Essas linhas de tensão nunca foram resolvidas. Quando, em 1999, o retorno da democracia permitiu que doze estados do norte instituíssem a sharia, a perseguição religiosa tornou-se política de Estado. Blasfêmia e apostasia passaram a ser crimes punidos com violência, criando terreno fértil para que grupos terroristas atuassem com a complacência ou a omissão das autoridades.

O resultado é o que se convencionou chamar de genocídio silencioso. Dezenas de milhares de cristãos foram assassinados na Nigéria apenas neste século por causa da fé. As cifras são brutais e contínuas. A cada semana, igrejas são atacadas, missas interrompidas por explosões, aldeias invadidas. A cada mês, centenas de viúvas e órfãos engrossam um êxodo invisível aos olhos do noticiário global.

E aqui entra a contradição mais gritante. O Reino Unido, os Estados Unidos e a União Europeia, que fazem discursos inflamados sobre a defesa de minorias, mantêm-se praticamente em silêncio sobre a perseguição de cristãos na África. As mesmas vozes que se levantam para denunciar o antissemitismo, a islamofobia ou a homofobia não parecem se comover com a realidade de cristãos negros assassinados em massa. A indignação é seletiva. O discurso da inclusão, que deveria ser universal, se dobra diante de interesses geopolíticos e narrativas convenientes.

Por que a imprensa brasileira também escolheu ignorar essa realidade? Se não há Israel ou judeus no meio, não interessa? Ou será que, no imaginário das redações, negros cristãos na África não se encaixam na categoria de minoria digna de proteção? Seriam os “defensores de minorias” racistas enrustidos? São perguntas incômodas mas inevitáveis. Porque, enquanto editoriais discutem hashtags e causas passageiras, homens e mulheres são executados na Nigéria apenas por professar a fé em Jesus.

O genocídio cristão na Nigéria não é uma nota de rodapé, é um dos maiores dramas humanitários do século XXI. Expõe a hipocrisia de quem se apresenta como guardião da diversidade, mas fecha os olhos para o massacre de uma comunidade inteira. Silenciar diante disso é, no mínimo, cumplicidade. Afinal, quantos corpos precisam se acumular para que a palavra “genocídio” seja usada com a mesma veemência que já se aplica a outras causas? Até quando a vida dos cristãos africanos será considerada descartável na lógica seletiva da indignação ocidental?

Dois anos do terror do Hamas: a urgência de não esquecer e apoiar Israel

Neste 7 de outubro, completam-se dois anos desde que o grupo terrorista Hamas desencadeou uma série de ataques brutais contra Israel que chocaram o mundo. O grau de violência desses atos, que incluíram assassinatos indiscriminados, sequestros e ataques a civis, é difícil de dimensionar, mas impossível de ignorar. Até hoje, 48 pessoas permanecem reféns nas mãos desses terroristas, vítimas de uma violência que não conhece limites.

O que agrava ainda mais essa tragédia é a indiferença, a relativização e, em alguns casos, o apoio explícito de líderes ao lado terrorista. Não é aceitável que autoridades, inclusive de governos como o brasileiro, minimizem ou justifiquem ações que atentam contra a vida humana. Esse tipo de postura contribui para a perpetuação do terror e para o sofrimento das vítimas.

É essencial lembrar que Israel é a única democracia da região, um país que respeita a liberdade individual, os direitos humanos e a coexistência pacífica de diversas culturas e religiões. A luta de Israel contra o Hamas não é apenas uma questão de segurança nacional; é uma defesa da própria civilização contra o extremismo e o ódio.

Ao mesmo tempo, é preciso contextualizar historicamente as questões territoriais com a Palestina. Várias tentativas de criação de dois estados foram propostas ao longo das décadas, mas foram rejeitadas sistematicamente pelo lado árabe. O reconhecimento dessa realidade é fundamental para que o debate sobre a paz seja realista e justo.

A verdadeira busca pela paz não passa por um cessar-fogo que apenas garante a continuidade do terror, mas pela eliminação do Hamas, que oprime a própria população da Faixa de Gaza e impede qualquer possibilidade de progresso social e econômico. Apoiar Israel em sua luta legítima contra o terrorismo é reconhecer a necessidade de proteger vidas, punir os culpados e abrir espaço para uma paz duradoura, baseada na segurança, na justiça e no respeito à história.

Não podemos esquecer os horrores desses dois anos. Não podemos fechar os olhos para o sofrimento dos reféns. E, sobretudo, não podemos ignorar a importância de apoiar uma democracia que luta diariamente contra o terror. A paz verdadeira só será possível quando o Hamas for derrotado e a liberdade voltar a florescer para todos na região.

Clube de Leitura das Distopias

As distopias são livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social. Dois esclarecimentos preliminares são necessários:

Quando falamos de rede social não estamos querendo nos referir às mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio (mídia) enquando estão interagindo: não plataformas, sites, programas, algoritmos, dispositivos.

Investigar as distopias não se baseia na ideia de que no futuro vão acontecer mundos parecidos com os descritos pelos autores distópicos. Investigar as distopias é importante porque aspectos desses mundos descritos pelos autores distópicos estão acontecendo agora.

Os mesmos padrões hierárquicos de organização e os mesmos modos autocráticos de regulação de conflitos aventados pelos distopistas estão presentes em muitos mundos sociais realmente existentes e adjacentes aos nossos, mas nem sempre somos capazes de reconhecê-los.

As distopias são construções imaginativas que realçam, em alguns casos levando ao paroxismo, as deformações no fluxo da convivência social, evidenciando as principais perturbações no campo interativo e com isso permitindo a identificação de características autoritárias e totalitárias que dificilmente seriam percebidas nas rotinas dos mundos em que vivemos.

Elas fornecem, assim, os esquemas e as disposições teoréticas e simbólicas do que pode se manifestar quando configurações sinérgicas (ou seja, estruturas e dinâmicas que condicionam o fluxo interativo de modo congruente) são replicadas.

É claro que a realidade é sempre mais ousada do que as criações dos ficcionistas distópicos. Nenhuma distopia conseguiu antever ou agravar a deformação promovida nas sociedades soviéticas durante o período do Grande Expurgo stalinista. Nenhum dos livros que possamos examinar chegou perto do que se faz nos dias que correm na Coreia do Norte. Nenhum autor conseguiu imaginar um horror semelhante ao que se instalou em Raka, ocupada pelo Estado Islâmico.

Mas essas exacerbações de formas de comportamento político anti-humano são singularidades que podem acabar cumprindo o perigoso papel de nos alienar do essencial. E o essencial é perceber na nossa vida cotidiana, aceita como normal, as manifestações desses padrões.

Não é mera coincidência que muitos dos padrões do livro 1984 (Nineteen Eighty-Four) de Orwell estejam presente num treinamento ideológico realizado por grupos jihadistas ou que o duplipensar orwelliano esteja presente em qualquer discussão com militantes de organizações políticas autocráticas.

Nem é por acaso que os argumentos simplórios de A Nova Utopia de Jerome K. Jerome (1891) estejam sendo reproduzidos pela militância de protoditaduras latino-americanas em plena terceira década do século 21, ou seja, mais de um século depois. Ou que a subordinação da liberdade à igualdade ou a substituição da liberdade pela felicidade como ideal utópico ainda constituam o centro articulador do pensamento autoritário em todo mundo.

Como escreveu Ernst Bloch (1935) em The Heritage of Our Times, “nem todas as pessoas existem no mesmo Agora”. Essa teoria blochiana da “não-contemporaneidade” só se torna, porém, compreensível, quando percebemos que as pessoas são emaranhados sociais (e não indivíduos isolados) e que a época em que elas vivem depende da configuração dos ambientes em que convivem.

As distopias, são, dessarte, livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social em qualquer época.

Na medida em que rede é fluxo (ou seja, metabolismo-e-corpo, dinâmica-e-estrutura) a programação da rede é também uma reprogramação do tempo e por isso é tão difícil estabelecer sintonias com certas pessoas que estão vivendo em outros ambientes. Porque – mesmo estando co-presentes, inclusive na nossa vizinhança – elas estão vivendo em outro tempo.

É preciso estimular a descoberta de pistas de deciframento para aprender a reconhecer padrões autocráticos onde quer que eles se manifestem, inclusive na nossa vida cotidiana (1).

Nossa experiência indica que, do ponto de vista pedagógico (e talvez não só), é sempre melhor começar com a leitura e exploração das distopias, pelas razões expostas a seguir.

As dificuldades de aprendizagem da democracia não têm nada a ver com falta de inteligência (ou de consciência). A conversão à democracia está um andar abaixo: os receptores não estão no solo e sim no subsolo das consciências onde remanescem matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas fundantes do tipo de civilização em que vivemos há cinco ou seis milênios. Mesmo que tenha lido ou ouvido tudo que foi escrito ou dito sobre democracia, uma pessoa continuará “sub-pensando”, para citar alguns exemplos, que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo, que o comportamento coletivo pode ser compreendido a partir do comportamento dos indivíduos, que nada pode ser organizado sem hierarquia, que sempre serão necessários líderes destacados para viabilizar qualquer ação coletiva etc. Só a interação recorrente, a conversação continuada de uma comunidade política sobre democracia, pode encontrar (por insistência, até por tentativa e erro – ou comportamento aleatório) esses receptores e, entrando nessa região escura que subjaz na mente coletiva ou na cultura que se replica automaticamente no tipo de civilização em que vivemos, alterar essas matrizes. Essas matrizes, que geram padrões autocráticos, pertencem ao modo de vida patriarcal e é por isso que se pode dizer, como fez Humberto Maturana (1993), em “Amar e brincar”, que a democracia foi uma brecha aberta no muro da cultura patriarcal que, entretanto, continua se replicando agora, milênios após o seu surgimento.

Ninguém nasce democrata, se torna. A conversão à democracia começa com uma emoção. Alguém se torna democrata, em primeiro lugar, não por um esforço intelectual e sim por uma inconformidade (e uma insuportabilidade) com o emocionar hierárquico e autocrático. Se torna democrata – no sentido forte do conceito de democracia, como processo de desconstituição de autocracia e no sentido amplo desse conceito, da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado – quando passa a resistir a padrões autocráticos, quer dizer, a um modo de interagir com o mundo que reproduz a cultura patriarcal (lato sensu), ou seja, a que replica matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas.

Em suma, na base da conversão à democracia há um emocionar de insuportabilidade com a tirania que é mais difícil de comover quem não viveu sob um regime autoritário. A leitura das distopias tem mais chances de evocar essas emoções do que o estudo de textos teóricos sobre a democracia.

Máquina Eleitoral

Em um movimento que expõe as complexas e pragmáticas engrenagens do poder em Brasília, o bloco parlamentar conhecido como Centrão tem sido, paradoxalmente, um dos maiores aliados do governo Lula na construção de sua campanha à reeleição em 2026. A retórica ocasionalmente antiplanalto de seus partidos dissipa-se quando o assunto é a aprovação de uma enxurrada de benesses sociais e medidas fiscais que, juntas, presentearão o presidente com aproximadamente R$ 252 bilhões para aquecer a economia no auge do período eleitoral.

A estratégia é clara: bombear recursos na economia para criar uma sensação de bem-estar e amenizar qualquer desaceleração, tornando o caminho para a vitória significativamente mais fácil. Programas como Gás do Povo (1 botijão a cada dois meses para 15,5 milhões de famílias), Pé-de-Meia (poupança para 4 milhões de estudantes) e a isenção do Imposto de Renda para salários de até R$ 5.000 (beneficiando 10 milhões) não são meras políticas públicas, são as novidades de vitrine da campanha petista, com data de estreia marcada de acordo com o calendário eleitoral.

O apoio do Centrão, no entanto, vai além da expansão de gastos. Nos últimos dois anos e meio, congressistas alinhados a esse bloco foram cruciais para aprovar reformas que fortalecem o caixa do governo, garantindo a sustentabilidade fiscal para bancar esta onda de gastos. O novo arcabouço fiscal, a reforma tributária, a taxação de offshores e fundos exclusivos, a retomada do voto de qualidade no CARF e a taxação das apostas esportivas são exemplos de medidas que, em tese, aumentam a arrecadação e dão mais controle ao Executivo sobre o orçamento.

Até mesmo eventuais atritos, como a breve rebelião no Congresso contra o aumento do IOF, foram rapidamente contornados. O assunto, após uma rápida passagem pelo STF a pedido do governo, perdeu tração, mostrando onde reside a efetiva prioridade da base parlamentar.

Este cenário coloca a oposição, particularmente a direita, em situação desconfortável. Com Bolsonaro inelegível, o nome mais forte é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ironia das ironias, Tarcísio, que emerge como principal representante do Centrão no executivo estadual, alertou que evitar esta “derrama de benesses” era essencial para sua própria viabilidade como candidato presidencial – uma possibilidade que ele agora descarta. Na verdade o governador está diante de um dilema: desafiar um presidente armado com uma máquina de R$ 252 bilhões – dos quais R$ 175,7 bi em programas sociais diretos, R$ 31,3 bi em isenção de IR e outros R$ 21,87 bi em subsídios – ou recuar e aguardar por uma janela de oportunidade que pode não se abrir.

A conclusão é inescapável: a preços de hoje, Lula é o favorito claro. O Centrão, com seu pragmatismo característico, tem criado condições para que o Planalto siga pintado de vermelho pelo menos até 2030. A eleição pode estar a mais de um ano de distância, uma eternidade em política, mas o presidente já está com o pé na estrada, e o combustível de sua máquina eleitoral é o dinheiro que o próprio Congresso, inclusive seus críticos de ocasião, lhe fornecem sem qualquer culpa. Para Tarcísio e a verdadeira oposição, o caminho certamente ficou mais difícil, uma conta que pode e deve ser debitada do Centrão e suas lideranças, que colocam suas conveniências pessoais acima de um projeto nacional.

O escândalo do vazamento de conversas privadas do Grok e do ChatGPT

O vazamento de dados envolvendo o chatbot Grok, da empresa xAI de Elon Musk, e a indexação de conversas do ChatGPT pelo Google trouxe à tona uma das discussões mais importantes sobre inteligência artificial: a segurança das informações que compartilhamos com sistemas desse tipo. A diferença entre os dois episódios é significativa, mas ambos revelam o grau de exposição a que estamos sujeitos ao usar essas ferramentas.

No caso do Grok, todas as conversas de usuários ficaram disponíveis em resultados de pesquisa do Google, o que significa que conteúdos trocados em um ambiente que deveria ser privado foram completamente expostos. O ChatGPT, por sua vez, não teve um vazamento de dados sigilosos, mas enfrentou críticas ao permitir que chats compartilhados voluntariamente pelos usuários fossem indexados pelos mecanismos de busca. Embora não seja uma falha de segurança no mesmo nível do Grok, o episódio reforça como a noção de privacidade nesse tipo de tecnologia é mais frágil do que imaginamos.

Para entender o impacto disso, é importante diferenciar o que significa indexação. Trata-se do processo pelo qual buscadores como o Google organizam e classificam páginas e conteúdos públicos para que apareçam em resultados de pesquisa. Quando uma conversa no ChatGPT é compartilhada por um link, esse conteúdo pode se tornar acessível publicamente e, portanto, indexado.

A OpenAI já lançou atualizações para permitir que os usuários impeçam a indexação desses links, mas centenas de conversas foram expostas. O episódio serve de alerta sobre o quanto a configuração padrão e a falta de clareza em políticas de uso podem colocar dados em exposição. Já no Grok, o problema não foi uma funcionalidade mal interpretada, mas uma falha grave de segurança: conversas privadas foram parar em páginas que o Google rastreou como qualquer outra, expondo dados pessoais e interações sem consentimento.

Esses dois incidentes escancaram a quantidade de informações que essas empresas armazenam sobre os usuários e como isso pode ser transformado em um ponto de vulnerabilidade. A promessa de que a inteligência artificial tornará a vida mais prática, com assistentes virtuais cada vez mais sofisticados, vem acompanhada do risco de que esses sistemas se tornem mecanismos de vigilância em massa, seja por descuido corporativo, seja por uso mal-intencionado de governos autoritários. O que hoje parece apenas uma falha técnica pode, em outros contextos, ser a chave para perseguições políticas, manipulação social e censura.

O paradoxo é evidente: nunca tivemos tanta tecnologia para melhorar a qualidade de vida e ampliar a liberdade individual, mas essa mesma tecnologia cria ferramentas poderosas para limitar direitos. A história mostra que regimes totalitários se apoiam em meios de controle, e as inteligências artificiais levam esse controle a um nível sem precedentes.

No Brasil, o governo tem investido em mudanças na governança da internet que podem concentrar ainda mais poder. A proposta de transferir para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados funções que hoje são exercidas pelo NIC.br e pelo Comitê Gestor da Internet segue o modelo de centralização estatal usado pela China. Essas duas entidades mantêm um sistema de governança multissetorial reconhecido internacionalmente, no qual governo, empresas, academia e sociedade civil têm voz equilibrada na definição de diretrizes para a rede. Substituir esse modelo por uma estrutura controlada por Brasília enfraquece a proteção de dados e facilita o controle político sobre a tecnologia.

A recente tentativa de regulamentação das redes sociais com base no episódio envolvendo o influenciador Felca é um exemplo. A exposição feita por ele revelou um problema real e grave de exploração infantil nas redes, mas o governo usou o caso como justificativa para avançar em projetos de controle da internet que já vinham sendo rejeitados. Essa estratégia, de se aproveitar de comoções sociais para aprovar legislações autoritárias, não é nova, mas ganha uma dimensão perigosa quando aplicada ao universo digital, onde a velocidade de disseminação de dados e a concentração de poder em poucas empresas tornam a privacidade um bem cada vez mais raro.

O que está em jogo vai muito além de preferências tecnológicas ou conveniências. É a capacidade de manter uma sociedade livre diante de corporações que lucram com nossos dados e governos que enxergam na tecnologia um meio de vigiar e punir. A revolução digital trouxe benefícios incontestáveis, mas, sem um debate sério sobre governança, privacidade e limites éticos, podemos acabar trocando liberdade por uma ilusão de segurança. O futuro da inteligência artificial não será definido apenas pelo avanço da ciência, mas pela coragem de estabelecer barreiras contra abusos de poder.

Lula na Tribuna, Trump nos Bastidores: O Duelo de 20 Segundos que Abalou a Estratégia Brasileira na ONU

O discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 80ª Assembleia Geral da ONU, proferido hoje, revelou-se um marco calculado na estratégia de reeleição para 2026. Sob o manto de uma defesa genérica do multilateralismo, Lula ergueu uma narrativa de confronto com os Estados Unidos, uma jogada destinada a galvanizar sua base eleitoral. No entanto, a realidade geopolítica, personificada por um encontro casual e estratégico com Donald Trump, expôs as contradições e o isolamento dessa abordagem, deixando o presidente brasileiro em uma posição delicada.

A fala no plenário foi construída em dois eixos: a autovitimização do Brasil e a criminalização de seus críticos. Ao afirmar que o país sofre “medidas unilaterais e arbitrárias” e uma “agressão contra a independência do Poder Judiciário”, Lula dirigia-se claramente ao seu eleitorado interno. A menção a uma “extrema direita subserviente” é um código para o palanque doméstico, transformando um fórum global em plataforma para atacar adversários. O objetivo é claro: consolidar a imagem de um líder sitiado, defendendo a pátria de potências estrangeiras e de uma “elite golpista” local, um roteiro bem-sucedido em campanhas passadas.

No plano internacional, o alinhamento com os rivais geopolíticos do Ocidente foi flagrante. A equiparação do conflito em Gaza a um “genocídio” e a afirmação de que sob os escombros palestinos está sepultado “o mito da superioridade ética do Ocidente” é uma das mais duras condenações já proferidas por um líder brasileiro, colocando-o em sintonia com os eixos antiamericanos. Da mesma forma, ao defender a retirada de Cuba da lista de patrocinadores do terrorismo e ao exigir, no contexto ucraniano, que se levem em conta “as legítimas preocupações de segurança de todas as partes” – um claro eco da narrativa russa –, Lula sinaliza qual bloco pretende liderar: o do Sul Global em contraposição ao equilíbrio de forças do Pós-Guerra.

Esta postura, no entanto, revela uma contradição flagrante: ao mesmo tempo em que condena supostas ingerências nos assuntos brasileiros, o presidente não hesita em discursar sobre os temas internos de outros países, praticando um ativismo internacional seletivo em defesa de aliados políticos ideologicamente alinhados. Até mesmo a agenda positiva apresentada – como o combate à fome e à crise climática – é instrumentalizada como pano de fundo para este projeto de poder, fazendo com que anúncios legítimos, como a saída do Brasil do Mapa da Fome e os preparativos para a COP30, percam força ao serem eclipsados por um discurso marcadamente acusatório.

A estratégia, porém, durou poucas horas. Nos bastidores, o acaso promoveu um choque de realidade. Ao se cruzarem, Lula e Trump travaram um encontro de 20 segundos que falou mais que o discurso de uma hora. O abraço e a rápida marcação de um encontro para a próxima semana, narrados com perspicácia pelo presidente norte-americano, foram um golpe de mestre típico de Trump. Ele reconheceu a “química excelente” de 39 segundos, mas foi rápido em lembrar, logo em seguida, as tarifas impostas pelo Brasil no passado e a suposta incapacidade do país de “se sair bem” sem os EUA. Trump, com habilidade negociadora, abriu uma porta de diálogo justamente após intensificar a pressão econômica, deixando Lula encurralado.

A confusão estratégica para o presidente brasileiro é evidente. Como conciliar a retórica de confronto, essencial para animar sua base ideológica, com a necessidade pragmática de negociar com o mesmo país que ele acabara de criticar frontalmente? A reação imediata dos mercados – com a Bolsa subindo e o dólar caindo ante a simples perspectiva de diálogo – é um sinal claro de que a comunidade econômica anseia por pragmatismo, não por embates.

O timing não poderia ser mais revelador. Em 2025, com o olho fixo nas eleições de 2026, Lula precisa reativar a mobilização de sua base. O discurso na ONU foi a peça central dessa estratégia. No entanto, a astúcia de Trump obriga-o agora a um malabarismo perigoso: negociar com o “império” que denuncia, arriscando desmobilizar seu eleitorado cativo, ou manter a rigidez e aprofundar o isolamento e os danos econômicos. A aposta na retórica do conflito mostrou-se um jogo de risco elevado. Lula, que aspirava a ser uma ponte, pode sair dessa semana não como líder, mas como um ator confuso, forçado a negociar com a potência que escolheu como adversária no palco mundial.

Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

Geopolítica da Aviação

Nos próximos dias, Montreal será palco da 42ª Assembleia da Organização de Aviação Civil Internacional (OACI/ICAO), encontro em que governos e operadores aéreos de todo o mundo alinham, a cada três anos, as prioridades de um setor central a economia mundial. A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) já manifestou grandes expectativas para esta reunião, com foco declarado em segurança, sustentabilidade e eficiência. 

Mais do que um fórum técnico, a ICAO é uma instituição de grande peso para as relações internacionais. Ao estabelecer normas globais para segurança, sustentabilidade e eficiência, ajuda a equilibrar forças geopolíticas, criando um espaço em que países com diferentes níveis de poder e influência precisam cooperar. As regras comuns que dali emergem funcionam como um ponto de convergência em um mundo marcado por rivalidades, garantindo que a conectividade aérea – essencial para o comércio, a diplomacia e o turismo – não se torne refém de disputas políticas. A aviação, afinal, é um dos poucos domínios em que a interdependência obriga a colaboração multilateral, e o trabalho da ICAO é peça central nesse delicado equilíbrio.

A instituição, entretanto, enfrenta um desafio. Como acolher nações que fazem parte da comunidade internacional, presença importante no sistema aéreo, mas que possuem reconhecimento parcial da comunidade global.  São países como Liechtenstein e Kosovo, além de uma das nações economicamente mais estratégicas do tráfego aéreo mundial na Ásia, mas que continua sem voz nesse debate – Taiwan.

A região de informações de voo de Taipei é um elo crucial entre o nordeste e o sudeste da Ásia. O Aeroporto Internacional da capital de Taiwan, 15º do mundo em passageiros internacionais e 6º em cargas, movimentou 44,92 milhões de passageiros em 2024 e processou 2,37 milhões de toneladas de carga. Trata-se de um hub de escala global, que integra 285 rotas para 117 cidades, operadas por 90 companhias aéreas.

Taiwan, contudo, é mantida à margem da ICAO por pressões políticas de Pequim, uma realidade que precisa de revisão urgente. O resultado deste movimento chinês é um risco coletivo, pois estamos falando de um hub essencial para o comércio global e que fica à margem de decisões essenciais para a aviação e economia internacionais. 

A ironia é que Taiwan já se antecipa a muitas das pautas da Assembleia. A Administração da Aeronáutica Civil local incorporou as regras do mecanismo global de compensação de carbono às leis nacionais. Existe também um programa piloto de combustíveis sustentáveis de aviação, além de estratégias para aeroportos mais sustentáveis. Em segurança operacional, o país reduziu ao mínimo a taxa de acidentes nos últimos cinco anos, mantendo altos padrões internacionais.

A Assembleia da ICAO, que se inicia agora, precisa ir além dos discursos e enfrentar a realidade: segurança, sustentabilidade e eficiência não reconhecem fronteiras políticas. Se a meta é um transporte aéreo verdadeiramente global, não se pode excluir quem já demonstra, na prática, compromisso com os padrões que o mundo pretende consolidar. A aviação, por natureza, atravessa fronteiras – e não pode permitir que barreiras políticas ponham em risco o que deveria ser, antes de tudo, um instrumento estratégico do comércio, turismo, diplomacia e economia globais.