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Democratas, populistas e autocratas

Boric (do Chile) é de esquerda, eu apoio Boric. Lacalle Pou (do Uruguai) é de direita, eu apoiava Pou. Agora Orsi (que sucedeu Boric no Uruguai) é de esquerda, eu apoio Orsi. Úrsula (da União Europeia) é dita de direita, eu apoio Úrsula. Por quê? Porque não são populistas nem autocratas. Estou pouco ligando se se dizem ou são ditos de esquerda ou de direita.

Lula (do Brasil) é de esquerda, eu não apoio Lula. Bolsonaro (do Brasil) se diz de direita, eu não apoio Bolsonaro. Petro (da Colômbia) é de esquerda, eu não apoio Petro. Trump (dos EUA) se diz de direita, eu não apoio Trump. E não apoio nenhum desses não porque sejam de esquerda ou de direita e sim porque são populistas.

Também não apoio Xi Jinping (da China), Canel (de Cuba) e Kim Jong-un (da Coreia do Norte) não porque sejam de esquerda e sim porque são autocratas. E não apoio igualmente Orbán (da Hungria), Erdogan (da Turquia) e Bukele (de El Salvador) não porque sejam de direita e sim porque são autocratas.

Contra autocratas, como é óbvio, só temos a democracia. Mas contra populistas, o que já não é tão óbvio, também só temos a democracia. Os novos populismos do século 21 são adversários da democracia, ainda que a parasitem. Não são propriamente ideologias e sim comportamentos políticos baseados na divisão da sociedade em uma única clivagem (povo x elites), no encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós contra eles”) e na ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Em alguns casos, não todos, os populismos são mais rudes e querem chegar ao governo pelo voto para, em seguida, acabar com o regime político democrático, seja erodindo progressivamente a democracia – desativando seus mecanismos de freios e contrapesos, seja, até, desferindo um golpe de Estado (ou auto-golpe) a partir do governo. Não é relevante que os populistas que se comportam assim se digam ou sejam ditos de esquerda ou de direita.

Os populistas vicejam em regimes eleitorais – chamados ainda de democracias, mesmo que não sejam liberais – porque esses regimes têm falhas “genéticas”: não têm proteção eficaz contra o discurso inverídido, não têm proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, não têm proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam e não têm proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interação de opiniões. Pouco importa se os populistas que penetram por essas brechas se declarem ou sejam considerados de esquerda ou de direita.

Então vamos simplificar tudo. Passou da hora de jogar fora no lixo esse papo de esquerda e direita. Os líderes e suas forças políticas podem ser classificados hoje basicamente em três tipos: democratas, populistas e autocratas.

A diagram of the political party

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Democratas (como Frederiksen, da Dinamarca e Merz, da Alemanha) não são populistas, nem autocratas. Não importa se a primeira é dita de esquerda (ou progressista) e o segundo é dito de direita (ou conservador).

Populistas podem ser autocratas (como Maduro, da Venezuela e Bukele, de El Salvador) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda e o segundo é dito de direita. Mas populistas podem também não ser autocratas (como Xiomara, de Honduras e Fico, da Eslováquia) – e não importa se a primeira se identifica com a esquerda e o segundo com a direita.

Autocratas podem não ser populistas (como Chính, do Vietnam e Min Aung Hlaing, de Mianmar) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda (e socialista) e o segundo é considerado de direita (um ditador militar).

Note-se que, nos pares citados acima como exemplos, sempre um é dito de esquerda e o outro de direita. Isso é para mostrar que não há diferença relevante entre eles em termos de comportamento político.

É claro que se pode detalhar a classificação proposta aqui para revelar as diferenças entre dois tipos de democratas, dois tipos de populistas e dois tipos de autocratas, como na imagem abaixo:

A diagram of different colors of circles

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Entre os democratas, temos os democratas liberais (como Rodrigo, da Costa Rica) e os democratas apenas eleitorais (como Plenkovic, da Croácia).

Entre os populistas, temos os neopopulistas (como Arce, da Bolívia) e os populistas-autoritários ou nacional-populistas (como Modi, da Índia).

Entre os autocratas, temos os autocratas eleitorais (como Putin, da Rússia) e os autocratas não-eleitorais (como bin Salman, da Arábia Saudita).

Claro que, como já foi dito, há uma interseção entre populistas e autocratas (no caso, autocratas eleitorais). O neopopulista Ortega (da Nicarágua) e o nacional-populista Erdogan (da Turquia) são também autocratas eleitorais.

Mas essas subclassificações não alteram a divisão básica entre democratas, populistas e autocratas.

Também não ajuda classificar as forças políticas em conservadores, liberais e socialistas – colocando os dois últimos como progressistas (quando muitos que se declaram socialistas são regressistas). Além disso, essa classificação ideológica exclui a possibilidade da existência de liberal-conservadores. As forças políticas não podem ser classificadas pelas ideologias confessadas por seus líderes e sim pelo comportamento político do conjunto de seus agentes.

Lula e a política tribal 

Para melhor analisar algumas atitudes políticas recentes, é preciso distinguir duas concepções fundamentais de política. A primeira delas advém da tradição clássica e se desenvolve por um viés democrático e liberal; a segunda advém da ruptura moderna perpetrada por Maquiavel e se desenvolve por um viés autoritário antiliberal. 

Na primeira concepção, a política está vinculada à ética, como busca do bem comum e do melhor regime, sendo um meio para a realização da justiça, tornada concretamente possível  dentro de humanos limites  pelo direito e pela moral, instâncias que circunscrevem o certo e o errado. 

Na segunda concepção, a política está desvinculada da ética e identificada ao exercício do poder, sendo o direito e a moral um meio para realização da razão do Estado, instância que circunscreve o certo e o errado. 

Saindo um pouco da argumentação puramente abstrata, a fim de não enfadar o leitor com excessos especulativos, analisemos os concretos gestos políticos aos quais me referi.

Cristina Kirchner

No começo deste mês, Lula foi à Argentina expressar apoio à ex-presidente Cristina Kirchner, que está presa em regime domiciliar, após ser condenada por corrupção. Lula se deixou fotografar com ela segurando um cartaz que dizia “Cristina libre”.

Com essa atitude, o presidente do Brasil intrometeu-se em um processo judicial da Argentina, em favor daquela por quem tem “uma amizade de muitos anos que vai muito além da relação institucional. Um carinho e afeto de amigos, companheiros de campo político”, conforme escreveu Lula em suas redes sociais. 

Poucos dias depois, o presidente dos Estados Unidos mostrou que ele também não vê problema nenhum em se meter em assuntos jurídicos internos de outros países para defender seu companheiro de campo político  no caso Jair Bolsonaro que, segundo ele, é apenas um “perseguido”. Para Trump, o ex-presidente do Brasil “não é culpado de nada, exceto de ter lutado pelo povo”

Qual a diferença entre o “Deixem Bolsonaro em Paz”, de Donald Trump, e o “Cristina libre” de Lula? Nenhuma. Ambos estão defendendo seus aliados políticos e se lixando para a justiça, para a verdade e para a soberania do país nos quais estão se intrometendo. 

Lula, entretanto, afetou grande indignação contra a postagem de Trump nas redes sociais e, com a hipocrisia que lhe é peculiar, escreveu:

A defesa da democracia no Brasil é um tema que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a liberdade e o estado de direito.” 

Contradição

Seria uma postagem legítima e até louvável, caso tivesse sido escrita por alguém cujas atitudes fossem coerentes com aquilo que escreveu. Obviamente não é o caso. Lula defendendo rule of law é quase uma contradição performativa, tanto pelo seu histórico pessoal, quanto pela prontidão com que tenta blindar da aplicação da lei seus amigos corruptos. 

Se ninguém está acima da lei, por que mandar buscar, de avião da FAB, a ex-primeira-dama do Peru Nadine Heredia, condenada por lavagem de dinheiro? Se aqueles que atentam contra a liberdade não estão acima da lei, por que apoiar, proteger e adular tiranos facínoras como Nicolás Maduro e Vladimir Putin? Se preza o Estado de direito por que se aliar à teocracia fundamentalista islâmica do Irã?

É que a concepção política de Lula e de seu entorno é aquela concepção maquiavélica, de viés autoritário à qual me referi no início deste texto. Lula age politicamente tendo por critério a distinção entre amigo e inimigo, ou seja, a definição exposta por Carl Schmitt na obra “O conceito do político”.

Amigo e inimigo

Para Schmitt, cada esfera da atividade humana tem seu critério específico: na moral, é o bem e o mal; na estética, é o belo e o feio, na economia, é o útil e o inútil (ou o lucro e o prejuízo), na política, é o amigo e o inimigo.

O ilustre Prof. Dr. Carl Schmitt, que escreveu, em 1934, no Deutsche Juristen-Zeitung que “o Führer protege o Direito”, defende a política como uma esfera autônoma, com suas próprias regras, que se impõe sobre normas morais ou jurídicas.

Ele é um dos grandes críticos do liberalismo político, uma vez que a tentativa liberal de mediar conflitos pela discussão racional e pelo consenso é entendida como uma neutralização ou moralização do político, que enfraquece o Estado. 

Identificar o inimigo é uma questão de sobrevivência. A política aqui é vista pelo prisma do antagonismo e não da harmonia. 

Populismo

Importa notar que o conceito de político de Carl Schmitt caracteriza políticas tanto de direita quanto de esquerda. É antes de tudo uma caracterização que orienta políticas de cunho autoritário e totalitário, de um lado ou do outro do espectro. 

Não apenas a esquerda petista e a esquerda identitária se movem segundo tal concepção, mas também a direita populista e reacionária. Daí a semelhança das atitude de Trump e Lula, que estão se lixando para a justiça e para o estado de direito, embora vez ou outra utilizem tais conceitos para fins meramente retóricos. 

O famoso “nós contra eles”, que está voltando com força total, é uma forma menos erudita de se referir a esse tipo de política tribal. Donald Trump, Viktor Orbán, Nicolás Maduro, Jair Bolsonaro, Lula — cada qual, à sua maneira, faz uso dessa lógica política schmittiana. 

Qual o contraponto a isso? Claramente é a tradição democrática-liberal à qual pertencem moderados, tanto de direita quanto de esquerda, ou aqueles que não se identificam nem com a esquerda nem com a direita, mas apenas com os princípios basilares da civilização.

A fragmentação da sociedade em grupos identitários fechados, que muitas vezes não se reconhecem mutuamente como legítimos, recria o tipo de antagonismo existencial que Schmitt descreveu. 

Contra isso talvez seja necessário resgatar um universalismo ético-político, de viés kantiano, baseado na razão, na dignidade humana e na possibilidade de uma ordem moral e jurídica universal.

Consenso moral mínimo

Para isso é necessário, porém, um consenso moral mínimo. Por exemplo, não legitimar como luta política a ação de um grupo de terroristas que sequestra e degola bebês em nome da causa palestina; não admitir aliança com o regime que financia esses mesmos terroristas, enforca homossexuais e espanca mulheres que ousam mostrar os cabelos; não fazer notinha diplomática na cúpula do Brics condenando um país invadido em vez de condenar o país invasor.

Vê-se, pois, que os valores que movem a política externa do atual governo Lula não são universalizáveis, o que é outra forma de dizer que Lula se move no âmbito de uma concepção amoral da política, que a sua concepção de política cavalga a moral ou, dito de forma mais rude, que Lula tem a moral de uma cavalgadura. 

Um confronto entre as teorias de Carl Schmitt e Immanuel Kant é, em certo sentido, um confronto entre dois paradigmas opostos de filosofia política. O primeiro rejeita qualquer forma de universalismo político ou jurídico, enquanto o segundo defende um cosmopolitismo racional baseado no direito. 

Para Schmitt, o direito depende da decisão política; para Kant, a decisão política subordina-se ao direito e à exigência da razão. De um lado, o avanço de nacionalismos, guerras e discursos contra os inimigos (à la Schmitt); de outro, a defesa de direitos humanos e do direito internacional (à la Kant). 

Lula age à la Schmitt, mas discursa à la Kant. Isso porque, embora pouco letrado, ele é diplomado em cinismo e astúcia pela escola Nicolau Maquiavel. 

Trilhos Vulneráveis

A recente assinatura do memorando entre o Brasil e China para estudos da Ferrovia de Integração Bioceânica, ligando o porto chinês de Chancay, no litoral do Peru, ao porto Sul de Ilhéus, na Bahia, é apresentada como um marco de desenvolvimento. Contudo, sob o brilho da promessa de progresso logístico, escondem-se riscos profundos que demandam cautela. A parceria com Pequim não pode ser analisada isoladamente, mas sim à luz do histórico de projetos de infraestrutura chineses. Experiências internacionais servem como alerta: aquilo que começa como investimento frequentemente evolui para relações de codependência, onde a soberania nacional é moeda de troca.

O modus operandi é preocupantemente familiar: empréstimos chineses, opacos em seus termos, financiam projetos executados por suas empresas estatais. O resultado é um desfecho com ares de neocolonialismo. O Sri Lanka, por exemplo, foi forçado a entregar o controle do porto de Hambantota por 99 anos à China após inadimplência. Na Malásia, o governo cancelou projetos ferroviários chineses devido a termos considerados leoninos e insustentáveis. O Laos mergulhou em crise de dívida colossal, hoje equivalente a quase 100% do seu PIB, impulsionada pela ferrovia China-Laos. A Etiópia viu seu principal aeroporto ameaçado de controle chinês. O padrão é o mesmo: endividamento insustentável seguido de perda de controle sobre ativos estratégicos.

No caso da Ferrovia Bioceânica, os riscos para a soberania brasileira são palpáveis. Os termos financeiros e operacionais, ainda desconhecidos, poderão conferir à China influência desproporcional sobre uma rota logística vital, transformando-a em um instrumento de pressão geopolítica. Isto significa que a dependência de financiamento e tecnologia chinesa podem minar a capacidade do Brasil de tomar decisões autônomas sobre sua infraestrutura estratégica, seus recursos naturais e até mesmo sua política externa, amarrando o país a interesses estranhos a nossa soberania.

Neste contexto, a urgência de um mecanismo robusto de avaliação de investimentos estrangeiros torna-se inegável. É aqui que ganha relevância o Projeto de Lei 1051/2025, de autoria do Deputado Hauly, que cria o Comitê de Triagem e Cooperação para Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil. Este órgão seria um escudo essencial na análise de investimentos estrangeiros em setores estratégicos como infraestrutura crítica, energia e recursos naturais, avaliando riscos concretos à segurança nacional, à soberania e à estabilidade econômica do país. A Ferrovia Bioceânica seria um caso emblemático que demandaria o crivo rigoroso de avaliação, garantindo transparência nos contratos, sustentabilidade financeira e salvaguardas contra perda de controle.

A ambição de integrar o continente com uma ferrovia bioceânica é louvável. Contudo, o caminho proposto, pavimentado pelo modelo chinês de financiamento e execução, é repleto de armadilhas históricas. Ignorar os exemplos da África e da Ásia, onde projetos similares geraram endividamento insustentável e erosão da soberania, seria uma temeridade. O Brasil não pode trocar o progresso logístico pelo risco da dependência. É imperativo que o Congresso Nacional priorize a aprovação do PL 1051/2025 para que possamos negociar com segurança, assegurando que o desenvolvimento da nação não comprometa sua autonomia e seu futuro nas mãos de interesses estranhos. Os trilhos do progresso não podem custar nossa soberania.

A derrubada do IOF expôs mais do que um conflito fiscal — revelou uma crise política e moral

A recente derrubada, pelo Congresso Nacional, do decreto que aumentava o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) desencadeou mais do que um impasse entre Legislativo e Executivo. A resposta de setores ligados ao governo — incluindo uma campanha coordenada por influenciadores digitais com o lema “Congresso Inimigo do Povo” — revela algo mais grave: a tentativa de deslegitimar uma decisão institucional legítima e democrática, apenas porque contraria os interesses do Planalto.

O aumento do IOF, proposto por decreto presidencial, visava arrecadar R$ 12 bilhões em 2025. Mas os impactos desse imposto, muitas vezes invisíveis à primeira vista, recaem com mais força sobre as camadas mais pobres da população. Empréstimos pessoais, cartão de crédito internacional, remessas de dinheiro para o exterior, compras parceladas e até consultas médicas fora do país ficariam mais caros. Pequenos empreendedores e consumidores já endividados seriam diretamente afetados.

É nesse contexto que o Congresso agiu: derrubou uma medida impopular, com impacto negativo para milhões de brasileiros, e cobrou do governo que apresentasse alternativas mais justas para recompor a receita. Ao contrário do que dizem os ataques orquestrados por influenciadores com forte alinhamento ao governo — e com possível financiamento partidário —, essa atitude não torna o Congresso um “inimigo do povo”, mas sim um freio necessário contra uma política fiscal injusta e mal planejada.

A campanha difamatória nas redes sociais, que tenta jogar a população contra o Legislativo, é perigosa por dois motivos: primeiro, porque alimenta uma crise institucional entre os Poderes, num momento em que o país precisa de diálogo e estabilidade; segundo, porque desvia o foco do verdadeiro debate: de onde virá o ajuste fiscal, e quem vai pagá-lo.

E é aqui que está a verdadeira urgência. O governo tem, sim, alternativas para fechar as contas sem penalizar os mais pobres. Pode, por exemplo:
• Rever renúncias fiscais que drenam mais de R$ 500 bilhões ao ano, muitas sem retorno social comprovado;
• Reduzir gastos supérfluos da própria máquina pública, como diárias, passagens, publicidade institucional e aluguéis desnecessários;
• Utilizar parte dos lucros das estatais, como Petrobras e bancos públicos, para proteger programas sociais essenciais.

Nada disso foi discutido com profundidade pelo governo antes da edição do decreto. Preferiu-se o caminho mais fácil — aumentar imposto sem debate. Quando o Congresso impôs o limite, reagiu-se com ataques, desinformação e tentativas de desmoralização.

A boa política fiscal precisa de equilíbrio, responsabilidade e justiça. Mas precisa também de respeito às instituições e à democracia. Criminalizar o Congresso por cumprir sua função constitucional é sinal de autoritarismo travestido de virtude popular. E o povo — o verdadeiro povo — não pode ser usado como escudo para más decisões econômicas ou para campanhas de ataque político.

O Congresso não é inimigo do povo. O verdadeiro inimigo é um governo que, diante de erros, prefere transferir a culpa a quem o corrige, em vez de corrigir sua rota. E o povo brasileiro, atento e maduro, já começa a perceber isso.

Guerra Fria eletrônica

Na disputa pela hegemonia econômica, tecnológica e militar do sistema internacional neste século, os Estados Unidos e a China lutam para ditar as regras de um padrão mundial de Inteligência Artificial (IA). Reportagem recente do Wall Street Journal focalizou os lances mais dramáticos dessa nova corrida armamentista da informação e do conhecimento. (**)

O segundo governo do Republicano Donald Trump, assim como o de seu antecessor Democrata Joe Biden, procura estreitar o espaço de manobra do rival chinês por meio de uma série de restrições que vão desde a proibição das exportações dos chips (semicondutores) de maior capacidade computacional aos chineses até novas barreiras à entrada de estudantes oriundos do “Império do Meio” em universidades norte-americanas e empresas do Vale do Silício. Trump, por exemplo, vetou a venda do superchip “HZO AI”, da Nvidia, mesmo ao custo de 10 bilhões de dólares em vendas não realizadas por essa companhia. O governo também veda o fornecimento de serviços públicos formatados pela DeepSeek, vedete chinesa de IA, e tramita no Capitólio um projeto de lei bipartidário proibindo as agências federais de usarem quaisquer produtos e serviços de IA made in China.

Um claro indicador desse processo de desacoplagem (decoupling) científico-tecnológica é a rápida e significativa queda dos investimentos americanos em empreendimentos chineses na área de IA. Em 2018, de acordo com levantamento do PitchBook citado pelo Journal, investidores dos Estados Unidos financiavam 30% desses empreendimentos na China, cujo total era então avaliado em 21,9 bilhões de dólares. Naquele mesmo ano, as vendas da Nvidia no mercado chinês somaram 9,7 bilhões de dólares. (O auge desses investimentos se deu em 2019, quando eles se aproximaram da marca de 40%.) A projeção para este ano de 2025 é que o financiamento americano não ultrapasse 5%.

A resposta do regime de Pequim à desacoplagem tem sido orientar e incentivar as empresas do país para que tornem suas cadeias de suprimentos cada vez mais independentes dos insumos da América.

Hoje em dia, a IA da China procura compensar a dianteira americana em inovação tecnológica, traduzida em maior rapidez de processamento e alimentadas por bilhões de dólares em pesquisa de ponta, oferecendo aos seus clientes no mundo inteiro (Oriente Médio, Ásia, África e mesmo Europa) uma mercadoria quase tão boa, a preços consideravelmente mais em conta. Por ora, o ChatGPT, da americana OpenAI, conta com 910 milhões de usuários ao redor do globo, contra 125 milhões atendidos pela chinesa DeepSeek. Todavia, os Large Language Models (LLM) da DeepSeek e de gigantes do comércio eletrônico chinês como Alibaba e Tencent têm fechado grandes negócios internacionais.

O banco britânico HSBC, e a Aramco (joint venture saudi-americana), maior petroleira do mundo, já rodam modelos da DeepSeek nos seus datacentros. E, a despeito de o cerco das proibições estar se fechando, até mesmo grandes marcas americanas em tecnologia da informação, como a Amazon Web Services, a Microsoft e o Google, oferecem DeepSeek aos seus clientes. A OpenAI contra-ataca abrindo cada vez mais filiais no continente europeu e na Ásia. Cerca de 85% dos clientes da IA made in USA estão em países estrangeiros. Enquanto isso a chinesa Zhipu AI fornece a assistência técnica a países do chamado Sul Global na montagem de suas infraestruturas de inteligência artificial.

Com um cerrado foco em aplicações práticas e baseando seus modelos em fontes abertas (open source), os modelos de IA da China possibilitam ampla adaptação às necessidades de cada cliente, de modo a disseminar sua adoção. Em contraste como os modelos ‘proprietários’ de companhias americanas como a Anthropic e a OpenAI, que os vendem a preços relativamente altos, os modelos chineses aliam boa qualidade a preços que podem ser até 17 vezes mais baratos, um atrativo muito importante para clientes geralmente parcos em capital como os do Brasil. Países mais ricos, como o Japão, tampouco se mostram insensíveis a esses diferenciais de preço e customização. O Ministério da Economia, da Indústria e do Comércio japonês, por exemplo, recebe consultoria de um desenvolvedor local que lhe fornece modelos open source baseados no “Qwen” da Alibaba. No mundo inteiro, o Qwen já serve de plataforma a mais de 100 mil modelos derivativos.

Tudo isso dito, para quem se preocupa com o destino da liberdade e da democracia neste admirável mundo novo, a expansão mundial da IA chinesa traz um grave inconveniente: aplicativos desenvolvidos sob a modelagem da DeepSeek produzem respostas ‘censuradas’ a questões que o Partido Comunista da China classifica como politicamente sensíveis, tais como a repressão aos budistas tibetanos ou aos muçulmanos da província de Xinjiang….

Seja como for, as empresas de tecnologia das duas superpotências sabem que aquilo que irá definir a vitória ou a derrota dos seus respectivos modelos será o número de usuários que seus respectivos modelos de IA conquistarão mundo afora.

(**) LIN, Liza et alii, “China is quickly gaining in AI race”, The Wall Street Journal, Wednesday, July 2, 2025 (capa e página A7).

The Economist pegou leve com Lula

Trabalhar com análise política é interessante, mas, às vezes, se torna um tanto fastidioso, tendo em vista a necessidade de repisar obviedades “ululantes”.

Tenho insistido especificamente na incoerência de Lula, que se autoproclama líder democrático ao mesmo tempo em que defende ditaduras amigas; que se proclama pacifista ao mesmo tempo em que se derrete de amores pelo belicista Putin.

Em janeiro de 2024, escrevi o artigo “Lula: cai a máscara democrática de um tirano”; em janeiro de 2025, escrevi “Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro”, dentre dezenas de outros textos nos quais repiso a hipocrisia do presidente brasileiro.

Foi, portanto, com interesse que li a matéria da revista britânica The Economist, que expõe a “política externa cada vez mais incoerente de Lula”. Antes tarde do que nunca, pensei eu. Já era tempo de o mundo livre abrir bem os olhos a respeito da hostilidade de Lula contra o Ocidente.

Embora a matéria tenha levado a uma furiosa retaliação verborrágica da mídia governista, a ponto de determinados portais chamarem a publicação de “preconceituosa, obtusa e reacionária”,trata-se de uma reportagem quase descritiva, com pouco juízo de valor.

A reportagem traz o seguinte título: “Presidente do Brasil perde influência no exterior e é impopular em casa”. É um fato, não uma interpretação.

O texto – que começa apontando a veemente condenação do governo brasileiro ao ataque americano às instalações nucleares do Irã – segue explicitando a incoerência e a obtusidade da atual política externa brasileira:

Lula corteja a China”, diz a revista, lembrando que ele se encontrou com Xi Jinping duas vezes no ano passado e que não fez nenhum esforço para estreitar laços com os Estados Unidos desde a eleição de Donald Trump.

Lula foi o único líder de uma grande democracia a comparecer às comemorações russas do fim da Segunda Guerra Mundial”, diz a matéria, acrescentado que Putin nem ninguém deu ouvidos ao seu interesse de mediar a guerra na Ucrânia.

Lula tampouco consegue assumir protagonismo e pragmatismo na América Latina, afirma ainda a revista:

“Quando assumiu o cargo pela terceira vez, em 2023, apoiou Nicolás Maduro, o autocrata da Venezuela”, denuncia The Economist, apontando também o distanciamento de Lula em relação ao presidente argentino Javier Milei por motivos meramente ideológicos e o esquecimento do Haiti, que “se afunda em um inferno governado por gângsteres”.

Por fim, a matéria conclui acerca da irrelevância do Brasil no contexto das guerras nas quais Lula insiste em se meter: “nas questões geopolíticas mais urgentes, como a guerra na Ucrânia ou o Oriente Médio, o Brasil simplesmente não é muito importante. Lula deveria parar de fingir que é e se concentrar em questões mais próximas”.

Tudo isso é coisa sabida, denunciada na referida reportagem de forma até comedida. Os gringos pegaram leve com Lula.

A revista apenas explicita o que qualquer um que não seja lulista fanático não tem mais dúvida: o presidente brasileiro tornou-se um ator irrelevante, quando não nocivo, no cenário internacional, que foi palco da sua maior ambição e de esforços inauditos de projeção.

A hostilidade de Lula ao mundo livre é proclamada por ele mesmo, ao alinhar-se ao chamado Sul Global; caminho no qual é insuflado pela extrema-esquerda brasileira que adotou o discurso decolonialista que demoniza a Civilização Ocidental. 

Já a simpatia de Lula pelo Irã avança para o apoio sempre que aparece oportunidade; e vem de longe, desde os primeiros mandatos.

A reação do Itamaraty

Mais do que a reportagem sem surpresas da revista The Economist, atraiu minha curiosidade a carta assinada pelo ministro ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira: uma coisa elaborada não pela prudência diplomática, mas por insidioso rancor; atitude incompatível com as tradições de apuro e competência da diplomacia brasileira desde os tempos do Barão do Rio Branco.

A carta do Itamaraty, respondendo à reportagem da revista The Economist sobre o presidente Lula, revela mais sobre este personagem do que as verdades ditas pela revista britânica. É bizarro que o Ministério das Relações Exteriores ocupe seu tempo respondendo reportagens adversas publicadas ao redor do mundo.

Ao primeiro olhar já podemos perceber que ao Itamaraty coube apenas alinhavar a narrativa do presidente contrariado e ressentido. 

Poucos líderes mundiais, como o Presidente Lula, podem dizer que sustentam com a mesma coerência os quatro pilares essenciais à humanidade e ao planeta: democracia, sustentabilidade, paz e multilateralismo”, diz a carta oficial.

Essa afirmação medeia entre a incoerência e a hipocrisia. O próprio Lula já declarou que a democracia, para ele, é uma mera questão de “narrativa”.

O presidente brasileiro foi – em alguns casos continua sendo – apoiador (às vezes financiador) de um extenso número de ditaduras e regimes autoritários: Cuba, Bolívia (ao tempo de Evo Morales), Venezuela, Rússia, Irã, etc.

Sob a liderança de Lula, o Brasil tornou-se um raro exemplo de solidez institucional e de defesa da democracia”, prossegue o documento assinado pelo ministro Mauro Vieira.

Pelo contrário, sob a liderança de Lula, o Brasil tornou-se um raro exemplo de país formalmente democrático que defende e apoia ditaduras e regimes autoritários ao redor do mundo.

Na gestão do Presidente Lula, o Brasil condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia, ao mesmo tempo em que apontou a necessidade de abrir caminhos para uma resolução diplomática do conflito, ainda em 2023”, continua o texto vexaminoso.

Todo mundo sabe que na gestão do presidente Lula, o Brasil adotou posição dúbia quanto à guerra da Ucrânia, com indisfarçável viés pró Rússia; chegando ao ponto de igualar o país invadido ao país invasor na responsabilidade pela guerra.

Para humanistas de todo o mundo, incluindo políticos, líderes empresariais, acadêmicos e defensores dos direitos humanos, o respeito à autoridade moral do presidente Lula é indiscutível.”

Esse trecho chega a ser risível. Certamente que a autoridade moral do presidente Lula é discutível; tanto que suas atitudes tíbias, incongruentes e suas narrativas mistificadoras costumam ser discutidas e refutadas no Brasil e mundo afora, a exemplo do que acaba de ser feito pela revista The Economist e pelo presente artigo.

Estranha democracia e estranho mundo seria esse no qual a “autoridade moral” de Lula seria indiscutível. Mas é para uma distopia como essa que o governo brasileiro tende, ao insistir nas suas mentiras e apostar na censura contra todos aqueles que ousam discordar das “verdades” oficiais. 

Essa carta miúda do Itamaraty é mais um episódio vergonhoso de uma diplomacia que se apequenou, submetida ao ego inflado de um presidente que se socorre dos naufrágios da sua incompetência no barco ligeiro das falácias, sofismas e narrativas de ocasião.

Desprestígio Internacional

A cúpula dos BRICS, sediada no Rio de Janeiro, deveria ser o grande trunfo diplomático de Lula em 2025. Porém, ao contrário, o encontro se transformou em um constrangedor retrato do desprestígio internacional do presidente brasileiro. O que deveria ser um palco para reafirmar sua liderança, se tornará um festival de ausências — e não por acaso. A lista de chefes de Estado que já declinaram é longa, e as razões são reveladoras.

A mais significativa é a de Xi Jinping. Até recentemente tratado como parceiro prioritário pelo Planalto, o líder chinês optou por não viajar ao Rio. Sua ausência é um recado claro e expressa, entre outras coisas, o descontentamento diante da decisão do governo brasileiro em deixar de aderir formalmente à Iniciativa da Nova Rota da Seda — eixo central da projeção geopolítica de Xi. Ao optar por tornar o Brasil apenas um parceiro preferencial, Lula gerou desconforto e desconfiança nos líderes orientais.

Além disso, recentemente Pequim flexibilizou a entrada de turistas brasileiros em seu território como um gesto de aproximação. O Brasil, contudo, decidiu manter exigências e burocracia para cidadãos chineses. Na diplomacia, reciprocidade é fundamento. Na política externa, é preciso ler nas entrelinhas dos pequenos gestos e os chineses entenderam o recado. E não gostaram.

Entretanto, talvez o episódio mais incômodo tenha ocorrido no plano simbólico. Durante jantar de Estado em Pequim, a primeira-dama Janja quebrou o protocolo ao se dirigir diretamente a Xi Jinping e, de forma inusitada, aproveitou a oportunidade para criticar o TikTok. A intervenção foi considerada desrespeitosa e causou visível desconforto à primeira-dama chinesa, Peng Liyuan. No universo altamente codificado da política oriental, esse tipo de atitude é lido como desconsideração pessoal e diplomática. Foi o empurrão final para a decisão de Xi de se manter distante do Rio. Isto significa que não estamos falando apenas de um desencontro de agendas, mas o sintoma de um desgaste latente que a retórica oficial tenta maquiar.

Do lado russo, a situação tampouco é confortável. Vladimir Putin, temendo a aplicação do mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional, avalia que Lula não tem condições políticas nem jurídicas de garantir sua segurança no Brasil. A promessa vaga de que não haveria prisão não convenceu o Kremlin. Outros líderes, como Abdel Fattah al-Sisi (Egito), Recep Erdoğan (Turquia) e Claudia Sheinbaum (México), também já sinalizaram que não comparecerão. O esvaziamento do evento se dá em todas as direções — das poucas democracias pragmáticas, onde seu discurso é visto com desconfiança, aos muitos regimes autoritários, onde sua liderança já é considerada ineficaz. Lula acabará isolado no palco que sonhava ocupar com pompa.

O que se constata é que Lula não possui o prestígio internacional que acredita ostentar. Se, em mandatos anteriores, sua retórica encantava plateias estrangeiras, hoje ela soa cansada e desconectada. O desprestígio que antes se intuía, tornou-se fato consumado. E a reunião dos BRICS no Rio promete ser o cenário definitivo onde se confirmará que a política externa brasileira, sob Lula, perdeu relevância — até entre seus aliados naturais.

Entre o discurso de grandeza e a prática diplomática há um fosso. E nele, afunda o Brasil — sem plateia, sem aliados e, cada vez mais, sem relevância.

Por que não ouvem as mulheres do Irã e ainda defendem os aiatolás?

Você pode ter todas as críticas ao Trump e ao Netanyahu, muitas delas, justas. Mas isso é totalmente diferente de passar pano para o regime dos aiatolás no Irã. Um regime que, há mais de 40 anos, espanca, tortura e assassina o próprio povo, principalmente mulheres, por quererem existir fora da cartilha da teocracia. E ainda assim, parte dos autoproclamados progressistas brasileiros insiste em relativizar ou até apoiar esse tipo de governo.

Isso não é política. É uma deformidade moral. A defesa dos aiatolás não é só um erro ideológico, é um desprezo explícito pela vida humana e mais ainda pela palavra de quem está sendo massacrado. 

O que mais espanta é o silêncio de quem se diz feminista. Cadê o “mexeu com uma, mexeu com todas”? Cadê o “ninguém solta a mão de ninguém”? Por que essas mulheres que batem no peito, erguem cartazes e marcham com palavras de ordem ignoram completamente o que dizem as mulheres do Irã?

A explicação talvez esteja em uma ilusão: a de que, se elas apoiarem o regime, serão poupadas. Mas não serão. Para o fanático religioso, mulher é mulher. Se for impura, ocidental e livre deve ser castigada.

E a história está cheia de exemplos do extremismo e perseguição dos aiatolás. O próprio Salman Rushdie ficou décadas fugindo de uma sentença de morte emitida por um aiatolá nos anos 80. Em 2022, tentaram matá-lo de novo. Não importa quem você é nem o que pensa. Importa só o fato de você não obedecer ao que eles acreditam.

E o que faz o governo brasileiro diante disso? Se alia aos aiatolás. Reproduz discurso cínico de que o programa nuclear iraniano é só pra fins pacíficos mesmo com evidências claras do contrário. Mesmo com alertas de líderes europeus. E o que o Brasil ganha com isso? Nenhuma relevância internacional. Nenhuma utilidade prática. A gente não tem nem condição de combater bandido comum, vai fazer o quê numa guerra? Pintar meio-fio?

Mas há um efeito real: aqui dentro. A retórica do governo Lula está ajudando a importar um conflito que não era nosso. E, pior, está inflamando o antissemitismo no Brasil como nunca antes. Um país que sempre foi exemplo de convivência pacífica entre árabes e judeus, que acolheu imigrantes do mundo inteiro fugindo da guerra, agora vê esse espírito de coexistência sendo corroído.

Porque alguém em Brasília achou inteligente escolher estar ao lado de todas as ditaduras do mundo. Quem paga esse preço? As vítimas do extremismo. As mulheres iranianas. Os judeus brasileiros. A democracia. Tudo em nome de um discurso que não se sustenta nem na ética nem na lógica.

Regulamentação das redes sociais

Há uma sanha de regulamentação das chamadas redes sociais. Neste artigo mostro por que está tudo (ou quase tudo) errado. 

1 – Em primeiro lugar, não são redes sociais (social networks) e sim mídias sociais (social media). Só no Brasil se confunde tanto as duas coisas. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio, não plataformas, aplicativos, programas, tecnologias. Redes sociais não são um nome para um novo tipo de organização e sim um padrão de organização (caracterizado por topologias mais distribuídas do que centralizadas). Você quer entender essas diferenças? Vai aqui uma bibliografia básica (1).

2 – Em segundo lugar, as regulamentações propostas pelos que querem estabelecer, desde o século passado, o “controle social da mídia”, não afetam apenas as mídias sociais e sim toda a internet. E o controle social que preconizam acaba sendo, na prática, um controle partidário-governamental (na medida em que qualquer órgão regulador inventado será vulnerável ao processo de conquista de hegemonia efetivado por parte de militantes e simpatizantes de partidos ou movimentos que praticam a política como guerra, quer dizer, como construção contínua de inimigos, na base do “nós contra eles”). Você quer entender por que a internet como um todo será afetada e não apenas as mídias sociais? Acompanhe os posts do @ayubio, que entende do assunto (2). Vale a pena ler também a avaliação do Ronaldo Lemos sobre a regulamentação aprovada pelo STF (3).

3 – Em terceiro lugar, as mídias sociais poderiam ser excelentes instrumentos de netweaving (ou seja, de articulação e animação de verdadeiras redes sociais), mas infelizmente não são. Seus algoritmos caixa preta acabam induzindo o broadcasting, a disseminação de mensagens um-para-muitos que estimula seus usuários a adquirir cada mais seguidores – em vez de interagir (que é aceitar ser modificado pelo outro-imprevisível, na interação fortuita) – ficando sujeitos à doença da rede que chamamos de fama e não leva à formação de redes humanas, redes de pessoas interagindo em um padrão mais distribuído do que centralizado (que são as verdadeiras redes sociais). Se você quiser saber mais sobre netweaving, pesquise (4). 

4 – Em quarto lugar, os modelos de negócios das grandes plataformas de mídias sociais estimulam a discórdia e não a concórdia, o dissenso e não o consenso, a desavença e não o encontro, configurando ambientes favoráveis à luta de facções e tribos pelo predomínio ou pela supremacia no novo espaço público digital e não à busca coletiva de soluções compartilhadas para seus problemas, à realização de projetos comuns que partam da congruência de seus desejos; ou, mesmo, à simples convivência amistosa (ou não-adversarial). A preocupação com isso é legítima, ou seja, não está errada. O que está errado aqui são as soluções repressivas frequentemente apresentadas por motivos políticos.

5 – Em quinto lugar, toda regulamentação marcada pelo imperativo de alterar a correlação de forças a favor de um projeto político de poder acaba desaguando no processo eleitoral. Na conjuntura atual brasileira os promotores de regulamentações autoritárias estão preocupados precipuamente em reeleger Lula da Silva em 2026 e então estão procurando um meio de usar algum tipo especioso de regulamentação para proibir que as campanhas de oposição: a) falem da história de corrupção do PT; b) associem a corrupção do INSS e outros escândalos ao incumbente e seus aliados ou seguidores; c) tragam à tona a aliança histórica de Lula e do PT com ditaduras (como Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola) e denunciem a aproximação de Lula com Putin, sua admiração por Xi Jinping e sua simpatia pelos teocratas iranianos e por outros autocratas ou populistas alinhados no propósito de destruir as democracias liberais. É improvável que essa manobra suja – “eu fico com as TVs e vocês ficam sem as mídias sociais” – funcione eleitoralmente, pelos motivos apresentados no tópico abaixo.

6 – Em sexto lugar, é uma ilusão pensar que coibindo o uso das mídias sociais por parte dos nacional-populistas, o problema da existência de uma extrema-direita com ampla base eleitoral (e social) será resolvido. O emprego abusivo e destrutivo das mídias sociais é parte de um movimento de caráter revolucionário (ainda que para trás, quer dizer, reacionário) que está presente no mundo todo. Não adianta demonizar os trilionários malvadões das bigtechs e seus algoritmos malignos, pois a apropriação e o uso político desses meios não obedece a nenhuma coordenação centralizada: é um movimento difuso ou distribuído que acaba arrastando todos aqueles que não estão satisfeitos com “o sistema”, com a maneira como esse sistema (seja o que entendam por isso) está organizado e funciona. Ademais os tecnofeudalistas provedores da infraestrutura e dos algoritmos das grandes plataformas não vão se abalar muito com um traque soltado pela suprema corte brasileira: continuarão funcionando e será impossível proibir o uso de VPNs e outros meios de desobedecer e burlar as proibições a não ser que o país esteja disposto a se transformar em uma ditadura. Tais proibições só aumentarão e espalharão a revolta. No Brasil, em particular, o bolsonarismo tem de ser enfrentado pela democracia. Não por medidas antidemocráticas (como uma regulamentação autoritária que vise impedir a paridade de armas em disputas eleitorais e outras). Nossa democracia deve ser capaz de resistir ao nacional-populismo (bolsonarista) e ao neopopulismo (lulopetista) com mais democracia, não com menos. Do contrário, o regime político brasileiro se autocratizará.

Silêncio Inoportuno

Em meio à instabilidade no Oriente Médio, onde nações como Israel exercem seu direito legítimo de defesa contra ameaças existenciais, a comunidade internacional espera clareza de seus membros. Países democráticos agem em coordenação para conter a proliferação do terrorismo e garantir a segurança regional – objetivos que refletem valores de sociedades livres no espectro da ordem internacional. Neste cenário, o silêncio estratégico do Brasil não se mostra como neutralidade, mas omissão perigosa que mina sua credibilidade como parceiro global. 

O governo brasileiro, ao abster-se de condenar não apenas ações terroristas, mas também o acelerado avanço do programa nuclear iraniano – que viola múltiplas resoluções do Conselho de Segurança da ONU –, compromete sua retórica de defesa da paz. A comunidade internacional reconhece que a desnuclearização do Irã não é uma questão política, mas imperativo de segurança coletiva. Ignorar este risco sistêmico, enquanto Israel e aliados lutam para conter ameaças imediatas, é falhar na compreensão das verdadeiras fontes de instabilidade regional e global. 

A insistência do Itamaraty em posicionar-se como “equidistante” entre aliados estratégicos do Ocidente e regimes que desafiam a ordem nuclear internacional revela um grave erro de cálculo ou uma forma de tomar posição de forma silenciosa. Enquanto potências como os EUA e Israel defendem valores compartilhados com o Brasil – como liberdade, segurança coletiva e respeito às instituições –, a reticência brasileira isola o país de parceiros naturais. Esta falsa neutralidade, além de fragilizar nossa inserção internacional, ignora que em conflitos desta magnitude, não tomar partido pela ordem democrática é, implicitamente, enfraquecê-la. 

Ademais, as declarações do assessor internacional Celso Amorim sugerindo risco de uma “Terceira Guerra Mundial” são não apenas desproporcionais, mas geopolítica e historicamente imprecisas. O verdadeiro perigo sistêmico reside na proliferação nuclear por atores não responsáveis, não em conflitos convencionais. Enquanto o Irã avança em seu programa balístico e enriquece urânio em níveis incompatíveis com usos civis, especulações sobre guerras mundiais desviam a atenção da ameaça tangível: um arsenal nuclear nas mãos de um regime que financia grupos terroristas armados e nega o direito à existência de Estados vizinhos. 

O Brasil possui tradição diplomática demasiado valiosa para desperdiçá-la em silêncios cúmplices ou alarmismos vazios. Este é o momento de reafirmar nosso alinhamento com parceiros que defendem a ordem democrática internacional, apoiando explicitamente a desnuclearização verificável e a necessidade de ações militares contra o Irã como condição para a segurança global. A credibilidade exige condenar tanto o terrorismo quanto os programas que ameaçam a não-proliferação, principal pilar da paz desde 1945. Neutralidade diante deste duplo desafio não é opção – é abdicação moral. 

O caminho para a relevância global não passa pela neutralidade cúmplice ou ilusória, mas pela coragem de nomear ameaças e estar ao lado daqueles que garantem a estabilidade do sistema internacional. A credibilidade do Brasil exige este reposicionamento urgente.