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O assassinato de Charlie Kirk e a intolerância sádica da extrema esquerda identitária

Escrevi um artigo sobre o assassinato do ativista conservador americano, Charles Kirk, logo após o ocorrido; antes, portanto, de constatar a extensão do esgoto moral no qual habita a alma de uma parcela barulhenta da militância radicalizada de extrema esquerda, aqui mesmo, no Brasil.

Há algum tempo uso a expressão “extrema esquerda” em meus textos. Utilizo-a para me referir a esquerdistas que apoiam terroristas e ditadores e que relativizam a vida humana em defesa da sua causa.

Refiro-me a pessoas como Mauro Iase que, em 2015, discursou para centenas de pessoas defendendo o fuzilamento de adversários políticos; pessoas como Marcos Dantas Loureiro que, mais recentemente, sugeriu guilhotina para a família de Roberto Justos porque sua filhinha ostentava uma bolsa de grife; pessoas como meu ex-professor de filosofia da Universidade Estadual do Ceará, Emiliano Aquino, cujo passatempo favorito é fazer postagens descaradamente antissemitas e de apologia ao Hamas, em seu perfil do Instagram.

O que têm em comum esses três indivíduos além de serem fanáticos extremistas? São professores universitários, têm certa influência e estão profundamente empenhados em doutrinar seus jovens alunos com uma visão distorcida e imoral de mundo que justifica e glorifica a violência mais extremada sob pretexto de corrigir alguma injustiça social.

E eis que, após o cruel assassinato de Charles Kirk, outros vários indivíduos desse tipo saíram dos bueiros para disseminar sua torpeza moral comemorando o ocorrido, com um riso de deboche satânico, qual um coringa ensandecido.

Foi o caso do jornalista, escritor, e youtuber Eduardo Bueno, cujo vídeo, em que zomba do ocorrido, foi amplamente difundido na internet, gerando repúdio em todos aqueles, à esquerda e à direita, cujo sentimento moral não fora ainda totalmente embotado pela ideologia.

Houve também o caso de um neurocirurgião que chegou a ter seu visto para os EUA cancelado após as autoridades americanas tomarem conhecimento da postagem na qual o médico elogia o assassino de Kirk pela sua “pontaria impecável”, que teve “precisão cirúrgica na coluna cervical”.

Não se pode perder de vista o fato de que não estamos falando apenas de maníacos anônimos, que escrevem qualquer coisa nas redes. Estamos falando de profissionais qualificados: professores, médicos, jornalistas, etc. Pessoas consideradas normais, que têm importante papel social a cumprir e que influenciam inúmeras pessoas ao ser redor com suas opiniões e ações.

Isso é grave. Sabemos que o mal existe, que a criminalidade e o terror estão espalhados na sociedade, mas é sintomático constatar que pessoas ditas civilizadas, que não estão à margem, mas totalmente inseridas dentro do quadro social, justifiquem crimes bárbaros por conta de ideologias políticas.

A cisão social na qual estamos todos imersos é profunda, suas causas são complexas, donde a impossibilidade de investigar as variadas nuances nesse reduzido espaço de reflexão. Gostaria, mesmo assim, de avançar algumas considerações.

Uma mente perturbada pela ideologia

Um relatório preliminar afirmou que as cápsulas de bala recuperadas da arma do assassino de Charlie Kirk continham declarações “transgênero e antifascista”, o que já foi parcialmente confirmado.

No cartucho usado estava gravada a frase “notices bulges OwO what´s this” (literalmente, algo como “percebe um volume aí? O que é isso?). Trata-se de uma gíria usada para provocar pessoas na internet. 

No outro cartucho não utilizado havia a inscrição “Hey, fascist, cath!” (ei, fascista, pega!). Havia ainda três setas apontando para baixo, símbolo relacionado ao movimento “antifascista”. Um segundo cartucho tinha gravada a letra da música Bella Ciao, canção que homenageia a resistência italiana que combateu o fascismo e o nazismo durante a segunda guerra. 

Um outro cartulho trazia ainda a frase “if you read this, you are gay Imao” (“se você leu isso, você é gay kkk”), um tipo de humor de trollagem típico de internet.

Inegável, pois, que além de uma mente perturbada, trata-se de uma mente ideológica, ou ideologicamente perturbada. 

E tudo indica que a ideologia que perturba a mente do rapaz é aquela que tem sido aceita quase como uma nova religião. Uma religião secular, mas tão dogmática e fundamentalista quanto o foram as grandes religiões em suas épocas mais trevosas. 

Sim, estou falando do identitarismo, do wokismo, do transgenerismo, dessa visão de mundo radical, antiocidental, intolerante e anti-iluminista que exige ao mundo que se curve diante de seus dogmas.

Percebo que há entre pessoas públicas de bom senso certa autocensura que lhes impede tratar desses temas, mais especificamente do tema transgênero, pois há o receio de ser considerado intolerante, de se ver tachado de “fascista”, de “extremista de direita”.

Ao abrirmos mão de problematizar o tema, porém, deixamos os políticos e a militância mais radicalizada fazer da questão sua bandeira política, levando o pêndulo da intolerância para o lado oposto. Precisamos falar sobre a intolerância identitária a fim de buscar o mínimo de equilíbrio social.

Considero ruim a decisão do STF de criminalizar a homofobia e a transfobia por analogia com o crime de racismo. 

Digo isso, obviamente, não porque tenha preconceito contra homossexuais ou transgêneros, mas por saber que essa lei acabaria sendo politicamente instrumentalizada para criminalizar qualquer pessoa publicamente contrária à visão de mundo trans, que impõe nada menos que aceitemos bovinamente negar com eles a realidade e fazer tábula rasa da natureza e da biologia para satisfazer as suas ilusões de gênero.

Charlie Kirk era acusado de transfóbico e sua morte foi amplamente comemorada nas comunidades trans da internet. Kirk incitou violência contra trans? Não. Ofendeu algum indivíduo trans pelo fato de ser trans? Não. Ele apenas expôs sua visão de mundo, que é incompatível com a ideologia de gênero.

E, por ironia do destino, era justamente sobre violência trans que Charlie Kirk estava debatendo quando foi abatido pela bala do “antifascista”.

Claro, ele não estava falando sobre a violência contra pessoas trans, mas sobre a violência cometida por pessoas trans. O que é um sacrilégio, uma blasfêmia, um pecado que merece condenação eterna, segundo a seita trans.

Para preservar-me e poupar trabalho aos meu advogado – pois sempre que escrevo um texto mais duro e realista, aparece alguém para me acusar do crime de transfobia – passo a tratar o tema apoiada em citações retiradas do artigo mais recente do editor-chefe de política da revista britânica Spiked, Brendan O’Neill, autor do excelente livro “After the pogrom. 7 october, Israel and the crisis of civilisation”, traduzido, no Brasil, por Andrea Kogan, pela editora contexto.

Segundo O´Neill, “o espectro trans projeta sua sombra sobre quase todos os elementos desse assassinato bárbaro, e devemos ter liberdade para falar sobre isso sem medo de cancelamento ou retaliação”.

Charlie Kirk e o narcisismo apocalíptico dos transgêneros

No artigo intitulado “Charlie Kirk e o narcisismo apocalíptico dos transgêneros”, O’Neill lembra a “ironia sombria” na qual o se deu o fatídico evento:

Kirk estava discutindo a violência trans nos segundos que antecederam sua morte. Ele estava reagindo a um de seus alunos interlocutores que parecia minimizar o fenômeno dos tiroteios em massa realizados por pessoas trans. O aluno insistiu para que Kirk dissesse quantos tiroteios desse tipo já ocorreram. ´Demais´, respondeu Kirk. Segundos depois, sua artéria carótida foi rompida e ele estava morto”.

Ocorre que Kirk estava certo ao denunciar o considerável aumento da violência trans, explica o autor do artigo:

Nos EUA, houve pelo menos cinco tiroteios em massa perpetrados por agitadores trans indignados. Houve o massacre na Escola Católica Annunciation, em Minneapolis, no mês passado, quando um sujeito trans atirou em crianças pequenas que oravam, matando duas e ferindo muitas outras. A provocação grosseira, ´Onde está seu Deus?´, estava escrita em uma de suas armas. Houve também o massacre em uma escola cristã em Nashville, em 2023, no qual seis pessoas foram massacradas. E o tiroteio em uma escola em Denver, em 2019. E um massacre em um armazém em Maryland, em 2018”.

Como explicar esse incremento de violência? A resposta é meio filosófica, meio psicanalítica. Tem a ver com pós-verdade e narcisismo:

A seita trans parece cada vez mais consumida por uma animosidade brutal contra qualquer um que discorde de suas ortodoxias pós-verdade; contra aqueles fóbicos, vadias e hereges que ousam negar sua validação a homens que se dizem mulheres ou jovens que se dizem não binários”, afirma Brenda O´Neill, valendo-se também do livro The Culture of narcissism, de Christopher Lash para esclarecer o fenômeno:

A questão é a seguinte: a pressão violenta sobre a identidade trans não é acidental. Não é um complemento infeliz a uma causa tipicamente ´progressista´. Não, essa militância implacável e sexista é uma função direta do narcisismo apocalíptico que sustenta a identidade trans em particular e as políticas identitárias de forma mais ampla”.

E continua:

O problema com o delírio trans é que ele se desfaz na ausência de consentimento público. No minuto em que alguém diz ´Isso não é real´, toda a farsa estremece. […] O narcisista exige validação constante e acrítica, o que significa que até mesmo uma expressão de dúvida é suficiente para fazê-lo se sentir encurralado, minado, em perigo. E sabemos como homens egocêntricos tendem a responder em tais situações: com ameaças, até mesmo violência”.

[…] No culto ao narcisismo, seu concidadão é reduzido a seu mero objeto de desejo moral, sendo seu dever principal massagear sua identidade, por mais irreal que seja. […] A autoimagem do indivíduo não tem qualquer fundamento na realidade – é inventada do nada – o que o torna ainda mais dependente da disposição do público em suspender todas as suas faculdades críticas e dizer obsequiosamente: ´Sim, você é uma mulher´.

Se não o fizerem, se ousarem quebrar o espelho que esses homens arrogantemente esperam que o mundo seja, então a história ilusória que esses homens contam a si mesmos começa a ruir. Eles se sentem existencialmente ameaçados e atacam”.

Faço aqui um adendo a fim de esclarecer ainda melhor a firme exposição do analista político britânico. Não se trata de negar que haja no mundo e no Brasil o flagelo moral da violência contra pessoas trans.

É preciso condenar, combater, confrontar e punir pessoas que perpetram tais atos vis. O que não se pode é ter permissividade com a violência perpetrada por indivíduos de determinados grupos minoritários por pertencerem a um grupo de pessoas supostamente vitimadas e oprimidas pela sociedade.

Essa narrativa de que os indivíduos de grupos identitários são sempre os oprimidos se choca constantemente com a realidade. 

O vídeo da jovem refugiada ucraniana, Iryna Zarutska, sendo brutalmente esfaqueada em um metrô em Charlotte, Carolina do Norte, por um homem negro despedaça a narrativa identitária de que brancos são sempre opressores e negros são sempre oprimidos.

O que se pretende aqui é apenas lançar luz sobre o autoritarismo e a violência crescente dos que se julgam oprimidos ou que, pondo-se ao lado da causa dos que consideram oprimidos, passam a justificar a violência mais bárbara como se se tratasse de ação moral e legítima.

Vocês achavam que a revolução virá magicamente sem derramamento de sangue”, pergunta um conhecido ativista trans logo após o assassinato de Charlie Kirk, nas rede social Bluesky, frequentadas majoritariamente por pessoas de esquerda. A comemoração pelo assassinato foi intensa ali. Brenda O´Neill compilou uma enorme variedade desses comentários.

Destacou-se com novo alvo, nas comunidades trans, a autora de Harry Potter, J.K Rowling, conhecida pelas suas duras críticas à ideologia trans e cuja morte é febrilmente fantasiada.

“ ´Podemos ter J.K. Rowling em seguida?´, perguntou um canalha do Bluesky. Seria para ´o bem maior das pessoas trans´. Esta não é a primeira vez que um ato de violência deixa as pessoas salivando com a perspectiva de um destino semelhante para Rowling. Quando ela expressou horror à tentativa de assassinato de Salman Rushdie em 2022, um usuário do X respondeu: ´Não se preocupe, você é a próxima´.”

A conclusão do artigo de Brendan O´Neill, cuja leitura completa recomendo é a seguinte:

A violência, ou a ameaça implícita dela, gira em torno da ideologia trans. […] Você a vê em sua fantasia pervertida de livrar a Terra de J.K. Rowling para que os caras gordos de biquíni nunca mais tenham que ver um de seus tuítes concisos e provocativos. E você a vê na dança sobre o túmulo de Charlie Kirk antes mesmo que ele esteja nele”.

Precisamos falar sobre essa cultura de ameaça que permeia todos os aspectos da identidade trans. Seus processos de pensamento, suas bandeiras, suas ambições – tudo está impregnado da fantasia selvagemente antissocial de apagar ou pelo menos silenciar mulheres e homens, mas principalmente mulheres, que têm a audácia de se esquivar da insanidade ideológica da “mudança de sexo”.

Pergunto eu agora: levaremos adiante esse debate, ou nos calaremos com medo de processos, de cancelamentos e de tiros?

Pergunto ainda: conseguiremos debater esse tema nas universidades, uma vez que a intolerante militância trans, de modo particular, e identitária, de modo geral, está fortemente empoderada em tais instituições? 

Aceitaremos sem sequer problematizar o avanço cada vez maior de cotas para pessoas trans em concursos para universidades e órgãos públicos, sem que se vislumbre qualquer motivo plausível para que alguém ganhe uma vaga porque acredita que mudou de sexo?

Acovardarmo-nos agora não parece uma boa alternativa. A voz de Charlie Kirk foi precocemente calada. Não calemos a nossa por covardia.

A conquista de hegemonia nas universidades

Há pouco mais de um ano (em 16/07/2024) publiquei aqui (e na revista Inteligência Democrática) um extenso artigo intitulado “A estratégia de conquista de hegemonia do neopopulismo no Brasil”. Agora vamos comentar cada um dos “centros” da sociedade e do Estado que foram, total ou parcialmente, hegemonizados e que se transformaram em difusores de um pensamento hegemônico, ou melhor, de comportamentos hegemonistas. Esse texto vai gerar uma série sobre hegemonismo, cujo primeiro artigo segue abaixo.

Comecemos pelas universidades, sobretudo pelas áreas de ciências humanas das universidades federais.

Dois artigos recentes, publicados no mesmo dia, abordaram a questão: o de Catarina Rochamonte, em O Antagonista (25/08/2025), intitulado “Universidade sem pluralismo e democracia sem dissenso: o projeto hegemônico da esquerda iliberal” e o editorial do jornal O Estado de São Paulo (25/08/2025), ao qual o artigo de Catarina se refere, intitulado “O silêncio dos universitários”. Vamos republicá-los abaixo, juntamente com uma nota sobre a pesquisa do Instituto Sivis, também tomada como referência pelos dois artigos, para concluir com alguns comentários.


Universidade sem pluralismo e democracia sem dissenso: o projeto hegemônico da esquerda iliberal

Catarina Rochamonte, O Antagonista (25/08/2025)

Embora a intolerância não seja apanágio da esquerda, sabe-se que, no ambiente universitário, é o radicalismo esquerdista marxista ou identitário que se impõe como um rolo compressor contra a “dissidência”

Na introdução à sua erudita obra Histoire des idées politiques aux Temps modernes et contemporains, o pensador político francês, Philippe Nemo, destaca que os tempos modernos e contemporâneos são caracterizados principalmente pela aparição das teorias que fundam o Estado democrático e liberal.

Embora, segundo o mesmo autor, quase todas as ideias de base desse estado de direito tenham sido já formuladas por pensadores antigos e medievais, tal configuração só se tornou possível devido à concepção de um novo modelo de ordem social, qualificado por ele de “ordem para o pluralismo.”

Direito abstrato e universal, direitos dos homens, mercado, democracia, instituições acadêmicas livres, imprensa livre, etc; tudo isso faz parte dessa nova ordem que resultou da virada de chave intelectual por intermédio da qual se deu a tomada de consciência de que “a liberdade individual e o pluralismo que é seu corolário não eram fator de colapso social e desordem, mas uma forma superior de organização das relações entre os homens”.

Esse preâmbulo vem à guisa de comentário a uma recente pesquisa divulgada pelo Instituto Sivis, cujos dados comprovam algo já bastante perceptível e rotineiramente constatado: o fim do pluralismo na universidade, a transformação dos campi em espaços de doutrinação, silenciamento, cerceamento ideológico e intolerância.

Segundo dados da pesquisa realizada com estudantes de universidades públicas e privadas brasileiras, 57,1% dos estudantes que se identificam como sendo de centro se autocensuram em algum grau, ou seja, evitam emitir opiniões sobre temas controversos por medo de retaliações.

Embora a intolerância não seja apanágio da esquerda, sabe-se que, no ambiente universitário, é o radicalismo esquerdista marxista ou identitário que se impõe como um rolo compressor contra a “dissidência”.

Isso foi pontuado pelo editorial do Estadão, “o silêncio dos universitários”, ao comentar a referida pesquisa:

“Naturalmente, há fanatismos de direita rondando os portões da universidade, tentando minar a legitimidade da ciência e instrumentalizar a ignorância. Mas a verdade incômoda é que, dentro dos muros, os maiores carrascos da liberdade não são reacionários caricatos, e sim a esquerda iliberal hegemônica nas humanidades. Sob a máscara da “inclusão” e da “justiça social”, essa nova ortodoxia impôs um código de fé progressista, em que divergências são escorchadas como blasfêmia”.

O fenômeno não é nenhuma novidade. É sobejamente conhecido e vem se desenrolando há anos, mas não deixa de ser positivo que um jornal de grande circulação chame atenção para o problema em seu editorial, apontando inclusive a retroalimentação que há entre a tentativa da esquerda de se manter na universidade como pensamento único e a direita mais extremada que eles alegam combater:

“Ao abdicar da liberdade acadêmica, a universidade legitima o populismo que diz combater, abrindo espaço para que demagogos de direita se apresentem como paladinos da “verdade proibida”, explica o editorialista.

Admito que tenho certa dificuldade de tratar desse assunto de forma objetiva e impessoal, pelo simples fato de que minha vida acadêmica foi duramente marcada pelo confronto com a intolerância do ambiente universitário. Mas cá estou, teimosa e falante, diferentemente dos 57,1% acadêmicos que, segundo a pesquisa do Sivis, calaram suas opiniões por medo ou comodismo.

Continuo lastimando publicamente que a minha área, a Filosofia – mais que qualquer outra destinada à liberdade de pensamento e de expressão – tenha se deixado cooptar, com raras e louváveis exceções, até o ponto de se transformar em mera ideologia liberticida.

A título de exemplo, por esses dias, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) fez publicar em seu site um artigo intitulado “Uma democracia necessita de esquerda e de direita? Sobre o dissenso político na democracia”, assinado por um professor doutor da PUCRS. O ensaio é uma amostra interessante de como pensa a maioria dos intelectuais de esquerda.

Por meio de sofismas e daquela linguagem empolada típica de intelectual que só sabe escrever para seus pares e para suas bolhas ideológicas, o autor critica a afirmação de que “uma democracia não existe sem direita e esquerda”, feita por Renato Janine Ribeiro.

O mui democrático autor julga que a frase de Janine é uma imposição de dissenso que estaria “obrigando aos cidadãos de um povo [sic] a discordarem entre si”.

O dito cujo também critica a ideia de que a alternância de poder seja necessária na democracia e ilustra sua posição com o fato de que tal argumento, da necessidade de alternância de poder, “foi utilizado na campanha presidencial de 2014, quando a então presidenta Dilma concorria ao seu segundo mandato, sendo o quarto consecutivo do PT”.

Lá pelas tantas, o professor acaba confessando como ele e seus pares concebem a política e arremata seu artigo com uma lógica abertamente intolerante, antidemocrática e antiliberal:

“O campo político é o campo de disputa pela hegemonia. Se eu creio que a minha posição política-ideológica é a que melhor atende às aspirações de sociabilidade e emancipação humana, o meu dever é fazer com que a minha posição seja a posição hegemônica”, escreveu o docente de filosofia.

Eis aí. São réus confessos. Dizem claramente o que querem e como militam. Pena que não encontram muitos que os confrontem. Acostumaram-se a impor o silêncio e fizeram da universidade um cemitério onde jaz o pensamento livre, sepultado em meio a alunos e professores zumbis.


O silêncio dos universitários

Editorial, O Estado de S. Paulo (25/08/2025)

Pesquisa mostra que metade dos alunos evita discutir temas polêmicos nas universidades por temer perseguição e retaliação. O câmpus, que deveria ser o lugar das ideias, virou usina de dogmas

As universidades vieram à luz como templos da liberdade intelectual, carregando já no nome a promessa de brilhar como um “universo” de saberes, onde ideias rivais se enfrentam sem medo, dogmas são desafiados e consensos só existem enquanto resistem ao fogo do debate. Mas essa promessa foi traída. O câmpus, que deveria ser laboratório do pluralismo, tornou-se casamata da intolerância.

Professores e alunos admitem que se calam por medo das patrulhas ideológicas. Segundo uma pesquisa do Instituto Sivis, 47% dos estudantes brasileiros consultados relutam em discutir assuntos controversos. Os mais afetados são os estudantes que se consideram de centro: 57% deles se autocensuram, contra 43% dos alunos de esquerda e 39% dos de direita. Discussões políticas (39%) lideram o cardápio de temas que costumam ser evitados.

A mordaça não vem de decreto nem da polícia, mas do medo de ser linchado nas redes sociais, sabotado pelos pares, hostilizado em sala de aula. A autocensura se tornou forma mentis. O preço de pensar fora da cartilha é a difamação, o cancelamento e até o veto a pesquisas ou à docência.

Naturalmente, há fanatismos de direita rondando os portões da universidade, tentando minar a legitimidade da ciência e instrumentalizar a ignorância. Mas a verdade incômoda é que, dentro dos muros, os maiores carrascos da liberdade não são reacionários caricatos, e sim a esquerda iliberal hegemônica nas humanidades. Sob a máscara da “inclusão” e da “justiça social”, essa nova ortodoxia impôs um código de fé progressista, em que divergências são escorchadas como blasfêmia. A universidade, que deveria ser antídoto contra o pensamento único, abastardou-se em sua encarnação mais zelosa.

Uma academia sem dissenso não forma lideranças democráticas: fabrica inquisidores de toga acadêmica, adestrados para silenciar o adversário em vez de refutá-lo. A retórica do respeito a grupos marginalizados virou desculpa para marginalizar dissidentes. A depauperação do debate interno repercute na sociedade: onde a discordância vira ofensa, a política degenera em polarização tóxica. Ao abdicar da liberdade acadêmica, a universidade legitima o populismo que diz combater, abrindo espaço para que demagogos de direita se apresentem como paladinos da “verdade proibida”.

A degradação não foi imposta de fora para dentro. Foi construída por anos de covardia institucional e conformismo ideológico. Diretores coniventes com protestos truculentos; colegiados que chancelam cursos com uma versão única da História; professores que se calam para não perder prestígio ou verbas. A cultura do cancelamento floresce porque encontrou terreno fértil na militância disfarçada de docência e no silêncio cúmplice da administração.

Há antídotos. Universidades que adotam a neutralidade institucional – recusando-se a endossar causas políticas ou manifestos partidários – preservam maior diversidade intelectual. Experiências internacionais mostram que regras de convivência, centradas na defesa intransigente da liberdade de expressão, criam ambientes mais férteis para a ciência e mais resilientes a modismos ideológicos. No Brasil, manifestos de intelectuais que denunciam a asfixia do pluralismo são sinais tímidos, mas encorajadores, de resistência. Porém, só terão efeito se acompanhados de reformas institucionais: desde códigos de conduta que protejam vozes divergentes até currículos que ofereçam perspectivas contrastantes, em vez de catecismos disfarçados de disciplinas.

A liberdade de se expressar não é luxo nem bandeira partidária. É a quintessência da vida acadêmica. Sem ela, a universidade deixa de ser espaço de investigação crítica e se converte em megafone de dogmas; deixa de formar cidadãos esclarecidos e passa a moldar militantes biônicos – alienando todo o resto. Uma universidade que cancela palestras, silencia teses e criminaliza a divergência trai sua missão e se torna caricatura de si mesma. Ou as universidades resgatam sua vocação para o livre debate e experimentação de ideias, ou continuarão a se desmoralizar – e se desfigurar – como tribunais ideológicos. E quem perde não são só os acadêmicos – é a própria democracia brasileira.


Uma nota sobre pesquisa do Instituto Sivis, ao qual os dois textos acima se referem, publicada originalmente no jornal O Globo e republicado no site do Sivis, segue abaixo. A pesquisa “VOXIUS, Liberdade de Expressão Acadêmica, Panorama no Brasil” está disponível aqui.

Metade dos universitários evita debater temas polêmicos no ambiente acadêmico, aponta pesquisa inédita

Caio Sartori, O Globo (10/08/2025)

Levantamento indica que há mais estudantes declaradamente de esquerda nas faculdades, e alunos de centro são os que mais se ‘autocensuram’ ao falar de políticaUma ampla pesquisa feita com estudantes de universidades públicas e privadas brasileiras constatou que metade deles reluta em discutir temas controversos no ambiente acadêmico — postura registrada sobretudo entre os que se consideram de centro e não querem se expor a debates polarizados. Do total de entrevistados pelo Instituto Sivis, 47,7% dizem ter evitado abordar alguma pauta considerada “polêmica” na esfera acadêmica nos últimos 12 meses.

Feito a partir de uma amostra de 1092 alunos divididos por todas as regiões, áreas de conhecimento e outras estratificações, o estudo em parceria com a Foundation for Individual Rights and Expression (FIRE) e a Future of Free Speech se debruçou ainda sobre o posicionamento ideológico dos universitários do país. A predominância é do pensamento de esquerda, adotado por 46,9%. A direita abocanha 26%, e o centro, 16,7%. Outros 10% não responderam.Quando se cruzam os dados de posicionamento ideológico e os de resistência a emitir opiniões, a pesquisa mostra que os estudantes de centro são os mais reticentes em se manifestar sobre determinados assuntos em discussões com colegas ou professores.

— Podemos gerar algumas hipóteses, apesar das limitações causais. Pode estar relacionado ao ambiente de polarização ideológica e também de polarização afetiva muito exacerbado na sociedade. Com polarização afetiva, quero dizer a animosidade em relação a determinado grupo de oposição — aponta a analista de pesquisa do Instituto Sivis, Sara Clem.

Entre os de centro, 57,1% afirmam que se autocensuram em algum grau. Percentual superior aos registrados nos de esquerda (43,8%) ou direita (39%). Apesar de serem majoritários, os progressistas evitam com maior frequência emitir opiniões sobre temas controversos. Os de direita, portanto, estão um pouco mais à vontade para dizer o que pensam.

— O que vemos aqui é uma porcentagem significativa, ainda mais porque a universidade é o lugar em que o debate público deveria funcionar com pluralidade de ideias — afirma a pesquisadora.

A pesquisa separou 14 tópicos e os estudantes foram instados a dizer se sentiam “algum nível de conforto” ou de “relutância” em abordá-los. Os resultados dão pistas de quais são as pautas consideradas mais delicadas. “Política e eleições” está no topo, com 39% tendo algum tipo de hesitação. Na sequência, aparecem a legalização ou porte de armas (37%) e o aborto (29,7%).

Os que menos oferecem resistência à emissão de opiniões são a pandemia de Covid-19, com apenas 8,8%, debates ligados à liberdade de expressão (9,9%) e temas da disciplina em si que está sendo ministrada em sala (10,7%). Pautas relevantes ligadas a identidades, como orientação sexual, são vistas pela maioria como cômodas de abordar, com mais que o triplo (78,5%) se dizendo confortáveis do que o percentual dos relutantes (20,6%).

Se na análise geral de temas a esquerda tem mais pé atrás que a direita para se pronunciar, o cenário muda um pouco na leitura específica por política e eleições. Dentro do universo de 39% de estudantes que sentem desconforto em debater essas questões, os de centro se sobressaem de novo, e a diferença entre eles e os que estão de um dos lados do espectro se acentua.

Dos estudantes de centro, 54,7% relutam em falar sobre política e eleições, contra 43% que ficam à vontade. É o único grupo que nutre mais incômodo do que conforto para debater a pauta. Entre os de direita, o resultado é de 33,9% para os que se sentem acuados ante 65% que não se veem inibidos. A distância aumenta entre os de esquerda, com 27% a 73%.


Alguns comentários

No artigo original, que gerou a presente série sobre hegemonismo, escrevemos o seguinte:

Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).

O sentido em que a palavra hegemonia foi empregada no artigo original é o seguinte:

Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.

Caberia acrescentar que a o processo de conquista de hegemonia ocorre quando uma força política (hegemonista) controla: a maioria dos movimentos corporativos, os sindicatos e as centrais; os chamados movimentos sociais e a maioria das ONGs; os movimentos feministas, racialistas e LGBTs e os movimentos ambientalistas; os movimentos artísticos e culturais (e obtém a simpatia de atores, cantores e compositores famosos); os coletivos de advogados, procuradores e juízes; os meios de comunicação (a maioria dos jornalistas e analistas, os principais institutos de pesquisa de opinião e as agências de checagem); e, fundamentalmente, quando a força política hegemonista controla extensas áreas das universidades.

Mas como se poderia definir hegemonismo? O hegemonismo é um comportamento político antipluralista que avalia que um projeto político (em geral, redentor) só pode ser implantado se a maioria das pessoas estiverem engajadas na sua realização ou, no mínimo, concordarem com ele. Nesse sentido é um tipo de majoritarismo. No caso das universidades, esse tipo de comportamento político é de mais fácil aplicação e replicação, pois a universidade é a escola da escola: é ela que forma os professores de outros níveis de ensino que, por sua vez, repassam as matrizes do seu pensamento para todos os alunos de qualquer escola.

Além disso, há uma tradição autocrática (“estrutural”) nas universidades, que surgiram na passagem do ano 1000 para o ano 2000 como corporações medievais meritocráticas e ficaram infensas a onda pré-democrática que instalou os primeiros regimes eleitorais (1790-1848) e às ondas de democratização que vieram depois (a primeira, de 1849-1921; a segunda, de 1945-1961; e a terceira, de 1989-1999). Embora tenha sido palco de fervilhante debate democrático, a corporação em si não se democratizou. Mas este já é um outro tema.

Anistia ou Dosimetria: uma Conciliação Impossível

No tabuleiro político brasileiro, onde pragmatismo e idealismo colidem com a força de um terremoto, a tentativa de substituir a anistia ampla dos condenados do 8 de Janeiro por um “PL da Dosimetria” revela mais sobre as fragilidades do nosso sistema político do que sobre a busca por justiça ou pacificação.

Articulada por figuras como Aécio Neves (PSDB-MG) e Michel Temer (MDB), a proposta de redução de penas, em vez de perdão total, é um malabarismo político que tenta agradar a todos – e, por isso, corre o risco de não conquistar ninguém. Apesar de não haver vedação expressa na Constituição Federal à anistia para crimes como os do 8 de Janeiro, a manobra enfrenta barreiras jurídicas, políticas e éticas que a tornam um castelo de cartas prestes a desabar.

A proposta original, o PL 2162/23 buscava anistiar integralmente os condenados pelos atos de 8 de Janeiro, uma bandeira bolsonarista que obteve apoio expressivo na votação de urgência em 17 de setembro de 2025, com 311 votos a favor. Era o Centrão em ação: União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que juntos dominam 74% dos municípios pós-eleições de 2024, viram na anistia uma chance de consolidar capital político com a base conservadora.

No entanto, a reunião de 18 de setembro, envolvendo Paulinho da Força (Solidariedade-SP), Aécio e Temer, mudou o rumo: saiu a anistia, entrou a dosimetria – um ajuste de penas que, segundo Paulinho, seria um “meio-termo” para pacificar o país. O resultado? Um Frankenstein legislativo que desagrada tanto a direita quanto a esquerda, enquanto testa os limites da separação de poderes.

Juridicamente, a dosimetria é um terreno pantanoso. Alterar penas já fixadas pelo Judiciário, pode ser interpretado como interferência legislativa na competência judicial, violando o artigo 2º da Constituição. Ainda assim, o governo Lula, em busca de estabilidade, flerta com a ideia, vendo-a como uma ponte para evitar o desgaste de uma anistia ampla.

Os articuladores dessa manobra não ajudam a inspirar confiança. Aécio Neves, outrora gigante do PSDB, hoje luta para manter a sigla relevante. Com apenas 13 deputados, o PSDB é uma sombra do que foi. Michel Temer, por sua vez, mantém alguma influência no MDB, mas o partido está dividido – a votação da urgência revelou uma bancada majoritariamente contrária, apesar do apoio de Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Ambos, Aécio e Temer, são vistos como ecos de um passado político que não ressoa mais com o eleitorado, seja ele conservador ou progressista. Sua tentativa de costurar um consenso soa mais como oportunismo do que liderança.

O Centrão, como sempre, é o fiel da balança. União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que garantiram a urgência do PL, são movidos por pragmatismo puro: apoiam o que rende votos e emendas. Inicialmente simpáticos à anistia, hesitam diante da dosimetria, temendo o veto do Senado (onde MDB e PSD prometem resistência) e a reação do STF. Bolsonaristas celebram o apoio inicial do Centrão, mas já temem um recuo estratégico, enquanto o governo Lula acena com cargos para mantê-los na linha. Essa volubilidade do Centrão é a prova de que a proposta, longe de pacificar, apenas expõe as fissuras de um Congresso que negocia princípios como quem negocia no mercado.

Paulinho da Força, o relator, é a figura mais trágica desse imbróglio. Escolhido por sua proximidade com o STF e histórico de transitar entre lados opostos, ele propõe a dosimetria como “solução de maioria”. No entanto, enfrenta um fogo cruzado: a base bolsonarista, liderada por nomes como Eduardo Bolsonaro e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prepara emendas para restaurar a anistia ampla; a esquerda, com PT e PSOL à frente, rejeita qualquer leniência, chamando-a de “golpe continuado”. Paulinho é alvo de críticas de ambos os lados, e poderá ser voto vencido, um relator sem apoio real, preso entre a pressão do Planalto, a revolta da direita e a intransigência da esquerda.

A dosimetria, portanto, é menos uma solução e mais um sintoma da crise de representatividade do nosso Congresso. Sem uma base jurídica sólida e com articuladores de influência limitada, a proposta tenta apaziguar um país dividido, mas ignora o cerne da questão: a justiça não pode ser negociada em nome da conveniência política. Muito menos quando está em jogo a vida de centenas de pessoas que podem ser alcançadas por essas medidas.

A verdadeira pacificação exige diálogo, não barganhas.

Antagonismo Imprudente

O recente encontro extraordinário do BRICS convocado por Lula escancara a estratégia política do presidente brasileiro de antagonizar de forma aberta com Washington, Bruxelas e os valores democráticos ocidentais. Embora proclame uma retórica de soberania e resistência a pressões externas, sua postura revela-se, na prática, uma tática ideológica alinhada a interesses que estão longe de favorecer o Brasil. Ao buscar impulsionar sua popularidade interna por meio de um discurso populista e confrontacional, o presidente deposita o país numa posição perigosa de subserviência à China e de aproximação com regimes autoritários, como Rússia e Irã.

Essa cúpula secreta, sem transparência e sem um comunicado público final, coloca o Brasil como palco para uma agenda que desafia diretamente o sistema internacional baseado em regras democráticas e de mercado. A presença de Putin e Xi Jinping, aliados que desprezam abertamente a democracia, evidencia que o Brasil se distancia da construção de um projeto nacional soberano e passa a agir como um coadjuvante de potências cujo principal objetivo é criar um sistema paralelo para minar a influência americana, mesmo que isso custe tarifas mais altas e risco de sanções econômicas à própria economia brasileira.

Os ataques de Lula aos Estados Unidos por “chantagem tarifária” soam mais como uma retórica populista que visa captar apoio interno do que um posicionamento estratégico pautado nos interesses reais do Brasil. Enquanto isso, o silêncio conivente à iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda e o silêncio calculado sobre a proposta iraniana de blindagem contra sanções indicam um alinhamento preocupante com regimes que cerceiam a liberdade e fomentam a incerteza global.

Essa conduta não apenas confronta os princípios democráticos que sustentam as relações internacionais modernas, mas também expõe o Brasil a riscos concretos no comércio global, como aumento de tarifas e punições econômicas que podem agravar a fragilidade que o país enfrenta. Lula parece esquecer que a verdadeira soberania não se constrói pela mera oposição ideológica nem pela aliança com autocracias, mas pelo respeito aos interesses do Brasil, à legalidade internacional, à democracia e pela busca de parcerias equilibradas.

Além do risco imediato de sanções econômicas e tarifas punitivas, essa aproximação de Lula com a Rússia, China e Irã evidencia um dilema maior para a política externa brasileira: o enfraquecimento da confiança internacional e o isolamento estratégico em um momento em que o país precisa atrair investimentos e fortalecer suas relações comerciais. 

O Brasil precisa urgentemente reconsiderar essa pauta conflituosa e populista, que longe de fortalecer a nação, a isola e coloca em risco sua estabilidade econômica e sua imagem internacional. A lealdade a interesses autoritários contrasta negativamente com o papel democrático que o país poderia assumir, especialmente ao manter uma parceria sólida e pragmática com os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais. É preciso deixar claro que o caminho do enfrentamento populista numa plataforma autoritária como o Brics não traz ganhos reais para o Brasil, apenas riscos que podem nos prejudicar em diversas frentes, da economia até a perda de soberania. Um antagonismo imprudente que pode custar caro ao povo brasileiro.

Democracia na Era Digital

A democracia sempre se reinventou. Das praças às urnas, dos jornais aos pixels, ela agora enfrenta o desafio do espaço digital — território no qual a consciência coletiva se forma, se fragmenta e, muitas vezes, é manipulada. Hoje, o espaço público não é mais físico, mas algorítmico. Como lembra Jürgen Habermas, “o espaço público é onde a sociedade se encontra para deliberar e dar sentido à vida coletiva”. No entanto, no digital, essa deliberação é mediada por algoritmos que filtram, direcionam e moldam o que vemos, pensamos e discutimos. A sociedade deve avaliar até que ponto interesses econômicos e políticos são capazes de distorcer preferências e manipular subjetividades tendo em vista a  escala inédita da realidade digital. Sem os valores democráticos a orientarem  esse espaço,há o risco de os algoritmos servirem à manipulação da democracia, de forma sutil, opaca e sem qualquer compromisso com a dignidade humana.

Precisamos exigir transparência, autonomia e responsabilidade nesses processos.  Se não compreendermos por que uma informação nos chega e outra não, ou se não pudermos auditar os sistemas que moldam a visão de mundo que está sendo oferecida no espaço digital, a  liberdade se esvazia. O cidadão perde sua autonomia e passa a ser um fornecedor de dados de um sistema perverso que o manipula: No caso Cambridge Analytica por exemplo,a  manipulação de dados pessoais não apenas influenciou eleições, mas corroeu a confiança em todo o processo democráticos. mais que um  episódio isolado, esse caso foi  um prenúncio que nos mostra que a guerra política contemporânea já não se limita às ruas ou aos parlamentos: ela é muito mais cibernética, travada através de fluxos de dados que podem nos confundir sobre  a própria definição do real.

Nesse cenário, para  sobreviver, a democracia deve moldar o digital em vez de ser moldada por ele. Isso significa instituir formas robustas de governança algorítmica: auditorias independentes, transparência nos códigos, certificações éticas e mecanismos de participação cidadã que assegurem o controle coletivo sobre as poderosas infraestruturas informacionais. Algoritmos já são atores políticos e, como tais, precisam ser regidos pelos mesmos princípios de dignidade, justiça e responsabilidade que sustentam a própria democracia. Mais do que um conjunto de normas, trata-se de um pacto civilizatório que redefine a relação entre poder, tecnologia e seres humanos. 

A democracia do futuro será algorítmica –  ou corre o risco de não ser. Sua legitimidade dependerá da capacidade de trazer transparência e  consciência para o espaço digital. Esse é o desafio das instituições que se desejam democráticas, para além da promessa herdada do passado, ir em busca de um novo tempo em que a tecnologia esteja a serviço da autonomia humana.

Assassinato de Charlie Kirk: o poder da bala contra o poder do logos

O jovem ativista conservador Charlie Kirk foi covardemente assassinado com um tiro no pescoço enquanto palestrava calmamente, sentado em uma tenda armada na Universidade de Utah, Estados Unidos.

Assisti ao vídeo por um ângulo tal que me causou forte impressão. O rapaz conclui sua fala, leva o microfone um pouco abaixo da boca para uma pequena pausa, ao mesmo tempo em que respira levemente, retomando fôlego para usar a “arma” que Deus lhe deu e que o seu esforço desenvolveu: o talento retórico, a eloquência, a rapidez de raciocínio necessária para uma argumentação eficaz.

Subitamente, ouve-se um disparo, seu corpo oscila, o sangue esguicha do seu pescoço, ele faz um gesto quase imperceptível de tentar levar a mão ao local atingido. Não consegue. Seu corpo tomba. Uma bala silenciou sua voz. O poder do projétil contra o poder do logos.

Eu não o acompanhava nas redes. Para ser sincera, sequer o conhecia. E, se me restringisse a apenas alguns veículos de imprensa, seria apresentada não a um ser humano concreto, pai de uma menininha de 3 anos e um bebezinho de 1 ano e quatro meses; não a um esposo amoroso e um jovem talentoso de 31 anos, tão aberto ao diálogo que costumava sentar com um microfone à mão e outro à sua frente para quem quisesse debater até provar que ele estava errado; não o saberia um homem de fé que escreveu em suas redes sociais, poucos dias antes de morrer, que “Jesus derrotou a morte para que você possa viver”.

Se eu me informasse apenas por meia dúzia de jornais e portais progressistas não saberia nada disso. Saberia apenas que morreu um “influenciador de extrema de direita”, apoiador de Trump, que defendia tais e tais posições supostamente homofóbicas, islamofóbicas ou racistas e que defendia o porte de armas.

A ênfase dada às posições políticas de Kirk julgadas mais controversas, muitas vezes distorcendo-as ou descrevendo-as com uma maledicência indisfarçável, justamente ao noticiar o seu assassinato ou ao apresentá-lo após o trágico atentado, soa quase como uma justificativa. É uma atitude vil e imoral essa da imprensa, que precisaria urgentemente rever seus preconceitos, seu jornalismo parcial, ideologicamente enviesado.

Embora a Folha de S.Paulo tenha reproduzido um editorial do New York Times que afirma ser o assassinato de Charlie Kirk uma tragédia, o título do editorial veio imediatamente acompanhado, na home do portal, por links que levam a artigos deploráveis cujos títulos são: “Aliado de Trump, Charlie Kirk construiu carreira com ataques a LGBTs e negros” e “Charlie Kirk, influenciador morto nos EUA, já defendeu ‘custo de algumas mortes’ pelo direito de ter armas”.

O artigo, assinado por um tal de Gabriel Barnabé, é não apenas tosco, mas moralmente reprovável porque discorre em tom crítico e maledicente sobre uma série de posicionamentos políticos de Charlie Kirk, pintando-o como um extremista, no dia seguinte ao seu assassinato sem fazer uma única crítica ao ato monstruoso que lhe tirou a vida. 

Pelo contexto e pelo conteúdo, o artigo pode ser interpretado como uma justificativa do assassinato, que o jornalista provavelmente considera um um ato heroico de resistência.

O desconhecido jornalista, formado pela Faap, a quem a Folha achou por bem deixar a incumbência de apresentar o perfil de Chalie Kirk enquanto seu corpo ainda está sendo velado, descreveu-o como “influenciador de extrema direita” que propagava “discursos extremistas contra o que afirmava ser marxismo e ideologia de gênero”.

Segundo ele “críticos de Kirk apontaram repetidamente um caráter homofóbico e racista em suas falas públicas”, mas o repórter sequer se deu ao trabalho de apontar quais seriam essas falas, contentando-se com a acusação vaga, acrescentando ainda que “Kirk atacou abertamente o que afirmava ser uma agenda LGBTQ” e destacando que, nos últimos anos ele adotou uma “visão cristã ultraconservadora.

Se cito o jovem desconhecido jornalista da Folha e seu artigo, não é por questão pessoal, pois sequer o conheço. É porque o seu perfil de jornalista ativista é uma espécie de “tipo”, de “arquétipo” que ilustra muito bem o problema geral do jornalismo transformado em militância. 

É preciso denunciar a falácia que é chamar de “extremista de direita” todo indivíduo cujas posições políticas são marcadamente conservadoras.

Em seu pronunciamento sobre o caso, Donald Trump criticou a “demonização da dissidência”. Ele tem razão em criticar, mas não tem moral para fazê-lo, porque também costuma fazer o mesmo quando se refere ao campo político adversário.

De todo modo, é importante notar que se, por um lado, há na direita populista uma retórica violenta, na esquerda mais radical a violência é filosoficamente justificada, ela é aceita como método político e se torna praxis.

Pudemos ver até onde vai a delinquência dessa visão de mundo quando vimos pessoas comemorem o massacre perpetrado pelos terroristas do Hamas contra mulheres, idosos, jovens e bebês israelenses como um ato de resistência pela causa palestina. E também agora, quando o brutal assassinato de Charlie Kirk foi comemorado porque, afinal, ele era um “extremista de direita.”

De um lado e do outro do espectro político os ânimos se exaltam, as posições recrudescem, as pessoas se fanatizam, e, em vez de troca de ideias, vemos troca de ameaças. 

Isso deve acabar. A razão humana precisa honrar a si mesma e voltar a reconhecer sua dignidade, sua capacidade de resolver divergências por meio do diálogo, da ponderação, do debate respeitoso, da tolerância e do bom senso.

O ser humano já caminhou muito além da barbárie, mas parece querer voltar pra ela, esquecendo da necessidade inadiável de nos reconciliarmos conosco mesmo e com a criação, reconhecendo o outro como nosso próximo, como nosso irmão.

Um irmão dotado do direito sagrado e inalienável de viver e de expressar seu modo particular de ver as coisas e de compreender o mundo, mesmo que suas ideias não nos pareçam as melhores.

A política deveria ser justamente o uso da razão para resolução dos conflitos sem o uso da força. Todas as ideias devem poder ser proferidas. Sem liberdade de expressão, não há luz para o entendimento, só as trevas do fanatismo e da ignorância.

Como disse Charlie Kirk, o jovem conservador americano brutalmente silenciado enquanto fazia o uso público da razão – e a quem honro com esse artigo não necessariamente pelas suas ideias, mas pela coragem em proclamá-las – “Quando as pessoas param de falar é que a violência acontece”.

Taiwan na ONU

Criada em 1945, a Assembleia Geral é o principal órgão deliberativo da ONU, reunindo todos os Estados-membros sem distinção. Ao longo de oito décadas, tem sido fórum essencial para discutir temas relevantes para o equilíbrio internacional. Sua legitimidade deriva justamente do caráter universal, princípio que não pode ser comprometido por exclusões políticas arbitrárias.

A 80ª sessão abrirá formalmente em 9 de setembro de 2025, em Nova York. Entretanto, o tema da Assembleia Geral deste ano, “Juntos somos melhores: Oito décadas de compromisso com a paz, o desenvolvimento e os direitos humanos”, ecoa uma contradição gritante: enquanto defende universalidade, continua a falhar no sentido de fornecer vez e voz para nações que têm o direito de serem ouvidas, como é o caso da mais vibrante e aberta democracia da Ásia, Taiwan. 

Esta incômoda situação se baseia na Resolução 2758, aprovada em 1971, que se tornou objeto de distorções que comprometem a credibilidade do sistema multilateral. Embora trate exclusivamente da representação da China na ONU, a resolução tem sido utilizada por Pequim como argumento para excluir Taiwan da participação na organização e em suas agências. Uma interpretação que carece de fundamento político ou jurídico, uma vez que o diploma legal não reconhece Taiwan como parte da China e tampouco que o governo de Pequim deve representar o povo taiwanês no sistema das Nações Unidas.

A exclusão de Taiwan tem consequências práticas graves, uma vez que é capaz de fomentar tensões militares que colocam em risco a segurança de toda a Ásia-Pacífico e a estabilidade global. A ilha desempenha papel central na economia mundial — produzindo mais de 90% dos semicondutores avançados — e está localizada em uma rota marítima vital para o comércio internacional, onde transita cerca de metade da frota mundial de navios de carga. Sua exclusão não só debilita o multilateralismo, como expõe o sistema internacional a riscos desnecessários em um contexto de crescente rivalidade geopolítica.

Para além disso, em 2025, com apenas cinco anos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, a ausência de Taiwan nos debates das Nações Unidas mina a capacidade coletiva global de alcançar resultados. Taiwan tem um histórico robusto em áreas como saúde pública, igualdade de gênero, inovação tecnológica e combate às mudanças climáticas. Seu know-how e sua participação ativa poderiam acelerar avanços essenciais para o desenvolvimento global inclusivo e sustentável. Negar esse espaço é contrariar o próprio espírito da agenda multilateral.

A Assembleia Geral de 2025 oferece uma oportunidade histórica para corrigir esse descompasso. Garantir a participação de Taiwan e seus cidadãos, inclusive jornalistas, é fortalecer a democracia, proteger o direito internacional e assegurar que o sistema das Nações Unidas se mantenha fiel à sua missão de universalidade. O passaporte taiwanês é amplamente aceito no mundo, e sua rejeição em Nova York ou Genebra carece de fundamento jurídico, refletindo unicamente uma leitura política restritiva. Não se trata apenas de reconhecer Taiwan, mas de reconhecer que os princípios norteadores das Nações Unidas seguem como pilares essenciais da ordem internacional. A inclusão de Taiwan não é um favor, mas um imperativo moral e estratégico da estabilidade global.

O tribunal que descondenou Lula tem moral para condenar Bolsonaro?

A Justiça, enquanto valor, não se confunde com a legalidade. O cumprimento das normas jurídicas é apenas um dos aspectos da experiência do justo, mas não esgota sua essência, podendo mesmo contrariá-la. Embora idealmente o objetivo da lei seja a concretização da justiça, sabe-se que, no mundo real, leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos.

É nesse sentido que a crise política brasileira atual se mostra especialmente complexa. O Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário, é chamado a julgar o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, ao mesmo tempo em que carrega sobre si o peso de decisões que fragilizaram sua autoridade moral perante parte expressiva da população.

Não há dúvida de que houve, no fim do mandato de Bolsonaro, uma tentativa de golpe de Estado a fim de mantê-lo no poder. Sendo ele uma das principais partes envolvidas em todo o processo, assim como o principal beneficiado caso a tentativa lograsse êxito, é justo que vá a julgamento. Isso é diferente de afirmar que todo o processo foi conduzido de modo justo.

Já escrevi, mais de uma vez, que considero escandalosamente desproporcionais, logo injustas, as penas aplicadas às pessoas que foram instrumentalizadas para a invasão e depredação dos Três Poderes, no 8 de janeiro de 2023. Tais penas foram aplicadas, para além da exigência técnico-jurídica, com ânimo político e viés de vingança.

Não é de hoje, porém, que decisões do STF se dão sob pressão de interesses políticos e de outros interesses ainda mais escusos.

Em 2018, o atual presidente Lula da Silva foi preso após condenação em segunda instância. A sentença inicial, proferida pelo Juiz Sergio Moro, em 2017 condenara Lula a 9 anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O presidente petista fora acusado de receber um apartamento triplex como propina da construtora OAS em troca de favorecimentos em contratos com a Petrobrás. A sentença foi confirmada pelo STJ e ajustada para 8 anos e 10 meses.

Acionado pela defesa de Lula, o STF manteve a prisão; primeiro em uma decisão da segunda turma e, em seguida, em decisão do plenário. Em novembro de 2019, porém, mudou sua jurisprudência e mandou libertar Lula.

Ao livramento de Lula, seguiram-se outras escandalosas decisões do STF – monocráticas ou colegiadas – com perdão de réus confessos que, inclusive, haviam já devolvido aos cofres públicos quantias vultosas antes denunciadas como oriundas de práticas de corrupção.

Os desastres do governo Bolsonaro, seu esgarçamento autoritário, com tentativas de controlar a PF e de evitar o avanço de investigações contra seu filho, mas principalmente sua estúpida condução da crise sanitária durante a pandemia, possibilitaram rápida recuperação do prestígio do ex-presidente Lula da Silva, que começou a despontar nas pesquisas como capaz de derrotar Bolsonaro.

Para travar esse embate previsto para outubro de 2022, Lula precisaria estar livre e elegível; providência que o STF tratou de agilizar. 

Em 2021, o ministro Edson Fachin anulou as condenações de Lula relacionadas à Lava Jato (triplex, sítio de Atibaia e Instituto Lula) por tecnicismo vão e a segunda turma do STF declarou parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos, reforçando a nulidade das condenações.

Livre e elegível, Lula concorreu a um terceiro mandato e derrotou o então presidente Bolsonaro, candidato à reeleição. Entretanto, a vitória de Lula ocorreu por margem muito estreita de votos; permanecendo o derrotado com potencial eleitoral ameaçador. Logo, porém, o TSE trataria de eliminar tal ameaça, tornando Jair Bolsonaro inelegível.

Aqui, todavia, convém notar: se é possível observar o viés de animosidade política do TSE, é também verdade que a decisão da Corte Eleitoral lastreou-se em uma atitude totalmente descabida de Bolsonaro que, em julho de 2022, resolveu chamar uma reunião com embaixadores de vários países para fazer denúncias sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro.

O fato é que as inúmeras decisões polêmicas e parciais dos tribunais superiores tiveram como efeito a corrosão da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Esse desgaste não é apenas uma questão de percepção subjetiva. A própria rebelião do 8 de janeiro de 2023 pode ser compreendida, em parte, como resultado desse processo. Foi nessa lacuna de confiança que a narrativa populista de direita radical encontrou terreno fértil, transformando o ressentimento de parte da população em ação política.

Brasileiros sem uma formação cívica consistente para valorizar in abstracto instituições que in concreto se mostram falhas e corrompidas, lançaram-se indignados contra os poderes que, a seus olhos, haviam se tornado cúmplices da impunidade que levou um sujeito condenado e preso por corrupção de volta à presidência da República.

Diante desse quadro mais amplo, percebe-se que o julgamento de Lula e o julgamento de Bolsonaro são duas faces de uma mesma moeda cunhada na forja das vaidades e dos caprichos dos ministros do supremo.

O STF, embora juridicamente habilitado para conduzir o julgamento da chamada, “trama golpista”, enfrenta um déficit de legitimidade moral. Sua responsabilidade na atual crise institucional não pode ser ignorada: ao relativizar a punição de corruptos e ao se colocar como ator político, o tribunal contribuiu para a erosão do tecido democrático.

É no mínimo irônico que a mesma corte que ajudou a minar a confiança dos brasileiros na justiça se autoproclame agora a defensora maior da ordem democrática.

O paradoxo só é minimamente aceitável porque os populistas reacionários de direita aproveitaram-se efetivamente do contexto delicado para tentarem se manter no poder por meio da ruptura da ordem institucional. 

Muito se tem falado sobre isso, ou seja, sobre a tentativa de golpe. Mas pouco se tem falado sobre a responsabilidade do STF e do PT pela revolta social que o tornou plausível.

Esse impasse nos convida à reflexão: uma instituição legalmente válida, mas moralmente desacreditada, é capaz de cumprir o papel de restaurar a ordem e assegurar a democracia? O STF tem legitimidade ética para o julgamento em curso ou seus desvios já fazem dele apenas o espetáculo de um exercício de poder formal, incapaz de reconciliar a sociedade com seus próprios fundamentos?

O relatório apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes no início do julgamento de Bolsonaro e mais sete réus do “núcleo crucial” da denunciada “trama golpista” foi antecedido por um discurso político no qual os ataques feitos ao Brasil pelo presidente norte-americano Donald Trump foram usados para ecoar o nacional-populismo que se tornou o novo farol da narrativa ideológica do presidente Lula e de seus aliados.

Constata-se, portanto, que, para além das suas obrigações jurídico-constitucionais, o STF tem agido objetivamente como aliado do governo Lula.

A quase unanimidade de leigos e especialistas dá como favas contadas a condenação de Jair Bolsonaro a uma dura pena de reclusão. Essas favas contadas contra Bolsonaro são, diga-se, em parte jurídicas e em parte políticas.

Julgando às vezes com erro e às vezes com acerto questões graves da vida brasileira, o STF tem gerado contínuos prejuízos ao país por maximizar a politização das suas decisões, que têm gerado muito mais convulsões perturbadoras do que soluções apaziguadoras; sendo que agora o próprio termo “apaziguamento” foi depreciado pelo ministro Alexandre de Moraes, que, na exposição do seu referido relatório, rebaixou tal termo ao significado de “covardia”.

Mesmo antes da conclusão do julgamento de Bolsonaro, o Congresso Nacional já está convulsionado, com a Câmara Federal tentando armar contra a sua previsível condenação uma anistia que seus defensores chamam espertamente de “ampla, geral e irrestrita”, mas que na verdade é ampla, geral e irrestritamente bolsonarista.

Minha irrestrita solidariedade, a anistia que defendo, é para a gente humilde e anônima que foi condenada e está pagando penas medonhas pelas invasões no 8 de janeiro. 

A “anistia alternativa” com a qual o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tem acenado parece caminhar nessa direção; se for esse o caso, a proposta conta com a minha simpatia e o modesto incentivo desse despretensioso artigo.

Eduardo Bolsonaro, porém, que segue tentando obter o que quer por meio de chantagem covarde, reagiu raivosamente à possibilidade de anistiar os brasileiros comuns e escreveu no X:

Qualquer anistia que não seja ampla e irrestrita não será aceita. Já irei conversar com a base parlamentar do PL sobre isso. A anistia será ampla ou irrestrita ou não contará com o apoio da direita e não terá efeito de diminuir sanções internacionais”

Traduzindo: os presos comuns pelos atos do 8 de janeiro só interessam aos Bolsonaro como arma retórica. A única coisa que realmente lhes interessa é que Jair Bolsonaro saia impune e elegível, que não arque minimamente pelas consequências de suas más ações.

Nosso senso moral costuma chamar de herói o indivíduo que sacrifica a si mesmo ou aos seus próprios interesses pelo bem das outras pessoas. Que nome damos a quem sacrifica centenas, milhares de pessoas, o próprio país, pelos seus interesses mesquinhos?

Pois é. Não há heróis nessa história. O enredo da política brasileira tem sido protagonizada por gente mesquinha, ambiciosa, corrupta e canalha. 

A democracia brasileira sempre esteve em risco, mas desconfie, desconfie de tudo e de todos: tanto de quem ataca a democracia frontalmente, quanto de quem se propõe salvá-la.

Por que Lula não é um democrata

O fato de Lula sempre ter se submetido ao resultado nas várias eleições que perdeu (uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República) não o torna um democrata.

O fato dele jamais ter buscado fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder não o torna um democrata.

O fato de que ele respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva, não o torna um democrata.

O fato de que nunca instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele, não o torna um democrata.

Todas as alegações acima são feitas por contraposição ao que fez Bolsonaro, que também não é um democrata. Mas se opor a alguém que não é democrata não torna ninguém democrata. Stalin se opunha ao antidemocrático Hitler, mas isso não significa que fosse democrata. O autor deste artigo se opôs à ditadura militar brasileira e não era, na época, um democrata.

Quem não é golpista não faria nada disso que fez um golpista como Bolsonaro. Lula não é golpista. Por isso não faz essas coisas. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrata.

Repetindo. Tentar dar golpe de Estado torna qualquer um antidemocrático. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrático.

Quem adotar uma estratégia hegemonista não dará golpe de Estado, mas mesmo assim será antidemocrático. Para entender isso é preciso ver que existem dois caminhos principais para autocratizar um regime político: o golpe de Estado (à moda antiga) e a erosão democrática (que já é a via predominante no século 21).

Sim, as democracias no século 21 não caem mais, na maior parte dos casos, por golpes de Estado (à moda antiga, com protagonismo militar), como tentaram fazer os bolsonaristas no Brasil (sem sucesso) e os gorilas de Mianmar (com sucesso). Agora 70% dos processos de autocratização ocorrem por erosão democrática, na maioria das vezes lentamente, sem ruptura violenta e até sem rasgar as Constituições.

Tal ocorre quando uma força hegemonista, tendo chegado ao governo pelo voto, se dedica a ocupar as instituições, não para destruí-las e sim para fazer maioria em seu interior colocando-as a serviço do seu projeto de poder. Pois o que visam não é dar uma quartelada anacrônica e sim conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo, violando o princípio da rotatividade ou alternância democrática.

Mas então, o leitor pode perguntar, o que é necessário para qualificar um ator político como um democrata? Basicamente, o seguinte.

Em primeiro lugar, democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

Aqui neste primeiro critério Lula já não passa. Ele se opõe à ditaduras de direita, mas se alia à ditaduras de esquerda. Fez assim historicamente com Cuba e também com Angola, Venezuela e Nicarágua. Mais recentemente se alinhou à Rússia de Putin, foi simpático à teocracia do Irã (e nunca condenou claramente seus braços terroristas) e defendeu manter relações políticas (não apenas, nem principalmente comerciais – foi ele próprio que o disse, e isso foi antes de Trump 2) – com a China de Xi Jinping. Na sua primeira viagem à China depois de eleito pela terceira vez, no dia 14 de abril de 2023 (em pleno governo Biden nos EUA), Lula declarou: “A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial… [para]elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”.

Em segundo lugar, quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

Nesse segundo critério Lula também não passa. Uma prova disso é seu empenho em turbinar o BRICS, uma articulação política (disfarçada de bloco econômico) composta por 80% de ditaduras. Além disso, sabotou às sanções dos países democráticos ao regime de Putin, multiplicando o comércio com a ditadura russa (sobretudo com a compra de óleo em grande quantidade, financiando indiretamente a invasão da Ucrânia).

Em terceiro lugar, democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

Lula também seria reprovado neste terceiro critério. Foi o seu partido – e todo mundo sabe, não é possível esconder – que introduziu o “nós contra eles” na política brasileira, gerando uma revolta de amplos setores da população com o petismo. Isso fez crescer o antipetismo, que só existe porque existe petismo. Acrescente-se que o PT é um partido hegemonista, que acha que a única maneira de implantar um projeto político é fazendo maioria em todo lugar (de um DCE universitário, passando por uma agência reguladora, até chegar a um tribunal superior de justiça) para impor a predominância de um modo de pensar e de se comportar politicamente.

Em quarto lugar, democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

Aqui temos, igualmente, uma clara linha divisória que não pode ser ultrapassada por um democrata. Mas que Lula ultrapassa. Ele defende os direitos das minorias sociais, mas não os das minorias políticas, que – a seu ver e ao ver do PT – devem ser deslegitimadas quando se opõem aos projetos populares. Embora sendo estatista (ou tendo uma visão estadocêntrica do mundo) ele não é favorável (pelo menos até agora, antes de ter conquistado hegemonia) à tirania do Estado, mas acha “natural” que a maioria imponha sua vontade às minorias (políticas). Sua visão de democracia está alicerçada na crença de que democracia é a vontade da maioria e que uma maioria eleitoral confere a quem a recebeu legitimidade para realizar o seu projeto, não sendo necessário negociar com as minorias (a não ser quando isso for necessário para emplacar seus projetos). Isso, é claro, desde que tal maioria eleitoral seja conferida a quem está realmente “do lado do povo” ou “do lado certo da história”.

Em quinto lugar, democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

Bem… aqui temos o melhor exemplo de incompatibilidade total com o pensamento de Lula. Ele acha que um governo que está “do lado do povo” é o máximo da democracia (que confunde, porém, com cidadania ofertada pelo líder identificado com o povo, como veremos adiante). Estatista, como já se disse aqui, Lula encara a sociedade como dominium do Estado (quando esse Estado está “nas mãos certas”, ou seja, nas mãos dos legítimos representantes do povo). Sim, o PT acha que cabe ao governo popular controlar e comandar a sociedade, inclusive a economia. Por isso não aceita a independência do Banco Central e das Agências Reguladoras e tenta burlar a lei das estatais para nomear para suas diretorias seus militantes ou aliados políticos. O Estado é o grande ator, posto que só ele (quando “nas mãos certas”) pode combater os inimigos do povo e levar adiante à consumação dos interesses populares. Este quinto critério, no qual Lula também é reprovado, é a prova do seu caráter não-liberal (ou iliberal).

Em sexto lugar, democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

Para Lula e o PT, entretanto, a política só tem sentido se for uma luta para implantar uma ordem mais justa (concebida por eles ex ante à interação das pessoas). Portanto, o sentido da política, para eles, é a ordem – não a liberdade. Quanto ao conceito democrático originário de liberdade, eles não fazem a menor ideia do que seja. Liberdade se reduz, na sua concepção, à libertação de um poder opressor (desde que esse poder seja inimigo do povo, estando do lado errado da história).

Em sétimo lugar, democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

Essa ideia de que há um grande inimigo responsável por todo mal que ocorre no mundo está entranhada no PT (e Lula, sim, o Lula, compartilha dela). O grande inimigo, claro, é o capitalismo e suas construções: as classes dominantes (os ricos), o imperialismo norte-americano (e, numa inclusão posterior, insuflada pelo identitarismo, o neocolonialismo eurocêntrico e heteronormatizador). Isso se explica porque o marxismo está na raiz da ideologia do PT (1). Ocorre que a democracia jamais nasceu de revoluções que destruíram um ‘sistema’ (ou modo de produção e suas construções sociais e políticas) ou substituíram no poder uma classe social por outra classe (tal como o marxismo define essa noção) e sim de reformas que introduziram inovações. Se, para inventar a democracia pela primeira vez, os atenienses tivessem que ter destruído o modo de produção escravista que vigorava na época, jamais teríamos ouvido a palavra democracia. Se os parlamentares que propuseram os Bill of Rights em oposição ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17, tivessem primeiro que ter desconstituído todo o sistema econômico, social e político, instalado naquele então na Europa e no mundo, a democracia jamais teria sido reinventada (2). No seu estrato intelectual, o PT foi organizado por militantes da primeira grande guerra fria, que continuaram se comportando como militantes da primeira grande guerra fria mesmo após a queda do muro de Berlim (que não caiu dentro de suas cabeças) e o colapso da União Soviética (que, in pectore, lamentaram). O seu anti-imperialismo norte-americano vem daí: não é um anti-imperialismo apenas quando republicanos conservadores como Reagan, Bush pai e filho e republicanos-MAGA, como Trump, estão no poder, mas também quando os democratas Clinton, Obama e Biden governaram. Não é um anti-imperialismo por princípio, pois transige com o imperialismo de Putin. É um vício. Lula adquiriu esse vício, que é antidemocrático.

Em oitavo lugar, democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

Lula é um condutor de massas, um líder que, segundo sua própria apreciação (muito favorável a si mesmo), já sintetiza o povo que pretende conduzir. Além disso é majoritarista, como foi mencionado anteriormente neste artigo.

Em nono lugar, democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

Lula é populista, um populista de esquerda ou neopopulista (uma das duas espécies principais de populismos do século 21, além do populismo-autoritário ou nacional-populismo, dito de direita) que surgiu no movimento de ascensão de Chávez (e depois Maduro) na Venezuela, Evo (e depois Arce) na Bolívia, Correa (e depois Moreno) no Equador, Lugo (sem sucessor) no Paraguai, Funes (e depois Cerén) em El Salvador, Obrador (e depois Claudia) no México, Zelaya (e depois Xiomara) em Honduras, Cristina (e depois Fernandez) na Argentina. O fato de ele não ser um neopopulista que tenha virado ditador – como Ortega e Maduro viraram – não altera a natureza iliberal do seu populismo (e dos demais neopopulismos que surgiram na mesma onda) (3).

Em décimo lugar, democratas não reduzem a democracia à eleições.

Bom, dizer o quê? O PT (e Lula, pois o PT é em tudo indistinguível de Lula, a não ser em potencial eleitoral) é eleitoralista. Pode-se dizer que, já nos seus primórdios, o PT abandonou a perspectiva revolucionário-rupturista de parte de seus fundadores para adotar a via eleitoral, mas não porque achou que é melhor para a democracia a alternância pacífica nos governos via eleições e sim porque avaliou que o caminho revolucionário anterior era inadequado (posto que com poucas chances de sucesso) nas novas condições do mundo após a derrocada do socialismo real. Uma prova disso é o conselho que Lula deu aos dirigentes das FARC, no sentido de que depusessem as armas, construíssem um partido (nos moldes do PT) e disputassem eleições (como fez Chávez, como fez ele próprio, como fez Evo, como fez Correa e como, depois do fracasso da revolução sandinista, como fez Ortega). O PT ama de paixão eleições, mas não aceita a rotatividade ou alternância democrática. As eleições, para o PT, não fazem parte do metabolismo normal dos regimes democráticos, mas são um meio (instrumental) para alcançar e reter o poder em suas mãos indefinidamente. As eleições, para Lula e para o PT, são o caminho tático possível para chegar ao governo e nele se delongar até ter condições de tomar o poder (não dando um golpe, mas conquistando hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido). O regime eleitoral (ao qual se reduz, segundo eles, para todos os efeitos práticos, a democracia) é um meio instrumental de travar a luta política como uma espécie de guerra (onde as armas passam a ser os votos), mas a dinâmica adversarial é a mesma. Outra prova disso é que o PT não faz aliados fora do campo de esquerda que hegemoniza, a não ser para ficar mais forte e, quando não precisar mais desses aliados tático-instrumentais, matá-los como agentes políticos ao final.

Em décimo-primeiro lugar, democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

Lula e o PT não aceitam vários desses critérios da legitimidade democrática. Quando estão no governo, não respeitam a publicidade ou transparência (e tanto é assim que decretam sigilos de até 100 anos em documentos que nada têm a ver com segurança nacional), têm horror da rotatividade ou alternância (pois ela não seria legítima quando os vencedores das eleições são inimigos do povo, ou seja, qualquer um que esteja fora do seu campo do esquerda ou a ele subordinado: e tanto é assim que pediram o impeachment de todos os presidentes não-petistas eleitos na Nova República – com exceção de Bolsonaro, pois queriam deixá-lo sangrando para batê-lo mais facilmente nas urnas e voltar ao governo), violam a legalidade (como demonstram os casos do mensalão e do petrolão, entre outros) e só reconhecem a validade da institucionalidade quando podem ocupar e controlar as instituições.

Em décimo-segundo lugar, democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

Lula e o PT acham que tudo isso é conversa “para inglês ver”. Defendem, sim, instituições estáveis, desde que estejam no controle dessas instituições (por meio da sua ocupação ou aparelhamento e da formação de maiorias no seu interior). Defendem judiciário independente e autocontido em suas atribuições somente quando estão na oposição: se estão no governo querem um judiciário como aliado político e por isso indicam seus militantes ou simpatizantes para compor os tribunais (no caso da suprema corte Lula indicou um advogado do partido, o seu próprio advogado pessoal e um agente político do seu governo, ex-membro do Partido Comunista do Brasil).

Em décimo-terceiro lugar, democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

Lula e o PT nunca reconheceram e valorizaram as oposições (mesmo as democráticas) como peças fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático. Mesmo as oposições democráticas são encaradas como forças antipopulares, representantes das elites (ou dos ricos) contra o povo, quando não fascistas – e então deslegitimadas (como ocorreu com o PSDB após a primeira vitória de Lula em 2002). Eles não aceitam a evidência de que situação há em qualquer regime (inclusive nos regimes autocráticos), mas oposição (democrática) só nas democracias. Ou seja, de que não há democracia (no sentido liberal ou pleno do termo) sem oposição democrática (atuante). Ora, se um governo se diz democrático, mas não reconhece e valoriza a oposição democrática como fundamental para o bom funcionamento do regime, então esse governo não é, na verdade, democrático, ainda que o regime político possa ser considerado formalmente democrático, como foi o caso nos governos do PT. Em geral um governo que deslegitima as oposições – não apenas as antidemocráticas, mas também as democráticas – é um governo antipluralista (o que é uma característica iliberal do populismo).

Em décimo-quarto lugar, democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

Lula e o PT confundem o conceito de democracia com o conceito de cidadania. Falam de cidadania para todos ofertada pelo Estado, quando “nas mãos certas”, quer dizer, comandado por forças políticas ditas progressistas. Pior, acreditam que a cidadania seria conferida ao povo pelo líder populista. Conquanto cidadania universalizada seja um bom propósito, portanto desejável, ela não é a mesma coisa que democracia. Isso pode ser ofertado por regimes não-democráticos, quer dizer, por autocracias (4). Para Lula e para o PT a igualdade socioeconômica é pré-condição para a liberdade política e por isso desqualificam todas as democracias liberais ou plenas que existem no mundo como democracias para as elites e não para o povo (5). Essa é uma posição claramente antidemocrática.

Em décimo-quinto lugar, democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Lula se travestiu de defensor da soberania por meio de uma narrativa (e de uma propaganda) soberanista (que toma a soberania dos Estados-nações como um valor absoluto). Mas todo soberanismo é incompatível com a democracia. Se a soberania fosse um valor absoluto não se poderia tomar medidas contra tiranias que invadem outros países para subjugá-los (como está fazendo a Rússia com a Ucrânia). Por isso o governo do PT, liderado por Lula, coloca-se “ativa e altivamente” contra as justas sanções dos países democráticos às tiranias de Cuba, Venezuela, Irã e Rússia, com a alegação de que isso estaria violando a soberania desses países. E, inclusive, sabota essas sanções. Além disso, por motivos eleitoreiros, Lula aproveitou as sanções impostas por Trump para estruturar e antecipar ilegalmente sua campanha de 2026 em torno da ideia-força de defesa da soberania nacional, o que o leva a encenar patriotadas diárias para tentar unir o povo em torno da sua candidatura. De “salvador da democracia” em 2022, Lula quer voltar como o “salvador da soberania” em 2026.

Para qualquer pessoa honesta as provas apresentadas acima bastam para mostrar que Lula e o PT não são democráticos.

O fato de termos tão poucos artigos como este na nossa grande imprensa e, inclusive, na imprensa alternativa, revela a extensão e a profundidade do analfabetismo democrático entre nós e a falta de programas de aprendizagem da democracia. Na verdade, revela o defict de agentes democráticos na sociedade brasileira. E como não existe democracia sem democratas, isso deve ser motivo de grande preocupação.

Notas

(1) Todos os primeiros dirigentes do partido, os fundadores que tinham condições de formulação teórica, eram revolucionários marxistas – ou ex-revolucionários marxistas que não conseguiram se desvencilhar das matrizes marxistas de interpretação do mundo. Uma das três correntes que constituíram o PT era formada pelos dirigentes e militantes de antigas organizações políticas, colocadas na clandestinidade pela ditadura militar, alguns recém liberados de prisões brasileiras e outros voltando do exílio, era composta por marxistas, em geral, por marxistas-leninistas. É obvio que muitos líderes fundadores do PT, sobretudo os sindicalistas que compõem uma das três correntes da sua constituição, não foram marxistas, mas acabaram concordando com a visão marxista de que há uma imanência histórica, de que a história vai para algum lugar e tem leis que podem ser conhecidas por quem conhece a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade, de que a luta de classes é o motor da história, de que o sentido da política é uma espécie de guerra (sem derramamento de sangue, se não for necessário) para implantar uma ordem mais justa, inspirada nos interesses da classe trabalhadora. A terceira corrente de constituição do PT, formada pelos militantes da igreja do povo, inspirados pela teologia da libertação, também estava sob forte influência dessas ideias. Tais concepções, entretanto, não eram (e continuam não sendo) democráticas. Eram ideias revolucionárias, ainda que os revolucionários que as carregavam tivessem adotado a via eleitoral de chegar inicialmente ao governo para então, só depois, tentar tomar o poder (embora não necessariamente por meios violentos).

(2) A democracia surge em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., por meio de reformas: a reforma de Clístenes (que, em 508 a.C. substituiu o genos, os clusters familiares da aristocracia fundiária, pelo demos, os distritos em que qualquer um podia participar), a reforma (de origem desconhecida) que introduziu o sorteio no lugar de eleições (pois os oligarcas, mais organizados e com mais recursos, ganharam quase todas as disputas nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes) e da reforma de Efialtes (que, em 461 a.C., retirou o poder político do Areópago, uma espécie de suprema corte da época).

(3) Aqui é preciso entender que os populismos do século 21 não podem ser definidos como foram os populismos do século 20 e, muito menos, como foram os populismos dos séculos anteriores. Não é propriamente demagogia, clientelismo, assistencialismo e irresponsabilidade fiscal (embora algumas dessas características tenham permanecido). Os populismos do século 21 são comportamentos políticos guerreiros(baseados na prática da política como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin) que usam os regimes eleitorais (em geral os democráticos defeituosos, mas também os plenos) para impedir que esses regimes ascendam à condição de (ou se mantenham como) democracias liberais. Os populismos (de esquerda ou direita) são hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários da democracia liberal.

(4) Singapura, uma autocracia eleitoral (segundo o V-Dem 2025), está fazendo isso. A China, uma autocracia fechada, diz que está fazendo isso a partir do seu próprio conceito de democracia: a chamada “democracia popular de processo integral”. Mas essa “democracia” chinesa não atende aos critérios democráticos listados neste artigo. Cuba, outra autocracia fechada, segundo Lula, faz isso. Para ele “o único país [na América Latina] que conseguiu dar um salto foi Cuba… eles resolveram o problema da cidadania”.

(5) Populistas de esquerda e de direita escarnecem quando se fala do mundo democrático. Mas tomando os relatórios de duas das principais instituições que monitoram os regimes políticos no mundo – o V-Dem e a The Economist Intelligence Unit – é fácil fazer uma lista de quem compõe hoje o mundo democrático. São consideradas (em 2025) democracias liberais ou plenas (ou ambas) menos de 35 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chéquia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estónia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai. Sim, os EUA ainda estão na lista, embora talvez por pouco tempo em razão dos ataques de Trump (que é um populista-autoritário), mas governo não é regime. De qualquer modo, esses não são os aliados preferenciais de Lula e do PT. Por que? Ora, porque eles não são democráticos.

A fadiga material das ruas: quando a militância troca o asfalto pelo feed, sem recuperar o fôlego

As ruas brasileiras, que nos últimos anos foram palco de mobilizações massivas, hoje revelam um esvaziamento visível. Não se trata de redução da polarização nem de perda de popularidade de Lula ou Bolsonaro, mas de uma fadiga material: o cansaço dos setores mais engajados, que percebem que protestos repetidos produzem efeitos cada vez mais escassos. Essa exaustão atinge tanto a direita quanto a esquerda e se expressa também no ambiente digital — não como revitalização, mas como outro sintoma do mesmo esgotamento.

As jornadas de junho de 2013 exemplificam esse processo. Não foram manifestações de direita; surgiram do Movimento Passe Livre, com pautas progressistas. Pesquisas do Datafolha mostravam apenas 10% de participantes identificados com a direita e 36% com a esquerda ou centro-esquerda. Mas o caráter plural — sindicatos, coletivos feministas, negros e LGBTQIA+, grupos autonomistas e patrióticos — abriu espaço para que a direita encontrasse ali um canal para disputar o debate público em pé de igualdade com a esquerda nos anos seguintes.

Hoje, porém, tanto a direita quanto a esquerda convivem com o desencanto. O “gigante” acordado em 2013 parece cada vez mais sonolento: atos pró-anistia em 2025 reuniram dezenas de milhares, muito menos que mobilizações anteriores. Já os protestos da esquerda tendem a ser seguidos por crescimento de rejeição, provocada pelos segmentos e atores que sustentam seu campo político. O resultado é ruidoso na forma, mas silencioso no efeito.

Essa fadiga não se limita ao espaço físico. No digital, o engajamento explode em números — a consultoria Bites registrou 1,48 bilhão de interações com políticos de direita entre janeiro e maio de 2025, mais que o dobro da esquerda e do centro juntos — mas esse volume não significa ação coletiva transformadora. Como aponta Raphael Castro no Ateliê de Humanidades, “a hiperatividade online pode mascarar a inanição cívica offline”. Em média, brasileiros passam 3h46 min por dia nas redes (acima da média global de 2h31 min), mas grande parte desse consumo político se traduz em curtidas, comentários e hashtags sem vínculo com estruturas permanentes de participação.

O risco é o mesmo que Durkheim descreveu como anomia social: perda de normas e objetivos coletivos. A pseudodemocracia pode seguir formalmente operante, mas sem engajamento real, com cidadãos dispersos e céticos.

Para evitar esse caminho, é preciso reconstruir o engajamento. Reativar redes de participação permanentes (digitais e presenciais) que liguem demandas locais a ações nacionais. Redefinir o papel dos atos: cada mobilização deve vir acompanhada de entregas concretas — campanhas, leis ou ações comunitárias. E reencantar o debate público com novas narrativas e rituais cívicos menos partidários e mais comunitários, capazes de unir cidadãos em torno de valores comuns.

Sem esse esforço, tanto as ruas quanto as timelines continuarão a dar sinais de vida — mas sem fôlego real. E a democracia corre o risco de esvaziar-se não por confronto, mas por desilusão.