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O Julgamento de Bolsonaro: Um Teste Crítico para o STF e a Democracia Brasileira

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, marcado para 2 de setembro de 2025 no Supremo Tribunal Federal (STF), vai além da figura de um político acusado de tentativa de golpe. Trata-se de um momento definidor para a democracia e, sobretudo, para a credibilidade do STF, que enfrenta crescente desgaste diante da opinião pública. Alegações de parcialidade, fragilidade de provas, cerceamento de defesa e medidas consideradas arbitrárias levantam dúvidas sobre a imparcialidade da Corte. O Supremo terá de escolher entre reforçar sua legitimidade como guardião da Constituição ou aprofundar a percepção de que se tornou um tribunal politizado.

Tradicionalmente visto como pilar democrático, o STF atravessa uma crise de imagem. A condução do processo por Alexandre de Moraes gera críticas que vão além dos círculos bolsonaristas. Sua atuação simultânea como relator e figura central do inquérito, somada a decisões como bloqueios de perfis, uso de tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar de Bolsonaro em agosto de 2025, alimenta a narrativa de um Judiciário que extrapola seus limites. Entidades como a Human Rights Watch e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertaram para riscos de abuso de poder e enfraquecimento do devido processo legal.

A escolha de manter o julgamento na 1ª Turma do STF, composta por apenas 5 ministros, em vez do Plenário, é um erro grave. Casos de grande impacto — como o mensalão (2012) ou a prisão em segunda instância (2016) — foram julgados pelos 11 ministros em sessões públicas, o que fortaleceu a legitimidade das decisões. No caso Bolsonaro, limitar a decisão a uma turma reduzida reforça a percepção de falta de transparência.

O julgamento não diz respeito apenas a um ex-presidente, mas ao futuro da accountability política no Brasil. A sociedade, já polarizada, acompanha cada passo. Se o processo for visto como injusto, poderá inflamar tensões, legitimar narrativas de perseguição e minar a confiança em outras instituições. Por outro lado, um julgamento transparente e equilibrado pode reafirmar que ninguém está acima da lei.

As delações frágeis — como a de Mauro Cid, questionada por juristas pela ausência de provas materiais — e decisões céleres que sugerem presunção de culpa aumentam a desconfiança. A expectativa não é apenas por condenação ou absolvição, mas por um processo justo em forma e conteúdo.

O julgamento de 2 de setembro é um divisor de águas. O STF precisa demonstrar que é capaz de julgar com imparcialidade e sem aparência de perseguição política. Um processo opaco enfraquecerá a Corte e, com ela, a própria democracia. A sociedade brasileira merece um julgamento à altura da Constituição.

O Brasil é dos Chineses

A recente negociação envolvendo a venda das minas de níquel da Anglo American para a MMG, subsidiária da estatal China Minmetals, escancara a vulnerabilidade do Brasil diante de investimentos estrangeiros que não apenas movimentam cifras bilionárias, mas tocam o coração da soberania nacional: o controle sobre recursos estratégicos. O negócio, avaliado em US$ 500 milhões, foi concretizado em condições que levantam fortes suspeitas. Outra interessada, a Corex Holding, ofereceu quase o dobro do valor — US$ 900 milhões — e mesmo assim foi preterida, em uma decisão que reforça a percepção de que a Anglo American priorizou interesses políticos e comerciais ligados à China, ainda que em detrimento da transparência e da competitividade.

O caso se torna ainda mais grave quando se analisam seus impactos sobre o mercado. Se confirmada, a transação entregará à MMG o controle de mais de 50% do mercado brasileiro de níquel, praticamente 100% do mercado nacional de ferro-níquel e cerca de 60% do mercado global. Estamos falando de um insumo central para a economia do futuro, essencial na produção de baterias, veículos elétricos e aço inoxidável. Ou seja, o Brasil corre o risco de se tornar conscientemente refém de uma potência estrangeira justamente em um setor estratégico para a transição energética e a indústria de ponta.

Esse episódio ilustra porque o Projeto de Lei 1051/2025, que cria o Comitê de Triagem e Cooperação para Investimentos Estrangeiros Diretos (CTIE) não é apenas necessário, mas urgente. A ausência de uma estrutura robusta de avaliação de investimentos abre espaço para que decisões de curto prazo comprometam o futuro da economia nacional. O CTIE teria a missão de filtrar operações que afetam diretamente a segurança nacional e a autonomia estratégica do país. Trata-se de mecanismo de defesa que países desenvolvidos já utilizam para conter a expansão predatória em setores sensíveis, prática comum entre os membros da OCDE.

Não se trata de xenofobia econômica, mas de realismo geopolítico. A China, por meio de suas estatais, persegue deliberadamente o controle de cadeias globais de suprimento de minerais críticos. A lógica é clara: quem domina os insumos controla os preços, define os prazos e estabelece condições comerciais e controle econômico. O Brasil, dono de vastas reservas minerais, assiste passivamente à entrega de seu patrimônio estratégico.

É simbólico que até o Instituto Americano do Ferro e do Aço busque pressão diplomática contra o acordo, denunciando a crescente ação global da China pelo controle dos minerais críticos. O país domina hoje o refino de minerais como níquel, cobalto e terras raras, mas ainda depende de minas no exterior para alimentar suas fundições. Por isso, corre para adquirir ativos estratégicos em diferentes continentes. 

A soberania nacional está além de manter fronteiras, mas também resguardar a capacidade de decidir sobre nossos recursos. Portanto, a venda das minas de níquel não é apenas um negócio isolado: é um alerta. Sem instrumentos institucionais como o CTIE, o Brasil segue vulnerável a operações que comprometem seu futuro. O PL 1051/25 surge como uma salvaguarda indispensável, garantindo que decisões estratégicas sobre setores críticos não sejam tomadas sob a lógica do oportunismo financeiro, mas sob o imperativo maior da soberania nacional. O governo diz que o Brasil é dos brasileiros, porém, a verdade é que, até o momento, o Brasil caminha para ser propriedade dos chineses.

“A verdadeira direita do Brasil”?

Minas Gerais, Romeu Zema, como pré-candidato à eleição presidencial de 2026. O convite, postado no WhatsApp pelo Instituto Libertas, ressaltava a seguinte mensagem: “Vamos unir a verdadeira direita do Brasil”.

A frase é ambígua. Pode significar uma avaliação crítica ao bolsonarismo, que há alguns anos se impôs no Brasil como principal referência da direita, mas pode também ser um apelo para unir essa direita bolsonarista em torno da candidatura do Novo, ambas sendo tomadas pela “verdadeira direita” em contraposição a uma “falsa direita” e a toda a esquerda, tomada aqui por um bloco homogêneo excluído de antemão.

De uma forma ou de outra, há na referida frase uma irrefletida valoração positiva da “direita”, além de perigoso purismo, ausência de distinção, eliminação de nuance e reivindicação de hegemonia.

Parece-me problemático que um partido dito liberal tome a ideologia ou categoria política “direita” por um valor positivo absoluto em torno do qual se busca uma união em detrimento do restante do espectro político.

O liberalismo, no decurso dos eventos históricos que protagonizou enquanto ideologia moderna, aproximou-se tanto da esquerda quanto da direita. Liberais e socialistas já se uniram contra estruturas conservadoras; liberais e conservadores já se uniram contra abruptas rupturas revolucionárias.

Se o malfamado “neoliberalismo” da segunda metade do século XX identifica-se mais com o espectro da direita, o liberalismo social do século XIX e início do século XX encontra mais pontos de contato com a esquerda social-democrata.

Parece-me, pois, contraproducente – até do ponto de vista eleitoral – que o partido Novo, por ocasião do lançamento de uma candidatura presidencial, opte por um chamado de união à “verdadeira direita” excluindo de antemão o eleitorado do centro ou da esquerda moderada com a qual poderia vir a compor.

A refutação clara do radicalismo de direita e o aceno aos moderados de ambos os espectros políticos parece-me um caminho mais correto, mais saudável e mais coerente para um partido em cujos princípios estão citados o império da lei e a democracia.

O partido Novo, na figura de Romeu Zema, se apresenta para a disputa em um momento muito difícil para a política brasileira e de descaminho do próprio partido. 

Tal descaminho tem sido a excessiva proximidade com o bolsonarismo que, com sua ignorância boçal e seu autoritarismo escancarado, já se tornou um espantalho. Um espantalho que espanta votos, embora não tenha esgotado todo seu capital político.

Entendo que haja um pragmatismo que visa herdar o espólio do bolsonarismo agonizante, mas contra esse pensamento utilitário reclamo uma ética mais kantiana que afirma ser necessário defender o certo e condenar o errado, a despeito das consequências.

Não é certo fazer de conta que as ações de Jair Bolsonaro, de seus filhos e de seu entorno não foram erradas.

Se o Novo for capaz de se descolar da direita radical, do populismo reacionário que o bolsonarismo representa, o partido pode vir a ser um representante legítimo não da “verdadeira direita” – expressão infeliz, de tom autoritário – mas de uma direita plural, de boa inspiração liberal-conservadora, democrática e humanista.

É preciso fugir dos extremos e tomar cuidado com a retórica belicosa e simplista que apaga as nuances dos espectros políticos.

No livro intitulado “Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política“, Norberto Bobbio reconhece que direita e esquerda não são blocos monolíticos e que existem nuances dentro de cada campo, podendo as posições inclusive serem deslocadas.

Contra aqueles que insistem em afirmar que ou se é de esquerda ou se é de direita, ele reivindica a importância de uma zona cinza que se nutre de elementos de ambos os espectros.

Embora a igualdade seja o critério primário para a distinção entre as duas vertentes políticas, Bobbio também discute a liberdade e a autoridade como critérios secundários que, em certas circunstâncias, podem se sobrepor ou complementar a questão da igualdade.

A posição de direita ou esquerda em relação à liberdade e autoridade não é fixa, podendo variar. A partir dos critérios de igualdade e liberdade, ele sugere então o seguinte espectro das doutrinas e movimentos políticos:

1) Extrema esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e autoritários

2) Centro esquerda: movimentos simultaneamente igualitários e libertários

3) Centro direita: movimentos simultaneamente libertários e inigualitários

4) Extrema direita: movimentos simultaneamente antiliberais e anti-igualitários.

Enquanto o moderantismo (à esquerda ou à direita) tende a ser gradualista, evolucionista e a considerar como guia para ação a noção de desenvolvimento, o extremismo (à esquerda ou à direita) tende a ser catastrófico e a interpretar a história como se ela desse saltos.

Outro ponto importante destacado por Bobbio é que extremistas de esquerda e extremistas de direita têm em comum, do ponto de vista político, a aversão pela democracia como conjunto de valores e como método e, do ponto de vista histórico-filosófico, o anti-iluminismo.

Se trago para um artigo jornalístico essas sutilizas conceituais – mesmo sem ter espaço para explicá-las pormenorizadamente – é apenas para alertar o perigo que há na propagação de um discurso no qual um partido se apresenta como “a verdadeira direita” ou como “o único partido 100% de direita.”

Um partido 100% à direita é um partido de extrema direita. Um regime de extrema direita é um regime sem liberdade, sem igualdade, onde Estado subjuga e esmaga o indivíduo. É um Estado totalitário. Certamente não é isso que o partido Novo defende, mas a ausência de cultura política pode levar a exortações irrefletidas.

Sendo assim, seria bom para o partido rever seus slogans, revisitar seus fundamentos e reajustar sua retórica a fim de se apresentar como uma opção viável não apenas para a “verdadeira direita”, mas para a maioria dos brasileiros que almeja um país livre não apenas do PT, mas dos Bolsonaro também.

Principais características dos democratas

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

2 – Quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

3 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

4 – Democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

5 – Democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

6 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

7 – Democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

8 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

9 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

10 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

11 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

12 – Democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

13 – Democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

14 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

15 – Democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Silêncio em Pequim

Entre os muros da Cidade Proibida, símbolo de um passado marcado pela discrição, ressoa hoje um eco que se projeta sobre Zhongnanhai, o atual centro nervoso do poder chinês. Ali, atrás de portões fechados e corredores vigiados, definem-se em silêncio os destinos da política externa de uma das grandes potências do planeta. Naquele mundo, a regra é simples: decisões cruciais não são explicadas, apenas sentidas pelo mundo.

Foi nesse cenário que a diplomata Sun Haiyan, ex-embaixadora em Singapura e vice-chefe do Departamento Internacional do Partido Comunista, desapareceu da cena política. Seu superior, Liu Jianchao — nome tratado como sucessor natural de Wang Yi, atual Ministro das Relações Exteriores — teve destino similar: interrogatórios, rumores e silêncio. Ambos seguem nos registros oficiais como se ainda estivessem em seus cargos. A burocracia se encarrega de manter a ilusão; a realidade, porém, já os apagou.

Estes não são casos isolados. Em 2023, Qin Gang, então Chanceler, foi igualmente removido sem explicação. Esses desaparecimentos sucessivos revelam algo mais profundo: até mesmo a diplomacia chinesa, que deveria sinalizar estabilidade e continuidade, na verdade é vulnerável à lógica interna e regras do Partido Comunista, que privilegia disciplina e lealdade acima da previsibilidade e estabilidade política.

O problema é que essa opacidade não se limita às paredes de Zhongnanhai. Ela vaza para além de suas fronteiras, tornando-se risco exportado. Parceiros comerciais, governos e investidores precisam lidar com uma China em que os interlocutores podem sumir de um dia para o outro. A pergunta que fica é: Como negociar compromissos estratégicos em condições tão incertas? O comércio e a geopolítica exigem confiança, mas Pequim oferece em seu cardápio apenas mistério e incerteza.

Sob Xi Jinping, a diplomacia passou a refletir o estilo do próprio regime: centralizada, rígida, pouco transparente — e, por isso mesmo, imprevisível. O resultado é um mundo forçado a interpretar ausências, decifrar sinais, ler entrelinhas. A instabilidade interna do Partido, em vez de assunto doméstico, tornou-se elemento de insegurança global.

A lição que se impõe é dura: nos corredores de Zhongnanhai, o silêncio não é vazio, mas instrumento de poder. Quanto menos se explica, mais espaço há para a disciplina interna, mas também para a incerteza. É nesse contraste entre opacidade e influência global que reside o paradoxo da China contemporânea: uma potência que aspira confiança, mas cultiva o segredo como método.

O Brasil, maior parceiro comercial da China na América Latina, deveria observar esses movimentos com atenção redobrada. Não basta comemorar os números do agronegócio ou a expansão do comércio bilateral. É preciso compreender que, ao atravessar Xinhuamen (Portão da Nova China), e adentrar em Zhongnanhai, onde o poder realmente se move, não há espaço para ingenuidade. Ali, a política externa não se conduz à luz do dia, mas entre sombras — as mesmas que têm provocado reiterados episódios de instabilidade em sua diplomacia.

O “isentão” é, antes de tudo, um forte

Cursei jornalismo por uns dois anos. Foi minha primeira faculdade, mas abandonei-a, dentre outros motivos, por não conseguir me adaptar à urgência da notícia. 

Sou paradoxalmente ansiosa e contemplativa, apressada e reflexiva. Minha natureza, por assim dizer, “ruminante”, para usar uma expressão de Nietzsche, empurrou-me para a Filosofia. Por ironia do destino, porém, mesmo não sendo jornalista, cá estou, atuando nesse meio.

Em 2015, comecei a sair um pouco da bolha universitária. Há dez anos dou a cara a bater no debate público, expondo minhas opiniões e análises políticas em diversos think tanks, portais e jornais. O que prejudicou, inclusive, minha carreira acadêmica, que estou tentando retomar.

Fui a primeira mulher nordestina a assinar, toda segunda feira, a página A2 da Folha de S.Paulo. Consegui romper a barreira regional e de gênero sem apadrinhamento, sem ceder um milímetro nas minhas convicções e princípios, sem precisar de qualquer tipo de cota.

Acabei abrindo mão desse espaço por ingenuidade. Em um desvio de rota, achei que fazia algum sentido para mim a política partidária. Não fazia. Minha relação com a política é uma relação externa, de análise. 

Não sou militante política, não sou jornalista militante. Sou simplesmente alguém inclinada a tentar compreender o mundo em que vivo, tanto em seu aspecto metafísico/ontológico quanto em seu aspecto social/político.

A incursão frustrada na política partidária deu-me, porém, algo de inestimável valor: a experiência da desilusão. 

Perder as ilusões em relação à política é um rito de passagem fundamental para começar a refletir bem sobre esse campo do saber. Quando me tornei colunista aqui, no portal O Antagonista, eu já havia passado por esse rito.

Isso não significa que eu não tenha ideais. Tenho-os sim, mas não deposito em nenhum político ou agrupamento político a esperança de realizá-los. 

O ideal existe para mim como ponto de referência, de parâmetro para a apreciação das formas sociais efetivas, não como crença passível de manipulação por demagogos astuciosos e cínicos como o são quase todos os profissionais da política.

Não é razoável, portanto, que eu ou qualquer outro colunista minimamente isento em suas análises seja objeto não apenas de crítica, mas de ódio, xingamentos e difamação justamente pelo quesito da isenção.

“Qual é o problema de ser isentão?”, perguntou o colega Eduardo Affonso, em sua crônica no jornal O Globo. 

O aumentativo pode conotar admiração ou desprezo, mas ´isento´ quer dizer liberto, desembaraçado, imune. Limpo, justo, desapaixonado. Imparcial. Sensato. Neutro”, escreve Affonso, desnudando também, em seu texto, a irracionalidade e a intolerância dos leitores que exigem que colunistas façam eco às suas paixões políticas sob pena de serem defenestrados.

Alguém poderá retorquir fazendo notar que, por trás da pretendida isenção, há inevitavelmente uma tomada de posição.

De certa forma sim. Não diria, porém, uma posição política propriamente dita, mas certa tendência ou inclinação, que, de resto, está explícita naquilo mesmo que se defende e se escreve. Isso é diferente de tomar partido, de se colocar a serviço de um partido ou de servir aos próprios interesses servindo a interesses escusos.

No meu caso específico, difícil não perceber, por tudo que já escrevi, que me insiro ideologicamente em um espectro que oscila do campo liberal-conservador à esquerda social-democrata, ou seja, tenho por campo político mais familiar a centro-direita, mas aceno favorável e complacentemente à centro- esquerda.

Uma legítima “isentona”, sentenciarão alguns. Que seja. No Brasil de hoje, o “isentão” é antes de tudo um forte.

O “isentão” digno desse nome é tarimbado na lida com a pressão dos extremos alucinados da política hodierna, já declinou vantagens pessoais que poderiam advir do adesismo descarado a um dos polos ideológicos em contenda e é dotado de uma sobriedade forjada no ato de resistir à gritaria histérica dos que exigem o sacrifício da razão no altar do fanatismo.

O “isentão” é a resistência do indivíduo autônomo, do sujeito pensante e do espírito livre, em meio à rebelião das massas.

Entendo que nosso país vive momento delicadíssimo, de muita tensão e turbulência. Estou consciente de que o discurso de defesa da democracia tem servido de fachada para o avanço das práticas mais autoritárias. 

Como, porém, tomar um lado nessa briga se aqueles que acusam as práticas autoritárias de uns são os mesmos que apoiam as práticas autoritárias de outros? Se não há lado certo, por que se juntar a um dos lados errados em vez de apontar o erro de ambos?

Tenho recebido ataques e xingamentos de alguns seguidores nas redes sociais por supostamente estar ao lado do STF, visto que não estou berrando por aí com os bolsonaristas pelo impeachment de Alexandre de Moraes. Não consigo, porém, defender ardorosamente uma bandeira política quando percebo claramente a sua instrumentalização por pessoas torpes mal-intencionadas.

Denunciar os abusos do ministro Moraes é importante e eu mesma não me furtei a isso; mas o problema do Brasil não é apenas Alexandre de Moraes. 

Por que bolsonaristas esbravejam apenas contra ele e fazem vista grossa para os atos abusivos e pouco republicanos de outros ministros como Gilmar Mendes ou Dias Toffoli?

Ora, retrucarão alguns, os bolsonaristas querem o fim do STF como um todo. Para isso invadiram a Praça dos Três Poderes e um bolsonarista até se explodiu em frente ao prédio do Supremo Tribunal. 

Aí é que está o problema. Não querem reformar a instituição por meios legítimos, querem destruí-la. Não se incomodam com o poder centralizado, incomodam-se com o poder centralizado nas mãos daqueles que julgam ser seus inimigos.

O problema do Brasil não é apenas o autoritarismo de Moraes, mas a falta de legitimidade de todo o sistema político; é a crise de legitimidade que existe em cada um dos três poderes porque aqueles que lá estão não honram suas funções, não atuam com lisura, não têm probidade, não são íntegros.

Ocorre que, nessa democracia disfuncional em que vivemos, ainda não estamos sob uma ditadura escancarada. O povo vota, escolhe seus representantes e o brasileiro tem insistido em escolher mal, muito mal.

A massa esquerdista que gritava Lula livre na porta da cadeia e os parlamentares lulistas que protestaram durante sessões do Congresso por ocasião da sua prisão atrasam tanto o Brasil quanto a massa direitista que invadiu a praça dos três poderes e os parlamentares que ocuparam recentemente as casas legislativas com o objetivo de livrar Bolsonaro da prisão.

O brasileiro comum politizou a sua vida privada permitindo que suas relações pessoais fossem envenenadas pelo fanatismo político enquanto aqueles por quem deterioram os seus sagrados laços de família sequer partilham dos seus ideais; são meros profissionais da política cujo ofício é alardear retoricamente como sendo de interesse nacional ou comum aquilo que é interesse pessoal ou grupal.

O Brasil precisa romper o ciclo nefasto da corrupção, do patrimonialismo e do populismo. Para tanto, precisamos exigir dos nossos representantes lisura, seriedade, coerência. Se continuarmos servindo apenas de massa de manobra conduzida ao bel prazer dos demagogos de ocasião ou dos sofistas inveterados, retroalimentaremos a mesma política que já sabemos perniciosa.

Ao cidadão cabe sempre o ceticismo quanto àqueles que exercem o poder ou detêm carisma capaz de atrair multidões. Em relação aos políticos, nossa atitude deveria ser sempre a fiscalização constante, a cobrança séria e não a bajulação que tapa os olhos para os erros em nome de uma suposta ideologia comum.

O fanatismo político nos trouxe até aqui. A prudência e a escolha criteriosa do eleitor “isentão” em 2026 pode ser o primeiro passo para nos retirar dessa lama.

Consciência e IA: Desafio Contemporâneo para os direitos humanos

A dignidade da pessoa humana constitui o fundamento ético e jurídico de todo edifício dos direitos humanos. Contudo, frequentemente se interpreta essa noção em termos predominantemente objetivos, como a proteção da vida, da integridade física ou da proteção material. Embora tais dimensões sejam indispensáveis, elas não esgotam a densidade normativa do conceito. É preciso reconhecer que a dignidade repousa, em seu núcleo mais íntimo, na experiência subjetiva que é em última análise o que nos caracteriza como seres humanos.

Vemos a centralidade da subjetividade se manifestar de forma clara na prática dos direitos humanos. A proibição absoluta da tortura, por exemplo, não se explica apenas como defesa da integridade física do corpo, mas como proteção contra o ataque intolerável à consciência vivida da dor, o ataque intencional a integridade física e moral é uma experiência considerada degradante para a condição humana. A violação aqui não é apenas corporal, mas fenomenológica: representa destruição da interioridade subjetiva que fundamenta a humanidade do indivíduo.

Do mesmo modo, a proteção da liberdade de expressão ou de religião não pode ser reduzida a meras prerrogativas externas de manifestação. Esses direitos têm como finalidade resguardar a expressão da autenticidade da experiência interior.Seja ela de pensamento, crença ou convicção, assegurando que cada pessoa possa viver de acordo com sua própria consciência. O valor protegido é, portanto, a subjetividade representada pelo termo consciência e que dá consistência à liberdade.

Essa leitura se torna ainda mais urgente no cenário contemporâneo, marcado pela inteligência artificial, pela governança algorítmica e pelo avanço das neurotecnologias. Os debates recentes sobre neurodireitos já reconhecem que, na era digital, não basta proteger corpos ou dados. O que está em risco é a própria autonomia cognitiva, isto é, a experiência subjetiva que sustenta a possibilidade de escolhas livres e conscientes. Algoritmos que manipulam preferências ou falseiam percepções atuam diretamente sobre a autenticidade da experiência humana, comprometendo inclusive o núcleo do livre-arbítrio jurídico.

Nesse contexto, quando se afirma que a dignidade da pessoa humana é o fundamento dos direitos humanos, deve-se reconhecer que esse fundamento repousa na experiência vivida. Sem a preservação do livre experienciar interior que se entrelaça na consciência humana — seja diante da violência física, da manipulação informacional ou da opacidade algorítmica — a própria noção de dignidade corre o risco de esvaziar-se. O desafio contemporâneo dos direitos humanos, portanto, é expandir seu alcance protetivo para além da integridade corporal e patrimonial, abarcando de forma explícita a de proteção da consciência humana como condição indispensável à liberdade e da humanidade.

A decisão de Flávio Dino e os riscos reais da Lei Magnitsky

A recente decisão do ministro Flávio Dino, do STF, ao afirmar que sanções estrangeiras só teriam efeitos no Brasil se fossem reconhecidas pela legislação nacional, pretende transmitir uma ideia de soberania jurídica. Mas, na prática, trata-se de uma medida ingênua e potencialmente prejudicial à economia brasileira.

As sanções da Lei Magnitsky não são uma imposição direta ao Brasil, mas uma obrigação para empresas americanas e, por consequência, para companhias de outros países que se relacionam com elas. Bancos, corretoras e empresas internacionais precisam escolher: proteger os sancionados, arriscando penalidades, ou manter operações comerciais com os EUA. Essa decisão não é simbólica: tem impactos reais sobre quem opera com dólar e sobre o comércio internacional.

A tentativa de Dino de neutralizar juridicamente a sanção cria a ilusão de proteção, mas não altera a prática do sistema financeiro global. Bancos internacionais continuarão a tratar qualquer pessoa sancionada como risco, bloqueando contas ou dificultando transações. E o efeito pode se estender às empresas brasileiras exportadoras, que dependem de transações em dólar e de acesso a mercados internacionais. Um simples risco de relação com pessoas sancionadas pode gerar atrasos, restrições e custos adicionais — prejudicando a competitividade do Brasil no comércio global.

Em outras palavras, a decisão de Dino reforça a desconexão entre discurso e realidade. Enquanto juridicamente a soberania é preservada, economicamente não há proteção alguma. Ignorar a lógica extraterritorial da Magnitsky não impede seus efeitos práticos, mas pode comprometer bancos, empresas exportadoras e a própria economia brasileira.

O país não pode tratar sanções internacionais como meros gestos simbólicos. No mundo globalizado, medidas extraterritoriais afetam diretamente operações financeiras e relações comerciais. Blindagem jurídica de autoridades nacionais não protege o Brasil do impacto real das sanções, e medidas como a decisão de Dino apenas evidenciam um descompasso perigoso entre o direito interno e a realidade internacional.

Isolamento Brasileiro

A retórica de “soberania” e “multilateralismo” que permeia o discurso diplomático brasileiro contrasta radicalmente com um padrão documentado de incoerência estratégica. Dados concretos revelam uma desconexão perigosa entre aspirações e ações, minando sistematicamente a posição do país no tabuleiro global. O colapso das negociações Mercosul-UE e as recentes críticas de Donald Trump são sintomas de uma patologia mais profunda: a incapacidade crônica de construir confiança comercial.

A política tarifária ilustra esse descompasso com clareza matemática. Enquanto o Brasil impõe 20% de tarifa sobre o etanol norte-americano, os Estados Unidos reciprocam com meros 2,5% sobre o mesmo produto brasileiro – assimetria que sacrifica R$ 3 bilhões anuais em fluxos comerciais potenciais. Essa proteção seletiva não se limita aos EUA: contra a média global de tarifas industriais de 3.8% (Banco Mundial, 2024), o Brasil mantém barreiras de 11.3% para bens manufaturados europeus.

Essa esquizofrenia regulatória gera consequências tangíveis. Quando autoridades brasileiras rebatem críticas alegando que “produtos americanos-chave já têm acesso facilitado”, ignoram um princípio elementar de comércio internacional: parcerias duradouras exigem reciprocidade previsível. O resultado é a erosão acelerada da credibilidade, evidenciada pelo desinteresse estratégico de atores centrais. A indiferença de Trump diante da aproximação Brasil-China – “podem fazer o que quiserem” – reflete essa percepção de irrelevância negociadora.

A crise com a União Europeia segue a mesma lógica desalinhada. Enquanto o Brasil rejeitava cláusulas ambientais do acordo Mercosul-UE invocando soberania, aumentava em 1.200% as importações de diesel russo – commodity financiadora de um regime sob sanções internacionais. Essa dupla moral não passou despercebida: 72% dos legisladores europeus citaram “incoerência geopolítica” como obstáculo à ratificação, segundo relatório do European Council on Foreign Relations.

Longe de serem episódios isolados, tais contradições expõem uma falha metodológica estrutural. Governos sucessivos – independentemente de orientação ideológica – confundem protecionismo com soberania e gestos unilaterais com autonomia. A consequência é um isolamento progressivo, manifestado em três dimensões críticas: perda de influência regional, como evidenciado por acordos bilaterais secretos com a China que minam o Mercosul, cujo comércio intrazona estagnou em 15% do total (contra 60% na UE); custos econômicos mensuráveis, com o Brasil representando apenas 1.2% do comércio global (OMC, 2025), abaixo do potencial de sua economia; e desconfiança sistêmica, expressa na 68ª posição do país no Índice de Credibilidade Comercial (Heritage Foundation, 2024).

A reconquista da relevância internacional exige mais que retórica. Requer harmonização tarifária transparente, reduzindo a média de proteção industrial para menos de 7%; alinhamento geopolítico verificável, abandonando parcerias que contradigam posições multilaterais; e reformulação do Mercosul como plataforma negociadora integrada, não escudo para unilateralismos. Na economia global pós-pandêmica – onde cadeias de valor se reorganizam sob critérios de confiabilidade – o Brasil não pode pagar o preço da incoerência. Como alerta o ex-Secretário-Geral da OCDE, Ángel Gurría: “Na nova geografia comercial, credibilidade é a moeda mais forte”. Resta saber se o Brasil aprenderá a emití-la.

A tecnologia capaz de ler seus pensamentos já existe em Stanford

Pesquisadores da Universidade de Stanford criaram uma tecnologia que transforma atividade cerebral em palavras audíveis. O dispositivo, descrito no artigo Dispositivo cerebral que lê pensamentos internos em voz alta inspira estratégias para proteger a privacidade mental, publicado na revista Science, decodifica sinais neurais associados à fala e os projeta em frases compreensíveis por meio de inteligência artificial.

O avanço é um milagre da ciência que abre caminho para devolver voz a pessoas que perderam a fala. No mundo em que vivemos, também inaugura uma fronteira sensível: a privacidade mental. O texto alerta que “a privacidade mental pode se tornar um dos debates mais importantes sobre direitos humanos nas próximas décadas” e observa que “uma vez que a tecnologia existe, é quase impossível controlar quem a usa e para qual finalidade”.

A pergunta inevitável é como proteger aquilo que antes parecia inviolável. A privacidade de dados já era um desafio mesmo antes, quando a preocupação se limitava a cliques, histórico de navegação e metadados. A possibilidade de inferir conteúdo mental eleva o debate a outro patamar. Em democracias robustas, o mínimo é combinar salvaguardas legais claras com barreiras técnicas, como criptografia forte, limitação de coleta e protocolos verificáveis de consentimento. Em regimes autoritários, a mesma capacidade pode virar instrumento de coerção. O risco não é teórico. Sempre que novas tecnologias mudam o eixo da informação, o primeiro impulso do poder é centralizar o controle.

Esse ponto importa diretamente para o Brasil. Na última semana, após o vídeo do influenciador Felca expor a exploração digital e a sexualização de crianças com a conivência de pais em redes sociais e canais fechados, o governo apresentou a proposta de transferir, para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, funções hoje exercidas pelo NIC.br e pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil. O NIC.br é uma entidade civil, sem fins lucrativos, que administra o domínio .br, distribui endereço IP e produz estatísticas de uso da rede. O CGI.br é um colegiado multissetorial que define diretrizes para o desenvolvimento da internet no país, com assentos para governo, setor privado, academia e sociedade civil.

O problema exposto no vídeo é real e exige resposta imediata. O caminho correto envolve investigação policial, atuação do Ministério Público, cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, responsabilização de plataformas nos casos previstos em lei e educação digital de famílias e escolas. Em vez disso, o governo tenta acoplar ao clamor por proteção infantil uma mudança estrutural de governança que já defendia antes. A ideia é substituir o arranjo multissetorial por um desenho centralizado no Executivo. Na prática, isso altera freios e contrapesos e aproxima o país de um modelo de controle em que decisões críticas sobre infraestrutura, padrões e fluxos de dados passam a ser feitas só pelo governo da vez.

Essa inflexão tem efeitos concretos sobre tecnologias emergentes. Em inteligência artificial, aumenta o risco de regras nebulosas que incentivam remoção preventiva, desestimulam pesquisa aberta e criam incerteza jurídica para pequenas empresas. Em neurotecnologia, a centralização pode transformar requisitos técnicos em barreiras regulatórias, inclusive com demandas de acesso compulsório a dados altamente sensíveis. Quando o Estado concentra alavancas de governança digital, cresce a possibilidade de vigilância ampliada, inclusive por meio de integrações entre bancos de dados, sensores e sistemas de identificação.

A discussão volta ao ponto de partida. Se uma tecnologia de leitura de pensamentos começa a se tornar possível, quem deve decidir limites, salvaguardas e auditorias? O modelo multissetorial do CGI.br nasceu para equilibrar visões e impedir que um único ator capture a agenda da internet. Enfraquecê-lo em nome de uma bandeira urgente, como a proteção de crianças, é trocar soluções específicas por um cheque em branco regulatório. O resultado provável é menos transparência, mais poder discricionário e mais vulnerabilidade a usos políticos de ferramentas digitais.

Há um consenso mínimo que pode nos guiar: crimes contra crianças devem ser investigados e punidos com rigor. Plataformas precisam cumprir deveres objetivos já previstos na lei, inclusive com mecanismos de denúncia, preservação de provas e cooperação com autoridades. Famílias e escolas devem ser capacitadas em segurança digital. Nada disso exige desmontar a governança multissetorial da internet no Brasil.

Enquanto a ciência avança sobre a decodificação da fala a partir do cérebro, cabe ao país decidir que arcabouço institucional quer construir: um que proteja a última fronteira da privacidade ou um que a torne administrável por decreto. Em um mundo no qual pensamentos podem ser inferidos, a liberdade depende menos de promessas e mais de instituições que limitem o poder de quem quer que esteja no comando.