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Lula na Tribuna, Trump nos Bastidores: O Duelo de 20 Segundos que Abalou a Estratégia Brasileira na ONU

O discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 80ª Assembleia Geral da ONU, proferido hoje, revelou-se um marco calculado na estratégia de reeleição para 2026. Sob o manto de uma defesa genérica do multilateralismo, Lula ergueu uma narrativa de confronto com os Estados Unidos, uma jogada destinada a galvanizar sua base eleitoral. No entanto, a realidade geopolítica, personificada por um encontro casual e estratégico com Donald Trump, expôs as contradições e o isolamento dessa abordagem, deixando o presidente brasileiro em uma posição delicada.

A fala no plenário foi construída em dois eixos: a autovitimização do Brasil e a criminalização de seus críticos. Ao afirmar que o país sofre “medidas unilaterais e arbitrárias” e uma “agressão contra a independência do Poder Judiciário”, Lula dirigia-se claramente ao seu eleitorado interno. A menção a uma “extrema direita subserviente” é um código para o palanque doméstico, transformando um fórum global em plataforma para atacar adversários. O objetivo é claro: consolidar a imagem de um líder sitiado, defendendo a pátria de potências estrangeiras e de uma “elite golpista” local, um roteiro bem-sucedido em campanhas passadas.

No plano internacional, o alinhamento com os rivais geopolíticos do Ocidente foi flagrante. A equiparação do conflito em Gaza a um “genocídio” e a afirmação de que sob os escombros palestinos está sepultado “o mito da superioridade ética do Ocidente” é uma das mais duras condenações já proferidas por um líder brasileiro, colocando-o em sintonia com os eixos antiamericanos. Da mesma forma, ao defender a retirada de Cuba da lista de patrocinadores do terrorismo e ao exigir, no contexto ucraniano, que se levem em conta “as legítimas preocupações de segurança de todas as partes” – um claro eco da narrativa russa –, Lula sinaliza qual bloco pretende liderar: o do Sul Global em contraposição ao equilíbrio de forças do Pós-Guerra.

Esta postura, no entanto, revela uma contradição flagrante: ao mesmo tempo em que condena supostas ingerências nos assuntos brasileiros, o presidente não hesita em discursar sobre os temas internos de outros países, praticando um ativismo internacional seletivo em defesa de aliados políticos ideologicamente alinhados. Até mesmo a agenda positiva apresentada – como o combate à fome e à crise climática – é instrumentalizada como pano de fundo para este projeto de poder, fazendo com que anúncios legítimos, como a saída do Brasil do Mapa da Fome e os preparativos para a COP30, percam força ao serem eclipsados por um discurso marcadamente acusatório.

A estratégia, porém, durou poucas horas. Nos bastidores, o acaso promoveu um choque de realidade. Ao se cruzarem, Lula e Trump travaram um encontro de 20 segundos que falou mais que o discurso de uma hora. O abraço e a rápida marcação de um encontro para a próxima semana, narrados com perspicácia pelo presidente norte-americano, foram um golpe de mestre típico de Trump. Ele reconheceu a “química excelente” de 39 segundos, mas foi rápido em lembrar, logo em seguida, as tarifas impostas pelo Brasil no passado e a suposta incapacidade do país de “se sair bem” sem os EUA. Trump, com habilidade negociadora, abriu uma porta de diálogo justamente após intensificar a pressão econômica, deixando Lula encurralado.

A confusão estratégica para o presidente brasileiro é evidente. Como conciliar a retórica de confronto, essencial para animar sua base ideológica, com a necessidade pragmática de negociar com o mesmo país que ele acabara de criticar frontalmente? A reação imediata dos mercados – com a Bolsa subindo e o dólar caindo ante a simples perspectiva de diálogo – é um sinal claro de que a comunidade econômica anseia por pragmatismo, não por embates.

O timing não poderia ser mais revelador. Em 2025, com o olho fixo nas eleições de 2026, Lula precisa reativar a mobilização de sua base. O discurso na ONU foi a peça central dessa estratégia. No entanto, a astúcia de Trump obriga-o agora a um malabarismo perigoso: negociar com o “império” que denuncia, arriscando desmobilizar seu eleitorado cativo, ou manter a rigidez e aprofundar o isolamento e os danos econômicos. A aposta na retórica do conflito mostrou-se um jogo de risco elevado. Lula, que aspirava a ser uma ponte, pode sair dessa semana não como líder, mas como um ator confuso, forçado a negociar com a potência que escolheu como adversária no palco mundial.

Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

Nova Ordem Autoritária

A Organização para Cooperação de Xangai (OCS) se consolida como um bloco geopolítico marcado pelo antagonismo ao Ocidente e pela defesa de regimes autoritários. Sob a liderança de Xi Jinping, a entidade propõe uma “nova ordem mundial” que, na prática, significa a consolidação de um modelo de poder centralizador com supressão de direitos civis e enfraquecimento da democracia. Ao contrário de promover multilateralismo, a OCS funciona como um eixo de apoio mútuo entre autocracias que buscam reduzir a influência das instituições democráticas globais.

O encontro em Tianjin, que aprovou uma estratégia até 2035, mostra que o bloco pretende expandir sua influência. A criação de um Banco de Desenvolvimento próprio e iniciativas em energia e inovação reforçam a tentativa de construir um sistema paralelo ao ocidental, mas sem compromisso com direitos humanos, liberdade ou democracia. A Índia, tradicionalmente alinhada ao Ocidente, se aproxima de forma perigosa dos líderes da OCS e aprofunda o risco de legitimar práticas repressivas neste eixo autoritário, ampliando tensões regionais e globais, colocando em xeque sua imagem internacional.

Essa confluência de autocracias gera efeitos diretos no equilíbrio global agindo sobre a guerra na Ucrânia e a estabilidade da Europa. Ao se reunir em fóruns e desfiles que projetam poder militar, líderes como Xi Jinping demonstram apoio tácito e claro à invasão russa, enfraquecendo pressões internacionais por uma solução pacífica. A complacência desses regimes autoritários não apenas prolonga o conflito e a tragédia humanitária ucraniana, como também mina o sistema internacional baseado em regras e instituições democráticas. O recado é claro: ditadores unidos desafiam abertamente os valores do Ocidente, abrindo espaço para uma nova era de conflitos.

Esse movimento ganhou contornos ainda mais nítidos em Pequim, no desfile organizado como parte das comemorações dos 80 anos do fim da 2ª Guerra Mundial. Lá, Xi Jinping exibiu pela primeira vez a tríade nuclear chinesa, sinalizando poder bélico em vez de cooperação pacífica. Ao seu lado, estavam ditadores e líderes autoritários de diferentes continentes — de Putin a Lukashenko, passando por figuras ligadas a regimes terroristas, como Masoud Pezeshkian do Irã e outros que também perseguem opositores e sufocam liberdades, com Kim Jong-un e Miguel Díaz-Canel, ditadores da Coreia do Norte e de Cuba. Um convescote autocrático que sinaliza o esboço de uma nova ordem autoritária. 

O Brasil, ao se fazer presente nestes eventos e se aproximar desse grupo, compromete sua tradição diplomática de defesa do multilateralismo democrático. A imagem projetada não é de liderança equilibrada, mas de cumplicidade com regimes que desprezam liberdades individuais, manipulam eleições e governam pela intimidação. Ao invés de se orgulhar de ocupar esse espaço, o país deveria se envergonhar. Estar ao lado de autocratas em desfiles militares ou fóruns controlados por ditadores significa renunciar a valores históricos da nossa política externa, corroendo a credibilidade internacional do Brasil e manchando sua identidade democrática.

No mundo atual, já marcado por conflitos e polarizações, a associação com a OCS e com espetáculos autoritários em Pequim não fortalece o Brasil. Apenas o coloca no lado errado da História — aquele que celebra o poder dos ditadores ao invés da liberdade dos povos.

Tarifas e pressões: Brasil e um mundo convulsionado

O mundo está em rápida reacomodação de forças. O multilateralismo institucionalizado com sua previsibilidade de regras está rapidamente substituído por uma política internacional ainda não bem definida, em suas regras de funcionamento e por definição de baixa previsibilidade. E nesse contexto o Brasil está estrategicamente numa posição dividida entre os dois centros de poder global, nominalmente nossa maior fonte de Investimentos Estrangeiros Diretos, os Estados Unidos e nosso maior parceiro comercial a China.

A tradição diplomática brasileira é se mover com muita habilidade e muita discrição em períodos como esse, buscando maximizar o interesse nacional, um exemplo clássico dessa estratégia é a equidistância pragmática que o Brasil manteve durante os momentos iniciais da Segunda Guerra Mundial. E nesse momento os dois pólos de atração tentam influenciar o comportamento brasileiro, os Estados Unidos usando incentivos coercitivos aplicando tarifas às exportações brasileiras para os EUA e provavelmente uma série de restrições tecnológicas. A China por sua vez aproveita para aumentar sua participação em Investimentos Diretos no Brasil, sobretudo, com suas fabricantes de veículos elétricos e produtos eletrônicos.

Quando analisamos as questões internacionais não podemos ceder à tentação de ignorar que os decisores políticos são humanos, o que implica dizer que as decisões não são construídas com estratégias perfeitas e são afetadas por inúmeros fatores desde a qualidade e idoneidade das informações que embasam as decisões, passando pelas características de personalidade e visões de mundo dos decisores.

Goste-se ou não do presidente Lula é uma característica da atuação política uma facilidade para o diálogo e a capacidade de alternar entre os discursos inflamados e a negociação pragmática. Goste-se ou não do presidente Trump é uma característica desse, também a negociação a alternância entre o discurso inflamado e a busca por um acordo. São duas figuras capazes de inspirar a mesma medida que são polarizadores.

E não podemos ignorar o impacto das divisões internas causam na Política Externa Brasileira, não somente por que elementos da oposição ao governo ativamente buscam por sanções e tarifas a serem aplicadas ao Brasil, mas por que essas divisões também limitam o espaço de manobra do governo ao ter que fazer concessões aos setores mais confrontacionais de sua base de sustentação.

Nesse contexto, tanto a conjuntura de política interna dos dois países, quanto a personalidade dos líderes contribuem para um cenário que coloca em risco as relações estratégicas e na maior parte do tempo harmônicas entre Brasil e EUA. E trazem prejuízos que podem ser extremamente danosos à economia, sobretudo nos setores exportadores Há muito mais em risco do que as justificativas oficiais, como uma suposta preocupação com a qualidade da democracia brasileira que a despeito do que a oposição alardeia é muito mais ponto de pressão extra do que motivador dessa pressão coercitiva, no centro de tudo, está a disputa entre as grandes potências.

Estamos sendo puxados, mais uma vez, para romper a equidistância pragmática. Assim, a Política Externa Brasileira precisará ser nos próximos meses eficaz e serena, para navegar nesse mar bravio. A figura de linguagem de uma encruzilhada é uma imagem recorrente nas análises internacionais, mas isso não a faz menos didática, estamos numa encruzilhada com inúmeros caminhos possíveis. Serão capazes nossos líderes políticos de defender o interesse nacional acima de suas disputas político-eleitorais? Ou os interesses privados de pouquíssimos políticos trarão enormes prejuízos e desemprego para o Brasil? A ideologia vencerá o pragmatismo necessário para lidar com nações grandes, poderosas e aparentemente dispostas a usarem seu poder?

Os brasileiros progressistas que defendem os aiatolás do Irã

Não existe justificativa possível para uma pessoa que se diz democrata apoiar o regime iraniano. Nenhuma. O que se vê por aí é uma mistura de ignorância e irresponsabilidade. No debate público, opiniões sobre conflitos armados, alianças geopolíticas e regimes autoritários estão sendo tratadas como se fossem brigas de torcida. E isso diz muito sobre o nível a que chegamos.

As pessoas que mais opinam são, em geral, as que menos entendem. Nunca viveram uma guerra, nunca estiveram em áreas de conflito, nunca estudaram geopolítica ou sequer buscaram entender as forças em jogo.

No Brasil, o horror à guerra é compreensível. Nossa experiência com ela é distante. Quando vemos uma imagem de bombardeio, de criança ferida, entramos automaticamente no modo emocional. Mas isso, por si só, não dá a ninguém autoridade para tomar partido sem compreender as implicações.

Quem se dispõe a discutir esse tipo de tema precisa, no mínimo, saber reconhecer seus próprios limites. O problema é que o senso de limite desapareceu. Tem gente desmentindo voluntário de ajuda humanitária no campo de Gaza, como se quem lê manchete soubesse mais do que quem está na linha de frente. É uma idiotização coletiva. E uma que silencia os que realmente sabem  porque os ignorantes são barulhentos.

A questão central é simples: o Irã é uma ditadura brutal. Apoiá-lo não é ter posição política. É renunciar à noção mais básica de direitos humanos. O regime iraniano persegue mulheres, homossexuais e opositores. Impõe um apartheid de gênero. Promove linchamentos morais e físicos em nome da religião. A população iraniana vive sob um terror cotidiano. São pessoas comuns, como nós, que até os anos 70 viviam em cidades abertas. Hoje, qualquer coisa considerada deslize de costumes pode ser punida com prisão ou morte.

É esse regime que parte da esquerda ocidental resolveu apoiar, por puro antiamericanismo. Como são contra os Estados Unidos, são contra Israel. E, como são contra Israel, são a favor de tudo que combate Israel,  mesmo que seja um governo teocrático que assassina mulheres por causa de um véu mal colocado. Isso não é política. Isso é moralmente indefensável.

O debate sobre guerra, armamentos e geopolítica é complexo. Mas há questões que não são. Apoiar um regime que mata mulheres por não se cobrirem o suficiente não exige complexidade para ser condenado. Exige apenas caráter. E o que falta, nesse caso, não é informação. É decência.

Guerra tarifária

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tomaram iniciativas para consolidar sua situação hegemônica. Essa estratégia tinha duas vertentes básicas: de um lado, a construção de um sistema de segurança global; de outro, a montagem de um esquema financeiro e comercial abrangente. 

No campo da segurança, cabe destacar a formação de novos arranjos militares. Nesse sentido, as alianças do período de guerra foram revertidas, com a transformação dos antigos inimigos – a Alemanha, a Itália e o Japão – em aliados. Acrescente-se a formação da Aliança Atlântica como marco decisivo na nova estrutura estratégica internacional. 

No âmbito da reorganização comercial e financeira internacional, cuja gênese pode ser encontrada nos acordos firmados em Bretton Woods (1944), deve-se dar atenção à criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), também conhecido como Banco Mundial. Em que pese não ter havido consenso para a implementação da Organização Internacional do Comércio naquele momento, criou-se o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), sistema de regras tarifárias e comerciais adotadas multilateralmente por meio de rodadas de negociações e cujo adensamento resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), nos anos 1990.

A implementação dessa macroestrutura institucional, tanto de segurança quanto econômica e comercial, enfrentava forte oposição da URSS, que competia com os EUA nos campos ideológico, militar e tecnológico. Apesar da resistência soviética, a estrutura montada pelos Estados Unidos foi duradoura e permaneceu forte durante todo o período da Guerra Fria. A derrocada da União Soviética, em 1991, fortaleceu ainda mais os Estados Unidos e as instituições internacionais em funcionamento desde a década de quarenta.

Os norte-americanos continuaram sua liderança tanto no campo da segurança internacional quanto na seara econômico-financeira até 2025, quando assumiu o poder o novo governo americano do presidente Donald Trump. O líder republicano, que já vinha tentando minar a credibilidade da OTAN com declarações contra o financiamento americano à defesa da Europa, passou a impor tarifas generalizadas e de forma unilateral. Se as referências à OTAN deixaram inseguros os europeus, que temem o expansionismo russo, a imposição de tarifas pelos norte-americanos representa uma ameaça à situação econômica dos cidadãos europeus, uma vez que pode resultar, no curto prazo, em escassez e aumento de preços de insumos básicos.

Ademais, a imposição de barreiras tarifárias pelo governo dos Estados Unidos representa a destruição do sistema construído no pós-guerra e que colocava relativa ordem no comércio e nos fluxos financeiros internacionais.

Embora a Organização Mundial do Comércio tenha sofrido, nos últimos anos, paulatina perda de credibilidade, devido ao desrespeito ou não adesão a suas regras por parte de alguns países, a instituição ainda mantinha certa relevância em sua atuação – suas normas e decisões ainda eram obedecidas na maior parte das vezes, pela maioria de seus membros. Com a imposição unilateral de tarifas elevadas a praticamente todos os países do mundo, contudo, os EUA acabam tornando obsoleto o sistema multilateral do comércio e esvaziando a legitimidade da OMC. 

As tarifas norte-americanas têm causado perplexidade nos mercados e entre os principais líderes mundiais, que ainda não sabem exatamente que medidas adotar para enfrentar uma ruptura de tamanha magnitude. Assim, assistimos a uma desmontagem dupla dos Estados Unidos: ruem, a um só tempo, o sistema atlântico de defesa estratégica, representado pela OTAN, e os arranjos de Bretton Woods, especialmente no que tange ao conjunto de regras que regulam o comércio mundial.

Algumas nações, como a China, já impuseram tarifas retaliatórias aos Estados Unidos. Trata-se de situação que, a perdurar, pode provocar uma recessão mundial de dimensões imprevisíveis, com consequências duradouras.

Apesar desse cenário global desafiador, o Brasil, atingido marginalmente pelas tarifas (alíquota-base de 10%) deve buscar negociar quotas com o governo estadunidense, por exemplo, mas não retaliar de forma imediata e recíproca, uma vez que os EUA têm dado sinais de flexibilização em alguns casos. 

Outrossim, a elevação de barreiras comerciais iniciada pelos Estados Unidos pode representar uma oportunidade para as exportações brasileiras, com o surgimento de novos parceiros comerciais em potencial que irão buscar suprir suas necessidades de consumo internas recorrendo a países com mercadorias a preços mais competitivos, como o Brasil. Como país produtor e exportador de commodities agrícolas e minerais, como café e soja, o Brasil poderá redirecionar produtos para a China, a Índia e o Japão, por exemplo. Isso aliviaria o peso das tarifas americanas. 

Acrescente-se que podem surgir oportunidades importantes no mercado europeu, uma vez que o aumento da tensão entre EUA e Europa, devido à tarifa-base mínima de 20%, imposta a todo o bloco europeu, pode acabar impulsionando as negociações do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. 

Por fim, é interessante notar que algumas mercadorias brasileiras podem ganhar mercado, inclusive, nos próprios EUA, já que, apesar da nova tarifa, produtos nacionais como o café podem ficar relativamente mais baratos ao consumidor norte-americano quando comparados aos de outras nações, cuja taxação foi bem maior. 

Cabe ao governo brasileiro atuar de forma estratégica em defesa dos interesses nacionais, protegendo-se diante de um cenário global adverso e instável, mas, também, aproveitando as oportunidades que surgem para a abertura de novos mercados à indústria nacional.

Foto: Getty Images

Nova Ordem Global

Para além das leituras tradicionais, os desdobramentos da visita de Volodymyr Zelensky a Washington sugerem algo mais profundo. Podemos estar diante de uma mudança de fundo na dinâmica da política internacional que tem potencial para mover os pilares da estabilidade global construída no pós-guerra. Este novo equilíbrio representa o retorno ao mundo de competição e equilíbrio entre grandes potências que prevaleceu antes da Segunda Guerra Mundial. É menos um mundo novo e corajoso do que um retorno a uma velha e perigosa dinâmica de poder.

A realidade imposta à Ucrânia representa a quebra de um paradigma importante que pode selar o futuro de diversas nações que depositaram no exterior a responsabilidade por sua defesa. Desde os acordos de Budapeste, que garantiram as fronteiras ucranianas em troca de sua desnuclearização, passando pela garantia da defesa da Europa na forma de um consórcio internacional, a OTAN, e desaguando na dinâmica de segurança de nações como o Japão, Taiwan e Coreia do Sul, jamais a estabilidade global atravessou período de tamanha turbulência e incerteza.

Nesta nova realidade estamos diante da possível consolidação de três pilares, liderados por Estados Unidos nas Américas, Rússia como pivot euroasiático e a China com influência decisiva no Pacífico, caracterizado por um novo balanço de poder. Os custos deste novo concerto seriam altíssimos nas mais diversas frentes, reordenando o equilíbrio global, entretanto, na visão de seus atuais líderes, alinharia seus interesses econômicos, geográficos e políticos. O mundo que lide com isso.

Este novo desenho de poder parece tomar forma na medida que diversos governos estão sendo impulsionados por uma onda populista, possivelmente idealizada, nascida, financiada e construída de forma artificial nas salas de um edifício neobarroco com fachada de tijolos amarelos nos arredores de Moscou, chamado de Lubyanka. Uma estratégia que encontrou simpatizantes dentro de partidos europeus e em líderes políticos nas Américas. Um modelo exportado pela Rússia, mas que sempre foi presente nas autocracias euroasiáticas e no autoritarismo chinês.

A alternativa ao novo desenho de mundo que pode emergir deste reordenamento de forças reside atualmente, única e exclusivamente, na capacidade de resiliência europeia, especialmente no que tange a defesa da Ucrânia, de maneira firme e decisiva. A Europa está diante de seu mais importante desafio desde a Segunda Guerra, aquele que definirá o seu futuro com desdobramentos profundos na geopolítica internacional, inclusive mediante reflexos na soberania dos países asiáticos, na existência de Taiwan como uma nação soberana diante das garras de Pequim, mas também na independência do Japão e na autonomia da Coréia do Sul. Os pilares da estabilidade internacional moveram-se profundamente e a ascensão de um inédito concerto entre as grandes nações tornou-se uma possibilidade real. Se tal movimento se concretizar, a discussão no Salão Oval passará de um simples incômodo diplomático a um marco histórico que pode ter sinalizado o surgimento de uma nova ordem global.

Sarajevo, 2023

Em 1914, Sarajevo assistiu incrédula a um ato de terrorismo, o assassinato daquele que provavelmente seria o próximo Imperador da Austro-Hungria, Franz Ferdinand. A morte do Arquiduque levou a Europa a um processo que acabou por desencadear aquela que ficou conhecida como “A Grande Guerra”, depois rebatizada de “1º Guerra Mundial”. Pouco mais de um século depois, vivemos o mesmo drama.

A ação terrorista do Hamas contra Israel tem potencial para significar algo muito similar ao assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro. Isto significa que uma cadeia de apoios e alianças entre aliados e opositores, em ambas as partes, tem potencial para atingir uma escala muito maior do que é desenhado até o momento. Assim como nas semanas pós-Sarajevo, vivemos tempos que podem prenunciar um conflito de maior dimensão.

O ataque do Hamas contra Israel foi desenhado longe de Gaza e certamente tem digitais iranianas, mas passa também pela Síria, Hezbollah e as conexões de todos com Moscou. Vemos uma clara cadeia que passa por aliados que possuem interesses em comum e usam Israel como vértice de uma estratégia que visa mudar as placas de estabilidade da geopolítica internacional como conhecemos.

Os contornos do ataque terrorista do Hamas estão conectados ao desejo iraniano de evitar o avanço dos acordos celebrados por Israel com diversos países muçulmanos e que inevitavelmente chegaria aos sauditas em pouco tempo. O Irã deseja o controle regional, enquanto os russos desejam um novo front de batalha para o Ocidente e o Hamas, como milícia, atinge o objetivo de atacar Israel. Tudo muito bem calculado.

O risco, entretanto, é enxergar o conflito sair do controle, com envolvimento direto das forças ocidentais na batalha, o que obrigará Irã e Rússia também a entrarem de forma oficial na guerra. Um conflito de escala regional, cresceria para uma frente continental, envolvendo a Ucrânia, impulsionando o surgimento de golpes e revoltas em países satélites, em especial na África, enquanto a Europa, refém dos extremistas, pode experimentar a face mais perigosa do terror, gerando insegurança e medo às vésperas das Olimpíadas de Paris.

Isto não significa uma previsão, mas um risco que precisa ser calculado, especialmente em períodos sombrios como este que vivemos, onde casas e negócios de judeus já surgem marcados com a estrela de Davi na Alemanha e Rússia quase oito décadas após o final da 2ª Guerra Mundial. Um período onde o antissemitismo criminoso fantasiado de apoio palestino perdeu a vergonha e tomou as ruas de diversas capitais do mundo.

Até o momento, os mecanismos internacionais se mostraram mais uma vez ineficazes diante dos jogadores do poder global, uma impotência que pode custar muito caro. O risco de envolvimento mundial no conflito é real e isto pode levar o mundo para uma escalada inimaginável da guerra, assim como ocorreu em 1914, com o assassinato do Arquiduque, por mais que muitos considerassem o risco como ingenuidade. A cadeia de acontecimentos de 2023, iniciada com a carnificina do Hamas em Israel, tem potencial para envolver as grandes potências e levar a geopolítica internacional a um conflito de escala global.

Verdade Inconveniente

Ao contrário do que muitos pensam, a realidade política que se desenha por trás do ataque do Hamas está muito além das análises realizadas nestes primeiros dias. Aquilo que está em jogo é um movimento da geopolítica internacional da qual o grupo terrorista é apenas um instrumento para desestabilizar os pilares institucionais internacionais como conhecemos. A causa palestina, usada como cortina de fumaça, se tornou apenas um peão neste jogo de xadrez que se colocou em movimento.

O Hamas é uma milícia que realizou um golpe para chegar ao poder na Faixa de Gaza, expulsando os grupos ligados a OLP – organização legítima que controla a Cisjordânia e celebrou os acordos de Oslo. O Hamas, portanto, jamais teria capacidade de colocar em marcha um ataque desta envergadura como vimos nos últimos dias. O grupo terrorista é uma milícia que precisaria necessariamente de respaldo e apoio externo para atos tão ousados. Jamais agiria sem conhecimento de atores como Rússia, Síria e Irã. Diante desta realidade e analisando o movimento geopolítico, todos os indícios levam ao Irã em um primeiro plano e a Rússia em segunda escala como partícipes do massacre.

Na verdade, o ato do Hamas teve um claro objetivo que vai muito além de atacar de forma covarde a população civil de Israel. A ação foi no sentido de provocar uma guerra de larga escala no Oriente Médio para assim consolidar Irã e Rússia como poderes hegemônicos na região. Sabemos que Putin há tempos vem selando laços profundos com os atores deste cenário e que Teerã, principal força xiita, deseja impor seu domínio.

Uma delegação do Hamas viajou duas vezes a Moscou no ano passado para encontros com a cúpula do governo Putin. A promessa russa foi clara: “trabalhar para enfraquecer o Ocidente”. As conexões da milícia, que começam no Oriente Médio, estão muito além da região e se encaixam perfeitamente com o caos provocado por seus ataques. 

Entretanto, Israel também vinha se mobilizando no cenário político internacional, selando acordos com países árabes. Desde 2020, Israel firmou os chamados Acordos de Abraão com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão e estava diante de um acerto histórico com a Arábia Saudita, que teria reflexos negativos para a estratégia iraniana, uma vez que tinha potencial para remodelar o equilíbrio de forças no Oriente Médio. Os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas tentam isolar Israel neste jogo.

Como vemos, a recente carnificina de civis em Israel não possui qualquer relação com a defesa da causa palestina. Suas práticas distanciam os palestinos de seu objetivo como nação. Ao agir como testa de ferro do Irã, o Hamas usa a causa palestina como falsa justificativa para ataques que servem unicamente aos interesses dos aiatolás, tornando-se um braço armado por Teerã para atacar Israel e desestabilizar a região.

Isso explica por que a resposta em Gaza, está além de atingir o Hamas, pois tem como claro objetivo enviar um recado para Teerã. Este será apenas o primeiro capítulo de reação israelense. Outros grupos e até países entraram na mira de Israel.

Estamos diante de um movimento profundo da geopolítica mundial, um realinhamento de forças, uma ação orquestrada e com respaldo profundo de grandes potências. Isto significa que a reação de Israel, a única democracia da região representa muito mais do que a simples defesa de seu território. O país, na verdade, está lutando por todo Ocidente.