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Dois anos do terror do Hamas: a urgência de não esquecer e apoiar Israel

Neste 7 de outubro, completam-se dois anos desde que o grupo terrorista Hamas desencadeou uma série de ataques brutais contra Israel que chocaram o mundo. O grau de violência desses atos, que incluíram assassinatos indiscriminados, sequestros e ataques a civis, é difícil de dimensionar, mas impossível de ignorar. Até hoje, 48 pessoas permanecem reféns nas mãos desses terroristas, vítimas de uma violência que não conhece limites.

O que agrava ainda mais essa tragédia é a indiferença, a relativização e, em alguns casos, o apoio explícito de líderes ao lado terrorista. Não é aceitável que autoridades, inclusive de governos como o brasileiro, minimizem ou justifiquem ações que atentam contra a vida humana. Esse tipo de postura contribui para a perpetuação do terror e para o sofrimento das vítimas.

É essencial lembrar que Israel é a única democracia da região, um país que respeita a liberdade individual, os direitos humanos e a coexistência pacífica de diversas culturas e religiões. A luta de Israel contra o Hamas não é apenas uma questão de segurança nacional; é uma defesa da própria civilização contra o extremismo e o ódio.

Ao mesmo tempo, é preciso contextualizar historicamente as questões territoriais com a Palestina. Várias tentativas de criação de dois estados foram propostas ao longo das décadas, mas foram rejeitadas sistematicamente pelo lado árabe. O reconhecimento dessa realidade é fundamental para que o debate sobre a paz seja realista e justo.

A verdadeira busca pela paz não passa por um cessar-fogo que apenas garante a continuidade do terror, mas pela eliminação do Hamas, que oprime a própria população da Faixa de Gaza e impede qualquer possibilidade de progresso social e econômico. Apoiar Israel em sua luta legítima contra o terrorismo é reconhecer a necessidade de proteger vidas, punir os culpados e abrir espaço para uma paz duradoura, baseada na segurança, na justiça e no respeito à história.

Não podemos esquecer os horrores desses dois anos. Não podemos fechar os olhos para o sofrimento dos reféns. E, sobretudo, não podemos ignorar a importância de apoiar uma democracia que luta diariamente contra o terror. A paz verdadeira só será possível quando o Hamas for derrotado e a liberdade voltar a florescer para todos na região.

Clube de Leitura das Distopias

As distopias são livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social. Dois esclarecimentos preliminares são necessários:

Quando falamos de rede social não estamos querendo nos referir às mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio (mídia) enquando estão interagindo: não plataformas, sites, programas, algoritmos, dispositivos.

Investigar as distopias não se baseia na ideia de que no futuro vão acontecer mundos parecidos com os descritos pelos autores distópicos. Investigar as distopias é importante porque aspectos desses mundos descritos pelos autores distópicos estão acontecendo agora.

Os mesmos padrões hierárquicos de organização e os mesmos modos autocráticos de regulação de conflitos aventados pelos distopistas estão presentes em muitos mundos sociais realmente existentes e adjacentes aos nossos, mas nem sempre somos capazes de reconhecê-los.

As distopias são construções imaginativas que realçam, em alguns casos levando ao paroxismo, as deformações no fluxo da convivência social, evidenciando as principais perturbações no campo interativo e com isso permitindo a identificação de características autoritárias e totalitárias que dificilmente seriam percebidas nas rotinas dos mundos em que vivemos.

Elas fornecem, assim, os esquemas e as disposições teoréticas e simbólicas do que pode se manifestar quando configurações sinérgicas (ou seja, estruturas e dinâmicas que condicionam o fluxo interativo de modo congruente) são replicadas.

É claro que a realidade é sempre mais ousada do que as criações dos ficcionistas distópicos. Nenhuma distopia conseguiu antever ou agravar a deformação promovida nas sociedades soviéticas durante o período do Grande Expurgo stalinista. Nenhum dos livros que possamos examinar chegou perto do que se faz nos dias que correm na Coreia do Norte. Nenhum autor conseguiu imaginar um horror semelhante ao que se instalou em Raka, ocupada pelo Estado Islâmico.

Mas essas exacerbações de formas de comportamento político anti-humano são singularidades que podem acabar cumprindo o perigoso papel de nos alienar do essencial. E o essencial é perceber na nossa vida cotidiana, aceita como normal, as manifestações desses padrões.

Não é mera coincidência que muitos dos padrões do livro 1984 (Nineteen Eighty-Four) de Orwell estejam presente num treinamento ideológico realizado por grupos jihadistas ou que o duplipensar orwelliano esteja presente em qualquer discussão com militantes de organizações políticas autocráticas.

Nem é por acaso que os argumentos simplórios de A Nova Utopia de Jerome K. Jerome (1891) estejam sendo reproduzidos pela militância de protoditaduras latino-americanas em plena terceira década do século 21, ou seja, mais de um século depois. Ou que a subordinação da liberdade à igualdade ou a substituição da liberdade pela felicidade como ideal utópico ainda constituam o centro articulador do pensamento autoritário em todo mundo.

Como escreveu Ernst Bloch (1935) em The Heritage of Our Times, “nem todas as pessoas existem no mesmo Agora”. Essa teoria blochiana da “não-contemporaneidade” só se torna, porém, compreensível, quando percebemos que as pessoas são emaranhados sociais (e não indivíduos isolados) e que a época em que elas vivem depende da configuração dos ambientes em que convivem.

As distopias, são, dessarte, livros-chave para decifrar códigos de programação da rede social em qualquer época.

Na medida em que rede é fluxo (ou seja, metabolismo-e-corpo, dinâmica-e-estrutura) a programação da rede é também uma reprogramação do tempo e por isso é tão difícil estabelecer sintonias com certas pessoas que estão vivendo em outros ambientes. Porque – mesmo estando co-presentes, inclusive na nossa vizinhança – elas estão vivendo em outro tempo.

É preciso estimular a descoberta de pistas de deciframento para aprender a reconhecer padrões autocráticos onde quer que eles se manifestem, inclusive na nossa vida cotidiana (1).

Nossa experiência indica que, do ponto de vista pedagógico (e talvez não só), é sempre melhor começar com a leitura e exploração das distopias, pelas razões expostas a seguir.

As dificuldades de aprendizagem da democracia não têm nada a ver com falta de inteligência (ou de consciência). A conversão à democracia está um andar abaixo: os receptores não estão no solo e sim no subsolo das consciências onde remanescem matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas fundantes do tipo de civilização em que vivemos há cinco ou seis milênios. Mesmo que tenha lido ou ouvido tudo que foi escrito ou dito sobre democracia, uma pessoa continuará “sub-pensando”, para citar alguns exemplos, que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo, que o comportamento coletivo pode ser compreendido a partir do comportamento dos indivíduos, que nada pode ser organizado sem hierarquia, que sempre serão necessários líderes destacados para viabilizar qualquer ação coletiva etc. Só a interação recorrente, a conversação continuada de uma comunidade política sobre democracia, pode encontrar (por insistência, até por tentativa e erro – ou comportamento aleatório) esses receptores e, entrando nessa região escura que subjaz na mente coletiva ou na cultura que se replica automaticamente no tipo de civilização em que vivemos, alterar essas matrizes. Essas matrizes, que geram padrões autocráticos, pertencem ao modo de vida patriarcal e é por isso que se pode dizer, como fez Humberto Maturana (1993), em “Amar e brincar”, que a democracia foi uma brecha aberta no muro da cultura patriarcal que, entretanto, continua se replicando agora, milênios após o seu surgimento.

Ninguém nasce democrata, se torna. A conversão à democracia começa com uma emoção. Alguém se torna democrata, em primeiro lugar, não por um esforço intelectual e sim por uma inconformidade (e uma insuportabilidade) com o emocionar hierárquico e autocrático. Se torna democrata – no sentido forte do conceito de democracia, como processo de desconstituição de autocracia e no sentido amplo desse conceito, da democracia como modo-de-vida e não apenas como modo político de administração do Estado – quando passa a resistir a padrões autocráticos, quer dizer, a um modo de interagir com o mundo que reproduz a cultura patriarcal (lato sensu), ou seja, a que replica matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas.

Em suma, na base da conversão à democracia há um emocionar de insuportabilidade com a tirania que é mais difícil de comover quem não viveu sob um regime autoritário. A leitura das distopias tem mais chances de evocar essas emoções do que o estudo de textos teóricos sobre a democracia.

Máquina Eleitoral

Em um movimento que expõe as complexas e pragmáticas engrenagens do poder em Brasília, o bloco parlamentar conhecido como Centrão tem sido, paradoxalmente, um dos maiores aliados do governo Lula na construção de sua campanha à reeleição em 2026. A retórica ocasionalmente antiplanalto de seus partidos dissipa-se quando o assunto é a aprovação de uma enxurrada de benesses sociais e medidas fiscais que, juntas, presentearão o presidente com aproximadamente R$ 252 bilhões para aquecer a economia no auge do período eleitoral.

A estratégia é clara: bombear recursos na economia para criar uma sensação de bem-estar e amenizar qualquer desaceleração, tornando o caminho para a vitória significativamente mais fácil. Programas como Gás do Povo (1 botijão a cada dois meses para 15,5 milhões de famílias), Pé-de-Meia (poupança para 4 milhões de estudantes) e a isenção do Imposto de Renda para salários de até R$ 5.000 (beneficiando 10 milhões) não são meras políticas públicas, são as novidades de vitrine da campanha petista, com data de estreia marcada de acordo com o calendário eleitoral.

O apoio do Centrão, no entanto, vai além da expansão de gastos. Nos últimos dois anos e meio, congressistas alinhados a esse bloco foram cruciais para aprovar reformas que fortalecem o caixa do governo, garantindo a sustentabilidade fiscal para bancar esta onda de gastos. O novo arcabouço fiscal, a reforma tributária, a taxação de offshores e fundos exclusivos, a retomada do voto de qualidade no CARF e a taxação das apostas esportivas são exemplos de medidas que, em tese, aumentam a arrecadação e dão mais controle ao Executivo sobre o orçamento.

Até mesmo eventuais atritos, como a breve rebelião no Congresso contra o aumento do IOF, foram rapidamente contornados. O assunto, após uma rápida passagem pelo STF a pedido do governo, perdeu tração, mostrando onde reside a efetiva prioridade da base parlamentar.

Este cenário coloca a oposição, particularmente a direita, em situação desconfortável. Com Bolsonaro inelegível, o nome mais forte é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ironia das ironias, Tarcísio, que emerge como principal representante do Centrão no executivo estadual, alertou que evitar esta “derrama de benesses” era essencial para sua própria viabilidade como candidato presidencial – uma possibilidade que ele agora descarta. Na verdade o governador está diante de um dilema: desafiar um presidente armado com uma máquina de R$ 252 bilhões – dos quais R$ 175,7 bi em programas sociais diretos, R$ 31,3 bi em isenção de IR e outros R$ 21,87 bi em subsídios – ou recuar e aguardar por uma janela de oportunidade que pode não se abrir.

A conclusão é inescapável: a preços de hoje, Lula é o favorito claro. O Centrão, com seu pragmatismo característico, tem criado condições para que o Planalto siga pintado de vermelho pelo menos até 2030. A eleição pode estar a mais de um ano de distância, uma eternidade em política, mas o presidente já está com o pé na estrada, e o combustível de sua máquina eleitoral é o dinheiro que o próprio Congresso, inclusive seus críticos de ocasião, lhe fornecem sem qualquer culpa. Para Tarcísio e a verdadeira oposição, o caminho certamente ficou mais difícil, uma conta que pode e deve ser debitada do Centrão e suas lideranças, que colocam suas conveniências pessoais acima de um projeto nacional.

O escândalo do vazamento de conversas privadas do Grok e do ChatGPT

O vazamento de dados envolvendo o chatbot Grok, da empresa xAI de Elon Musk, e a indexação de conversas do ChatGPT pelo Google trouxe à tona uma das discussões mais importantes sobre inteligência artificial: a segurança das informações que compartilhamos com sistemas desse tipo. A diferença entre os dois episódios é significativa, mas ambos revelam o grau de exposição a que estamos sujeitos ao usar essas ferramentas.

No caso do Grok, todas as conversas de usuários ficaram disponíveis em resultados de pesquisa do Google, o que significa que conteúdos trocados em um ambiente que deveria ser privado foram completamente expostos. O ChatGPT, por sua vez, não teve um vazamento de dados sigilosos, mas enfrentou críticas ao permitir que chats compartilhados voluntariamente pelos usuários fossem indexados pelos mecanismos de busca. Embora não seja uma falha de segurança no mesmo nível do Grok, o episódio reforça como a noção de privacidade nesse tipo de tecnologia é mais frágil do que imaginamos.

Para entender o impacto disso, é importante diferenciar o que significa indexação. Trata-se do processo pelo qual buscadores como o Google organizam e classificam páginas e conteúdos públicos para que apareçam em resultados de pesquisa. Quando uma conversa no ChatGPT é compartilhada por um link, esse conteúdo pode se tornar acessível publicamente e, portanto, indexado.

A OpenAI já lançou atualizações para permitir que os usuários impeçam a indexação desses links, mas centenas de conversas foram expostas. O episódio serve de alerta sobre o quanto a configuração padrão e a falta de clareza em políticas de uso podem colocar dados em exposição. Já no Grok, o problema não foi uma funcionalidade mal interpretada, mas uma falha grave de segurança: conversas privadas foram parar em páginas que o Google rastreou como qualquer outra, expondo dados pessoais e interações sem consentimento.

Esses dois incidentes escancaram a quantidade de informações que essas empresas armazenam sobre os usuários e como isso pode ser transformado em um ponto de vulnerabilidade. A promessa de que a inteligência artificial tornará a vida mais prática, com assistentes virtuais cada vez mais sofisticados, vem acompanhada do risco de que esses sistemas se tornem mecanismos de vigilância em massa, seja por descuido corporativo, seja por uso mal-intencionado de governos autoritários. O que hoje parece apenas uma falha técnica pode, em outros contextos, ser a chave para perseguições políticas, manipulação social e censura.

O paradoxo é evidente: nunca tivemos tanta tecnologia para melhorar a qualidade de vida e ampliar a liberdade individual, mas essa mesma tecnologia cria ferramentas poderosas para limitar direitos. A história mostra que regimes totalitários se apoiam em meios de controle, e as inteligências artificiais levam esse controle a um nível sem precedentes.

No Brasil, o governo tem investido em mudanças na governança da internet que podem concentrar ainda mais poder. A proposta de transferir para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados funções que hoje são exercidas pelo NIC.br e pelo Comitê Gestor da Internet segue o modelo de centralização estatal usado pela China. Essas duas entidades mantêm um sistema de governança multissetorial reconhecido internacionalmente, no qual governo, empresas, academia e sociedade civil têm voz equilibrada na definição de diretrizes para a rede. Substituir esse modelo por uma estrutura controlada por Brasília enfraquece a proteção de dados e facilita o controle político sobre a tecnologia.

A recente tentativa de regulamentação das redes sociais com base no episódio envolvendo o influenciador Felca é um exemplo. A exposição feita por ele revelou um problema real e grave de exploração infantil nas redes, mas o governo usou o caso como justificativa para avançar em projetos de controle da internet que já vinham sendo rejeitados. Essa estratégia, de se aproveitar de comoções sociais para aprovar legislações autoritárias, não é nova, mas ganha uma dimensão perigosa quando aplicada ao universo digital, onde a velocidade de disseminação de dados e a concentração de poder em poucas empresas tornam a privacidade um bem cada vez mais raro.

O que está em jogo vai muito além de preferências tecnológicas ou conveniências. É a capacidade de manter uma sociedade livre diante de corporações que lucram com nossos dados e governos que enxergam na tecnologia um meio de vigiar e punir. A revolução digital trouxe benefícios incontestáveis, mas, sem um debate sério sobre governança, privacidade e limites éticos, podemos acabar trocando liberdade por uma ilusão de segurança. O futuro da inteligência artificial não será definido apenas pelo avanço da ciência, mas pela coragem de estabelecer barreiras contra abusos de poder.

Lula na Tribuna, Trump nos Bastidores: O Duelo de 20 Segundos que Abalou a Estratégia Brasileira na ONU

O discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 80ª Assembleia Geral da ONU, proferido hoje, revelou-se um marco calculado na estratégia de reeleição para 2026. Sob o manto de uma defesa genérica do multilateralismo, Lula ergueu uma narrativa de confronto com os Estados Unidos, uma jogada destinada a galvanizar sua base eleitoral. No entanto, a realidade geopolítica, personificada por um encontro casual e estratégico com Donald Trump, expôs as contradições e o isolamento dessa abordagem, deixando o presidente brasileiro em uma posição delicada.

A fala no plenário foi construída em dois eixos: a autovitimização do Brasil e a criminalização de seus críticos. Ao afirmar que o país sofre “medidas unilaterais e arbitrárias” e uma “agressão contra a independência do Poder Judiciário”, Lula dirigia-se claramente ao seu eleitorado interno. A menção a uma “extrema direita subserviente” é um código para o palanque doméstico, transformando um fórum global em plataforma para atacar adversários. O objetivo é claro: consolidar a imagem de um líder sitiado, defendendo a pátria de potências estrangeiras e de uma “elite golpista” local, um roteiro bem-sucedido em campanhas passadas.

No plano internacional, o alinhamento com os rivais geopolíticos do Ocidente foi flagrante. A equiparação do conflito em Gaza a um “genocídio” e a afirmação de que sob os escombros palestinos está sepultado “o mito da superioridade ética do Ocidente” é uma das mais duras condenações já proferidas por um líder brasileiro, colocando-o em sintonia com os eixos antiamericanos. Da mesma forma, ao defender a retirada de Cuba da lista de patrocinadores do terrorismo e ao exigir, no contexto ucraniano, que se levem em conta “as legítimas preocupações de segurança de todas as partes” – um claro eco da narrativa russa –, Lula sinaliza qual bloco pretende liderar: o do Sul Global em contraposição ao equilíbrio de forças do Pós-Guerra.

Esta postura, no entanto, revela uma contradição flagrante: ao mesmo tempo em que condena supostas ingerências nos assuntos brasileiros, o presidente não hesita em discursar sobre os temas internos de outros países, praticando um ativismo internacional seletivo em defesa de aliados políticos ideologicamente alinhados. Até mesmo a agenda positiva apresentada – como o combate à fome e à crise climática – é instrumentalizada como pano de fundo para este projeto de poder, fazendo com que anúncios legítimos, como a saída do Brasil do Mapa da Fome e os preparativos para a COP30, percam força ao serem eclipsados por um discurso marcadamente acusatório.

A estratégia, porém, durou poucas horas. Nos bastidores, o acaso promoveu um choque de realidade. Ao se cruzarem, Lula e Trump travaram um encontro de 20 segundos que falou mais que o discurso de uma hora. O abraço e a rápida marcação de um encontro para a próxima semana, narrados com perspicácia pelo presidente norte-americano, foram um golpe de mestre típico de Trump. Ele reconheceu a “química excelente” de 39 segundos, mas foi rápido em lembrar, logo em seguida, as tarifas impostas pelo Brasil no passado e a suposta incapacidade do país de “se sair bem” sem os EUA. Trump, com habilidade negociadora, abriu uma porta de diálogo justamente após intensificar a pressão econômica, deixando Lula encurralado.

A confusão estratégica para o presidente brasileiro é evidente. Como conciliar a retórica de confronto, essencial para animar sua base ideológica, com a necessidade pragmática de negociar com o mesmo país que ele acabara de criticar frontalmente? A reação imediata dos mercados – com a Bolsa subindo e o dólar caindo ante a simples perspectiva de diálogo – é um sinal claro de que a comunidade econômica anseia por pragmatismo, não por embates.

O timing não poderia ser mais revelador. Em 2025, com o olho fixo nas eleições de 2026, Lula precisa reativar a mobilização de sua base. O discurso na ONU foi a peça central dessa estratégia. No entanto, a astúcia de Trump obriga-o agora a um malabarismo perigoso: negociar com o “império” que denuncia, arriscando desmobilizar seu eleitorado cativo, ou manter a rigidez e aprofundar o isolamento e os danos econômicos. A aposta na retórica do conflito mostrou-se um jogo de risco elevado. Lula, que aspirava a ser uma ponte, pode sair dessa semana não como líder, mas como um ator confuso, forçado a negociar com a potência que escolheu como adversária no palco mundial.

Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

Anistia ou Dosimetria: uma Conciliação Impossível

No tabuleiro político brasileiro, onde pragmatismo e idealismo colidem com a força de um terremoto, a tentativa de substituir a anistia ampla dos condenados do 8 de Janeiro por um “PL da Dosimetria” revela mais sobre as fragilidades do nosso sistema político do que sobre a busca por justiça ou pacificação.

Articulada por figuras como Aécio Neves (PSDB-MG) e Michel Temer (MDB), a proposta de redução de penas, em vez de perdão total, é um malabarismo político que tenta agradar a todos – e, por isso, corre o risco de não conquistar ninguém. Apesar de não haver vedação expressa na Constituição Federal à anistia para crimes como os do 8 de Janeiro, a manobra enfrenta barreiras jurídicas, políticas e éticas que a tornam um castelo de cartas prestes a desabar.

A proposta original, o PL 2162/23 buscava anistiar integralmente os condenados pelos atos de 8 de Janeiro, uma bandeira bolsonarista que obteve apoio expressivo na votação de urgência em 17 de setembro de 2025, com 311 votos a favor. Era o Centrão em ação: União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que juntos dominam 74% dos municípios pós-eleições de 2024, viram na anistia uma chance de consolidar capital político com a base conservadora.

No entanto, a reunião de 18 de setembro, envolvendo Paulinho da Força (Solidariedade-SP), Aécio e Temer, mudou o rumo: saiu a anistia, entrou a dosimetria – um ajuste de penas que, segundo Paulinho, seria um “meio-termo” para pacificar o país. O resultado? Um Frankenstein legislativo que desagrada tanto a direita quanto a esquerda, enquanto testa os limites da separação de poderes.

Juridicamente, a dosimetria é um terreno pantanoso. Alterar penas já fixadas pelo Judiciário, pode ser interpretado como interferência legislativa na competência judicial, violando o artigo 2º da Constituição. Ainda assim, o governo Lula, em busca de estabilidade, flerta com a ideia, vendo-a como uma ponte para evitar o desgaste de uma anistia ampla.

Os articuladores dessa manobra não ajudam a inspirar confiança. Aécio Neves, outrora gigante do PSDB, hoje luta para manter a sigla relevante. Com apenas 13 deputados, o PSDB é uma sombra do que foi. Michel Temer, por sua vez, mantém alguma influência no MDB, mas o partido está dividido – a votação da urgência revelou uma bancada majoritariamente contrária, apesar do apoio de Isnaldo Bulhões (MDB-AL). Ambos, Aécio e Temer, são vistos como ecos de um passado político que não ressoa mais com o eleitorado, seja ele conservador ou progressista. Sua tentativa de costurar um consenso soa mais como oportunismo do que liderança.

O Centrão, como sempre, é o fiel da balança. União Brasil, PSD, Progressistas e Republicanos, que garantiram a urgência do PL, são movidos por pragmatismo puro: apoiam o que rende votos e emendas. Inicialmente simpáticos à anistia, hesitam diante da dosimetria, temendo o veto do Senado (onde MDB e PSD prometem resistência) e a reação do STF. Bolsonaristas celebram o apoio inicial do Centrão, mas já temem um recuo estratégico, enquanto o governo Lula acena com cargos para mantê-los na linha. Essa volubilidade do Centrão é a prova de que a proposta, longe de pacificar, apenas expõe as fissuras de um Congresso que negocia princípios como quem negocia no mercado.

Paulinho da Força, o relator, é a figura mais trágica desse imbróglio. Escolhido por sua proximidade com o STF e histórico de transitar entre lados opostos, ele propõe a dosimetria como “solução de maioria”. No entanto, enfrenta um fogo cruzado: a base bolsonarista, liderada por nomes como Eduardo Bolsonaro e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), prepara emendas para restaurar a anistia ampla; a esquerda, com PT e PSOL à frente, rejeita qualquer leniência, chamando-a de “golpe continuado”. Paulinho é alvo de críticas de ambos os lados, e poderá ser voto vencido, um relator sem apoio real, preso entre a pressão do Planalto, a revolta da direita e a intransigência da esquerda.

A dosimetria, portanto, é menos uma solução e mais um sintoma da crise de representatividade do nosso Congresso. Sem uma base jurídica sólida e com articuladores de influência limitada, a proposta tenta apaziguar um país dividido, mas ignora o cerne da questão: a justiça não pode ser negociada em nome da conveniência política. Muito menos quando está em jogo a vida de centenas de pessoas que podem ser alcançadas por essas medidas.

A verdadeira pacificação exige diálogo, não barganhas.

Antagonismo Imprudente

O recente encontro extraordinário do BRICS convocado por Lula escancara a estratégia política do presidente brasileiro de antagonizar de forma aberta com Washington, Bruxelas e os valores democráticos ocidentais. Embora proclame uma retórica de soberania e resistência a pressões externas, sua postura revela-se, na prática, uma tática ideológica alinhada a interesses que estão longe de favorecer o Brasil. Ao buscar impulsionar sua popularidade interna por meio de um discurso populista e confrontacional, o presidente deposita o país numa posição perigosa de subserviência à China e de aproximação com regimes autoritários, como Rússia e Irã.

Essa cúpula secreta, sem transparência e sem um comunicado público final, coloca o Brasil como palco para uma agenda que desafia diretamente o sistema internacional baseado em regras democráticas e de mercado. A presença de Putin e Xi Jinping, aliados que desprezam abertamente a democracia, evidencia que o Brasil se distancia da construção de um projeto nacional soberano e passa a agir como um coadjuvante de potências cujo principal objetivo é criar um sistema paralelo para minar a influência americana, mesmo que isso custe tarifas mais altas e risco de sanções econômicas à própria economia brasileira.

Os ataques de Lula aos Estados Unidos por “chantagem tarifária” soam mais como uma retórica populista que visa captar apoio interno do que um posicionamento estratégico pautado nos interesses reais do Brasil. Enquanto isso, o silêncio conivente à iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda e o silêncio calculado sobre a proposta iraniana de blindagem contra sanções indicam um alinhamento preocupante com regimes que cerceiam a liberdade e fomentam a incerteza global.

Essa conduta não apenas confronta os princípios democráticos que sustentam as relações internacionais modernas, mas também expõe o Brasil a riscos concretos no comércio global, como aumento de tarifas e punições econômicas que podem agravar a fragilidade que o país enfrenta. Lula parece esquecer que a verdadeira soberania não se constrói pela mera oposição ideológica nem pela aliança com autocracias, mas pelo respeito aos interesses do Brasil, à legalidade internacional, à democracia e pela busca de parcerias equilibradas.

Além do risco imediato de sanções econômicas e tarifas punitivas, essa aproximação de Lula com a Rússia, China e Irã evidencia um dilema maior para a política externa brasileira: o enfraquecimento da confiança internacional e o isolamento estratégico em um momento em que o país precisa atrair investimentos e fortalecer suas relações comerciais. 

O Brasil precisa urgentemente reconsiderar essa pauta conflituosa e populista, que longe de fortalecer a nação, a isola e coloca em risco sua estabilidade econômica e sua imagem internacional. A lealdade a interesses autoritários contrasta negativamente com o papel democrático que o país poderia assumir, especialmente ao manter uma parceria sólida e pragmática com os Estados Unidos e as demais democracias ocidentais. É preciso deixar claro que o caminho do enfrentamento populista numa plataforma autoritária como o Brics não traz ganhos reais para o Brasil, apenas riscos que podem nos prejudicar em diversas frentes, da economia até a perda de soberania. Um antagonismo imprudente que pode custar caro ao povo brasileiro.

Democracia na Era Digital

A democracia sempre se reinventou. Das praças às urnas, dos jornais aos pixels, ela agora enfrenta o desafio do espaço digital — território no qual a consciência coletiva se forma, se fragmenta e, muitas vezes, é manipulada. Hoje, o espaço público não é mais físico, mas algorítmico. Como lembra Jürgen Habermas, “o espaço público é onde a sociedade se encontra para deliberar e dar sentido à vida coletiva”. No entanto, no digital, essa deliberação é mediada por algoritmos que filtram, direcionam e moldam o que vemos, pensamos e discutimos. A sociedade deve avaliar até que ponto interesses econômicos e políticos são capazes de distorcer preferências e manipular subjetividades tendo em vista a  escala inédita da realidade digital. Sem os valores democráticos a orientarem  esse espaço,há o risco de os algoritmos servirem à manipulação da democracia, de forma sutil, opaca e sem qualquer compromisso com a dignidade humana.

Precisamos exigir transparência, autonomia e responsabilidade nesses processos.  Se não compreendermos por que uma informação nos chega e outra não, ou se não pudermos auditar os sistemas que moldam a visão de mundo que está sendo oferecida no espaço digital, a  liberdade se esvazia. O cidadão perde sua autonomia e passa a ser um fornecedor de dados de um sistema perverso que o manipula: No caso Cambridge Analytica por exemplo,a  manipulação de dados pessoais não apenas influenciou eleições, mas corroeu a confiança em todo o processo democráticos. mais que um  episódio isolado, esse caso foi  um prenúncio que nos mostra que a guerra política contemporânea já não se limita às ruas ou aos parlamentos: ela é muito mais cibernética, travada através de fluxos de dados que podem nos confundir sobre  a própria definição do real.

Nesse cenário, para  sobreviver, a democracia deve moldar o digital em vez de ser moldada por ele. Isso significa instituir formas robustas de governança algorítmica: auditorias independentes, transparência nos códigos, certificações éticas e mecanismos de participação cidadã que assegurem o controle coletivo sobre as poderosas infraestruturas informacionais. Algoritmos já são atores políticos e, como tais, precisam ser regidos pelos mesmos princípios de dignidade, justiça e responsabilidade que sustentam a própria democracia. Mais do que um conjunto de normas, trata-se de um pacto civilizatório que redefine a relação entre poder, tecnologia e seres humanos. 

A democracia do futuro será algorítmica –  ou corre o risco de não ser. Sua legitimidade dependerá da capacidade de trazer transparência e  consciência para o espaço digital. Esse é o desafio das instituições que se desejam democráticas, para além da promessa herdada do passado, ir em busca de um novo tempo em que a tecnologia esteja a serviço da autonomia humana.

O tribunal que descondenou Lula tem moral para condenar Bolsonaro?

A Justiça, enquanto valor, não se confunde com a legalidade. O cumprimento das normas jurídicas é apenas um dos aspectos da experiência do justo, mas não esgota sua essência, podendo mesmo contrariá-la. Embora idealmente o objetivo da lei seja a concretização da justiça, sabe-se que, no mundo real, leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos.

É nesse sentido que a crise política brasileira atual se mostra especialmente complexa. O Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário, é chamado a julgar o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, ao mesmo tempo em que carrega sobre si o peso de decisões que fragilizaram sua autoridade moral perante parte expressiva da população.

Não há dúvida de que houve, no fim do mandato de Bolsonaro, uma tentativa de golpe de Estado a fim de mantê-lo no poder. Sendo ele uma das principais partes envolvidas em todo o processo, assim como o principal beneficiado caso a tentativa lograsse êxito, é justo que vá a julgamento. Isso é diferente de afirmar que todo o processo foi conduzido de modo justo.

Já escrevi, mais de uma vez, que considero escandalosamente desproporcionais, logo injustas, as penas aplicadas às pessoas que foram instrumentalizadas para a invasão e depredação dos Três Poderes, no 8 de janeiro de 2023. Tais penas foram aplicadas, para além da exigência técnico-jurídica, com ânimo político e viés de vingança.

Não é de hoje, porém, que decisões do STF se dão sob pressão de interesses políticos e de outros interesses ainda mais escusos.

Em 2018, o atual presidente Lula da Silva foi preso após condenação em segunda instância. A sentença inicial, proferida pelo Juiz Sergio Moro, em 2017 condenara Lula a 9 anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O presidente petista fora acusado de receber um apartamento triplex como propina da construtora OAS em troca de favorecimentos em contratos com a Petrobrás. A sentença foi confirmada pelo STJ e ajustada para 8 anos e 10 meses.

Acionado pela defesa de Lula, o STF manteve a prisão; primeiro em uma decisão da segunda turma e, em seguida, em decisão do plenário. Em novembro de 2019, porém, mudou sua jurisprudência e mandou libertar Lula.

Ao livramento de Lula, seguiram-se outras escandalosas decisões do STF – monocráticas ou colegiadas – com perdão de réus confessos que, inclusive, haviam já devolvido aos cofres públicos quantias vultosas antes denunciadas como oriundas de práticas de corrupção.

Os desastres do governo Bolsonaro, seu esgarçamento autoritário, com tentativas de controlar a PF e de evitar o avanço de investigações contra seu filho, mas principalmente sua estúpida condução da crise sanitária durante a pandemia, possibilitaram rápida recuperação do prestígio do ex-presidente Lula da Silva, que começou a despontar nas pesquisas como capaz de derrotar Bolsonaro.

Para travar esse embate previsto para outubro de 2022, Lula precisaria estar livre e elegível; providência que o STF tratou de agilizar. 

Em 2021, o ministro Edson Fachin anulou as condenações de Lula relacionadas à Lava Jato (triplex, sítio de Atibaia e Instituto Lula) por tecnicismo vão e a segunda turma do STF declarou parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos, reforçando a nulidade das condenações.

Livre e elegível, Lula concorreu a um terceiro mandato e derrotou o então presidente Bolsonaro, candidato à reeleição. Entretanto, a vitória de Lula ocorreu por margem muito estreita de votos; permanecendo o derrotado com potencial eleitoral ameaçador. Logo, porém, o TSE trataria de eliminar tal ameaça, tornando Jair Bolsonaro inelegível.

Aqui, todavia, convém notar: se é possível observar o viés de animosidade política do TSE, é também verdade que a decisão da Corte Eleitoral lastreou-se em uma atitude totalmente descabida de Bolsonaro que, em julho de 2022, resolveu chamar uma reunião com embaixadores de vários países para fazer denúncias sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro.

O fato é que as inúmeras decisões polêmicas e parciais dos tribunais superiores tiveram como efeito a corrosão da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Esse desgaste não é apenas uma questão de percepção subjetiva. A própria rebelião do 8 de janeiro de 2023 pode ser compreendida, em parte, como resultado desse processo. Foi nessa lacuna de confiança que a narrativa populista de direita radical encontrou terreno fértil, transformando o ressentimento de parte da população em ação política.

Brasileiros sem uma formação cívica consistente para valorizar in abstracto instituições que in concreto se mostram falhas e corrompidas, lançaram-se indignados contra os poderes que, a seus olhos, haviam se tornado cúmplices da impunidade que levou um sujeito condenado e preso por corrupção de volta à presidência da República.

Diante desse quadro mais amplo, percebe-se que o julgamento de Lula e o julgamento de Bolsonaro são duas faces de uma mesma moeda cunhada na forja das vaidades e dos caprichos dos ministros do supremo.

O STF, embora juridicamente habilitado para conduzir o julgamento da chamada, “trama golpista”, enfrenta um déficit de legitimidade moral. Sua responsabilidade na atual crise institucional não pode ser ignorada: ao relativizar a punição de corruptos e ao se colocar como ator político, o tribunal contribuiu para a erosão do tecido democrático.

É no mínimo irônico que a mesma corte que ajudou a minar a confiança dos brasileiros na justiça se autoproclame agora a defensora maior da ordem democrática.

O paradoxo só é minimamente aceitável porque os populistas reacionários de direita aproveitaram-se efetivamente do contexto delicado para tentarem se manter no poder por meio da ruptura da ordem institucional. 

Muito se tem falado sobre isso, ou seja, sobre a tentativa de golpe. Mas pouco se tem falado sobre a responsabilidade do STF e do PT pela revolta social que o tornou plausível.

Esse impasse nos convida à reflexão: uma instituição legalmente válida, mas moralmente desacreditada, é capaz de cumprir o papel de restaurar a ordem e assegurar a democracia? O STF tem legitimidade ética para o julgamento em curso ou seus desvios já fazem dele apenas o espetáculo de um exercício de poder formal, incapaz de reconciliar a sociedade com seus próprios fundamentos?

O relatório apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes no início do julgamento de Bolsonaro e mais sete réus do “núcleo crucial” da denunciada “trama golpista” foi antecedido por um discurso político no qual os ataques feitos ao Brasil pelo presidente norte-americano Donald Trump foram usados para ecoar o nacional-populismo que se tornou o novo farol da narrativa ideológica do presidente Lula e de seus aliados.

Constata-se, portanto, que, para além das suas obrigações jurídico-constitucionais, o STF tem agido objetivamente como aliado do governo Lula.

A quase unanimidade de leigos e especialistas dá como favas contadas a condenação de Jair Bolsonaro a uma dura pena de reclusão. Essas favas contadas contra Bolsonaro são, diga-se, em parte jurídicas e em parte políticas.

Julgando às vezes com erro e às vezes com acerto questões graves da vida brasileira, o STF tem gerado contínuos prejuízos ao país por maximizar a politização das suas decisões, que têm gerado muito mais convulsões perturbadoras do que soluções apaziguadoras; sendo que agora o próprio termo “apaziguamento” foi depreciado pelo ministro Alexandre de Moraes, que, na exposição do seu referido relatório, rebaixou tal termo ao significado de “covardia”.

Mesmo antes da conclusão do julgamento de Bolsonaro, o Congresso Nacional já está convulsionado, com a Câmara Federal tentando armar contra a sua previsível condenação uma anistia que seus defensores chamam espertamente de “ampla, geral e irrestrita”, mas que na verdade é ampla, geral e irrestritamente bolsonarista.

Minha irrestrita solidariedade, a anistia que defendo, é para a gente humilde e anônima que foi condenada e está pagando penas medonhas pelas invasões no 8 de janeiro. 

A “anistia alternativa” com a qual o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tem acenado parece caminhar nessa direção; se for esse o caso, a proposta conta com a minha simpatia e o modesto incentivo desse despretensioso artigo.

Eduardo Bolsonaro, porém, que segue tentando obter o que quer por meio de chantagem covarde, reagiu raivosamente à possibilidade de anistiar os brasileiros comuns e escreveu no X:

Qualquer anistia que não seja ampla e irrestrita não será aceita. Já irei conversar com a base parlamentar do PL sobre isso. A anistia será ampla ou irrestrita ou não contará com o apoio da direita e não terá efeito de diminuir sanções internacionais”

Traduzindo: os presos comuns pelos atos do 8 de janeiro só interessam aos Bolsonaro como arma retórica. A única coisa que realmente lhes interessa é que Jair Bolsonaro saia impune e elegível, que não arque minimamente pelas consequências de suas más ações.

Nosso senso moral costuma chamar de herói o indivíduo que sacrifica a si mesmo ou aos seus próprios interesses pelo bem das outras pessoas. Que nome damos a quem sacrifica centenas, milhares de pessoas, o próprio país, pelos seus interesses mesquinhos?

Pois é. Não há heróis nessa história. O enredo da política brasileira tem sido protagonizada por gente mesquinha, ambiciosa, corrupta e canalha. 

A democracia brasileira sempre esteve em risco, mas desconfie, desconfie de tudo e de todos: tanto de quem ataca a democracia frontalmente, quanto de quem se propõe salvá-la.