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Golpe de Estado

A esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) não tem medo de um golpe de Estado. Ela tem medo do voto! Do voto de quem não vota na esquerda. Por isso ela denuncia golpe de Estado onde não há golpe de Estado. 

Vejamos. Segundo os populistas de esquerda, a condenação e prisão dos principais dirigentes do PT pelo mensalão e pelo petrolão foi um golpe de Estado. O impeachment de Dilma foi um golpe de Estado. A condenação e prisão de Lula foi um golpe de Estado. A eleição de Bolsonaro foi um golpe de Estado. Tudo falso. Nada disso foi golpe de Estado. 

Claro que, depois, uma parcela da direita populista (bolsonarista) quis mesmo dar um golpe de Estado (à moda antiga): articulou e intentou fazer isso, embora não tenha conseguido consumar sua intenção por falta de capacidade de organização, de estratégia e, fundamentalmente, de força político-militar para tanto. Condenados por tentativa de golpe de Estado, os principais líderes, civis e militares, da intentona, estão sendo presos. 

Mas o fato de parte dos antigos eleitores de Bolsonaro continuarem não querendo votar na esquerda, não é golpe de Estado. 

Frustrada a tentativa de golpe do final de 2022, não há mais golpe nenhum sendo tramado no Brasil por esses desastrados atores. Nem da parte de outros atores. Não há condições objetivas e subjetivas para um golpe de Estado (sobretudo à moda antiga, com intervenção militar). 

Mas o PT insistirá em dizer que quem não votar em Lula (no primeiro turno de 2026) ou mesmo quem se apresentar como candidato nas próximas eleições desafiando o quarto mandato de Lula e o sexto do PT (seja bolsonarista, quer dizer, súdito fiel da famiglia Bolsonaro – ou não) é um fascista golpista, disfarçado ou camuflado. É a tese do golpe continuado. Ou seja, o PT manteve sua narrativa anterior e continua dizendo que tudo que contraria seu projeto de poder é golpe de Estado.

O mapa do caminho

Descobrimos então que a COP 30 era muito mais importante para a esquerda populista (de raiz classista ou identitarista) do que imaginamos. Eles jogaram tudo para fazer da COP 30 um tipping point

Para o governo Lula foi um ato de campanha, pleno de marquetagens: “a maior COP do mundo”, “a COP do povo liderada por Lula” – o guia genial, o grande timoneiro. Basta ver que o último discurso de Lula na COP 30 foi tipicamente eleitoral. Uma fala populista num palanque para dentro. O tal “mapa do caminho” mesmo só teremos… nas próximas COPs. Compromissos com metas necessárias e críveis ocorrerão… nas próximas COPs. Para Lula, o mais importante vem antes: nas urnas de 2026.

Para a esquerda, órfã das grandes narrativas totalizantes do século 20, era para ser uma espécie de “enchente amazônica”, uma “explosão atlântica” onde os excluídos, os condenados da Terra, os povos originários e todas as minorias acordaram (woke) para dizer ao mundo dos ricos que não aceitam mais a situação de injustiça instalada. O climático serviu como um gancho perfeito para o social. Injustiça climática. Exclusão climática. Racismo climático. A discriminação climática é estrutural.

Uma revivescência da luta de classes e da luta contra a discriminação. O início de uma verdadeira revolução social. Uma sublevação do Sul Global. A esquerda agora não só lidera, mas se apropria da causa climática… contra a direita. 

Foi aí que apareceu a proposta do Mapa do Caminho para redução das emissões de CO2, lavando a contradição do Brasil querer liderar essa caminhada mantendo a exploração dos combustíveis fósseis. Porque no futuro, ah!, no futuro, não será mais assim. Vamos para o reino da liberdade e da abundância: mas amanhã, não hoje. Sim, vamos extinguir o Estado: mas amanhã, não hoje. Hoje, nós, os socialistas, fortalecemos o Estado para enfraquecê-lo. Mas hoje só amanhã.

(Se você não quiser deixar de fazer alguma coisa julgada reprovável, proponha um “mapa do caminho” para deixar de fazer essa coisa no futuro. Com esse truque você obtém uma licença para continuar fazendo o que não deve. É como uma ditadura prometendo um reino da liberdade amanhã). 

O Mapa do Caminho era um mapa para a reeleição de Lula e para o renascimento da esquerda como portadora da salvação universal.

Os países do eixo autocrático e os EUA trumpista, porém, não toparam essa parada. E o mapa ficou sem caminho; ou o caminho ficou sem mapa. A proposta de um plano de ação com etapas e metas para acabar com o uso de petróleo, gás natural e carvão mineral não avançou. China, Índia, Arábia Saudita e Nigéria não aceitam – pelo menos até agora – nenhum texto sobre o tema. E se aceitarem não irão realizar suas prescrições. Sem falar dos EUA, é claro. E da Rússia.

O ambientalismo, parasitado pelos órfãos das narrativas totalizantes do século 20, está alimentando o surgimento de uma militância proto-fundamentalista que passou a assombrar a humanidade com o apocalipse do aquecimento global. Não é que o aquecimento global não seja uma ameaça real. É que tratar isso na base do medo, crucificando como negacionistas climáticos os que não são fiéis do novo credo, instalará uma nova cruzada do bem contra o mal cujos resultados serão nocivos à liberdade. 

Entenda-se bem. O problema existe. E não há como resolvê-lo com uma grande vassourada. Como escreveu Quico Toro, o processo COP não funciona porque “imagina as emissões [de CO₂] como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato” (1). Não há como resolver o problema derrotando os negacionistas climáticos e, para tanto, incentivando uma nova polarização em que os militantes ambientalistas vão abrir uma guerra contra os negacionistas climáticos. 

Se a chamada esquerda, que sempre se acha do lado do bem, abrir esse tipo de guerra contra a chamada direita negacionista, sempre avaliada, pela esquerda, como estando do lado do mal, isso não contribuirá em nada para resolver o problema. 

Não é uma guerra universal que precise ser vencida, com a derrota definitiva dos inimigos incréus para nos salvar do apocalipse. É preciso ver o que se pode fazer agora, a começar pelos nossos atos singulares e precários em todos os âmbitos, das pessoas e comunidades, dos pesquisadores e empreendedores inovadores, das empresas e dos governos dos municípios, regiões e países e das organizações internacionais.


Nota

(1) Como escreveu Quico Toro, em Persuasion (13/11/2025), o processo COP não funciona “porque se baseia em um modelo errado sobre o que determina o nível de emissões de gases de efeito estufa de um país. A COP imagina essas emissões como algo que o governo de um país pode definir, como o botão de um termostato. Mas as emissões são mais parecidas com o PIB: o resultado de um processo complexo que os políticos gostariam de controlar, mas que na realidade não controlam. Assim como o PIB, as emissões climáticas são o resultado cumulativo de bilhões de decisões tomadas por bilhões de atores — negociadores climáticos, empresas de serviços públicos, operadores de redes elétricas, reguladores, políticos, burocratas, banqueiros, investidores, empresas e famílias — cada um dos quais precisa ponderar uma série de compensações. Essas compensações incluem a qualidade do ar e as emissões de carbono, sim, mas também a acessibilidade, a confiabilidade, a soberania, a disponibilidade de recursos naturais e o nível de prontidão tecnológica. Nos países desenvolvidos, o resultado combinado dessas decisões tem sido uma queda gradual das emissões nas últimas duas décadas. Desde o pico em 2007, as emissões de CO₂ dos países desenvolvidos caíram de 15,7 gigatoneladas para 12,9 gigatoneladas em 2023. (Uma gigatonelada equivale a um bilhão de toneladas.) Também em 2023, pela primeira vez, a China emitiu mais dióxido de carbono do que todos os países desenvolvidos juntos. Entre 1970 e 2023, as emissões chinesas cresceram de 7,6 gigatoneladas por ano para 13,3 gigatoneladas por ano, e as emissões do restante do mundo em desenvolvimento aumentaram de 7,9 para 11,7 gigatoneladas. Para cada molécula de CO₂ que os países ricos reduziram suas emissões desde 2007, os países em desenvolvimento emitiram três a mais”.

Imposto de Renda: um alívio real, mas com prazo de validade

O Congresso aprovou o Projeto de Lei nº 1.087/2025, que promete aliviar o bolso de milhões de brasileiros ao isentar do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil por mês. Segundo o governo, cerca de 25 milhões de pessoas serão beneficiadas a partir de 2026. A medida é positiva e traz um ganho real para a renda do trabalhador, mas seu impacto tende a ser passageiro.

O motivo é simples: a tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas acumula uma defasagem de cerca de 154% entre 1996 e 2024, segundo a Receita Federal. O novo projeto corrige apenas 35% dessa defasagem, o que significa que o alívio tributário é parcial. A cada reajuste salarial e aumento de preços, mais pessoas voltam a ser tributadas, mesmo sem terem ampliado de fato seu poder de compra.

Outro problema é que o projeto não estabelece uma regra de correção automática da tabela pela inflação. Sem essa atualização anual, o benefício concedido agora será rapidamente corroído, como já ocorreu no passado. Entre 2016 e 2022, a tabela ficou congelada, e o número de contribuintes que pagavam imposto subiu de 26 milhões para mais de 32 milhões. Na prática, o congelamento funciona como um aumento de imposto disfarçado: o trabalhador não fica mais rico, mas paga mais.

Ainda assim, o PL tem méritos. A criação de uma tributação mínima de 10% sobre rendas acima de R$ 600 mil anuais e a taxação de lucros e dividendos remetidos ao exterior corrigem distorções históricas que beneficiavam os mais ricos. Hoje, os 0,01% com maiores rendas pagam proporcionalmente menos imposto que parte da classe média. Nesse ponto, o projeto traz mais justiça fiscal e torna o sistema um pouco mais progressivo.

O problema é que a pressa em aprovar a medida antes do fim do ano — para que entrasse em vigor já em 2026 — fez com que o Senado abrisse mão de discutir pontos estruturais, como a correção automática da tabela e a compensação financeira adequada a estados e municípios, que devem perder cerca de R$ 5 bilhões por ano de arrecadação.

Assim, o novo Imposto de Renda é um avanço simbólico e social, mas de efeito limitado. Representa uma vitória política importante, ao aliviar o peso sobre quem mais sente o custo de vida, mas sem resolver o problema de fundo. Sem uma política permanente de atualização da tabela, a reforma perde força com o tempo e corre o risco de se transformar em mais um alívio temporário — daqueles que começam com promessa de justiça fiscal e terminam como mais uma ilusão passageira.

Crime Sem Fronteiras

A operação deflagrada no Rio de Janeiro expôs com violência o caráter transnacional do crime organizado brasileiro. Ao enfrentar o Comando Vermelho, facção que controla rotas de cocaína da Amazônia à Europa, a polícia estava também atingindo pontos nevrálgicos de uma organização criminosa transnacional. A letalidade da ação, portanto, não é apenas um drama local. Estamos diante de um sistema que alimenta redes globais de tráfico, lavagem e violência que demandam respostas coordenadas além de nossas fronteiras. Sem integração plena de inteligência, operações como essa combatem sintomas enquanto o ilícito se reorganiza em tempo real.

Em um mundo onde o crime ignora soberanias, a cooperação policial internacional é imperativa. A Interpol, com seu canal I-24/7, processa 1,2 milhão de consultas diárias, ou seja, cada segundo de atraso é uma rota de fuga. Ainda assim, a rede apresenta vazios criados por critérios políticos, não técnicos. Cidades do porte de Hong Kong e países como Kosovo e Taiwan poderiam estar mais integrados ao sistema internacional. Apesar da expertise, permanecem fora das reuniões, treinamentos e do I-24/7 – uma exclusão ditada por pressões externas, não por incapacidade. As forças de segurança de Taipei, por exemplo, desmantelaram em 2024 uma plataforma de exploração infantil com 5.000 membros, rastreando criptomoedas e operadores transfronteiriços.

Taiwan não é um caso isolado. Hong Kong, antes membro pleno, foi rebaixado a “escritório de ligação” após 1997 e Kosovo, reconhecido por mais de cem países, ainda luta por acesso. Todas essas jurisdições possuem forças policiais operacionais e registros de cooperação bilateral exitosa, mas são mantidas à margem por vetos políticos. A resolução da 53ª Assembleia Geral da Interpol, em 1984, não impôs barreiras à participações como a de Taiwan; o artigo 2º da Constituição da organização exige “a mais ampla assistência mútua”. Logo, subordinar essas missões a disputas diplomáticas é escolher ideologia em vez de resultados reais que podem salvar vidas.

Países como Nova Zelândia, Austrália e Japão já trocam inteligência cibernética com Taipei sem criar precedentes políticos. Formalizar canais multilaterais – via status de observador – ampliaria o alcance da rede sem custos de soberania. Da mesma forma, em outras jurisdições excluídas, a inclusão técnica contribui para fortalecer a rede global. No Rio, cada quilo de droga apreendido tem origem em cadeias que passam por múltiplos continentes e sem todos os elos, a resposta é fragmentada.

A segurança internacional não tolera pontos cegos. Na 93ª Assembleia Geral da Interpol, em 2025, priorizar capacidade técnica e poder de cooperação sobre política é medida de pragmatismo e de segurança, não de cortesia. Conceder acesso aos países capazes de ajudar a combater o crime organizado em outras jurisdições é essencial, evitando lacunas que podem ser exploradas por organizações que operam nas sombras da lei.

A inclusão de todas as jurisdições competentes na Interpol é reforço operacional que beneficia diretamente o Brasil. Em um contexto de crime organizado transnacional, defender a cooperação técnica com essas nações é imperativo que deve ser cobrado de nossa diplomacia, uma vez que fortalece nossa segurança interna, fecha brechas na rede global de inteligência e prioriza resultados concretos acima de vetos ideológicos. É preciso combater o crime em todas as frentes e com todos os mecanismos possíveis.

Facção criminosa e organização terrorista

Eu assisti, ninguém me contou. No decorrer da invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, o apresentador da Globo News chamou repetidamente os vândalos de terroristas. Depois a emissora corrigiu essa abordagem (sem dizer que corrigiu, nem porque corrigiu). Os invasores tinham intenções golpistas (chamar uma intervenção militar para interromper o mandato do presidente recém-eleito e já empossado, Lula da Silva), mas eles eram terroristas?

Jair Bolsonaro (já eleito e ainda não empossado) declarou no final de 2018 na avenida Paulista: “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”. Os militantes do MST (de Stédile) e do MTST (de Boulos) são terroristas?

Putin acaba de fazer aprovar nestes dias, pelo parlamento fantoche da ditadura russa, um tratado de parceria estratégica com o ditador Maduro para, entre outras coisas, combater o… terrorismo. Ele, Putin, há sete anos, já havia chamado os opositores de Maduro (Maria Corina incluída) de terroristas e continua qualificando seus próprios opositores na Rússia como terroristas. O mesmo faz o ditador Erdogan na Turquia. Estão vendo como esse assunto é delicado?

O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.

A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto antigo em debate, de 1996, já caracterizava terrorismo como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.

Mas praticar atos que infundem o terror nem sempre é suficiente para caracterizar uma organização como terrorista. Por exemplo, em guerra mudam-se os critérios. No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo?

La Résistance, a resistência francesa à ocupação hitlerista, era terrorista? Era uma organização armada, não-regular, não-legal, que praticava atos violentos (matava, sequestrava, mutilava seres humanos, sabotava, explodia bombas etc.) com efeitos claramente propagandísticos: visando atemorizar a população civil para dissuadi-la de colaborar com o nazismo. E aí? Aí vale porque os invasores eram estrangeiros? Quer dizer que o que define terrorismo não é a natureza das ações praticadas e sim os motivos pelos quais foram praticadas? Quer dizer que se ações tipicamente terroristas forem praticadas em defesa da pátria ou da nação – e da soberania nacional – está valendo? Que ética é capaz de resistir a tais critérios?

Além disso, todos os governos autoritários classificam seus opositores mais incômodos como terroristas e, para tornar juridicamente válida essa classificação, tentam criar novas leis (ou modificar leis já existentes) para tipificar como terroristas as ações ofensivas dos que se lhe opõem.

O assunto é espinhoso e exige que nos concentremos no básico. E o básico é o seguinte:

Organizações terroristas sempre têm uma causa político-religiosa (incluídas aí as religiões laicas, como certas ideologias revolucionárias). Na verdade o terrorismo é, a rigor, uma via antipolítica para alcançar algum objetivo não-mercantil (ou extra-mercantil).

Facções criminosas não são organizações terroristas. Elas não têm causa nenhuma. Não se vê “soldados” do narcotráfico (ou “trabalhadores do narcotráfico”, segundo Gustavo Petro) sacrificando suas vidas para atingir um objetivo. Por exemplo, se imolando em praça pública ou detonando um colete de explosivos no meio de uma multidão para matar o maior número de pessoas. Não se vê nem mesmo um “lobo solitário” do narcotráfico esfaqueando uma pessoa na rua em nome da sua causa de libertação (como faziam os zelotas na antiga Palestina ocupada pelos romanos) ou em nome da instauração de um califado universal (como os jihadistas do Estado Islâmico ou da Al Qaeda).

Facções criminosas, ditas do narcotráfico, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, são organizações com objetivos de lucro. São empresas bandidas. Ou seja, seu comportamento não é presidido por uma racionalidade extra-mercantil. Pode-se dizer que são um novo tipo de organização criminosa para o enfrentamento do qual as forças de segurança não estão preparadas.

A rigor as facções criminosas, em especial o PCC, não são mais nem organizações dedicadas ao tráfico de drogas como seu negócio principal. São uma espécie de máfia (amoral, mas sem familismo), de base prisional (parte de seus principais comandantes estão protegidos dos seus concorrentes nas prisões, sob custódia do Estado), que lucram com a venda e a cobrança ilegal de serviços, a imposição de taxas sobre negócios privados e a extorsão da população capturada em seus territórios.

Segundo artigo de Arthur Trindade, publicado no Correio Braziliense de ontem, “um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, existiam 88 facções de base prisional no Brasil. Sendo que 72 delas têm atuação local como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e têm conexões internacionais”.

Fala-se de uma coordenação entre governos federal e estaduais para enfrentar o crime organizado. Não basta. A situação chegou a tal ponto que é necessário um verdadeiro pacto social. Por mais que se aumente a repressão, a inteligência e os recursos, isso não bastará. É necessária a participação da sociedade e, inclusive, a colaboração das populações sequestradas nos territórios dominados pelas facções (muitas vezes na forma de resistência que não pode se revelar). Todavia, governos populistas, ditos de esquerda ou de direita, não são capazes de promover nada disso. Os de esquerda continuam acreditando que a criminalidade deriva da desigualdade social – o que leva à uma perigosa leniência, como se os criminosos fossem rebeldes primitivos que só existissem em razão da brutal desigualdade social e da exploração econômica, da opressão política e da dominação e discriminação ideológica das elites, dos capitalistas, dos imperialistas, dos neocolonialistas, sobre os trabalhadores ou o povo pobre. Os de direita continuam acreditando que existem os homens do bem e os homens do mal e que os primeiros devem exterminar os segundos pela força bruta, extirpando as maçãs podres da cesta – o que é a barbárie.

Definir as facções criminosas como organizações terroristas é uma armadilha autoritária. É conveniente para os que acham que se trata de eliminar fisicamente os bandidos (na base do “bandido bom é bandido morto”, ao arrepio das normas que regem os Estados democráticos de direito). Ninguém se escandaliza quando forças de segurança policiais ou militares abatem a tiros um terrorista, seja em Telavive, em Chicago, em Londres ou Amsterdã. Ninguém cobra que o terrorista seja preso, após a leitura de seus direitos e apresentado a um juiz. Há um consenso (tácito) sobre isso, que atravessa as ditaduras e chega até às mais plenas democracias liberais.

Mas matar os membros das facções criminosas não resolve o problema. Mil chacinas policiais ou militares não resolverão o problema. Cada “soldado” morto no narcotráfico será substituído rapidamente por outro. Cada “comandante” morto será sucedido por outro. Antes de qualquer coisa porque, a despeito dos riscos imensos, o negócio é muito lucrativo. E também porque o ambiente configurado nas favelas e periferias é favorável à instalação e replicação de uma cultura que valida, aos olhos de parte das comunidades, tal comportamento. Os feitos dos “heróis insurgentes” dos morros são cantados em prosa ou verso por artistas populares, cujas músicas são ouvidas por todos, crianças, jovens, adultos e idosos que nada têm a ver com o crime. Sim, o que estou dizendo é que há base social que permite que esse tipo de organismo nasça, cresça, se desenvolva e se reproduza.

Vários fatores combinados permitiram (e continuam permitindo) o surgimento (e a proliferação) desse tipo de organização criminosa. O principal desses fatores é uma depressão no campo interativo que extermina velozmente capital social. CV, PCC e Milícias surgem desse black hole. Uma deformação do tecido da sociedade – e uma degeneração do Estado inclusive (sobretudo no caso das milícias, que não surgem por ausência de Estado já que são uma espécie de dark side do próprio Estado). As facções criminosas do narcotráfico são uma degeneração do modo de agenciamento chamado mercado, assim como as milícias são uma degeneração do modo de agenciamento chamado Estado. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Operação Contenção expõe ao mundo a guerra interna do Brasil

A Operação Contenção — a maior da história do Rio de Janeiro, com mais de 120 mortos e o envolvimento de 2.500 policiais — trouxe o problema da expansão do crime organizado para o debate público de maneira incontornável.

Enquanto helicópteros sobrevoavam o Complexo do Alemão e da Penha, drones explosivos, barricadas incendiadas e fuzis transformavam a cidade em uma zona de guerra, levando o Brasil para manchetes do noticiário internacional.

Se os que padecem sob o jugo tirânico das facções criminosas nas comunidades e periferias já conheciam o enorme poder de facções como o Comando Vermelho, penso que a maioria da classe média do país, embora ciente do problema, não atinava ainda para a dimensão real do problema.

A repercussão do confronto entre policiais e criminosos no Rio trouxe novamente à tona uma clivagem ideológica no país, além de deixar transparecer a fragilidade de certas narrativas.

A palavra soberania, por exemplo, tão ecoada ultimamente pelo governo Lula, devido às tarifas e sanções impostas pelos EUA ao Brasil, se volta agora contra aqueles mesmos que dela tanto se utilizaram com afetação nacionalista.

De fato, como falar em soberania quando o Estado não detém o monopólio da força, mas o divide com criminosos que têm seu próprio “tribunal” e impõe suas “leis” em território no qual a população mais pobre vive como refém?

Aqueles que, em nome dos Direitos Humanos, se mostram tão preocupados com os alvos da ação policial, acaso mostram a mesma preocupação com os moradores da comunidade cujo direito de ir e vir é rotineiramente suspenso por barricadas?

Aqueles que apontam “barbárie” na ação da polícia contra o Comando Vermelho não consideram barbárie as torturas perpetradas contra moradores inocentes e contra rivais como prática sistemática de punição e controle territorial?

Aqueles que acusam a polícia de agir seletivamente contra “pobres” se solidarizaram com os milhares de pobres expulsos de suas próprias casas pelas facções?

O êxodo imposto pelas facções teve um crescimento espantoso no meu estado, Ceará, há mais de dez anos governado pelo Partido dos Trabalhadores. Uma reportagem recente da mídia local dá conta de que as facções criminosas expulsaram moradores de pelo menos 49 bairros de Fortaleza.

Em entrevista no papo Antagonista, o ex-capitão do Bope, Rodrigo Pimentel, comentou algo que foi motivo de indignação aqui em Fortaleza: a polícia não garantiu a segurança para que os moradores continuassem em suas próprias casas após receberem ameaças das facções, mas garantiu escolta para que abandonassem suas casas em segurança.

Certa noite, em setembro, eu estava em casa com meu filho quando sobreveio o barulho de uma expressiva e inusitada queima de fogos que durou vários minutos. Ele se agitou um pouco, eu fechei as janelas. Imaginei que era alguma vitória de time de futebol, Fortaleza ou Ceará. No outro dia, li que tinha sido a celebração do Comando Vermelho pela conquista de novo território.

Foi também aqui, em Fortaleza, o caso da cozinheira executada a facadas e tiros na frente dos seus filhos, por membros do Comando Vermelho, por ter se recusado a envenenar a comida de policiais. Esses e outros crimes de uma violência bárbara tornaram-se cada vez mais comuns.

O caso do Ceará mostra que o crime organizado está se expandindo com força total para todo o Brasil e que não se trata mais de problema restrito ao Rio de Janeiro.

Ao dar visibilidade a isso, a Operação Contenção forçou a sociedade a se posicionar. A questão lançada é a seguinte: o brasileiro comum quer que o Estado continue fazendo vista grossa para a expansão do crime organizado ou quer que ele seja efetivamente enfrentado?

Para espanto de boa parte da bolha esquerdista, as pesquisas apontaram claramente a disposição do brasileiro para o enfrentamento.

Segundo o instituto AtlalIntel, 62,2% da população da cidade do Rio de Janeiro e 55,2% da população brasileira aprovaram a Operação Contenção.

O dado mais significativo, porém, é que, entre os moradores de favelas do Rio, 87,6% aprovaram a operação e entre os moradores de favelas do Brasil, a aprovação foi de 80,9%.

Esses dados mostram uma enorme dissonância entre o discurso da elite progressista em nome dos pobres e o que os pobres realmente desejam para si.

“Massacre”, “genocídio”, “barbárie policial”, “extermínio de pobres”, escreveram os especialistas progressistas, e pulularam notas de condenação à operação que sequer mencionavam o nome Comando Vermelho, como se policiais do BOPE, entediados, tivessem resolvido subir o morro para matar pobres por diversão, como se jogassem uma partida de vídeo game.

A deputado Jandira Fechali (PCdoB/RJ) escreveu no X que “é possível combater o crime sem dar um tiro”.

Uma professora da UFF, ouvida como “especialista em segurança pública” tornou-se chacota nacional devido às suas análises do tipo: “um criminoso com um fuzil na mão é facilmente rendido por uma pistola e até por uma pedra na cabeça”.

intelligentsia progressista prestou solidariedade à professora e colocou o deboche na conta de misoginia e do preconceito contras cabelos laranjas, optando por permanecer descolada da realidade.

Como costuma acontecer no Brasil, o debate que deveria ser técnico e estratégico — como recuperar o território, como enfraquecer o poder das facções, como preservar vidas inocentes — foi tragado por paixões políticas.

Uma análise dos discursos expõe também o simplismo das duas visões de mundo extremistas que tentam moldar a política e se impor à sociedade: a que tende a ver o criminoso como vítima da sociedade e a que o vê como encarnação do mal a ser sumariamente executado.

Ambas as posições são confortáveis porque dispensam a complexidade. A primeira dissolve a culpa individual no sistema; a segunda apaga a necessária linha de contenção do Estado.

O humanitarismo da esquerda transformou-se em uma moral de absolvição. O traficante, o ladrão, o homicida tornam-se “vítimas do sistema”, enquanto o sistema — um ente abstrato e sempre culpado — substitui a responsabilidade pessoal.

Em nome da “justiça social” a narrativa da esquerda absolve os algozes dos pobres e condena a polícia que tenta assegurar o direito básico à segurança

Mas a direita não fica atrás em cegueira quando rotula toda e qualquer crítica a abusos policiais como “defesa de bandido”. Já há políticos brasileiros querendo viajar para El Salvador para aprender o modus operandi de Nayib Bukele.

Quando o poder público celebra o número de mortos como troféu, é preciso ficar alerta. Gosto daquela frase de Nietzsche, em “Para além de bem e mal”: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro”.

Certamente há uma posição mais sóbria entre o humanismo de gabinete e o punitivismo de palanque.

Não estamos mais diante de delinquência comum, mas de forças organizadas com comando, hierarquia, território, armamento pesado e vínculos econômicos com o Estado. O Brasil vive, ainda que não o reconheça oficialmente, uma forma de guerra civil.

O Comando Vermelho e o PCC são poderes paralelos com estrutura administrativa, logística e capacidade de arrecadação. Controlam serviços, impõem tributos, administram conflitos e exercem soberania sobre milhões de brasileiros.

Em várias regiões, são o único poder presente. O Estado, por omissão e covardia, cedeu o território e contentou-se com discursos e propaganda.

O governo federal culpa os estados; os estados culpam o Supremo; o Supremo culpa a polícia; a polícia culpa as leis. E o crime, em meio disso, se expande.

A Operação Contenção, no entanto, nos fez enxergar. Enxergar que a guerra já começou, que a soberania já foi fragmentada e que a segurança pública não deve ser teatro ideológico porque é questão de sobrevivência civilizacional.

Elite do Leblon critica, mas quase 90% dos moradores de favelas do Rio aprovam operação da polícia

Partido dos Trabalhadores é praticamente o único a ter governado o Brasil neste século. Foram quatro mandatos presidenciais e um quinto já no final. Nesse período, o crime organizado, que surgiu nos anos 1990, se tornou uma potência internacional. Hoje, segundo levantamentos oficiais, cerca de 26% do território nacional, incluindo parte do Rio de Janeiro, está sob domínio de facções criminosas. Só a título de comparação, na Colômbia e Nicarágua o percentual de território do crime não chega a 10%. É o retrato de um país onde o Estado foi sendo substituído por organizações armadas que impõem leis próprias, arrecadam “impostos” via extorsão, controlam o território e desafiam abertamente a autoridade pública.

A megaoperação realizada nos Complexos da Penha e do Alemão foi a mais letal da história do Rio de Janeiro. O saldo de 117 mortos expôs uma realidade que há anos vinha sendo ignorada. De acordo com a Polícia Civil, 109 corpos já foram identificados, e 78 dos mortos tinham histórico de crimes graves, incluindo homicídios e tráfico de drogas. Mais da metade dos suspeitos era de outros estados, confirmando que as favelas cariocas se tornaram o quartel-general do Comando Vermelho. Ali, as facções realizavam treinamentos de tiro e recrutamento de novos integrantes, que depois eram enviados para expandir o domínio da organização.

Pela primeira vez, os policiais foram recebidos por criminosos armados com drones que lançavam explosivos. A cena simboliza a nova escala de poder do crime organizado no Rio e reacende um debate urgente: até quando será possível tratar essas facções como simples organizações criminosas e não como grupos terroristas? Quatro policiais morreram.

Mesmo diante da violência e da tragédia, a população mais afetada demonstrou apoio à ação. Segundo pesquisa AtlasIntel, 87,6% dos moradores de favelas do Rio aprovaram a operação. São pessoas que vivem diariamente sob o medo imposto por criminosos e que sabem o custo real da ausência do Estado. Enquanto isso, parte da elite progressista do Rio, especialmente nos bairros do Leblon, da Gávea e de Ipanema, reagiu com indignação moralista.

É uma elite que gosta de posar como consciência crítica do país, mas que não tem coragem de enfrentar a realidade. Do alto de seus apartamentos, multiplica discursos sobre “genocídio” e “violência policial”, sem jamais pisar num beco dominado por fuzis. Defendem o povo, mas condenam qualquer tentativa de garantir o direito mais básico: viver sem medo. Falam de empatia, mas se recusam a ouvir quem realmente sofre com o domínio das facções.

A distância entre quem diz defender o povo e o que o povo quer é abissal. O brasileiro comum, inclusive o morador das comunidades, quer trabalhar, estudar, criar os filhos em paz e andar na rua com segurança. Quer ver o Estado recuperar o controle. Mas a elite militante insiste em enxergar cada ação policial como opressão e cada criminoso como vítima. O discurso serve para sinalizar virtude, não para enfrentar o problema.

O fenômeno é político e cultural. Durante décadas, o PT e seus aliados sustentaram a ideia de que combater o crime com firmeza seria autoritarismo. Essa visão contaminou as universidades, as redações e o debate público. Criou-se a fantasia de que o Estado deve compreender o criminoso, não reprimi-lo. O resultado é um país onde o tráfico financia campanhas, compra autoridades e dita regras em um quarto do território nacional.

A megaoperação no Rio expôs o que os brasileiros já sabiam: a paciência acabou. As pessoas estão cansadas de ser usadas como biombo moral por quem vive em segurança e lucra com a narrativa da desigualdade. Cansaram da elite que se comporta como flanelinha de minoria, oferecendo indignação sob demanda para manter prestígio entre os pares.

A segurança pública será o calcanhar de Aquiles da esquerda nas eleições do próximo ano. Porque, enquanto essa elite performa virtude, o povo real, que mora onde o Estado se ausentou, sabe que a paz só virá quando a lei voltar a valer para todos.

Mexicanização Brasileira

O poderio do crime que motivou a ação policial no Rio de Janeiro não é um caso isolado. É a tradução de uma doença metastática que consome o Brasil. O que se vê no Rio hoje é apenas o ensaio geral, a prévia mais avançada do que todo o país experimentará amanhã se não acordarmos para a realidade brutal: o crime não mais opera à margem do Estado: ele se infiltrou em suas veias e diversificou seus negócios em escala industrial.

O conceito de crime organizado transcende em muito aquele já conhecido como ilícito comum. Estamos falando de um conglomerado infiltrado nas instituições públicas, com gestão corporativa, que sistematicamente corrompe e coopta o Estado para garantir a impunidade e expandir seus impérios. Esta não é uma teoria conspiratória. É a prática documentada de facções como o PCC e o Comando Vermelho, que hoje controlam cadeias inteiras do poder público. A infiltração é a nova arma, agora eficaz e silenciosa. As fraudes em concursos públicos, criminosos eleitos para parlamentos e um judiciário leniente são as provas cabais de êxito desta estratégia.

Além disso, é um erro reduzir o poder do crime apenas ao tráfico de drogas. Atualmente uma vasta e complexa teia econômica lava seus recursos e financia sua expansão. Facções dominam o contrabando de cigarros, comercialização de vapes, adulteração de combustíveis em escala nacional e, de forma mais visível, parcelas do lucrativo mundo das apostas que envolvem influenciadores. Segundo a Receita Federal, apenas 27 das 134 empresas do setor possuem registro regular, criando um ambiente fértil para lavagem de dinheiro.

Enquanto o Rio de Janeiro chama a atenção pela visibilidade, vastas regiões do Norte e Nordeste do país já vivem sob um silencioso e férreo controle das facções. Inúmeras cidades têm seu comércio, transporte e até a vida social ditados pelo crime. Prefeitos governam sob a tutela de grupos criminosos ou fazem parte deles, enquanto a população vive sob a lei do silêncio, sabendo que o Estado, quando aparece, é muitas vezes apenas uma extensão do poder do tráfico e das milícias. Segundo o Monitor da Violência, 15% dos municípios brasileiros relataram episódios de guerra entre facções em 2023, um aumento de 40% em relação a 2020. São batalhas pelo domínio territorial.

Este cenário é a materialização do que especialistas chamam de “mexicanização”. Não se trata de uma simples importação cultural, mas da adoção de um modus operandi onde os cartéis não apenas disputam mercados ilícitos, mas contestam o monopólio estatal da força e controlam porções significativas do território e da economia formal e informal.  O destino lógico e aterrador deste caminho é o nascimento de um modelo de narcoestado, onde as decisões de política pública, as nomeações para cargos-chave e a agenda econômica são influenciadas pelos interesses escusos que, além do crime, controlam parcelas do comércio, política, entretenimento, energia e outros setores. 

A ação no Rio é um sintoma de uma guerra civil assimétrica, um conflito armado onde o Estado reage à superfície do problema, mas perde a guerra silenciosa nos corredores do poder e no campo econômico. Enquanto não houver uma estratégia nacional, unindo inteligência, investigação financeira, combate implacável à lavagem de dinheiro e, sobretudo, a desinfecção da máquina pública cooptada por essas milícias e facções, estaremos apenas enxugando gelo. O Brasil está caminhando a passos largos para se tornar o que o Rio já é: a tradução de um Estado falido.

Entre o tiroteio e a omissão: o colapso da segurança pública e o dever de valorizar quem protege a sociedade

A megaoperação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que deixou mais de 120 mortos, expõe um drama nacional: o Brasil ainda não encontrou o equilíbrio entre força legítima, coordenação institucional e presença social. A cada operação de grande escala, renova-se a sensação de que o Estado perdeu o controle de parte do território — e de que as respostas continuam sendo improvisadas.

A PEC 18 de 2025, em debate no Congresso, pretende constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e ampliar o papel da União na coordenação do setor. O objetivo é nobre — integrar políticas e garantir recursos —, mas o risco é transformar um problema de gestão em um problema de centralização. Segurança não se administra de Brasília. Ela se constrói com inteligência local, presença contínua e responsabilização real.

O SUSP já existe desde 2018, mas nunca funcionou plenamente. Faltam integração de dados, financiamento constante e mecanismos de controle. Constitucionalizar o sistema pode ser um avanço, desde que venha acompanhado de metas, transparência e fortalecimento das polícias estaduais, que são quem enfrenta o crime no dia a dia.

Também é necessário avaliar o impacto da decisão do STF na ADPF 635, a “ADPF das favelas”. Ao restringir operações durante a pandemia, buscou-se preservar vidas, mas o efeito colateral foi permitir que o crime organizado expandisse seu domínio em várias comunidades. Onde o Estado recua, o tráfico e as milícias ocupam o espaço.

O caminho para conter essa escalada passa por fortalecer a certeza da punição. Penas mais duras são necessárias, sim — mas de nada adiantam sem investigações eficazes, julgamentos céleres e presença institucional permanente. O que inibe o crime é a previsibilidade da lei e a autoridade do Estado, não apenas o tamanho da pena.

E é preciso dizer com clareza: os policiais militares merecem respeito e valorização. São homens e mulheres que arriscam a própria vida para proteger a sociedade, muitas vezes sem as condições adequadas de trabalho. Eles precisam de treinamento, tecnologia, apoio psicológico e respaldo jurídico — não de discursos vazios ou improvisos políticos.

A tragédia do Rio é um sinal de alerta. Se o Brasil não reconstruir seu modelo de segurança com base em inteligência, integração e valorização de quem protege o cidadão, continuaremos oscilando entre a omissão e o confronto.
O país precisa de uma política de segurança pública que una firmeza e humanidade — capaz de garantir paz com autoridade, e autoridade com responsabilidade.

Risco Chinês

O Quarto Plenário do 20º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCCh), que teve início a portas fechadas no Hotel Jingxi, em Pequim, não é apenas um evento rotineiro do ciclo político nacional. É um momento de engenharia estratégica de alto risco que visa redefinir o caminho do país num cenário global crescentemente hostil. Reunindo mais de 350 dirigentes, o foco central não é a governança partidária, mas a sobrevivência econômica e segurança nacional, materializada nas propostas para o 15º Plano Quinquenal (2026-2030).

O teor central do Plenário, realizado em um momento de acentuada desaceleração econômica (com PIB abaixo das expectativas) e de colapso no investimento estrangeiro, foi a mudança brusca de prioridade: do crescimento a todo custo para segurança e autossuficiência. Sob a liderança de Xi Jinping, o Partido Comunista busca construir uma China menos vulnerável às pressões externas. 

O objetivo passa por investimentos massivos em inteligência artificial, tecnologia quântica, semicondutores e energia limpa, enquanto a modernização de indústrias tradicionais busca competitividade global. Contudo, a alocação seletiva de recursos para setores estratégicos, em detrimento de uma recuperação econômica ampla, repete os erros de planos passados, que frequentemente sacrificaram resiliência em favor de prioridades políticas. A crise da dívida local e o colapso do setor imobiliário, problemas herdados do 14º Plano, continuam a desafiar a estabilidade chinesa, e a insistência do regime em soluções centralizadas revela uma incapacidade real de promover reformas estruturais profundas, sufocando a inovação genuína.

Ao fim e ao cabo, vemos que longe da retórica de “modernização socialista”, a estratégia adotada esconde riscos sistêmicos e geopolíticos de longo prazo que merecem uma análise crítica no Brasil e no mundo. O redirecionamento massivo de crédito dos setores tradicionais (como a construção civil, em crise) para a manufatura avançada, sem um consumo interno que absorva essa produção, pode simplesmente transferir e agravar a sobrecapacidade industrial, desestabilizando os mercados globais.

Além disso, ao forçar a autossuficiência em tecnologias sensíveis, a China acelera a fragmentação dos padrões tecnológicos globais. Isso não apenas dificulta o comércio, mas também pode forçar empresas estrangeiras a escolherem entre o mercado chinês e o resto do mundo, dividindo as cadeias de valor e aumentando os custos logísticos e de produção para todos os países, incluindo o Brasil.

O comunicado final consolida diretrizes inquestionáveis, mas a visão do PCCh, ancorada em controle rígido, levanta sérias dúvidas sobre sua sustentabilidade. A centralização excessiva, que reprime vozes dissidentes e inovações não sancionadas, contrasta com a promessa de prosperidade e expõe a fragilidade de um sistema que teme a abertura. Comparado aos planos quinquenais do passado, que, apesar de falhas, beneficiaram-se de um ambiente global mais favorável, o 15º Plano enfrenta um mundo mais hostil, onde a desconfiança gerada pelo autoritarismo do PCCh mina a cooperação internacional. O custo dessa abordagem — isolamento econômico, tensões geopolíticas e erosão da coesão social interna — pode superar as ambições do regime, revelando um modelo que, sob a fachada de força, camufla profundas vulnerabilidades, aquilo que se transformou no verdadeiro risco chinês.