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Márcio Coimbra

Sobre Márcio Coimbra

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia. Presidente do Conselho da Fundação da Liberdade Econômica e Coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal.

Barril de Pólvora

A brutal ação terrorista do Hamas em Israel abriu a caixa de pandora do antissemitismo com uma onda de covardes demonstrações contra judeus ao redor do mundo que nos remetem ao horror vivido pela humanidade nos tempos de Hitler. Travestidas de ações em favor dos palestinos, os protestos buscam esconder a razão principal de seu ódio, focada nos judeus, em Israel e no modo de vida ocidental.

Já escrevi desde o início deste conflito que a guerra travada por Israel vai muito além de suas fronteiras. Ao enfrentar o Hamas, Tel Aviv defende todo o Ocidente, suas políticas, democracia, liberdades e tolerância. Tudo aquilo que o Hamas e seus apoiadores ao redor do mundo repudiam e desejam eliminar da agenda internacional e das práticas nacionais nas mais diferentes nações que defendem este arcabouço de valores.

Chega a ser bizarro enxergar manifestações em favor do Hamas e outros grupamentos de terroristas, em especial por mulheres e grupos LGBTQIA+, maiores focos de políticas de opressão de países que abrigam essas facções criminosas transnacionais. Fato é que curiosamente os manifestantes usam as garantias liberais de liberdade de expressão do Ocidente para realizar protestos – ações que jamais poderiam ocorrer em solo controlado pelos terroristas, em uma espécie de bizarro pacto suicida.

Entretanto, barcos com refugiados continuam a chegar lotados na Europa. Foram os primeiros a celebrar em solo europeu o ataque do Hamas, ainda sob guarda das autoridades portuárias. Em ato contínuo, imigrantes árabes tomaram as ruas das principais cidades europeias pedindo extermínio de judeus, como sempre disfarçados sob o manto da causa palestina, de Londres a Berlim, passando por Copenhague, Paris, Viena e Roma.

Isto nos leva a perguntar que tipo de Europa temos diante de nós. Um continente que ao defender a tolerância, se tornará em breve refém dos intolerantes. Países defensores de um progressismo que aos poucos corrói as estruturas de sua própria sociedade e seus valores. A Eurabia aos poucos se torna realidade e os protestos massivos nas grandes capitais europeias mostraram a clara medida da onda que tomou o velho continente. A Europa se tornou o barril de pólvora prestes a explodir logo depois do Oriente Médio.

Curiosamente, refugiados e imigrantes que chegam na Europa e reforçam os protestos a favor do Hamas relutam em imigrar para os grandes centros árabes e muçulmanos. São 49 países de maioria muçulmana, 23 países que são Estados islâmicos e 15 países sob a lei da Sharia. Uma das grandes questões que se desenha são as razões daqueles que defendem o radicalismo e protestam a favor do Hamas e contra Israel, preferirem enfrentar todas as barreiras imigratórias de costumes, língua e cultura na Europa ao invés de rumar para uma nação com suas tradições. Esta resposta é essencial para entendermos os movimentos geopolíticos que veremos adiante.

O Ocidente precisa refletir sobre sua subserviência ao radicalismo e o uso da tolerância e das nossas liberdades para corroer e arruinar nossas instituições e nosso modelo de sociedade. Estamos diante de um desafio imenso e uma encruzilhada que oferece o caminho da submissão e da involução ou a defesa intransigente de nossas liberdades e direitos. Afinal, como dizia Burke, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

Juego Político

Desde as eleições primárias realizadas na Argentina poucos meses atrás, ficou claro que não caminhávamos para eleição resolvida no primeiro turno e que certamente os dois mais votados teriam um segundo encontro com o eleitorado. Se a sensação naqueles dias era Javier Milei, o nome do momento passou a ser Sérgio Massa, que entra nesta etapa mais fortalecido, porém, sem uma clara perspectiva de vitória. O jogo está aberto.

Milei representa um voto de reação, enquanto Massa recebe um voto de ação e isto explica o salto alcançado pelo atual Ministro da Economia nos últimos dias. Massa é o candidato dos peronistas, que há décadas estão enraizados em praticamente todos os setores da sociedade civil argentina. Pense em qualquer setor civil organizado, desde associações de bairro, entidades de classe, sindicatos patronais ou de trabalhadores, conselhos e até organizações esportivas – todos possuem representantes ou dirigentes ligados do peronismo.

O peronismo consiste em uma máquina muito bem calibrada que funciona como motor de seu partido em períodos eleitorais, mas que também atua como catalizador popular para manifestações contra o governo, como aconteceu com Macri e De la Rúa, mas também a favor, como nos anos Duhalde, Kirchner e agora Fernandez. Vencer o peronismo nas urnas é trabalho difícil, talvez apenas um desafio menor do que manter-se no poder diante de sua oposição forte, virulenta e bem articulada.

Isto explica a vitória de Massa nas eleições deste domingo. Nas semanas pré-eleitorais e especialmente no dia da eleição, a máquina peronista começa a funcionar somando votos mediante sua mobilização. A oposição precisa estar muito bem organizada para vencer a estrutura robusta do peronismo ou precisa estar com vantagem confortável para não ser surpreendida.

Javier Milei tem a seu favor o ímpeto de reação, afinal comanda uma campanha baseada no antagonismo e de cunho emocional que se baseia na estratégia de ruptura com as práticas peronistas. Seus 30%, somados ao eleitorado de Patrícia Bullrich, podem lhe entregar a vitória. Conta a seu favor que este eleitorado é frontalmente contrário aos governistas, logo, se Milei se movimentar com habilidade, tem a vitória diante de si.

Em termos de governo, Milei, que elegeu 38 deputados e oito senadores, precisaria dos votos e apoios da coalizão de Bullrich, que elegeu 94, atingindo uma soma que fornece maioria no parlamento para governar. No Senado, juntos não chegam a ter maioria, mas podem chegar perto das 37 cadeiras necessárias. Como vemos, uma aliança que faz sentido não apenas em sentido eleitoral, mas também em termos de governabilidade.

Sergio Massa certamente carregará consigo os votos dos outros dois candidatos de esquerda, Juan Schiaretti e Myriam Bregman, que somados chegam perto de 10%. Porém, para vencer, Massa precisará ir além destes apoios. O peronismo precisará operar sua mágica e impulsionar sua musculatura para virar o jogo. Será a partida da ação peronista contra a reação ao sistema político impulsionado por Milei. Será uma eleição disputada e o vencedor, seja quem for, assume (além da crise) um país dividido.

Sarajevo, 2023

Em 1914, Sarajevo assistiu incrédula a um ato de terrorismo, o assassinato daquele que provavelmente seria o próximo Imperador da Austro-Hungria, Franz Ferdinand. A morte do Arquiduque levou a Europa a um processo que acabou por desencadear aquela que ficou conhecida como “A Grande Guerra”, depois rebatizada de “1º Guerra Mundial”. Pouco mais de um século depois, vivemos o mesmo drama.

A ação terrorista do Hamas contra Israel tem potencial para significar algo muito similar ao assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro. Isto significa que uma cadeia de apoios e alianças entre aliados e opositores, em ambas as partes, tem potencial para atingir uma escala muito maior do que é desenhado até o momento. Assim como nas semanas pós-Sarajevo, vivemos tempos que podem prenunciar um conflito de maior dimensão.

O ataque do Hamas contra Israel foi desenhado longe de Gaza e certamente tem digitais iranianas, mas passa também pela Síria, Hezbollah e as conexões de todos com Moscou. Vemos uma clara cadeia que passa por aliados que possuem interesses em comum e usam Israel como vértice de uma estratégia que visa mudar as placas de estabilidade da geopolítica internacional como conhecemos.

Os contornos do ataque terrorista do Hamas estão conectados ao desejo iraniano de evitar o avanço dos acordos celebrados por Israel com diversos países muçulmanos e que inevitavelmente chegaria aos sauditas em pouco tempo. O Irã deseja o controle regional, enquanto os russos desejam um novo front de batalha para o Ocidente e o Hamas, como milícia, atinge o objetivo de atacar Israel. Tudo muito bem calculado.

O risco, entretanto, é enxergar o conflito sair do controle, com envolvimento direto das forças ocidentais na batalha, o que obrigará Irã e Rússia também a entrarem de forma oficial na guerra. Um conflito de escala regional, cresceria para uma frente continental, envolvendo a Ucrânia, impulsionando o surgimento de golpes e revoltas em países satélites, em especial na África, enquanto a Europa, refém dos extremistas, pode experimentar a face mais perigosa do terror, gerando insegurança e medo às vésperas das Olimpíadas de Paris.

Isto não significa uma previsão, mas um risco que precisa ser calculado, especialmente em períodos sombrios como este que vivemos, onde casas e negócios de judeus já surgem marcados com a estrela de Davi na Alemanha e Rússia quase oito décadas após o final da 2ª Guerra Mundial. Um período onde o antissemitismo criminoso fantasiado de apoio palestino perdeu a vergonha e tomou as ruas de diversas capitais do mundo.

Até o momento, os mecanismos internacionais se mostraram mais uma vez ineficazes diante dos jogadores do poder global, uma impotência que pode custar muito caro. O risco de envolvimento mundial no conflito é real e isto pode levar o mundo para uma escalada inimaginável da guerra, assim como ocorreu em 1914, com o assassinato do Arquiduque, por mais que muitos considerassem o risco como ingenuidade. A cadeia de acontecimentos de 2023, iniciada com a carnificina do Hamas em Israel, tem potencial para envolver as grandes potências e levar a geopolítica internacional a um conflito de escala global.

Verdade Inconveniente

Ao contrário do que muitos pensam, a realidade política que se desenha por trás do ataque do Hamas está muito além das análises realizadas nestes primeiros dias. Aquilo que está em jogo é um movimento da geopolítica internacional da qual o grupo terrorista é apenas um instrumento para desestabilizar os pilares institucionais internacionais como conhecemos. A causa palestina, usada como cortina de fumaça, se tornou apenas um peão neste jogo de xadrez que se colocou em movimento.

O Hamas é uma milícia que realizou um golpe para chegar ao poder na Faixa de Gaza, expulsando os grupos ligados a OLP – organização legítima que controla a Cisjordânia e celebrou os acordos de Oslo. O Hamas, portanto, jamais teria capacidade de colocar em marcha um ataque desta envergadura como vimos nos últimos dias. O grupo terrorista é uma milícia que precisaria necessariamente de respaldo e apoio externo para atos tão ousados. Jamais agiria sem conhecimento de atores como Rússia, Síria e Irã. Diante desta realidade e analisando o movimento geopolítico, todos os indícios levam ao Irã em um primeiro plano e a Rússia em segunda escala como partícipes do massacre.

Na verdade, o ato do Hamas teve um claro objetivo que vai muito além de atacar de forma covarde a população civil de Israel. A ação foi no sentido de provocar uma guerra de larga escala no Oriente Médio para assim consolidar Irã e Rússia como poderes hegemônicos na região. Sabemos que Putin há tempos vem selando laços profundos com os atores deste cenário e que Teerã, principal força xiita, deseja impor seu domínio.

Uma delegação do Hamas viajou duas vezes a Moscou no ano passado para encontros com a cúpula do governo Putin. A promessa russa foi clara: “trabalhar para enfraquecer o Ocidente”. As conexões da milícia, que começam no Oriente Médio, estão muito além da região e se encaixam perfeitamente com o caos provocado por seus ataques. 

Entretanto, Israel também vinha se mobilizando no cenário político internacional, selando acordos com países árabes. Desde 2020, Israel firmou os chamados Acordos de Abraão com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão e estava diante de um acerto histórico com a Arábia Saudita, que teria reflexos negativos para a estratégia iraniana, uma vez que tinha potencial para remodelar o equilíbrio de forças no Oriente Médio. Os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas tentam isolar Israel neste jogo.

Como vemos, a recente carnificina de civis em Israel não possui qualquer relação com a defesa da causa palestina. Suas práticas distanciam os palestinos de seu objetivo como nação. Ao agir como testa de ferro do Irã, o Hamas usa a causa palestina como falsa justificativa para ataques que servem unicamente aos interesses dos aiatolás, tornando-se um braço armado por Teerã para atacar Israel e desestabilizar a região.

Isso explica por que a resposta em Gaza, está além de atingir o Hamas, pois tem como claro objetivo enviar um recado para Teerã. Este será apenas o primeiro capítulo de reação israelense. Outros grupos e até países entraram na mira de Israel.

Estamos diante de um movimento profundo da geopolítica mundial, um realinhamento de forças, uma ação orquestrada e com respaldo profundo de grandes potências. Isto significa que a reação de Israel, a única democracia da região representa muito mais do que a simples defesa de seu território. O país, na verdade, está lutando por todo Ocidente.

Efeito Colateral

Ao mover as peças da Geopolítica internacional com a invasão da Ucrânia, a Rússia deixa marcas no Cáucaso, com a tomada de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão

As peças da geopolítica interacional continuam se movendo de forma sensível. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o jogo passou a ter uma nova correlação de forças, ao mesmo tempo que o prolongamento da guerra passa a gerar reflexos em outras nações.

O conflito em Nagorno-Karabakh pode ser considerado um destes efeitos colaterais. Ao mesmo tempo que a Rússia dificilmente conseguiria lidar com um novo conflito em sua zona de influência, optou por um movimento ousado, ao deixar de apoiar a Armênia, aliada tradicional do Kremlin, para sustentar uma solução que favorece diretamente o principal adversário dos armênios cristão-ortodoxos na região, ou seja, a nação etnicamente turquica e muçulmana do Azerbaijão.

O conflito entre as duas nações do Cáucaso é longo e cheia de detalhes. Tem suas origens no século VII, quando bizantinos cristãos lutaram pelo controle de Nagorno-Karabakh contra árabes muçulmanos. Mais tarde, sob o domínio otomano, a população armênia buscou proteção na Rússia, que voltou a defender os cristãos-armênios dos persas no século XVIII, o que explica a proximidade política entre as duas nações.

Porém, a invasão da Ucrânia mexeu nestas peças. Nikol Pashinyan, premiê da Armênia, já havia sido eleito com uma agenda de aproximação do Ocidente em 2018 e a política de desengajamento da Rússia e sua aproximação com o Azerbaijão passaram a gerar cada vez mais preocupação em Ierevan, capital dos armênios. As forças militares armênias passaram a cooperar com os americanos, ao mesmo tempo que se recusaram a participar dos exercícios conjuntos com a Rússia.

A tensão com o Kremlin cresceu quando o país enviou ajuda humanitária à Ucrânia e a esposa do premiê Pashinyan, Anna Hakobyan, visitou Kiev. Pashinyan foi além e descreveu a dependência do seu país da Rússia como um erro estratégico para a própria segurança de seu país diante da invasão da Ucrânia. Isto fez com que o apoio russo se voltasse inteiramente para o Azerbaijão.

Ao mesmo tempo, Baku se tornou um aliado cobiçado na comunidade internacional, seja para os russos, como para a União Europeia. O Azerbaijão se tornou, em termos de geopolítica, estratégico para Moscou, por localizar-se entre Irã e Rússia, ao mesmo tempo que se transformou em um importante exportador de gás para a União Europeia diante das sanções impostas contra o Kremlin e as empresas russas.

Portanto, não havia timing mais propício para o Azerbaijão ocupar Nagorno-Karabakh, que se tornou uma espécie de protetorado armênio histórico dentro de suas fronteiras. O primeiro movimento foi com apoio da Turquia em 2020 e agora, depois de submeter a região a um bloqueio de dez meses, realizou a ocupação, com a abertura de um corredor humanitário para a saída dos armênios, o que soa mais como um expurgo. Praticamente 70% da população já deixou a região.

O movimento geopolítico iniciado com a invasão da Ucrânia moveu placas tectônicas na região. A tomada de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão foi o primeiro efeito colateral. Outros podem surgir a qualquer momento.

Inteligência Comercial

A China se tornou ao longo dos anos o principal destino das exportações brasileiras e um parceiro econômico importante do Brasil, assim como de diversos outros países pelo mundo. Isso ocorreu em especial nos países menos industrializados, dependentes da exportação de commodities, consumidos em grande quantidade por Pequim. Porém, para além dos ganhos comerciais com o oriente, o Brasil deve se perguntar até que ponto é prudente ser dependente em demasia da sede chinesa. A prudência nos orienta sempre a diversificar e, por conseguinte, atender diversos mercados, protegendo nossos interesses e nossos produtores.   

Nesta esteira, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem defendido uma posição inteligente no que diz respeito ao assunto. Recentemente disse que, sem prejuízo da relação comercial criada com a China, o Brasil não pode prescindir de uma relação bilateral com os Estados Unidos. Para além disso, completo que também devemos mirar na União Europeia, mantendo canais sadios de diálogo comercial com os três atores. 

Estamos diante de um acordo histórico com a União Europeia, algo que será muito benéfico para a economia brasileira, aumentando nosso fluxo comercial com o velho continente. Ao mesmo tempo, isso terá impacto nas cadeias globais de valor, o que fará o Brasil crescer como player relevante nas negociações com outros blocos e nações, afinal, com alcance maior de mercado, iremos adquirir maior influência e importância.

Em Washington, o caminho também está aberto. Depois de crescerem 45% em 2021, as exportações brasileiras para os Estados Unidos cresceram 20% em 2022, passando de US$ 31 bilhões para US$ 37,4 bilhões, batendo o recorde de mais de US$ 70 bilhões em trocas comerciais entre os dois países.

Considerando que somos um país com forte déficit de poupança interna, que precisa de capital externo para realizar investimentos, vale lembrar que os americanos aportaram US$ 200,1 bilhões no Brasil em 2021, ou 22,2% do valor total investido no país. A China, apesar de ser um parceiro comercial relevante, investiu no mesmo período apenas US$ 49,7 bilhões, uma fatia de modestos 5,5%. A Europa foi além e investiu US$ 566,9 bilhões no Brasil.

As vantagens comparativas em lidar com a União Europeia e Estados Unidos são claras, afinal, estamos lidando com países democráticos, com instituições estáveis, judiciário independente e regras definidas. Para os fluxos de comércio constantes e longos, pilares como estes são essenciais, pois fornecem segurança e manutenção das regras, elementos centrais para fluxos comerciais saudáveis e sólidos.

Sem prejuízo das relações construídas com a China, o Brasil deve mirar na diversificação de parceiros comerciais e apostar em blocos e nações com quem dividimos identidade e valores, fatores que facilitam muito as negociações e os fluxos comerciais nas cadeias de valor. O caminho aberto de uma relação bilateral saudável com os Estados Unidos e a finalização dos detalhes do acordo com a União Europeia podem trazer este equilíbrio necessário, tanto na frente comercial, como no ambiente político internacional, posicionando o Brasil como uma importante peça no xadrez global.

Silêncio Constrangedor

Dentre todos os temas discutidos na Assembleia Geral da Nações Unidas, as violações aos Direitos Humanos ocupam uma posição de destaque. Um assunto que não deveria possuir coloração política vem tomando contornos preocupantes, uma vez que estas violações perpetradas pelo Estado contra os indivíduos têm sido ignoradas quando cometidas por regimes amigos e parceiros de mesma coloração política.

Estamos falando de um direito universal que deve ser respeitado e reconhecido por todos os membros nas Nações Unidas, porém, com o enfraquecimento da democracia em diversos locais do globo, vem sendo desrespeitada continuamente. Não são apenas países africanos, antigas democracias, agora ditaduras, que tem violado este princípio, mas nações em todas as partes do globo.

O Brasil, como nação democrática, deveria ser um dos principais países a denunciar estas violações e trabalhar ativamente pela manutenção da ordem internacional. Nossos governos, porém, mostram hábito inverso e perigoso, aquele de adular parceiros que violam direitos fundamentais e silenciar diante de seus crimes contra os cidadãos. A conveniência do momento tem falado mais alto que a integridade e responsabilidade para o nosso país, seja qual for o viés do governo do momento.

Silenciamos desde o governo passado diante dos crimes cometidos por Vladimir Putin, ações que renderam, inclusive, uma ordem de prisão internacional emitida pelo Tribunal Penal Internacional – situação que infelizmente permanece a mesma neste governo. O Brasil reatou relações com a Venezuela, sob o comando ditatorial de Maduro, sugerindo que o drama, as mortes, sequestros, fugas e torturas ocorridas sob seu regime eram apenas uma narrativa da oposição.

Os exemplos multiplicam-se com a brutalidade do regime de Ortega na Nicarágua. Os banimentos, prisões, fuzilamentos tornaram-se marcas registradas do viés autoritário do governo. O silêncio do governo brasileiro sobre estes abusos é constrangedor na comunidade internacional. Relatório das Nações Unidas apontam execuções extrajudiciais, detenções arbitrarias, tortura, privação da nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país”, em atos que seriam “crimes de lesa Humanidade”, como assassinato, prisão, tortura, violência sexual, deportação forçada e perseguição por motivos políticos. Enquanto isso, o Brasil, diferente de outros países da América Latina, preferiu não oferecer asilo aos novos apátridas da Nicarágua.

Isso sem falar no regime de exceção em curso em Cuba, considerada a mais letal das Américas. Fuzilamentos, assassinatos extrajudiciais, presos políticos e desaparecidos. O Brasil lá esteve antes da abertura da Assembleia Geral da Nações Unidas para reunião do chamado G77. No discurso, o Presidente brasileiro criticou mais uma vez o embargo a Cuba, mas se esqueceu de lembrar das dezenas de milhares que pereceram na luta contra um regime que não tolera crítica ou oposição.

Antes de nos atermos a pautas lúdicas, como a reformar o Conselho de Segurança, nosso país deveria se ater a fazer valer princípios caros para toda humanidade, aqueles que qualquer democracia tem a obrigação de defender. Proteger o indivíduo da força bruta dos governos ainda é o maior desafio de nossa geração.

Compromisso Internacional

Em tempos sombrios, quando vivenciamos o eclipse da democracia em diversas partes do mundo, a existência de uma jurisdição internacional capaz de julgar e prender líderes que insistem em cometer crimes usando o poder do cargo é conquista que jamais pode ser minimizada. Não foram poucos os ditadores que assombraram povos inteiros, levando terror a diversos países. A esperança de que sejam responsabilizados é talvez o maior freio ao surgimento de novas safras de autocratas pelo globo.

O Tribunal Penal Internacional criado pelo Estatuto de Roma tem este objetivo. Depois de serem criados tribunais específicos para julgar criminosos, o novo desenho tinha como objetivo trazer uma jurisdição plena e constante onde aqueles que infringissem seus dispositivos pudessem ser julgados. Estamos falando dos crimes de guerra, contra a humanidade, de agressão e genocídio.

O Brasil aderiu ao Estatuto de Roma e passou a integrar o tribunal, passando também a estar sob sua jurisdição. Depois da assinatura pelo governo brasileiro durante o governo Fernando Henrique, o Congresso Nacional ratificou nossa adesão. Atualmente, 123 dos 193 Estados-Membros da ONU ratificaram o Estatuto. Trinta e dois Estados, incluindo a Rússia e os Estados Unidos, assinaram, porém não o ratificaram. China e Índia sequer assinaram.

Nossa Constituição determina que “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Isso significa que a adesão ao TPI tem força constitucional, reforçado pelo artigo 5º, tornando-o cláusula pétrea: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

Vladimir Putin possui um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional. O tribunal afirma que Putin é responsável por crimes de guerra, incluindo a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. O órgão diz que os crimes foram cometidos na Ucrânia pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022, quando começou o conflito. Putin pode ser preso em qualquer país e entregue ao TPI, especialmente aquelas 123 nações que já ratificaram o instrumento internacional e possuem esta obrigação.

O Brasil, como signatário do Estatuto de Roma, tem a obrigação legal de prender Putin se o líder russo desembarcar no país. Se o governo brasileiro se negar a fazê-lo, deverá se explicar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas na esfera internacional. No âmbito doméstico existe a possibilidade de instauração de processo de impeachment por crime de responsabilidade por infringir cláusula pétrea constitucional.

A jurisdição internacional do tribunal penal é um passo importante no processo de evitar graves violações aos direitos humanos, especialmente em países que sofrem abusos de ditadores e autocratas. O Brasil, como nação democrática e plural, tem a obrigação de cumprir com seus compromissos internacionais, especialmente aqueles já incorporados pela nossa Constituição.

Jogo Geopolítico

O Brasil está diante de uma nova reunião do G20. O aviso de Pequim foi claro: Xi Jinping não pretende comparecer na Índia para o encontro, dizendo que o foro mais adequado para este tipo de discussão é o novo BRICS, que sob sua liderança, ganhou novos sócios, na imensa maioria regimes autoritários e autocráticos. A manobra chinesa é um claro recado para os líderes dos países ocidentais.

Outro membro que não estará presente é Vladimir Putin, que vive restrições severas de trânsito internacional desde que resolveu invadir a Ucrânia. Ele possui uma ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional e evita o risco de ser detido e enviado para uma cela em Haia, na Holanda, onde seria julgado pelo crime de deportar ilegalmente crianças de áreas ocupadas ilegalmente no país invadido.

O G20 precisa se debruçar sobre uma série de assuntos, porém certamente os líderes presentes no encontro irão debater em reuniões reservadas a sequência de golpes de Estado que vem ocorrendo na África, desde sua margem atlântica até o Mar Vermelho. Os golpes, iniciados em 2021, já atingiram Guiné, Mali, Burkina Fasso, Níger, Chade, Sudão e mais recentemente o Gabão. Todos, com exceção do Sudão, são ex-colônias da França e assunto importante na agenda do presidente Emmanuel Macron.

Os sucessivos golpes na África preocupam porque são enxergadas claras digitais russas em cada uma delas, seja com a presença de mercenários ligados ao Kremlin e também com a massiva propaganda que vem sido plantada artificialmente na última década em cada uma destas nações. Os golpes em sequência não são surpresas, uma vez que se revelam o resultado de um trabalho de longo prazo articulado por Moscou.

A África também está no foco dos chineses. Pequim é o maior parceiro bilateral do continente, com negócios de US$ 254 bilhões em 2021. A estratégia de infiltração ocorre por meio de investimentos externos (34 bilhões na última década), ajuda financeira, projetos de infraestrutura e perdão de dívidas. Os focos estão no Congo, Zâmbia, Quênia, Nigéria, África do Sul e Etiópia, estes dois últimos agora sócios no BRICS. Os investimentos fazem parte da chamada Nova Rota da Seda.

Os líderes do G7 –grupo que reúne parte das maiores economias do mundo composto por Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão, Reino Unido, EUA e União Europeia– anunciaram que pretende levantar US$ 600 bilhões em fundos públicos e privados nos próximos cinco anos para financiar projetos de infraestrutura em países de renda baixa e média. A ideia é se é se contrapor à Nova Rota da Seda, a iniciativa de dominação chinesa na África.

Certamente os líderes reunidos em Pragati Maidan, Nova Delhi, neste final de semana, discutirão, em reservado, os recentes movimentos de Pequim e Moscou, especialmente os indianos, anfitriões, ultrajados pelo novo mapa chinês que considera porções do território da Índia como parte da China. O jogo de poder geopolítico terá um novo capítulo nestes próximos dias e os aqueles ausentes, sempre por motivos nada nobres, tem tudo para se tornarem protagonistas (ou antagonistas) do evento.

Perigo Autocrático

Os níveis de democracia vivem um período de especial erosão ao redor do mundo. Pelo menos 58 países vivem em regime autoritário, enquanto somente 24 são considerados democracia plenas. Entre ambos, uma vasta lista de países que variam de democracias imperfeitas a regimes considerados híbridos, nações que possuem problemas que as impede de serem democracias justas e livres.

O Brasil, considerada uma democracia imperfeita, vem perdendo posições ao longo dos últimos anos neste ranking, assim como outros países que enfrentam falhas significativas em aspectos que incluem cultura política subdesenvolvida, baixos níveis de participação política e problemas de governança. Isto sem contar violações contra a liberdade de imprensa e corrupção, gerando instabilidade jurídica e política.

Com vistas a sanar estes problemas, nosso país deveria se aproximar de democracias plenas, onde figuram a maioria dos países europeus e nossos vizinhos Uruguai e Chile. Infelizmente, tudo leva a crer que caminhamos em sentido oposto, nos alinhando e consolidando parcerias com países autocráticos e autoritários como Venezuela e Nicarágua em nossa região, além de Rússia e China, nações que sistematicamente desrespeitam os valores consagrados em nossas leis.

A nova leva de sócios do BRICS é sintomática neste sentido. O Brasil agora está ao lado de países que sistematicamente desrespeitam os Direitos Humanos, violam de forma clara as leis internacionais, agindo contra a autodeterminação e soberania de outras nações. Etiópia, Irã, Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos são classificados como regimes autoritários, sem contar China e Rússia, membros fundadores. Argentina, Brasil, África do Sul e Índia são consideradas democracias imperfeitas. O clube, chefiado pela China, não possui sequer um membro considerado uma democracia plena.

Precisamos estar atentos aos rumos que nossas relações internacionais vêm tomando. Sob o argumento de que o Brasil teria o apoio de nações como China e Rússia em seu pleito relativo a uma remota possibilidade de reforma do Conselho do Segurança, nosso país tem relativizado a integridade do conceito de democracia, deixando de atuar como uma nação basilar na defesa de seus princípios no sistema internacional.

Vale lembrar que discutir a reforma do Conselho de Segurança se tornou uma pauta inócua, de uma prática diplomática ultrapassada que jamais encontrará respaldo entre aqueles com poder real de mudança. Uma diplomacia moderna enxerga um caminho baseado em princípios e valores, muito além de simples interesses: uma política de alto nível que encaminharia o Brasil a ocupar um lugar entre as democracias plenas.

Aos nos nivelarmos aos autocratas e autoritários do mundo, mergulhamos em terreno pantanoso, desconhecido de um Brasil que resgatou sua democracia poucas décadas atrás e que vem trabalhando para evitar arroubos que possam ferir nossas instituições. Na medida que vemos a democracia ser atacada, devemos nos posicionar como nação no sentido de defender seus pilares, nos colocando ao lado de países que defendem o mesmo arcabouço de valores. Ao final é nossa integridade como povo que está em jogo. Somos uma nação que jamais deve aceitar que sejam violados os direitos que um dia nos foram negados. Nos alinhar com autocracias é esquecer de nosso passado e rejeitar as conquistas do presente.