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Censura à direita: a batalha política pela linguagem

Tão logo pensei na expressão “censura à direita” para servir de título a este artigo, dei-me conta da sua ambiguidade.

O duplo sentido decorre da estrutura sintática da frase. De fato, a preposição “a” na locução “à direita” pode indicar tanto a direita como sujeito agente da censura (apontando a censura promovida pela direita) quanto a direita como sujeito paciente da censura (apontando a censura promovida pela esquerda).

Sabendo que o leitor tenderá a interpretar a frase com base no seu conhecimento prévio, valores e expectativas, achei por bem manter a anfibologia do título como uma espécie de armadilha ou pegadinha com a qual espero ter fisgado leitores de ambos os espectros políticos.

De todo modo, acrescentei um subtítulo que dá ao leitor ansioso uma pista acerca do rumo que esse artigo tende a tomar: “a batalha política pela linguagem.”

Em artigo publicado no mês passado, intitulado “Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke” escrevi que a eleição de Donald Trump foi uma reação ao avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista, mas escrevi também que deveríamos estar atentos, pois o absurdo da cultura woke não deveria ser enfrentado por meios igualmente absurdos e autoritários.

Infelizmente, porém, as coisas estão tomando esse rumo e à “revolução do senso comum” tem faltado o mais elementar bom senso.

O governo Trump está eliminando, com sucesso, programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O problema é que, para conseguir isso, ele está também cerceando, em certos aspectos, a liberdade de expressão e apagando um pouco da história.

O jornal New York Times compilou uma lista extensa de termos que estão sendo evitados ou proibidos pela gestão do atual presidente americano.

A lista inclui termos já esperados como “LGBTQ”, “não binário”, “identidade de gênero”, “multicultural” “sexualidade”, mas também “defensores”, “ativismo”, “opressão”, “nativo americano”“mulheres”, “injustiça”, “imigrantes”, “vítimas”, “deficiência”, “prostitutas”, “socioeconômico” e por aí vai.

As centenas de palavras sob bandeira vermelha estão sendo apagadas de sites públicos e currículos escolares.

Em alguns casos, gerentes de agências federais foram apenas orientados a ter cautela no uso dos termos, em outros casos, porém, as palavras foram proibidas.

A presença das “palavras erradas” também pode sinalizar automaticamente a necessidade de revisão de propostas de subsídios e contratos.

Essa política não se limita à linguagem em documentos textuais. De acordo com a matéria veiculada no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ), o Pentágono está revisando seu acervo fotográfico para remover imagens que não se alinham com essa nova diretriz, tendo criado uma base de dados com milhares de fotos destinadas à remoção.

Entre as imagens em risco de remoção está a da aeronave “Enola Gay”, que lançou a primeira bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, embora o nome da aeronave remeta não à condição homossexual, mas ao nome da mãe do piloto.

Fotos dos “Tuskegee Airmen”, primeiros pilotos afro-americanos da Segunda Guerra, reconhecidos como heróis por sua contribuição para o fim da segregação militar nos Estados Unidos, além de fotos das primeiras mulheres em papéis ativos nas Forças Armadas também correm risco de ser removidas.

Apesar de o presidente Trump e seu fiel conselheiro, Elon Musk, se apresentarem como arautos da liberdade de expressão e serem assim aclamados pela direita brasileira, a identificação e supressão de vocabulário específico pode implicar uma séria e perigosa restrição do debate em relação a tópicos considerados indesejados pelo governo.

A situação é um tanto complexa quando consideramos que o extenso e extravagante vocabulário woke disseminado por décadas representa, de fato, a tentativa de controle da narrativa por parte da esquerda progressista. Mas a forma como o combate ao wokismo está evoluindo na guerra cultural dos EUA aponta para um estreitamento do debate genuíno.

A linguagem, que deveria ser instrumento de reflexão e libertação, é manipulada ora por um lado, ora pelo outro, sob diferentes pretextos ideológicos. Seja na gestão Biden, seja na gestão Trump, o que se percebe é a tentativa reiterada de controle linguístico.

O que podemos tirar de lição é que tanto a esquerda quanto a direita batalham para encaminhar a sociedade a um mundo autoritário – quiçá totalitário – no qual não há verdade e a linguagem é apenas o reflexo do poder.

Lula foi machista com Gleisi ou não foi porque é de esquerda?

De todas as declarações machistas que Lula já fez e continua fazendo com uma frequência absurda, essa sobre a beleza de Gleisi Hoffmann é, de longe, a menos ofensiva. Mas, curiosamente, foi a que mais causou frisson entre aqueles que fingiram não ver o machismo do presidente até agora.

A indignação tem duas razões. A primeira é que os ratos estão desembarcando. A mesma turma da “carta pela democracia” e do “governo do amor”, que endossou com entusiasmo a farsa da “primeira-dama feminista” — algo que nunca existiu e nunca existirá —, agora percebeu que o governo naufragou e precisa de uma desculpa para abandonar o barco. O preço dos alimentos disparou, a popularidade de Lula despencou e a estratégia de jogar a culpa nos outros já não cola mais. O machismo de Lula, convenientemente ignorado até agora, virou o pretexto perfeito para essa turma fingir que nunca apoiou nada disso.

Até ontem, essa gente passou pano para Lula dizendo que era “amante da democracia” porque “homem gosta mais da amante do que da mulher”. Fingiu que não viu a misoginia explícita no episódio das “feministas do grelo duro”. Fechou os olhos para a quantidade de mulheres demitidas no governo e substituídas por homens. Mas agora, de repente, um elogio à aparência de Gleisi virou motivo de escândalo. Por quê? Porque a conveniência política mandou.

E aí vem o outro motivo do frisson: o recalque. Muita gente se doeu porque Lula chamou Gleisi de bonita. Mas ele mentiu? Gleisi Hoffmann, objetivamente, é bonita. Aliás, mais bonita hoje do que quando era jovem. Isso, convenhamos, é uma sorte para poucos.

Agora aparece um monte de gente dizendo que ela é feia. Alguns homens parecem muito empenhados em afirmar isso. Se você é um deles, sinto dizer: isso diz mais sobre você do que sobre Gleisi. É como profetizou Ronnie Von, significa. Esforço demais para não gostar de mulher, amigos.

Homem de verdade não liga para vertente política ao olhar beleza de mulher. Aliás, conheço vários que fingem ser esquerdomachos para pegar mulher. Tenho até um amigo que pode ser definido como esquerdomacho de direita, um eterno apaixonado pelo gênero feminino. Obviamente não darei nomes.

O caso é que muita feia ficou ofendida e não foi pela declaração machista. Foi porque jamais serão reduzidas à própria beleza simplesmente porque essa possibilidade não existe. Agora ficam gritando que foi machismo, mas é puro fingimento. Até agora não diziam nada sobre declarações machistas muito mais ofensivas. Foi Lula botar a beleza em pauta que ficaram ofendidas.

Cá entre nós, a política brasileira não tem gente feia, tem gente que não foi passada a limpo. Olhar um palanque político brasileiro é meio como olhar um trem fantasma. Dizer que a beleza de Gleisi é uma vantagem nesse cenário não passa de pura constatação do óbvio.

Foi machista? Foi. E não foi uma escorregada. Mas estou rindo muito ao ver a súbita indignação de quem passou pano para machismo durante anos. Confesso que chego a gargalhar quando o caso em questão é de alguém que jamais será subestimada intelectualmente por ser bonita.

O novo antissemitismo, resenha do texto de Noah Feldman

A revista americana Time publicou, em 27 de fevereiro, um importante ensaio intitulado O novo antissemitismo, assinada por Noah Feldman, professor da Harvard Law School e o autor do livro To Be a Jew Today: A New Guide to God, Israel, and the Jewish People (Ser Judeu Hoje: Um Novo Guia para Deus, Israel e o Povo Judeu).

O alarmante aumento de casos de antissemitismo em todo o mundo tem dado ensejo a inflamados debates e renovadas reflexões. Um dos pontos para o qual as análises atuais têm chamado mais atenção é a emergência de novas formas de antissemitismo. Já abordamos essa questão em artigos anteriores e, mais detalhadamente, no artigo intitulado “islamo-esquerdismo: a nova face do ódio ao judeu.”

No referido artigo, citamos a constatação do filósofo francês Luc Ferry de que o antissemitismo católico, baseado na antiga acusação de deicídio e o antissemitismo nazista, baseado na teoria dos judeus como raça inferior estavam em vias de extinção, mas que, pelo contrário, o antissemitismo islâmico da Irmandade Muçulmana que, na década de 1930, reforçou o antissemitismo nazista, encontra hoje ressonância nas ideologias contemporâneas de esquerda, especialmente no chamado wokismo, que reduz tudo ao simplismo da lógica opressor-oprimido e em cuja perspectiva ideológica “o sionismo é o mais recente avatar do colonialismo ocidental e racista apoiado pelo neoliberalismo americano.”

A análise de Noah Feldman, publicada na Times, corrobora essa abordagem, reconhecendo também que o antissemitismo hoje não é impulsionado primariamente nem pela religião cristã nem pela teoria nazista da raça superior. O antissemitismo, pra ele, não é “um conjunto imutável de ideias derivadas de crenças antigas”, mas “uma força criativa, mutável e multiforme” que “reflete as preocupações ideológicas do momento” e que “conseguiu reinventar-se múltiplas vezes ao longo da história, mantendo sempre alguns dos antigos tropos, ao mesmo tempo que criava novos, adaptados às circunstâncias atuais”.

O ponto fundamental do discurso antissemita é que, nele, “os judeus são sempre levados a exemplificar o que um determinado grupo de pessoas considera ser a pior característica da ordem social em que vivem”. Assim sendo, “o seu conteúdo pode ser alterado e mudado à medida que as preocupações e os julgamentos morais de uma sociedade mudam.

O antissemitismo do século XIX já marca uma reinvenção do antissemitismo clássico. O aspecto do preconceito religioso vai cedendo lugar a teorias da conspiração como a de que os judeus controlavam secretamente o mundo. 

No século XX, sob ângulos diferentes, tanto o nazismo como o marxismo identificaram os judeus como um inimigo que mereciam ser expurgados.

Hoje, constata Feldman, “a pseudociência racial é uma vergonha e a luta entre o capitalismo e o comunismo tornou-se ultrapassada. O populismo antielitista ainda pode basear-se em velhas mentiras sobre o poder judaico, e essas ainda repercutem em certos públicos, especialmente na extrema direita. Mas é mais provável que a corrente mais perniciosamente criativa no pensamento antissemita contemporâneo venha da esquerda”.

Assim como Luc Ferry, no artigo intitulado “Judeofobia: compreendendo a nova situação”, tenta nos alertar da urgência de se reconhecer as diferentes faces do ódio ao judeu, sob risco de não nos darmos conta do que realmente nos ameaça hoje, também o artigo de Noah Feldman faz soar o alarme de que “o antissemitismo está se transformando novamente, neste momento, diante dos nossos olhos”.

A nova situação, alertada por Ferry, é que, aos olhos do wokismo e do islamo-esquerdismo, o muçulmano substituiu o proletário no papel dos oprimidos e a retórica do “Ocidente colonizador” como o lado opressor uniu ao wokismo e ao islamismo o tal “Sul global”, fazendo com que aproximadamente dois terços do planeta esteja sendo movida pelo ódio galvanizado por essa narrativa ideológica.

Noah Feldman, por sua vez, acrescenta a esse diagnóstico a análise de que “o cerne do novo antissemitismo reside na ideia de que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores: imperialistas, colonialistas e até supremacistas brancos. Esta visão preserva vestígios do tropo de que os judeus exercem um vasto poder. Atualiza criativamente essa narrativa às circunstâncias contemporâneas e às preocupações culturais atuais com a natureza do poder e da injustiça”.

Embora as preocupações com o abuso do poder e com as injustiças sejam perfeitamente legítimas, explica Feldman, é importante distinguir as críticas idôneas das formas antissemitas como elas podem ser utilizadas. Essa cautela é importante porque “Israel, o primeiro Estado judeu a existir em dois milênios, desempenha um papel central na narrativa do novo antissemitismo.”

Israel e o novo antissemitismo

Não é inerentemente antissemita criticar Israel. O seu poder, como qualquer poder nacional, pode estar sujeito a críticas legítimas e justas”, pondera Feldman. Porém, na crítica a Israel, categorias como o imperialismosupremacia branca colonialismo têm sido manipuladas sem nenhum rigor para fazer julgamentos morais e tentar deslegitimar a sua existência.

Segundo o professor, essas categorias não se enquadram muito bem na especificidade de Israel.

O conceito de imperialismo, por exemplo, foi desenvolvido para descrever potências europeias que conquistaram, controlaram e exploraram vastos territórios no Sul e no Leste globais, enquanto “Israel é uma potência regional do Oriente Médio com uma presença minúscula, e não um império global ou continental concebido para extrair recursos e mão-de-obra” e foi criado para abrigar judeus deslocados depois de 6 milhões deles terem sido mortos no Holocausto.

O paradigma da supremacia branca tampouco corresponde facilmente aos judeus. Conforme explica o professor da Harvard Law School, aproximadamente metade dos judeus de Israel “não são etnicamente europeus em nenhum sentido, muito menos racialmente brancos, um número significativo de judeus israelenses é de origem etíope e a pequena comunidade de israelenses hebreus negros em Israel é etnicamente afro-americana”.

Sobre a consideração dos primeiros colonos sionistas como colonialistas, pode-se apontar que boa parte deles eram pessoas apátridas e oprimidas que procuravam refúgio na antiga terra prometida onde alguns judeus sempre viveram.

A conclusão de Noah Feldman é que, “a narrativa de Israel como um opressor colonizador igual ou pior do que os EUA, o Canadá e a Austrália é fundamentalmente enganadora. Aqueles que a promovem correm o risco de perpetuar o antissemitismo ao condenarem o Estado Judeu […] a única pátria de um povo historicamente oprimido que não tem outro lugar a que chamar de seu”.

Negação do holocausto à direita e à esquerda

O uso arbitrário das referidas categorias faz parte, portanto, da estratégica retórica do novo antissemitismo, que não para, porém, por aí: “para enfatizar a narrativa dos judeus como opressores, o novo antissemitismo deve também, de alguma forma, contornar não apenas dois milênios de opressão judaica, mas também o Holocausto, o maior assassinato organizado e institucionalizado de qualquer grupo étnico na história da humanidade.

Nesse aspecto os dois extremos ideológicos se tocam: “à direita, os antissemitas ou negam que o Holocausto tenha acontecido ou afirmam que o seu alcance foi exagerado. À esquerda, uma linha é que os judeus estão usando o Holocausto como arma para legitimar a opressão dos palestinos”.

Nesse ponto, gostaria de pedir ao leitor que refletisse sobre a argumentação que se segue tendo em mente as recentes palavras do presidente Luís Inácio Lula da Silva quando comparou a ação de Israel com o holocausto e acusou Israel de cometer genocídio, promovendo assim uma crise diplomática de grande dimensão.

Levando em conta a força e a clareza do restante do ensaio que me propus a comentar, despeço-me aqui deixando o próprio autor finalizar. 

Com a palavra, Noah Feldman

Transcrevo, a seguir, as longas, mas importantes citações do texto em pauta O novo antissemitismo, de Noah Feldman:

“Durante a Guerra de Gaza, alguns argumentaram que Israel, tendo sofrido o trauma do Holocausto, está agora perpetrando um genocídio contra o povo palestino. Tal como outras críticas a Israel, a acusação de genocídio não é inerentemente antissemita. No entanto, a acusação de genocídio é especialmente propensa a desviar-se para o antissemitismo porque o Holocausto é o exemplo arquetípico do crime de genocídio.

O genocídio foi reconhecido como crime pela comunidade internacional após o Holocausto. Acusar Israel de genocídio pode funcionar, intencionalmente ou não, como uma forma de apagar a memória do Holocausto e de transformar os judeus de vítimas em opressores. […]

Os esforços de Israel para se defender contra o Hamas, mesmo que envolvam a morte de um número desproporcional de civis, não transformam Israel num ator genocida comparável aos nazis ou ao genocídio em Ruanda. A acusação de genocídio depende da intenção. E Israel, como Estado, não está travando a Guerra de Gaza com a intenção de destruir o povo palestino.

Os objetivos de guerra declarados de Israel são responsabilizar o Hamas pelo ataque de 7 de Outubro a Israel e recuperar os seus cidadãos que ainda estão mantidos em cativeiro. Esses objetivos são legais em si mesmos.

Os meios que Israel utilizou estão sujeitos a críticas legítimas por terem matado demasiados civis como danos colaterais. Mas a campanha militar de Israel foi conduzida de acordo com a interpretação de Israel das leis internacionais da guerra. Não existe uma resposta única e definitiva de direito internacional à questão de saber até que ponto os danos colaterais tornam um ataque desproporcional ao seu objetivo militar concreto. A abordagem de Israel assemelha-se às campanhas travadas pelos EUA e pelos seus parceiros de coligação no Iraque, no Afeganistão, e pela coligação internacional na batalha contra o ISIS pelo controlo de Mossul. Mesmo que o número de mortes de civis provocadas pelo ar pareça ser mais elevado, é importante reconhecer que Israel também enfrenta quilômetros de túneis intencionalmente ligados a instalações civis pelo Hamas.

Para ser claro: por uma questão de valor humano, uma criança que morre às mãos de um assassino genocida não é diferente daquela que morre como dano colateral num ataque legal. A criança é igualmente inocente e a tristeza dos pais é igualmente profunda. No entanto, do ponto de vista do direito internacional, a diferença é decisiva. Durante o ataque do Hamas, os terroristas assassinaram intencionalmente crianças e violaram mulheres. A sua carta apela à destruição do Estado judeu. No entanto, a acusação de genocídio está senta feita contra Israel.

Estes fatos relevantes são importantes para colocar a acusação de genocídio no contexto de potencial antissemitismo. Nem a África do Sul nem outros estados apresentaram um caso de genocídio contra a China pela sua conduta no Tibete ou em Xinjiang, ou contra a Rússia pela sua invasão da Ucrânia. Há algo especificamente digno de nota em lançar a acusação contra o Estado Judeu – algo entrelaçado com a nova narrativa dos Judeus como opressores arquetípicos em vez de vítimas arquetípicas. Chame-o de prestidigitação do genocídio: se os Judeus forem retratados como genocidas – se Israel se tornar o próprio arquétipo de um Estado genocida – então os Judeus serão muito menos propensos a serem concebidos como um povo historicamente oprimido e empenhado em autodefesa.

A nova narrativa dos judeus como opressores está, no final, demasiado próxima da tradição antissemita de apontar os judeus como merecedores únicos de condenação e punição. Tal como aquelas formas anteriores de antissemitismo, o novo tipo não tem a ver, em última análise, com os judeus, mas com o impulso humano de apontar o dedo a alguém que pode ser obrigado a carregar o peso dos nossos males sociais.

A opressão é real. O poder pode ser exercido sem justiça. Israel não deveria estar imune a críticas quando age de forma errada. No entanto, a história horrível e a resiliência invicta do antissemitismo significam que os modos de ataque retórico a Israel e aos judeus devem ser sujeitos a um escrutínio cuidadoso”.

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança.