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Máquinas de fazer Vilão

O cenário é o pior possível, perda em massa de vida, sequestros, violações, bombardeios e muitas outras atrocidades acontecendo desde o ataque, sem precedentes na história de Israel, pelo grupo terrorista Hamas ilustram os ensinamentos de Sun Tzu de que a guerra é caminho para a sobrevivência ou ruína do Estado.

Na análise das relações internacionais vários são os caminhos metodológicos e teóricos possíveis, o que acarreta em uma multiplicidade de vozes o que é salutar para que possamos desvendar os fenômenos internacionais da maneira mais completa possível, contudo, é preciso procurar se dispir de ilusões o que acontece em Israel não é um romântico levante de um povo oprimido, nem tão pouco a resistência heróica de um povo cercado, mas a confluência de vários interesses antagônicos, que por muitas vezes usam a causa palestina como desculpa, ou como chamamento populista.

Pelo lado Israelense o mesmo se faz usando os assentamentos e proteção aos colonos na Cisjordânia com tons populistas para minar a democracia israelense em torno de projetos pessoais de poder e consequentemente enfraquecendo a defesa de Israel.

O objetivo do Hamas é bem claro o extermínio do Estado de Israel. E qualquer cálculo que imagine que o Hamas tenha se institucionalizado no jogo político atenua esse objetivo veio a terra nas primeiras horas do dia sete de outubro, quando seus agentes se aproveitaram da enfraquecida defesa de Israel nas regiões próximas a Faixa de Gaza para lançar um ataque surpresa com foguetes e uma incursão por terra, que no momento que escrevo esse texto as forças de segurança de Israel ainda tentam repelir.

O Hamas age com extrema violência e crueldade, por que afinal é essa a essência de um grupo terrorista usar o terror para influenciar decisões políticas de seus adversários. E não há dificuldades para o Hamas radicalizar e recrutar jovens palestinos para sua causa com uma taxa de desemprego entre os jovens na Faixa de Gaza de 64% e PIB per capita menor que da Cisjordânia. Sem agir na prevenção da radicalização o estado de conflito permanente não será superado.

Nos últimos anos a diplomacia israelense tem trabalhado na busca por normalização de suas relações diplomáticas com atores chaves no Oriente Médio, como a Arábia Saudita, ainda que os dois países ainda estivessem longe de um acordo de normalização. A esperada reação forte de Israel ao ataque do Hamas vai complicar muito essa aproximação, a causa palestina é popular entre diversas correntes de opinião do mundo árabe o que diminui a margem de ação mesmo de regimes autocráticos.

O apoio do Irã ao Hamas se explica por afinidades ideológicas, afinal o tipo de Estado que o Hamas imagina para a palestina é parecido com a teocracia iraniana, mas também baseada nos objetivos políticos do Irã em sua disputa com a Arábia Saudita, desse modo, enfraquecer ou impedir a aliança de dois adversários estratégicos, sem ter que usar suas próprias forças é interessante para os lideres do país persa. O Irã mostra que tem uma capacidade de influenciar a opinião pública da região e boas relações com atores não-estatais importantes e como já está sob embargo e sofre limitações internacionais então eventuais sanções tem seu custo já realizado, minimizando o efeito de dissuasão de tais medidas.

O governo de Benjamin Netanyahu terá muito a explicar para sua população sobre as falhas de inteligência que ou não perceberam a movimentação para o ataque do dia sete, ou os alertas de segurança foram ignorados pelos atores políticos. O governo de Israel está sob muita pressão para recuperar os reféns feitos pelo Hamas. O que pode obrigar as forças de Israel a operar um ataque por solo, numa região de grande adensamento populacional, uma das piores hipóteses de emprego para qualquer força militar que a guerra urbana, contra uma força assimétrica, que diminui muito a vantagem em meios militares e tecnologia das Forças de Defesa de Israel, como os militares israelenses devem bem lembrar de sua prolongada e dolorosa campanha no Líbano. Além disso, Israel não pode descuidar de suas outras fronteiras como a com o Líbano onde o Hezbollah possui uma capacidade militar de causar problemas para Israel com ataques de foguetes.

O somatório de interesses de diversos Estados, ideologias transnacionais, derramamento de sangue, medo vingança e frustração de todos os lados geram a complexidade em diversos níveis da chamada “questão do oriente médio”, mas analisar os atores nacionais, regionais, globais em ação não nos pode fazer nunca perder a dimensão humana do que está a acontecer. Milhares de pessoas vão sofrer muito, milhares de família irão lamentar a falta de seus entes queridos por décadas vindouras e a guerra é, sobretudo, destruição. E não podemos num mundo tão endurecido deixar faltar solidariedade para com os que sofrem e não apenas os que sofrem do lado que temos simpatias ideológicas, ou os que apostam no radicalismo, na simplicidade de um mundo sem tons cinza, destruirão o humanismo que levamos séculos para construir.

Algumas perguntas ainda estão em aberto qual o objetivo estratégico de Israel para a Faixa de Gaza, em outras palavras quem governará Gaza? Qual o impacto de longo prazo da pressão popular pela causa palestina terá nos governos da região quase todos enfrentando problemas internos? Quanto tempo o regime de Teerã pode alimentar um intervencionismo no mundo árabe enquanto parcelas importantes de sua população deseja cada vez em mais alto som reforma ou mudança completa do regime?

O que temos certeza é que a paz só virá por meios políticos e não por vitórias militares e que tudo que acontece no solo, todos os ataques terroristas, as injustiças, as vidas ceifadas, são como diria Mano Brown “máquinas de fazer vilão”.

Os Jogos das Potências

Busca-se aqui analisar a evolução recente do macro sistema internacional, adotando essencialmente a visão realista das Relações Internacionais. Tomou-se como referência o período que vai do final de 2021 até o primeiro trimestre de 2023, repleto de acontecimentos que indicam profundas transformações no cenário internacional. Destacam-se a crescente afirmação econômica, tecnológica e estratégica da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse período foi estudado buscando organizar os fatos de forma a torná-los mais inteligíveis e fazer que uma realidade cambiante nos pareça mais clara. O foco são as iniciativas, ações e reações, principalmente das grandes potências, que têm capacidade de projetar seu poder internacionalmente, contribuindo para modificar a configuração mundial de poder. As mudanças, que já vinham ocorrendo, foram aprofundadas na época em exame e tendem a ser duradouras, conformando um cenário internacional com duas superpotências em quadro de hostilidade, buscando formar e consolidar suas alianças. 

As potências médias e regionais, com capacidade de projeção de poder limitada no espaço de sua área de influência regional, já sofrem pressão para se alinharem aos estados líderes no cenário geopolítico em formação. A invasão da Ucrânia pela Rússia e o crescimento da China são aspectos decisivos na conformação de uma estrutura de poder de caráter essencialmente bipolar, com dois centros principais, duas superpotências, os Estados Unidos e a China, mitigada pela presença de grandes potências e potências médias ou regionais. As grandes potências são o Reino Unido, a França e a Rússia, todas integrantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, detentoras de arsenal nuclear e de poder de veto na ONU. Potências médias ou regionais são a Índia, a Indonésia, o Irã, o Egito e o Brasil, capazes de exercer seu poder regionalmente, no seu entorno. 

Dois países merecem atenção especial, a Alemanha e o Japão. Ambos foram derrotados na Segunda Guerra Mundial e tiveram fortes restrições em termos de suas forças armadas e seus armamentos, que passaram a ter caráter limitado, apenas defensivo. No entanto, as recentes tendências do teatro internacional, como o crescimento econômico, tecnológico e bélico da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, têm levado tanto a Alemanha quanto o Japão a se rearmarem. Contam com o apoio firme da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos. Tendo em vista a dimensão de suas economias e seu avanço tecnológico, esses dois países podem rapidamente passar a ter o status de grandes potências. Como pano de fundo desse rearmamento alemão e japonês, temos a estratégia da OTAN e dos americanos de contenção da Rússia na Europa, e da China na Ásia, onde teriam papel importante. No que diz respeito ao Japão, o país tem ainda a função de contrabalançar o poderio chinês no caso de uma tentativa de retomada de Taiwan, bem como a capacidade de se contrapor às ameaças da Coreia do Norte. 

A Índia, que ultrapassou a população chinesa e está em crescimento econômico e tecnológico acelerado, tem laços fortes com potências ocidentais como os Estados Unidos e o Reino Unido e é importante importadora de armas da Rússia. Embora tenha relações comerciais de vulto com a China, permanecem sem solução os conflitos de fronteira sino-indianos. A Índia tem tentado adotar uma posição de equilíbrio na reorganização de forças que se desenha no cenário internacional. Procura manter as relações comerciais com a China, continuar tendo a Rússia como fornecedor de petróleo e armas, ao mesmo tempo em que participa do QUAD, foro informal de coordenação de defesa de que fazem parte, além da Índia, o Japão, os Estados Unidos e a Austrália. Essa coordenação quadrilateral, que foi criada por iniciativa do Japão em 2007 para contrabalançar a crescente presença e influência chinesa, e foi revigorada em 2017 pelos americanos, realiza exercícios militares conjuntos regularmente.

A proximidade sino-russa foi intensa durante a Guerra Fria e agora tem ajudado a Rússia a aliviar os efeitos das sanções impostas pelas potências ocidentais por causa da invasão da Ucrânia. Essa aliança da China e da Rússia cristaliza um poderoso bloco em contraposição aos Estados Unidos e à Aliança Atlântica.

Outra vertente importante na definição de uma nova configuração internacional tem sido o deslocamento do eixo econômico para a Ásia, região com crescente protagonismo tecnológico, industrial  e comercial, em detrimento dos EUA e da Europa, que têm perdido paulatinamente sua antiga hegemonia. Esse deslocamento já influencia as cadeias mundiais de produção e de suprimento e a economia brasileira terá, necessariamente, de se adaptar à nova realidade. 

De outra parte, é interessante notar a utilização pioneira e intensa de novos meios de combate na guerra russo-ucraniana, com o uso intensivo de drones e da cibernética, ao lado de meios convencionais como os blindados. Esses novos meios de combate, testados nos campos de batalha da Ucrânia, devem alterar profundamente as futuras guerras, junto com o uso de inteligência artificial e a nanotecnologia. 

Do ponto de vista macro-estratégico, registre-se a revigoração da OTAN. A Aliança Atlântica, que se encontrava dividida e em estado próximo à letargia durante o anterior governo norte-americano, que a criticava constantemente, tornou-se mais coesa devido à ameaça russa e está tornando efetiva a antiga recomendação de que seus membros devem alocar 2% do PIB para defesa. Ademais, dois países europeus lindeiros com a Rússia, a Finlândia e a Suécia, solicitaram participar da OTAN, abrindo mão de posição de neutralidade longamente estabelecida. A Finlândia já está integrada na Aliança e a Suécia realiza os trâmites necessários. Embora aumentem a capacidade estratégico-militar da OTAN, esse alargamento de participantes na Aliança Atlântica contribui para a sensação de cerco da Rússia. É importante recordar que a possível entrada da Ucrânia na OTAN foi uma das causas alegadas pelo governo russo para a invasão.

Outra vertente que merece ser considerada é a crescente afirmação do  grupo BRICS no cenário internacional. Espaço informal de concertação política e econômica, o BRICS compõe-se do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, ou seja, integram-no dois membros permanentes e com poder de veto do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A China tem utilizado sua presença no BRICS para aumentar seus contatos e sua influência em relação a países de menor desenvolvimento e tem advogado o aumento de sua composição. Esse objetivo, que foi alcançado na Cúpula de 2023 com o processo de aceitação da Argentina, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, do Egito e do Irã, aumenta a dimensão geográfica do BRICS, o que deve levar o fórum, no entanto, a uma diluição e dispersão de seu peso diplomático. A grande beneficiada pelo alargamento do número de membros é sem dúvida a China, que aperfeiçoa sua busca de aproximação com países do terceiro mundo, ao passo que o Brasil perde protagonismo. 

Deve-se observar que, se realmente houver uma bipolaridade essencial e rígida, os países em desenvolvimento, principalmente as potências médias regionais, se confrontarão com escolhas estratégicas difíceis, em cenário de fundamental bipolaridade entre os principais centros de poder, como foram os EUA e a União Soviética no pós Segunda Guerra Mundial, e possivelmente no futuro previsível como deverão ser os Estados Unidos e a China. Nesse quadro, os núcleos de poder exercerão intensa pressão para obterem alinhamentos e  lealdades. O Brasil já tem sido pressionado, mas tem resistido pragmaticamente. Além de ter a China como seu principal parceiro comercial, há uma grande dependência do fornecimento de fertilizantes da Rússia. Ademais, temos uma vocação universalista em termos de política externa, com relações diplomáticas com praticamente todas as nações, além de ter relações comerciais amplas e diversificadas. No que diz respeito à campanha da diplomacia brasileira por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, e nossa participação no Conselho de Segurança, deve-se registrar que existe a possibilidade dessa reforma e da nossa acessão. No entanto, seria provavelmente uma participação sem poder de veto, pois não é crível que os atuais membros abram mão de sua prerrogativa de recusar resoluções que considerem prejudiciais a seus interesses estratégicos. Ademais, apesar de sua pujança agrícola e mineral, o Brasil não tem capacidade bélica que justifique sua presença em um órgão que se responsabiliza pela paz e segurança internacionais, segundo a Carta da ONU.