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Brasil: a ordem dos privilégios e o império do crime

O debate sobre a democracia é permanente, estando particularmente aceso no momento, quando são detectadas graves crises em alguns países e apontada a baixa qualidade crônica das democracias de outros. No Brasil, a qualidade democrática está péssima.

A igualdade é um princípio democrático, mas, enquanto os melhores regimes democráticos estruturam modelos que possibilitam um crescimento contínuo da igualdade ao mesmo tempo em que preservam a liberdade, de modo contrário, os regimes totalitários, a pretexto de construírem a igualdade absoluta, destroem a liberdade absolutamente.

O avanço contra a liberdade de expressão, venha de onde vier, nada mais é que a pavimentação para a construção de um regime totalitário. 

Deixaremos, porém, o complexo debate sobre os ataques à liberdade de expressão no Brasil para outra oportunidade e nos ateremos, por ora, na descrição da estranha democracia que os autoritários disfarçados de democratas se arrogam defender. 

Podendo ainda apenas formalmente ser considerada uma democracia, o Brasil constitui, na prática, um modelo disfuncional, uma espécie de “ordem dos privilégios”.

Dentro desta “ordem dos privilégios”, os três poderes da República Federativa do Brasil estão exemplarmente equilibrados.

É fato notório que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário arengam-se mutuamente, estranham-se, chamam nomes feios uns com os outros; mas tudo isso por coisas de somenos, sempre superadas em nome da causa maior dos privilégios.

Privilégios do Executivo

Dos vastos e muito conhecidos privilégios do Executivo, avanço apenas dois exemplos periféricos: o cartão corporativo e os jetons pagos a ministros de governo para atuarem em Conselhos de empresas estatais.

Pelo menos quatro ministros recebem jetons do Sistema S (como Sesc, Senac). Em 2024, Alexandre Padilha (Relações Institucionais) somou R$ 257 mil em jetons por apenas duas reuniões e Camilo Santana (Educação) R$ 129 mil por sete encontros. Márcio Macêdo (Secretaria-Geral da Presidência), por sua vez, somou jetons de R$ 129 mil por sete reuniões em 2024; já Luiz Marinho (Trabalho e Emprego), também conselheiro no Sesc, tem recebimento previsto, mas sem valores divulgados no Portal da Transparência.

Quanto ao cartão corporativo, sabe-se que, entre janeiro de 2023 e dezembro de 2024, só em gastos sigilosos, a Presidência da República gastou um pouco mais de R$ 38 milhões, informação amplamente divulgada pela imprensa. Porém, não se deve perder a paciência, pois daqui a 100 anos o sigilo desses gastos será quebrado.

É bem verdade que as referidas gastanças estão dentro da legalidade. Mas nem tudo que é legal é moral. Um governo que se diz tão preocupado com as desigualdades sociais, que se diz em favor dos pobres, deveria ser o primeiro a cortar na carne os privilégios.

Em vez disso, aos já aberrantes privilégios, acrescenta-se rotineiramente a ostentação, como no caso das viagens internacionais do Presidente Lula e da Primeira-Dama, Janja, já popularmente conhecida como “Esbanja”, devido às suas notórias extravagâncias em viagens internacionais.

Privilégios do Legislativo

Dos privilégios do Legislativo, basta citar as já sobejamente conhecidas emendas parlamentares que, secretas ou não, são bilionárias.

Em tese, tais emendas deveriam servir ao atendimento de populações que só os parlamentares conheceriam suficientemente bem para lhes saber as necessidades. Seria razoável se os números fossem razoáveis.

Porém, R$ 52 bilhões, que foi o orçamento de 2024 para as emendas parlamentares, não é razoável; é um sequestro de dinheiro público para fins eleitoreiros (em alguns casos já comprovados ou em investigação, descambando para a corrupção pura e simples).

Na melhor das hipóteses, trata-se de um privilégio que visa garantir ao privilegiado a perpetuação da sua condição de casta superior.

Privilégios do Judiciário

Na plêiade de privilégios do Judiciário resplandecem penduricalhos que se elevam em forma de super-salários estelares.

O teto constitucional de salários para 2025 –que serve de limite máximo para a remuneração de servidores públicos federais – foi fixado em R$ 46.366,19 mensais, mas muito se engana quem pensa que os juízes cumprirão esse teto. Deveriam ser os mais ciosos em cumpri-lo, mas o desprezam majestaticamente.

Em 2024, em média, cada juiz recebeu aproximadamente R$ 270 mil extras. Entre novembro de 2023 e outubro de 2024, 125 magistrados receberam rendimentos líquidos superiores a R$ 500 mil em um único mês. A maior parte desses pagamentos ocorreu no Tribunal de Justiça de Rondônia, onde 114 juízes receberam até R$ 1,2 milhão líquidos em fevereiro de 2024.

Será ocioso dizer que todas essas enormidades estão revestidas de engenhosas camadas de legalidade.

Os valores elevados são atribuídos ao pagamento retroativo do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), também conhecido como quinquênio, benefício extinto em 2006, mas restabelecido em 2022 para juízes federais.

Essa decisão gerou um efeito cascata, levando tribunais estaduais a reimplantá-lo, resultando no pagamento de valores retroativos desde 2006.

Não se vê, infelizmente, nenhuma efetiva organização da sociedade civil para se contrapor a esse estado de coisas. No Brasil, o potencial de uma valorosa reação política está adormecido.

A massa mobiliza-se muito mais para defender políticos do que para confrontar tais disfuncionalidades e prefere eleger demagogos em detrimento dos poucos que efetivamente se contrapõem a essa espúria ordem de privilégios.

O crime se organiza

Paralelamente a isso, assistimos ao crescimento assustador da violência. Vê-se e amplamente se comenta que, em algumas regiões do país, o chamado “crime organizado” atua já como governo paralelo, às vezes mais organizado que os próprios poderes legais.

No Brasil, o crime organizado está altamente estruturado e em expansão. Antes mais restrito a pequenos espaços densamente povoados nas favelas do Rio de Janeiro, agora avança por todo o país; e até pelo continente sul-americano.

Matérias jornalísticas dão conta de que o PCC já utiliza um “censo do crime” e coordena presença estadual e nacional de forma estratégica.

Com força até aqui incontrolável, o crime organizado já domina vastas áreas da Amazônia. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que 260 dos 772 municípios da Amazônia Legal tinham atuação de facções em 2024 — um aumento de 46% em relação a 2023.

As maiores organizações — PCC, Comando Vermelho (CV) e a Família do Norte (FDN) — disputam rotas de tráfico e controle territorial, muitas vezes em áreas estratégicas de mineração e fronteiras.

No Ceará, a facção Guardiões do Estado (GDE), responsável pelos grandes atentados de 2019, ampliou sua presença nos últimos anos.

Assim, enquanto os poderes legalmente constituídos ocupam-se de seus próprios interesses e de seus sempre crescentes privilégios, os poderes ilegais vão constituindo no Brasil o seu império do Crime.

Lula é Kamala. Bolsonaro é Trump. E daí?

Se há algo que parece passar despercebido no calor das discussões políticas no Brasil, é a irrelevância absoluta das opiniões de Lula e Bolsonaro sobre as eleições dos Estados Unidos. Sim, isso mesmo: o que eles acham de Kamala Harris ou Donald Trump não tem impacto algum em Washington. Nenhum.

Vejamos o cenário atual. Lula, o presidente da República, declara seu apoio a Kamala como se isso fosse mover algum ponteiro na eleição norte-americana. Bolsonaro, fiel ao seu estilo, expressa abertamente seu apreço por Trump, como se os eleitores americanos estivessem ansiosos para saber o que ele pensa. Mas, honestamente, e daí? Não importa se o presidente do Brasil é fã de Kamala, Trump, ou até do Pato Donald. Lá nos Estados Unidos, isso é só ruído.

A questão é que o público brasileiro, ou pelo menos parte dele, parece incapaz de entender essa desconexão. Importamos o embate Lula versus Bolsonaro para dentro de temas internacionais como se isso fosse relevante para o eleitor norte-americano. A ilusão é de que, se um dos nossos líderes manifesta apoio a um candidato estrangeiro, ele realmente acredita estar influenciando alguma coisa. Não está. Essa dinâmica seria diferente se estivéssemos falando de um país vizinho, na América Latina. Um comentário do Brasil sobre a eleição argentina, ou mesmo paraguaia, poderia ter ressonância. Mas sobre uma potência como os Estados Unidos? É um jogo de aparências. E quem se ilude com ele é só o brasileiro.

Para ilustrar a inutilidade desse jogo, imagine se estivéssemos falando das eleições no Brasil, mas o apoio viesse de Angola. Digamos que o presidente angolano, João Lourenço, publicasse um vídeo apoiando Lula em nossa eleição presidencial. Isso mudaria o seu voto? É óbvio que não. E é óbvio que a opinião de Lula ou Bolsonaro sobre Trump ou Kamala não muda um único voto americano.

Ainda assim, seguimos nessa. Como se o mundo fosse acabar dependendo de quem ocupa a Casa Branca. “Kamala vai confiscar direitos, Trump vai erguer o muro”. Mas, vamos ser francos, o que realmente mudou quando Trump foi presidente? Ele tentou muita coisa, mas os guardrails da democracia americana, construídos e mantidos ao longo de duzentos anos, seguram qualquer um – até mesmo quem queira ou finja querer explodir o sistema. Nos EUA, o sistema é maior que o presidente. O Congresso, a Suprema Corte e as leis se mantêm intactos, segurando as rédeas da democracia. Algo que, convenhamos, não temos por aqui.

Aqui, no Brasil, a nossa democracia é frágil. Mudamos de Constituição como quem troca de roupa, o que coloca em perspectiva o quanto somos inconstantes em nossas “aventuras democráticas”. Nos EUA, há segurança estrutural. Lá, quem passa da linha, seja presidente ou peão, paga. O caso do Capitólio mostrou isso. Quem ousou desrespeitar o sistema foi punido e não foi um teatro para mostrar ao mundo “ficha limpa”. A punição foi para valer, sem essa história de salvar peixe grande e fazer show com os pequenos.

Mas, ainda assim, muitos aqui insistem em romantizar a eleição americana, como se tivéssemos que escolher lados e como se qualquer um dos lados fosse, de fato, nos representar. Sinto muito desapontá-los, mas o próximo presidente americano será irrelevante para nós. E não porque a política externa dos Estados Unidos é uma fantasia, mas porque, para eles, o que importa é o próprio sistema. Seja Trump, Kamala ou quem for, a democracia americana segue firme. Ela não precisa de salvadores; ela precisa de respeito ao que foi construído.

Então, meu conselho? Acompanhemos o show de camarote, mas sem apego emocional. No Brasil, há quem se emocione com tudo isso, com cada palavra de Lula ou Bolsonaro sobre política americana .Mas emoção, em política, nunca deu certo. E, para ser sincera, essa importação de brigas estrangeiras só serve para distrair do que realmente importa aqui.

A “internacional fascista” e o eixo autocrático

Vamos prestar atenção ao que dizem duas das mais reconhecidas instituições que monitoram os regimes políticos no mundo: o V-Dem Institute (da Universidade de Gotemburgo) e a The Economist Intelligence Unit (EIU). Segundo o V-Dem o Brasil não é uma autocracia (ou ditadura) e sim uma democracia não-liberal. Segundo a EIU o Brasil, igualmente, não é um regime autoritário (ou ditadura) e sim uma democracia não-plena.

Prefiro dizer – e já mostrei por quê em um artigo – que o Brasil tem um regime eleitoral parasitado pelos dois populismos do século 21: o neopopulismo dito de esquerda e o populismo-autoritário dito de direita e, portanto, está em risco de entrar em transição autocratizante. Isso significa que o Brasil, enquanto permanecer nessa condição de hospedeiro de populismos, não caminhará para ser uma democracia liberal ou plena. Mas, atenção: não significa que viraremos, nos curto ou médio prazos, uma autocracia eleitoral ou fechada (na classificação do V-Dem) ou que nos converteremos em um regime híbrido ou autoritário (na classificação da EIU).

Mas o risco continua porque os dois populismos que parasitam nosso regime político, embora não sejam iguais, têm, ambos, efeitos adversos sobre o regime do ponto de vista da democracia: o neopopulismo não costuma (a não ser em alguns casos extremos, como o da Venezuela e o da Nicarágua) matar o hospedeiro, enquanto que o populismo-autoritário pode, sim, acabar matando-o (como ocorreu na Hungria, na Turquia e em El Salvador – que se transformaram em autocracias eleitorais ou regimes autoritários).

Em outras palavras, no caso concreto do Brasil, o lulopetismo não mata o hospedeiro, mas o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização) impedindo que nosso regime eleitoral se converta em uma democracia liberal ou plena, enquanto que o bolsonarismo pretende matar o hospedeiro quando, além de impedir que nosso regime político vire um regime liberal, dificulta até mesmo que continuemos sendo uma democracia eleitoral.

Claro que para entender isso é preciso admitir que existem dois tipos de populismos no século 21 e não apenas o populismo dito de extrema-direita, como querem nos fazer acreditar os intelectuais acadêmicos de ciência política, muitos teóricos atuais da democracia e quase todos os jornalistas e analistas políticos na grande imprensa.

Estabelece-se a partir daí uma grande confusão, diria mesmo uma mistificação, na qual o grande ou principal (ou único) inimigo universal da democracia é o populismo-autoritário ou nacional-populismo dito de extrema-direita. Já mostrei em outro artigo que isso é falso. Das 89 autocracias que existem hoje no mundo (segundo o V-Dem), somente três são governadas por líderes nacional-populistas (Hungria, Turquia e El Salvador). Todas as demais são ditaduras islâmicas (que não podem ser caracterizadas como de direita ou de esquerda; e. g. Afeganistão, Arábia Saudita, Barein, Catar, Iémen, Jordânia, Kuwait, Líbia, Marrocos, Omã, Somália, Sudão) ou regimes na esfera de influência do eixo autocrático composto por Rússia, China, Irã etc. (e. g. Azerbaijão, Bielorrússia, Camboja, Chade, Gaza, Guine Equatorial, Mali, Síria, Sudão do Sul, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão) ou regimes declarada ou historicamente de esquerda ou extrema-esquerda (e. g. China, Coreia do Norte, Cuba, Laos, Venezuela, Nicarágua, Vietnam, Angola).

O eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat – a nova Índia de Modi, que é uma autocracia) ao qual estão se alinhando regimes eleitorais não-liberais parasitados por populismos de esquerda (e. g. México, Colômbia, Bolívia, Brasil, Honduras, África do Sul) é um inimigo muito mais perigoso e poderoso para as democracias liberais do que a chamada “internacional fascista” composta pelos populistas-autoritários ditos de extrema-direita (e. g. Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro) que, repita-se, só estão no governo em três países (com exceção de Meloni, pois a Itália continua sendo uma democracia liberal).

Isso não significa que a chamada extrema-direita não seja um perigo para a democracia. Mas significa que ela não representa o único, nem o principal, inimigo das democracias liberais (segundo o V-Dem 2023: EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Seicheles, Butão, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia).

Claro que a eleição de Trump (levando de carona Vance, Bannon e, agora, Elon Musk) pode alterar a correlação de forças no plano mundial, mas não mudar a natureza da principal ameaça à democracia representada pela ascensão do eixo autocrático. Com Trump ou sem Trump, o eixo autocrático continuará sendo a maior coalizão de ditaduras já conformada na história do planeta, atualmente empenhada em uma segunda grande guerra fria cujo objetivo último é exterminar as democracias liberais na face da Terra.

Com exceção do que pode acontecer com os EUA (e com o mundo) na hipótese da vitória Trump e de Putin que, situado no coração do eixo autocrático, investe no populismo de esquerda e no populismo de direita (Mélenchon e Le Pen, Lula e Bolsonaro) – porque sabe que a polarização tóxica entre os populismos é a principal arma de destruição das democracias liberais – essa cogitada “internacional fascista” é fichinha comparada ao eixo autocrático.

A força de Bolsonaro e a fraqueza do Brasil

Jair Bolsonaro, na mira do STF por articular decretação irregular de Estado de sítio e intervenção no TSE, convocou seus eleitores para defendê-lo no dia 25 de fevereiro, na Avenida Paulista, e a massa de apoiadores compareceu.

No vídeo da convocação, Bolsonaro diz que se trata de um “ato pacífico em defesa do nosso Estado democrático de direito.” Sabe-se lá o que o Estado democrático de direito é na cabeça de um populista autoritário que faz reunião com todos os seus ministros para combinar a virada de mesa que iria mantê-lo no poder a despeito do resultado das eleições.

Bolsonaro queria um golpe de Estado, seu entorno planejou um golpe de Estado, que não aconteceu porque as Forças Armadas, como instituição, se negaram a implementá-lo, embora alguns militares, individualmente, tenham participado da “intentona bolsonarista.”

Em seu discurso, Bolsonaro falou da bíblia como uma “caixa de ferramenta”, dramatizou em torno do episódio da facada que sofreu em 2018, citou luta armada de 1970 e um tenente “executado pela esquerda”, lembrou sua “carreira das armas”, recordou os 28 anos como deputado “discursando para as paredes”, citou platitudes sobre seu governo até chegar ao momento “daquela coisa que aconteceu em outubro de 2022” e mostrou-se satisfeito por ter conseguido o que queria: “uma fotografia para o mundo.”

A instrumentalização do conservadorismo

Mas não faltou aquela carga ideológica caricata que, de fato, responde pela sua capacidade de aglomerar tão grande público: “Nós não queremos o socialismo para o nosso Brasil. Nós não podemos admitir o comunismo em nosso meio. Nós não queremos ideologia de gênero para os nossos filhos. Nós queremos respeito à propriedade privada. Nós queremos o direito à defesa à própria vida. Nós queremos o respeito à vida desde a sua concepção. Nós não queremos a liberação das drogas em nosso país.”

Eu e provavelmente mais da metade dos brasileiros concordamos com esse parágrafo. O que não concordamos é que o sujeito, por defender isso, não seja responsabilizado pelos desvios cometidos em outros aspectos fundamentais da ética, da moralidade, da civilidade. O problema é que o sentimento conservador do brasileiro comum foi manipulado, instrumentalizado por políticos desqualificados, ineptos e desonestos.

É uma cena burlesca ver os autoproclamados patriotas antipetistas aplaudirem com entusiasmo o discurso do presidente do PL, Valdemar da Costa, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no escândalo do mensalão, ocorrido no governo Lula.

Ainda mais constrangedor e decepcionante é ver um dos ícones da operação Lava-Jato, o ex-deputado Deltan Dallagnol, junto a outros expoentes do partido Novo, participar da manifestação bolsonarista, sob a justificativa de união da direita contra os abusos do STF.

Ora, todos sabem que a CPI da Lava-Toga, protocolada pelo senador Alessandro Vieira, em 2019, com o objetivo de investigar o judiciário, foi inviabilizada pelo bolsonarismo para livrar a pele de Flávio Bolsonaro das investigações do caso das rachadinhas. A foto do caloroso abraço de Bolsonaro aos ser recebido pelo ministro Dias Toffoli em sua casa, em 2020, diz tanto do Brasil quanto a foto da multidão bolsonarista na Paulista.

Lava-Jato e falta de coerência moral

Sérgio Moro, ao decidir apoiar Bolsonaro no segundo turno, após ter denunciado a intenção do ex-presidente de interferir na Polícia Federal e após ter feito uma espécie de pré-campanha para presidente na qual expôs em livro e em discursos o mal que Bolsonaro tinha feito ao combate à corrupção, acabou com a esperança política daqueles que acreditaram e defenderam a Lava Jato por princípio e por anelo de justiça e não por mero oportunismo.

Da mesma forma, Deltan Dallagnol, aderindo ao bolsonarismo, de certa forma despreza a parcela da direita antibolsonarista que viu nele alguém firme e inabalável no combate à corrupção. 

Conforme escreveu Felipe Moura Brasil no artigo O Novo parasita o bolsonarismo, os valores e princípios inegociáveis do combate à corrupção foram sabotados por Bolsonaro e colar na direita bolsonarista não é o melhor exemplo de coerência moral.

Eis a fraqueza do político brasileiro e do brasileiro comum: a falta de coerência moral. Não é porque o STF está cometendo abusos – de fato, está – que precisamos desconsiderar os crimes cometidos por aqueles que são alvos da investigação. E entre os crimes está a tentativa de golpe, infelizmente minimizada pela direita, que compromete assim o seu papel de firme, porém democrática oposição.

Duas pontas que se retroalimentam 

Em seu discurso, Bolsonaro também pediu uma anistia para “os pobres coitados que estão presos em Brasília”. Sim, eles merecem anistia. Foram massa de manobra de gente mais graúda. Eles estão presos na Papuda e o Brasil está preso a dois populistas grotescos e rasteiros que se retroalimentam, como escreveu a ex-deputada Janaina Paschoal, em postagem no seu perfil X, em momento de singular lucidez:

“Respeitando opiniões divergentes, eu vejo, com clareza, um novo teatro das tesouras. Duas pontas que se retroalimentam e, guardadas as particularidades, funcionam de forma muito parecida. Ambas têm seus fiéis, que veem crimes na outra ponta, ambas têm seus atos de dramatização e ‘despedida’. Uma ponta brinca de fazer calar a outra. Antes, eu tinha pena do povo, que acredita nesse teatro. Hoje, vejo que o povo gosta e também se alimenta disso. Pobre daquele que pensa que essa representação os aniquila mutuamente. Esse teatro os mantém vivos e eles sabem disso!”

A manifestação na Avenida Paulista foi exitosa. Deixou clara a tragédia política brasileira: só Lula e Bolsonaro conseguem mobilizar as massas e encher as ruas; e as aberrações de um fazem as aberrações do outro parecerem menores. A força de Lula e Bolsonaro é a fraqueza da democracia do Brasil.

Democracia Ferida

Vivemos em uma jovem democracia, estabelecida tal como conhecemos em 1985, com uma Constituição promulgada em 1988 e a primeira eleição presidencial pós-regime militar ocorrendo em 1989. Até lá nenhum pleito presidencial brasileiro havia contado com a participação de mais de 20% da população e desde então vivemos o mais longo período de estabilidade democrática de nossa história. Antes disso, somente dois líderes eleitos pelo voto popular para a Presidência completaram o mandato: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek.

Porém, a democracia não vive um período de grande popularidade ao redor do mundo, algo que se debruça também sobre o Brasil. Atualmente apenas 62% dos brasileiros têm opinião positiva sobre a democracia liberal, segundo pesquisa AtlasIntel. A sondagem também aponta 20% de opinião positiva sobre o comunismo, 13% sobre ditadura militar e 4% sobre fascismo – todos regimes de exceção. Enquanto isso, o Latinobarómetro indica dados mais alarmantes, ou seja, que existe apenas 46% de apoio à democracia em nosso país.

O Brasil já passou por nove golpes de Estado desde nossa independência. Empilham-se outros fracassados, onde insere-se o mais recente descoberto pela Polícia Federal. Considerando que estamos na América Latina, um território propício para movimentos golpistas, a tentativa não soa como novidade. Entre 1907 e 1966 a região passou por 20 golpes de Estado. Da segunda metade do século XX até hoje foram 34. Nosso 31 de março de 1964 faz parte desta estatística.

Fato é que o desgaste da democracia ao redor do mundo chegou ao Brasil e nossas instituições indicam que carecem de confiança da população neste período delicado. Vejam estes dados. Apenas 11% dos brasileiros avaliam positivamente o trabalho do Senado e 8% da Câmara dos Deputados. A aprovação do STF caiu para 17% no final de 2023 e diante da falta de confiança no trabalho da imprensa, 41% dos brasileiros evitam o consumo de notícias e de conteúdo jornalístico – número que supera a média mundial, de 36%. Estamos diante de um barril de pólvora.

Estes dados mostram que a mais recente tentativa de golpe em nosso país deixou de se concretizar por incompetência dos atores envolvidos no enredo, porém, é importante lembrar, poderia encontrar respaldo popular diante da enorme falta de confiança da população nas instituições. Isto evidencia uma democracia fraca, altamente manipulável e capaz de pender diante de arroubos autoritários tanto para a direita, quanto para a esquerda. Em resumo, um sistema à espera de um oportunista.

Vivemos um período de enorme desgaste da democracia como sistema de organização política e econômica com uma população cansada de esperar por melhorias prometidas pela abertura. Neste vácuo, ressurge a ilusão de retorno de nossos militares ao poder, os mesmos que entregaram um país destruído depois de duas décadas no comando do país. De um lado, o brasileiro precisa entender que a democracia é uma construção que precisa andar de mãos dadas com a economia de mercado, império da lei, responsabilidade e combate à corrupção. De outro, se nossa classe política e econômica, não entender seu papel, em breve pode se tornar vítima da própria ambição e tornar nosso país uma republiqueta refém de um populista.