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O dilema de uma só China

Semicondutores controlam o mundo moderno, os chips de computador que permitem processamento de grandes quantidades de dados, comunicações instantâneas globalmente e funcionamento de nossos computadores e celulares são feitos usando semicondutores. A importância econômica e estratégica dessa tecnologia é autoevidente. Quase nada hoje funciona sem um chip de computador.

Estimativas do mercado colocam que em torno de 56% de toda a produção mundial de semicondutores está concentrada nas fundições da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, mais conhecida pela sigla TSMC. Não é exagero dizer que a qualquer instabilidade na ilha de Taiwan prejudica em grande proporção a economia mundial, ainda mais se levarmos em conta que as placas gráficas de alto poder computacional tão necessárias para pesquisa e desenvolvimento no campo da Inteligência Artificial, dependem das fábricas da TSMC para serem produzidos.

O governo chinês continental tem uma visão imutável de que todos os lados do estreito de Taiwan fazem parte de uma só China, logo a ilha seria uma província rebelde, que Pequim estaria disposta a permitir um regime especial, similar ao de Hong Kong (que nos últimos anos tem visto a sua lista de liberdades democráticas serem erodidas).

Taiwan também comunga da visão de que há uma só China, a ilha nunca declarou sua independência e essa questão é ponto de debate interno, embora o campo pró-independência seja minoritário. Em Taiwan se diz que há uma só China com várias interpretações.  Esse status ambíguo de Taiwan resulta em certo isolamento da ilha em termos internacionais, não sendo aceita como membro da Organização das Nações Unidas e seu sistema de agências, por pressão direta da China, que entende como inadmissível manter relações diplomáticas com Pequim e Taipei simultaneamente.

Os Estados Unidos mantêm o que chamam de política de ambiguidade com Taiwan, ou seja, a um só tempo não possuem laços diplomáticos oficiais, mas vendem armas e fazem exercícios militares regulares, além de administrarem uma embaixada de facto em Taipei e diversos outros laços culturais e econômicos. Asseguram a defesa da ilha em caso de invasão ao mesmo tempo sem um arranjo institucional adensado para tanto.

Nos últimos anos o governo de Pequim tem aumentado a presença militar no estreito de Taiwan. Muitos especialistas em segurança internacional apontam que o esforço de modernização do Exército Chinês é motivado pela necessidade operacional advinda dos planos para a tomada do que eles enxergam ser uma província rebelde. A ameaça que paira sobre Taiwan por conta da política de reintegração da ilha ao território chinês por qualquer método possível, não é como diz a expressão popular “da boca pra fora”. É uma possibilidade relevante, que muitos analisam ser uma questão de quando e não de se irá ocorrer.

As Forças Armadas chinesas demonstram seu poderio conduzido vôos de reconhecimento, bombardeios simulados, além de movimentarem porta-aviões e outros meios navais com constância pela região. Os gastos militares de Taiwan embora em tendência de aumento de seu volume comparado ao PIB taiwanês, ainda estão muito abaixo das capacidades do gigante comunista.

Pequim também se vale de outros recursos, como campanhas de desinformação para tentar a um só tempo influenciar os resultados de eleições em Taiwan e enfraquecer a democracia local contribuindo para a erosão da confiança nas instituições e atores políticos.

Taiwan é uma democracia jovem a ilha pela maior parte de sua história de 1949 a 1987 viveu sobre o regime Lei Marcial que se seguiu a vitória comunista nos estertores da Segunda Guerra Mundial, tendo realizado em 1992 sua primeira eleição presidencial. Ainda assim, as instituições e a própria democracia da ilha têm se mostrado resilientes diante dos ataques chineses, mas quanto tempo poderão resistir, ainda mais se levarmos em conta que Pequim está observando e aprendendo com erros e acertos russos na Ucrânia?

Muito do nosso mundo moderno e do crescimento e desenvolvimento econômico mundial dependem das fundições da TSMC e não é factível no curto e médio prazo mitigar os riscos criando novos fabricantes de semicondutores, a literatura econômica nos mostra que muito do poder fabril se constrói a partir de pesquisa e desenvolvimento, pessoal altamente capacitado e inovador e conhecimentos tácitos internos as firmas. , o que aumenta ainda mais os riscos envolvidos nessa região. Como os governos do mundo vão reagir aos riscos intrínsecos desse dilema chinês?

A desinformação de guerra dominou o debate público do Brasil

A palavra desinformação já é daquelas que o pessoal chama de “gatilho”. Foi tão solapada e usada de forma partidária que cada um dá a ela um significado diferente. Ela tem, no entanto, um significado formal. São operações de manipulação e distorção da realidade.

Muita gente, devido ao debate atual, imagina que isso seja natural da política ou das redes sociais. Não é, trata-se de estratégia militar tão antiga quanto os próprios exércitos.

Estamos no meio de duas guerras, a invasão da Ucrânia e a iniciada com o atentado terrorista em Israel. Narrativas de desinformação criadas por países que apóiam essas guerras já começam a aparecer de forma sutil em todo o debate público.

A guerra da Ucrânia já foi útil para que o mundo fizesse uma linha divisória entre civilização e barbárie. Os líderes do mundo civilizado condenaram a invasão para tomada de território com amplo massacre de civis. Vladimir Putin já foi condenado por genocídio por sequestrar crianças ucranianas e levar à Rússia.

Há líderes que simplesmente apóiam a Rússia e pronto. Outros, no entanto, apóiam mas não podem falar. Aí é que entra a desinformação. O discurso deles é o mesmo, parece feito pela mesma pessoa. Eles repetem essas ideias em qualquer lugar que possam encaixar.

A tática para ficar a favor da Rússia sem dizer isso começa por minimizar a invasão e atribuir igual culpa aos dois lados. “Quando um não quer, dois não brigam”, já dizia o povo que justificava espancamento de mulher. A outra tática é equiparar a reação de defesa militar Ucraniana ao massacre de civis promovido por Putin.

Na guerra de Israel, as coisas não são muito diferentes. O discurso para apoiar o Hamas sem pagar o preço de compactuar com terrorismo é o mesmo. A forma mais esperta de fazer é condenar os ataques do Hamas sem falar o nome do grupo e sem dizer explicitamente que é terrorismo. Depois, se houver muita pressão popular, dizer que o ataque foi terrorismo mas jamais chamar o Hamas de terrorista.

No caso de Israel, parece se consolidar a nova divisão do mundo em blocos. Falamos de um ataque à única democracia liberal da região, circundada por diversas ditaduras, algumas delas teocráticas.

As democracias liberais já se colocaram ao lado de Israel, já que essa é a visão de mundo que defendem. Outro bloco, no entanto, se colocou contra Israel, seja abertamente ou de forma velada.

Já sabemos em que bloco estamos agora.

Um fato curioso do discurso de desinformação ocorreu esta semana, em um tema que nada tem com a guerra, o levantamento de bloqueios comerciais norte-americanos contra a Venezuela.

O presidente Lula fez o seguinte tuíte: “Recebi com satisfação a notícia de que o governo dos EUA retirou sanções contra a Venezuela, depois que o governo e a oposição venezuelanos assinaram um acordo para eleições justas no ano que vem. Sanções unilaterais prejudicam a população dos países afetados e dificultam processos de mediação e resolução de conflitos. O levantamento total e permanente de sanções contribui para normalizar a política venezuelana e estabilizar a região” (grifo meu).

Por que eu selecionei essa frase? Porque ela é uma ideia que tem sido pisada e repisada pelo bloco que apóia a Rússia na invasão da Ucrânia. As sanções europeias não são mais polêmica e temos outra guerra, então o tema parece que sumiu do noticiário. Só que ele continua muito vivo.

Esta semana houve um encontro dos países da Road and Belt Initiative, a nova Rota da Seda, um projeto de mais de US$ 1 trilhão para estabelecer liderança chinesa internacional. Vladimir Putin foi o destaque entre os convidados de Xi Jinping para o evento em Pequim.

A tônica da fala do líder chinês foi uma condenação aos esforços de países do ocidente para depender menos da economia chinesa. Muitos países temem ficar nas mãos da China porque suas cadeias de fornecimento dependem demais do país.

Outra reclamação foi sobre embargos como o que sofre a Rússia depois que invadiu a Ucrânia. Isso acontece também com a China, mais pontualmente. Um exemplo concreto é a indústria de painéis solares, que evita os produtos feitos por campos de concentração da minoria Uigur. Eram os suprimentos que dominavam o mercado.

No dia em que Joe Biden pisou em Israel, Xi Jinping fazia seu discurso e chamava Putin de querido amigo. “Nós nos opomos a sanções unilaterais, coerção econômica, desvinculação e interrupção das cadeias de suprimentos”, disse o líder chinês. Dias depois, o presidente Lula repete a mesma ideia.

Seria algo natural caso fosse um raciocínio lógico. Não é, é uma narrativa. Lula mente quando diz que é contra embargos unilaterais. Em agosto, por exemplo, o Brasil vetou venda até de ambulâncias para a Ucrânia. O discurso é repetido apenas para alinhar posições. Cada vez veremos esse método ser repetido com mais maestria.