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Verdade e liberdade: John Milton ou Alexandre de Moraes?

Há dois tipos de leitores: aqueles que querem ler o que ainda não sabem, confrontar suas ideias prévias e ampliar sua compreensão das coisas e aqueles que querem ler o que já sabem para ter mais certeza de que estão certos e confrontarem com mais confiança os que pensam diferente.

O debate público no Brasil é majoritariamente protagonizado por esse tipo que quer impôr sua verdade. São pessoas que adotam determinado ponto de vista sobre questões complexas e, em vez de ponderarem sua análise e refinarem sua opinião, apressam-se para encontrar e reproduzir interpretações reducionistas que corroborem a sua estreita visão.

O debate atual em torno de fake news, tentativa de golpe de estado, defesa da democracia, discurso de ódio, liberdade de expressão e seu alegado cerceamento suscita questões para as quais não há resposta rápida, fácil, única e definitiva.

A despeito disso, quando nuances do debate são apresentadas, o analista que ousou não aderir prontamente às narrativas em voga é execrado pela militância com o neologismo de “isentão”, criado pelos radicais que querem evitar a dissidência e homogeneizar o discurso.

Muitos dos que hoje se arrogam defensores da liberdade de expressão são reacionários autoritários que demonizam os seus adversários e que tentariam calá-los se tivessem poder para isso; muitos dos que tiveram suas contas nas redes sociais suspensas usaram-na, de fato, para pregar uma ruptura institucional.

Eles não querem que isso seja dito. Bolsonaristas ficam incomodados quando esses detalhes são trazidos ao debate. Eles querem ir ao exterior denunciar cerceamento da liberdade de expressão no Brasil sem tocar no mérito do tipo de expressão que está sendo cerceada; querem denunciar ao mundo que a democracia brasileira está sob ataque do Judiciário sem fazer menção ao ataque contra a democracia intentado pelo Executivo.

Por outro lado, aqueles que retoricamente se pintam como mais afeitos à democracia também incorrem em fake news, discursos de ódio e manifestações violentas sem que, no entanto, sofram a mesma retaliação jurídica. Se a força da lei só incide sobre o lado A e faz vista grossa para o lado B, quem assim instrumentaliza a lei é quem mais descaracteriza a democracia que diz querer preservar.

O ministro Alexandre de Moraes tomou para si a prerrogativa de vigiar e punir toda e qualquer suposta ameaça à democracia, mas, como bem resumiu Felipe Moura Brasil, ao usar “decisões obscuras em inquéritos viciados para censurar e pôr no mesmo saco publicações legítimas (fato incômodo, crítica, opinião) e criminosas (calúnia, ameaça etc.)” ele “permite que delinquentes virtuais se limpem na sujeira dele, em nome da liberdade de expressão”.

A democracia brasileira é ainda precária, frágil e disfuncional. Sua engrenagem atual retroalimenta um Estado corrupto que mantém um sistema de privilégios. O que havia de melhor nela era a liberdade que tínhamos para denunciar, criticar e, assim, manter a esperança de reformá-la gradualmente. Agora, porém, sob o pretexto de preservar o regime que torna a liberdade possível, a liberdade possível de criticar o regime está sendo minada.

Há intolerantes de ambos os lados, esquerda e direita, que querem homogeneizar o discurso, calar a oposição e, para piorar, há juízes censores que querem o poder de editar esse debate extremamente polarizado e caótico.

Política e verdade

Apesar da impaciência que talvez o estimado leitor possa ter com a filosofia e a literatura, tendo em vista a urgência política, teimarei em finalizar esse texto trazendo para a conversa uma filósofa e um poeta.

Para Hannah Arendt, a pretensão de verdade absoluta no âmbito político é uma pretensão tirânica porque política é lugar de doxa (opinião) e não de episteme (conhecimento teórico absoluto e rígido). Não deve haver verdade dogmática no âmbito político, mas há um outro tipo de verdade que a política não pode negligenciar: a verdade factual.

O fato é a matéria bruta da opinião e a opinião é a matéria-prima da política. Não se deve confundi-los. Quando uma opinião é considerada fato e um fato é considerado mera opinião, o pensamento político representativo e plural perde a sua base de apoio.

A opinião, diz Arendt, requer a verdade factual como suporte e a própria “liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação factual seja garantida.

A mentira ou, em linguagem mais atual, a disseminação de fake-news é, pois, um problema ou um desafio a ser enfrentado pela democracia. Ocorre, porém, que a censura não resolve e ainda piora o problema.

Como já foi dito, as controversas decisões censórias do ministro Alexandre de Moraes incorreram no grave erro de não fazer as devidas distinções entre fato, opinião, fake news e incitação ao crime.

Analisar é separar, distinguir. Diante da dificuldade de assim proceder, optou-se pela via fácil da repetição, generalização e ausência de fundamentação das decisões. Para não deixar passar nada, o ministro censurou tudo. Ao fazê-lo, violou direitos e garantias fundamentais de alguns cidadãos.

Milton contra Moraes

As redes sociais trazem novos desafios às sociedades democráticas, que são, antes de tudo, sociedades plurais e abertas, nas quais há heterogeneidade, profusão de discursos, conflito de ideias, oposição e dissenso. A polêmica atual em torno da regulamentação das redes favorece uma rápida digressão final, na forma de retorno a um clássico liberal.

Em 1644, John Milton publicava Areopagítica, um opúsculo contra a pretensão do parlamento inglês de reestabelecer a censura. Nessa obra, Milton tentou mostrar que a determinação do verdadeiro e do falso, do que deve ser publicado ou suprimido, não pode estar nas mãos de poucos homens que são, em geral, de juízo vulgar. Sua argumentação mais forte, porém, aponta para o valor intrínseco da liberdade.

A censura é ruim não apenas porque é ineficaz no combate ao erro e ao vício, mas porque viola a liberdade, que é um valor positivo e necessário para o progresso do conhecimento. A censura impede que, no confronto com o erro, a verdade possa emergir, uma vez que a verdade e a falsidade precisam lutar para que a primeira venha a se estabelecer, ainda que provisoriamente. Milton já apontava, portanto, a necessidade do pluralismo para o progresso da coletividade e registrava sua rejeição à autoridade dos censores.

Optar pela censura é o mesmo que dizer que as pessoas devem ser tratadas como crianças necessitadas de tutela. “Serão elas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento que não seriam capazes de engolir nada que não passasse pelo filtro de um censor?”, pergunta John Milton, em 1644.

Seremos os brasileiros tão ingênuos, infantilizados, manipuláveis e ignorantes que não somos capazes de julgar por nós mesmos uma postagem em rede social sem precisar do filtro do censor Alexandre de Moraes? Perguntamos nós, em 2024.

As implicações políticas do affair Musk versus Alexandre

Não é surpresa ver bolsonaristas pegando uma carona nas falas de Elon Musk e lulopetistas indignados com o bilionário sul-africano e defendendo o Alexandre. Nem os bolsonaristas, nem o Musk, nem o PT têm a ver com a democracia. Tudo isso é fruto da vil polarização populista.

A polarização já capturou as interpretações sobre a controvérsia Elon Musk x Alexandre de Moraes. O que está em discussão, do ponto de vista da democracia, nada tem a ver com Musk ser dito de extrema-direita, se apoia ou não Trump por baixo dos panos, sabe-se lá se anarco-capitalista, libertarista ou defensor de uma impossível liberdade irrestrita, racista ou supremacista. Nem tem a ver com as origens de Alexandre de Moraes, com suas ligações pregressas com dirigentes do quase-extinto PSDB e agora estar alinhado ao PT ou com o fato de ter sido indicado ao STF por Michel Temer. Envereda-se por essas alegações para reduzir tudo ao jogo bipolar extrema-direita x esquerda, reacionários fascistas x progressistas, golpistas x defensores do Estado de direito, bilionários imperialistas nos EUA x defensores da soberania nacional do Brasil, apoiadores da liberdade de expressão x proto-ditadores que querem extingui-la; para resumir: bolsonaristas x lulopetistas. Assim fica fácil não responder as questões. Se Musk é bolsonarista (e tudo mais que não presta) ou se Alexandre é petista (idem), então estão resolvidas todas as questões.

Mas as questões que realmente importam não estão respondidas. São, basicamente, as seguintes. O império da lei em uma democracia se traduz pelo império das instituições encarregadas de aplicá-la? A soberania popular em uma democracia pode ser exercida por alguma instituição considerada soberana? Existem entes soberanos em uma democracia? Os indivíduos em uma democracia são cidadãos ou súditos de um poder tido por supremo? O STF é chamado de suprema corte porque não há nenhum outro tribunal acima dele a quem os cidadãos possam recorrer, ou porque é um poder supremo mesmo? E há mais questões conexas. A democracia se reduz à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas? Estado de direito é a mesma coisa que democracia? Por último, cabe a um tribunal ou aos seus membros assumir um papel militante em defesa da sua concepção de democracia (sobretudo quando essa concepção não foi referendada pelo voto dos cidadãos)? Em nome dessa defesa da democracia membros de um tribunal podem acumular as funções de investigar, acusar e julgar, constitucionalmente assinaladas a poderes distintos e independentes?

Não sabemos se o X poderá ser bloqueado no Brasil. Nunca foi bloqueado em uma nação democrática. Sim, em 18 anos de existência, nenhuma democracia bloqueou o Twitter. Isso só aconteceu em ditaduras como a China, a Coreia do Norte, o Irã, a Rússia, o Turcomenistão e Mianmar. O PT e o STF querem colocar o Brasil nessa lista das piores autocracias do planeta?

Se o bloqueio não acontecer agora, num rompante prepotente de quem confunde a soberania da lei com a sua própria soberania, tudo vai depender do rumo que as coisas tomarem nos próximos meses. Se o lulopetismo tiver um resultado muito adverso nas próximas eleições, o PT vai turbinar essa espécie de guerra civil fria para a qual foi feito e na qual se sente confortável. E será correspondido pelo bolsonarismo. Ou seja, os populistas, ditos de esquerda ou de direita, vão acelerar o tudo ou nada visando apenas vencer as eleições de 2026 a qualquer preço para se delongar no poder ou para voltar ao poder. E com esse crescimento da polarização, poderão vir, sobretudo da parte de quem controla o Estado, inevitáveis restrições de direitos políticos e liberdades civis. affaire Alexandre versus Musk nos obriga a acender o alerta amarelo.

Não houve, até agora, desbloqueio de contas censuradas pelo STF, nem bloqueio do Twitter, mas algo mudou na conjuntura. O mundo agora está tomando conhecimento de que existe alguma coisa errada ou, pelo menos, discutível, no papel militante que a suprema corte brasileira vem assumindo em nome da defesa da sua visão particular da democracia. Alguns ministros, não raro, reduzem a democracia à obediência às normas que regem o Estado de direito e, por decorrência, às instituições encarregadas de fazer valer tais normas. Mas não são a mesma coisa. Repetindo, então, pela importância do dito. A democracia é o império da lei e não o império das instituições encarregadas de aplicá-las. Nenhuma instituição pode ser soberana em uma democracia e os cidadãos não podem virar súditos de qualquer instituição, nem mesmo da chamada ‘corte’ dita ‘suprema’ (duas designações, aliás, pouco consonantes com o espírito da democracia).

Mas os democratas nada temos a ver com Elon Musk. E o Twitter, aliás, nem foi invenção dele. Cada um deve publicar naquela mídia o que bem entender, assumindo as responsabilidades por isso. O fato do Musk ser dono do agora chamado X e nele emitir opiniões contrárias ao que acreditamos não viola a democracia, ainda que suas opiniões possam ser antidemocráticas. Também não cabe a nós fazer avaliações morais sobre Musk, dizer que ele é hipócrita porque critica Alexandre, mas não critica a China. Ora, o presidente do Brasil, Lula, também não critica a China, a Rússia e outras ditaduras enquanto posa de salvador da democracia. Ou dizer, como fez ontem o Guga Chacra na Globo News, que ele é um babaca. Muitos proprietários de empresas cujos serviços utilizamos também poderiam ser avaliados por alguém como babacas. E daí? É como não querer pegar um avião num aeroporto construído pela Odebrecht porque não gostamos de seus donos ou reprovamos os crimes que cometeram. Por último, não nos cabe – para sabujar o PT – abrir uma guerra contra Musk, investigando sua vida privada ou profissional para ver se ele bateu na babá, roubou dinheiro do pai ou censurou seus próprios funcionários. Ninguém vai casar com o Musk. Ademais, o Twitter é apenas uma mídia, quer dizer, um meio de interação social, que podemos usar ou não.

Procedimentos jurídicos de exceção por parte do STF foram admitidos ou tolerados para preservar a democracia dos ímpetos golpistas de Bolsonaro. Mas aquela ameaça foi desarmada. Treze meses depois da cenográfica intentona de 8 de janeiro, não há mais perigo iminente para a democracia (se é que algum dia realmente houve, pois querer dar um golpe não significa que ele seria bem-sucedido). O STF vem se comportando como se estivéssemos em 2021 ou 2022 ou na passagem de 2022 para 2023, mas o fato é que já estamos em abril de 2024, com um presidente eleito exatamente porque se colocou contra as ideias e práticas do bolsonarismo. E esse novo presidente está governando sem contestações disruptivas da ordem democrática. Estão esticando uma configuração passada para torná-la eterna de modo a justificar a adoção de medidas excepcionais, inclusive a inconstitucional censura. Ou o STF acorda para isso ou vai continuar investindo na polarização e na guerra civil fria que sobrevirá – com alto risco, aí sim, de enveredarmos por um caminho de autocratização da democracia brasileira. Passou da hora de voltar à normalidade.

Terminamos o presente artigo com esse apelo aos membros do STF. É hora de parar com isso. Em qualquer hipótese o desfecho será desfavorável para a instituição e para o país. Não importa se os populistas (de direita e de esquerda) estejam querendo explorar o caso Musk para turbinar a polarização. Urge voltar à normalidade.


P. S. (10/04/2024). Uma mensagem no X a partir do que ficamos sabendo pela imprensa depois do artigo acima ser publicado.

Só uma pergunta. O governo Lula está criando uma teoria da conspiração para dizer que as diatribes de Musk na verdade são parte de uma grande articulação da extrema-direita internacional com parlamentares bolsonaristas para atacar o PT, a soberania do Brasil e o Sul Global?

Só uma resposta. Ora, é óbvio que os bolsonaristas pegariam uma carona nas falas de Elon Musk e que os lulopetistas ficariam indignados com o bilionário sul-africano e defenderiam o Alexandre. Não precisa de conspiração nenhuma para isso acontecer.

Uma reflexão final. ‘Não reunir é a derradeira ordenação’ (uma lição de Frank Herbert). A “orquestração” não precisa ser organizada. Ela é processada pela polarização. Temos de entender que a polarização é um programa, isso quer dizer que ela programa os aglomerados. É um programa de fazer lados.

Legado de Mandela

Aqueles que estudam ou já visitaram a África do Sul entendem o papel central de Nelson Mandela na reconstrução do país. Recém-saído do terrível modelo do apartheid, que vigorou durante décadas, o território poderia passar por um terrível conflito, algo como uma guerra civil, porém, a habilidade política de seus líderes e a ponderação, equilíbrio e sensibilidade de Mandela fizeram com que o país trilhasse um caminho virtuoso de entendimento e reconciliação.

Nações partidas por quaisquer motivos precisam lembrar dos valores que os unem e partir para duas palavras essenciais que fizeram de Mandela um estadista, alguém que não pensava na próxima eleição, mas nas próximas gerações: perdão e reconciliação. O caminho escolhido para liderar o país jamais passou pela raiva ou vingança, mas pelo sentimento de união capaz fazer com que as diferenças fossem vencidas.

O Brasil passa há tempos por outro caminho, algo que transita pela raiva e pelo ressentimento, com claras pitadas de vingança em ambos os lados do espectro político. Uma posição infantil que apenas apequena nossa nação e torna a adoção de soluções comuns um objetivo praticamente intransponível. Parece que depois de um elogiado processo de redemocratização que teve como ponto central a adoção do instituto da anistia, nosso país retrocedeu no caminho do amadurecimento democrático.

Atualmente valem mais as diferenças do que o diálogo, e a política se tornou um jogo no qual busca-se a qualquer custo a retribuição pessoal dos dissabores do passado. Neste tabuleiro, está em desvantagem aquele grupo fora do poder e a alternância destes no espectro político faz com que vivamos um duelo que serve apenas aqueles que bebem na fonte do ódio e da polarização.

Em 1990, Mandela deixava a prisão depois de 27 anos e ao invés de se vingar da injustiça sofrida, fez a opção de perdoar seus algozes como forma de criar um sentimento de reconciliação na África do Sul. Ele dizia que “se você quer fazer as pazes com seu inimigo, você tem que trabalhar com ele. Em seguida, ele irá tornar-se seu parceiro”. É possível fazer política por meio do ódio ou da reconciliação. Depende apenas de quem exerce o poder.

O Brasil está passando pela polarização, mas também pela opção do entendimento na última década e a escolha de ambos os lados têm sido um caminho oposto daquele percorrido por Mandela. Como vimos, quando o esforço passa pela reconciliação, o tecido social se reconstrói, a nação avança e progride. Quando o caminho fica preso nas diferenças e no discurso de ódio, apenas os políticos ganham. Turbinam seus votos, porém entregam o país ao caos.

Há tempos escrevo que a polarização é o grande mal que assola nosso país, que nos impede de avançar e construir as bases de uma grande nação. Mais do que isso, vem empurrando o Brasil para uma deterioração de sua democracia, nos fazendo flertar com os extremos e o risco de quebra institucional, estabelecendo parcerias com países que violam diretos e garantias fundamentais. A liderança que precisamos passa por alguém capaz de unir o país apesar das diferenças. O legado de Mandela é a maior prova que o perdão e a reconciliação são a única forma de unir um país, liderar e construir uma verdadeira nação.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lula: cai a máscara democrática de um tirano

Lula tem uma habilidade ímpar de transmutar seu discurso ao gosto do ouvinte, adequando-o ao público que o ouve. É um príncipe. O príncipe, de Maquiavel. Aquele que não tem rigidez moral, mas se move de acordo com as circunstâncias. A ética, para ele, não é uma camisa de força como o é para os tolos que tentam efetivamente agir com retidão e justiça e, tendo isso em vista, agem dentro de determinados parâmetros, sem abrir mão de princípios.

Lula e seus asseclas estão de volta ao poder porque, para eles, o poder sempre foi a meta. Eles são mais eficientes na sua conquista porque não impõem restrições morais a esse objetivo. Para voltar ao poder no Brasil, foi necessário colocar a máscara do democrata. Tarefa difícil para quem, além de ter sido condenado por corrupção, deu apoio político e financeiro aos regimes ditatoriais de esquerda da América Latina.

O figurino de democrata só voltou a colar porque surgiu um palhaço maior na República que, não tendo o ardil de esconder seu pendor antidemocrático, seduziu, com a retórica inflamada dos loucos, aqueles que já estavam saturados do teatro petista de décadas.

O tal “Sul global”

pomposa cerimônia do 8 de janeiro   – que comemorou uma democracia supostamente inabalada e ungiu Lula como seu defensor perpétuo – deu a ele a confiança necessária para pôr de lado a incômoda fantasia. Ciente do êxito do espetáculo e da força do conluio que o sustém, Lula pode agora passar para uma nova fase na qual sua lógica ideológica e pendor autoritário não precisam de justificação.

O endosso formal de Lula à infundada acusação de que Israel está cometendo genocídio mostra que ele já não se importa em ser visto por todo o mundo livre como mais um populista inconsequente. Ele não se importa porque acredita que pode liderar o tal “Sul global”, um bloco formado por ditadores e autocratas, que, sob a bandeira do vitimismo, tentam confrontar o Ocidente.

A atitude foi tão despropositada e tão contrária à tradição diplomática brasileira que conseguiu a proeza de fazer com que EstadãoO Globo e até mesmo a Folha de S.Pauloescrevessem editoriais criticando-a. 

Para o Estadão, a denúncia contra Israel por genocídio, apresentada à Corte Internacional de Justiça (CIJ) pela África do Sul e endossada pelo Brasil, “não leva em conta o fato de que Israel foi atacado por um grupo terrorista cuja missão declarada é exterminar os judeus”, portanto, explica o jornal, “não tem bases fáticas e jurídicas sólidas”.

A banalização do genocídio

A acusação de que Israel — o país que foi fundado para oferecer segurança aos judeus depois que 6 milhões deles foram exterminados pelo nazismo — estaria cometendo genocídio é extremamente grave. Ela banaliza o termo, uma tipificação de crime que foi criada justamente como “resposta da comunidade internacional à dimensão extraordinária do Holocausto”, lembra o jornal.

A argumentação do editorial O Globo segue o mesmo tom duramente crítico: “Ao atender ao pedido do embaixador palestino no Brasil, Lula viola a tradição de equilíbrio da diplomacia brasileira, banaliza uma acusação que só deveria ser feita com a maior parcimônia, em atitude que fortalece a vertente mais insidiosa do antissemitismo contemporâneo“.

Folha de S.Paulo, por sua vez, expõe o duplo padrão moral de Lula: 

“Relatório recente da Human Rights Watch aponta a oscilação de líderes mundiais quando se trata de condenar violações dos direitos humanos. Eles tendem a fazer vista grossa quando os perpetradores são governos aliados e a carregar nas tintas contra adversários. Um dos criticados pela organização global, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), acaba de oferecer novo subsídio para a tese.”

O mundo passa por uma grande turbulência. O presidente americano, Joe Biden, em discurso de apoio a Israel, logo após o início da guerra, fez a seguinte declaração: “O Hamas e Putin representam ameaças diferentes, mas têm algo em comum: ambos querem aniquilar completamente uma democracia vizinha”.

Como entender que um presidente que quer se passar por democrático coloque o Brasil não ao lado das democracias ameaçadas por grupos terroristas e por tiranos, mas ao lado dos que as querem exterminar? 

Como interpretar o descaso de Lula pelo acordo Mercosul-União Europeia e o seu empenho com o BRICS no qual se congregam os países mais liberticidas e antidemocráticos do mundo senão como a deposição da máscara de democrata e a assunção da essência de um tirano?

Oito de Janeiro

A politização de tudo no Brasil tem se tornado uma triste realidade. A polarização foi capaz de se infiltrar em todos os temas do país, passando pelas artes, esporte e tudo mais que sejamos capazes de imaginar. Não seria diferente no aniversário das ações que atingiram o coração do poder um ano atrás. Se no país do futebol tudo virava em samba, agora, no país polarização, tudo vira disputa política.

Nada retira a gravidade do que vimos um ano atrás. Estivemos diante de um atentado contra a democracia e as instituições republicanas. Porém, politizar o ato ao longo dos anos posteriores jamais nos ensinará aquilo que devemos aprender com os erros vistos e transmitidos ao vivo naquele dia. É preciso virar a página e olhar adiante, da mesma forma que precisamos sempre enxergar estas cicatrizes para que ações como aquelas jamais voltem a se repetir em nosso país.

A democracia é instrumento pelo qual são salvaguardadas nossas liberdades, desde a mais simples e singela até aquelas essenciais para o funcionamento da república. Nossas instituições são o mecanismo no qual gira nossa democracia, sendo essenciais para que não seja atacada, ferida ou destruída. Logo, agredir nossas instituições significa afrontar o mais importante pilar que sustenta uma democracia.

Vimos isso um ano atrás, quando os prédios que guardam os poderes institucionais da república foram invadidos, vandalizados e depredados, sem qualquer senso de respeito com os símbolos de nossa nação. Estivemos diante de atos que estão longe de ações de pessoas que realmente desejam mudar o país. Simplesmente um grupo de arruaceiros e vândalos que acreditam que seja possível mudar mediante a brutalidade e violência.

Fato é que o ocorrido em Brasília é sintoma que se espalhou pelo mundo mediante uma polarização estúpida e rasa que vem ditando os rumos da política em tempos recentes. Nossa capital viu se repetir aquilo que enxergamos em Washington, quando uma turba enfurecida tentou reverter o resultado eleitoral mediante uma violência explícita contra as instituições norte-americanas. A ocorrência destas ações explicita o quão doente encontram-se nossas democracias.

Enquanto houver polarização e esta disputa infantil, sem convergências e caminhos alternativos que indiquem soluções comuns, estaremos reféns de políticos rasos e uma política burra, que funciona somente para aqueles que se servem dela. Infelizmente vivemos a simples tradução de uma sociedade doente, refém de suas certezas, incapaz de ouvir ou aprender algo. Os políticos representam simplesmente a tradução disto.

Nossa democracia sobreviveu, ao contrário de outros países que sucumbiram diante dos populistas, autocracias que dizem viver em liberdade, porém se alimentam apenas de um populismo rasteiro, seja pela via da direita ou esquerda. A construção de uma real democracia passa pelo trabalho constante, demorado, muitas vezes vagaroso. Passa pela educação, normalidade institucional, combate à corrupção, supremacia das leis e limites de poder. Sem tangenciar estes valores, o Brasil poderá estar novamente diante de outro oito de janeiro, com outros atores e métodos, porém, com o mesmo objetivo.