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Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

A OTAN, a Rússia e a Ucrânia

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados Unidos, que lideraram a aliança vitoriosa, empenharam-se em estabelecer políticas que, de um lado, consolidassem sua posição de liderança, e, de outro, que contivessem a União Soviética e o comunismo em expansão.

De início, assistiu-se a uma reversão das alianças: os países derrotados, que compunham o Eixo – composto por Alemanha, Itália e Japão –, foram cooptados pelos vencedores e aproximaram-se da coalizão que venceu a guerra. Para essa reversão das alianças, foi essencial o Plano Marshall, que, iniciado em 1948, forneceu recursos para a recuperação e a reconstrução dos países europeus atingidos pelo conflito. Os países derrotados foram desarmados e passaram a enfrentar fortes restrições ao desenvolvimento de suas forças armadas e de sua indústria bélica, não podendo mais ter ou fabricar armas ou equipamentos de ataque, mas apenas de caráter estritamente defensivo. Já em 1952, os países europeus participantes do Plano Marshall atingiram os níveis de produção do período anterior à Guerra, o que abriu caminho ao futuro mercado comum europeu1.

Esse progresso econômico, com forte ajuda das subvenções americanas, contribuiu para frear o avanço do comunismo na Europa Ocidental, onde os partidos de inclinação marxista aumentavam sua participação – a exemplo do que ocorria na Itália e na França. No entanto, no Centro e no Leste europeu o comunismo aumentava sua presença e foi-se formando um bloco de países comunistas, liderados pela União Soviética. O mundo dividia-se em dois campos antagônicos e consolidava-se o período da Guerra Fria, no qual os blocos rivais se digladiavam, disputando influência política, econômica, industrial e tecnológica. A corrida armamentista entre os dois polos acirrava-se continuamente. Tratava-se de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um lado correspondia direta e simetricamente à perda do outro, e os líderes, os Estados Unidos e a União Soviética, impunham exigências de alinhamento e lealdade extremamente rígidas.

A expansão do comunismo, incentivada pela União Soviética, bem como pela China, sua aliada, atingia ou ameaçava países em várias partes do mundo, o que levou os Estados Unidos a empreenderem uma política de contenção, ou containment. Essa política deve muito de sua base teórica ao diplomata norte-americano George Kennan, que, em 1947, servindo em Moscou, redigiu o famoso long telegram , depois publicado na revista Foreign Affairs sob o pseudônimo “X”. Observe-se que a China, que se tornou comunista em 1949, era ainda um país subdesenvolvido, e o começo do seu crescimento econômico, tecnológico e militar data das décadas de 1970 e 1980. Assim, a principal preocupação dos EUA durante toda a Guerra Fria era a URSS, situação que perdurou até a derrocada da União Soviética no início da década de 1990.

Ao ter a estrutura estatal comunista desmontada, a então União Soviética, sucedida pela Rússia, viveu forte crise institucional, econômica e social. As poderosas forças militares soviéticas chegaram a ficar sem recursos para honrar os salários dos soldados, situação humilhante para uma antiga superpotência. A estrutura do bloco

soviético também ruiu. Os EUA poderiam então ter tentado atrair a Rússia para o sistema economico ocidental e buscar atrai-la também para valores e costumes ocidentais, pelos quais a juventude de então tinha fascinação.

Em 1949, formou-se a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, sob a égide dos Estados Unidos. Tratava-se de mecanismo regional de defesa coletiva: seu tratado constitutivo previa que um ataque a qualquer de seus membros seria considerado um ataque contra todos (capítulo 5 do tratado constitutivo); todos os demais membros, portanto, tinha a obrigação de repelir agressões bélicas contra qualquer de seus integrantes. A reação soviética e de seus aliados europeus à criação da OTAN foi a fundação, em 1955, do Pacto de Varsóvia, estrutura igualmente defensiva.

A OTAN perdeu seu objeto principal que era defender o Ocidente da União Soviética e da expansão do comunismo quando ocorreu o desmantelamento da URSS e o consequente fim do regime comunista entre seus aliados do Leste europeu. No entanto, o acordo atlântico foi mantido e expandiu-se dos 12 membros iniciais para os atuais 31, contando a Finlândia2 e a Suécia, que está em processo final de adesão. A expansão da OTAN foi um dos motivos alegados pelo Kremlin para a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, quando seria iminente a colocação de baterias de mísseis próximo à fronteira russa, em território ucraniano, e mesmo a adesão da Ucrânia à OTAN. A expansão da OTAN aumentou o sentimento de cerco da Rússia, que existe desde os tempos imperiais.

A OTAN tem sido crucial na defesa da Ucrânia por meio do fornecimento de armamentos e de informações, além do treinamento de tropas. O apoio dos países da OTAN tem permitido à Ucrânia resistir à invasão de uma potência que conta com forças muito superiores. A aliança atlântica, que se encontrava dividida antes da invasão, uniu-se contra a ameaça russa, movimento que não era esperado pelo governo do Kremlin.

As próximas eleições nos Estados Unidos serão importantes para definir os rumos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O governo anterior dos EUA caracterizou- se por críticas acerbas à Aliança Atlântica, alegando que o peso da defesa da Europa recaía principalmente sobre os norte-americanos. No caso de vitória dos Republicanos no sufrágio deste ano, é possível projetar que em um Governo Trump, se retomar sua política do primeiro mandato, haverá uma significativa diminuição do apoio dos EUA à Ucrânia, deixando a Europa responsável pela defesa ucraniana, o que desequilibraria a guerra a favor da Rússia.

Artigo Embaixador Marcio Florencio Nunes Cambraia em conjunto com o Cientista Político Marcio Rodrigo Penna Borges Nunes Cambraia.

Rotas do petróleo e o conflito Israel-Hamas

As grandes potências e as potências regionais estão tendo um comportamento comedido em relação ao conflito entre Israel e o Hamas, com exceção dos Estados Unidos e do Reino Unido, que enviaram forças tarefas navais para a região.

A Rússia, que está preocupada com a guerra contra a Ucrânia e vem lutando para superar os problemas causados pelas sanções, procura não se envolver no atual conflito no Oriente Médio. A Rússia tem presença forte na Síria e apoia militarmente o regime sírio, ameaçado desde 2011, no contexto da Primavera Árabe. Aumentando a complexidade do problema do Oriente Médio, Israel revidou ataques de milicianos iranianos em território sírio, e os EUA, que têm três mil soldados na Síria, também reagiram a ataques a seu pessoal militar no país.

Os americanos e os britânicos, por sua vez, embora manifestem sua lealdade a Israel e contribuam com o fornecimento de equipamentos bélicos e informações, não pretendem se engajar em operações de combate. Ademais, têm procurado exercer uma função moderadora em relação à intensidade dos ataques de retaliação de Israel em Gaza, pois as perdas de civis têm sido elevadas e têm causado uma onda de mal estar e protestos contra os israelenses na comunidade internacional.

Apesar da rivalidade com Israel, a liderança do Hezbollah, organização política e militar sediada no Líbano, tem se contido e evitado declarar guerra aberta contra os judeus.

Um fator que pode levar a uma maior intensidade da crise diz respeito aos ataques dos rebeldes Hutis do Iêmen contra navios de várias bandeiras, incluindo porta containers, cargueiros, e principalmente petroleiros que trafegam pela costa iemenita. Os Hutis são financiados pelo Irã xiita, ao passo que o Governo iemenita é apoiado pela sunita Arabia Saudita.

Os ataques hutis têm feito que as embarcações dos principais armadores do mundo deixem de utilizar a rota que passa pelo canal de Suez e passem a utilizar a rota via que circunavega o continente africano pela Cidade do Cabo na África do Sul, caminho mais longo e com maiores custos operacionais. A empresa petrolífera britânica BP e a transportadora dinamarquesa Maersk, uma das maiores operadoras de contêineres do mundo, já utilizam a via do Cabo, com significativo aumento de despesas, o que se reflete na elevação do preço dos fretes.

Embora o aumento de custos se reflita nos preços do petróleo e do transporte de outras mercadorias, não se verificou, pelo menos por enquanto, um pânico no mercado do petróleo e do gás, tal como ocorreu na crise do petróleo de 1973, na esteira da Guerra do Yom Kippur, que afetou a economia mundial e atingiu fortemente o Brasil. Na ocasião, o governo brasileiro reagiu prontamente e foi pioneiro na busca de combustível alternativo, instituindo o Proálcool; atualmente, o etanol é fabricado em larga escala no país. Apesar de a nossa dependência energética do exterior ter diminuído consideravelmente, e a produção nacional de petróleo ter aumentado muito, ainda importamos petróleo devido à deficiência de refino. Ademais, nossa economia é fortemente dependente do transporte rodoviário.

As ameaças às rotas marítimas no Oriente Médio causam distúrbio em vários fluxos de comércio, prejudicando as chamadas cadeias globais de produção e distribuição, o que pode prejudicar o Brasil. Com uma economia que se apoia principalmente nas exportações de commodities (sobretudo produtos agrícolas e minerais), o Brasil é dependente de importação de fertilizantes e, para tanto, carece de vias marítimas seguras. No setor industrial, temos a importação de componentes eletrônicos de alta tecnologia, que também podem sofrer com perturbações nas rotas oceânicas, a depender da evolução da situação no Oriente Médio.

Embora atualmente a preocupação imediata seja o suprimento de petróleo, potencialmente o conflito Israel-Hamas pode vir a nos prejudicar em várias áreas da economia. Neste momento, cabe à diplomacia brasileira obter e processar informações sobre os vários cenários possíveis no desenvolvimento da crise, e o governo deve preparar planos de contingência para enfrentar os perigos que podem advir nesses cenários.

Reorganização Internacional

Nicolas Maduro anunciou referendo para se apropriar da Guiana Essequiba, território que representa 74% do território da nação vizinha. Será em 3 de dezembro. A Rússia, talvez o maior aliado da Venezuela, avançou sobre a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, iniciando um conflito que segue em curso. O Hamas, que governava a Faixa de Gaza, realizou uma carnificina em Israel que levou a uma outra guerra que pode se ampliar na região do Oriente Médio. Isto sem falar no risco iminente de invasão de Taiwan pela China.

Algo une estes movimentos e seria muito ingênuo achar que as peças deste quebra-cabeça carecem de articulação conjunta. Rússia, Venezuela, China e Hamas (leia-se Irã) são aliados no tabuleiro internacional e realizam movimentos em conjunto, de forma harmônica e sincronizada, com o objetivo de mover as placas tectônicas da estabilidade internacional como conhecemos.

O tabuleiro internacional se movimenta como um intricado jogo de xadrez, ou seja, precisa ser movido com prudência e paciência, sempre calculando cada uma das jogadas possíveis do adversário. Nada indica, entretanto, que as potências ocidentais possuam qualquer movimento estratégico conjunto. Tem apenas respondido de forma perdida e desorganizada todas as ações de seus adversários, sem coordenação e planejamento.

Está sendo desenhada uma nova estrutura de poder internacional diante da passividade e permissividade das potências ocidentais. Os sintomas são claros diante da corrosão de seus valores, princípios e vértices ao longo dos últimos anos. Se nenhum movimento coordenado das atuais potências for desenhado de forma urgente, veremos em pouco tempo a deterioração da democracia e a implementação de novos modelos e regimes que passam longe da liberdade que conhecemos nos países do Ocidente. 

Isto significa dizer que o mundo está em guerra, porém uma guerra fria e localizada em determinados pontos, porém que são essenciais para definir em que tipo de mundo iremos viver. Ucrânia e Israel lutam sozinhos pela manutenção de regimes democráticos e pela liberdade de inúmeros países – nações que em breve podem ser acompanhadas por Guiana e Taiwan, as prováveis próximas vítimas no tabuleiro internacional.

Como disse, o pano de fundo de todos estes movimentos reside na remodelagem do sistema internacional atual, levando as autocracias, ditaduras e governo autoritários para o controle de uma nova estrutura de poder ao mesmo tempo que a democracia é corroída por dentro nas nações do Ocidente. Iniciativa que aos poucos vem mostrando os resultados esperados por aqueles que desejam a implosão de nossas liberdades. 

Vivemos tempos preocupantes. Há tempos o sistema internacional mostrava sinais de fadiga, porém, uma safra de líderes habilidosos evitou a corrosão em escala maior. Infelizmente os tempos mudaram e o avanço antidemocrático tem crescido de forma exponencial tanto pela direita, quanto pela esquerda. O absurdo se tornou parte do cotidiano e as sociedades parecem ter esquecido as lições do passado. Vivemos o maior e mais importante risco contra a democracia e nossas liberdades em tempos recentes, uma possível reorganização internacional que pode levar nossa civilização, mais uma vez, diante do inimaginável.

A desinformação de guerra dominou o debate público do Brasil

A palavra desinformação já é daquelas que o pessoal chama de “gatilho”. Foi tão solapada e usada de forma partidária que cada um dá a ela um significado diferente. Ela tem, no entanto, um significado formal. São operações de manipulação e distorção da realidade.

Muita gente, devido ao debate atual, imagina que isso seja natural da política ou das redes sociais. Não é, trata-se de estratégia militar tão antiga quanto os próprios exércitos.

Estamos no meio de duas guerras, a invasão da Ucrânia e a iniciada com o atentado terrorista em Israel. Narrativas de desinformação criadas por países que apóiam essas guerras já começam a aparecer de forma sutil em todo o debate público.

A guerra da Ucrânia já foi útil para que o mundo fizesse uma linha divisória entre civilização e barbárie. Os líderes do mundo civilizado condenaram a invasão para tomada de território com amplo massacre de civis. Vladimir Putin já foi condenado por genocídio por sequestrar crianças ucranianas e levar à Rússia.

Há líderes que simplesmente apóiam a Rússia e pronto. Outros, no entanto, apóiam mas não podem falar. Aí é que entra a desinformação. O discurso deles é o mesmo, parece feito pela mesma pessoa. Eles repetem essas ideias em qualquer lugar que possam encaixar.

A tática para ficar a favor da Rússia sem dizer isso começa por minimizar a invasão e atribuir igual culpa aos dois lados. “Quando um não quer, dois não brigam”, já dizia o povo que justificava espancamento de mulher. A outra tática é equiparar a reação de defesa militar Ucraniana ao massacre de civis promovido por Putin.

Na guerra de Israel, as coisas não são muito diferentes. O discurso para apoiar o Hamas sem pagar o preço de compactuar com terrorismo é o mesmo. A forma mais esperta de fazer é condenar os ataques do Hamas sem falar o nome do grupo e sem dizer explicitamente que é terrorismo. Depois, se houver muita pressão popular, dizer que o ataque foi terrorismo mas jamais chamar o Hamas de terrorista.

No caso de Israel, parece se consolidar a nova divisão do mundo em blocos. Falamos de um ataque à única democracia liberal da região, circundada por diversas ditaduras, algumas delas teocráticas.

As democracias liberais já se colocaram ao lado de Israel, já que essa é a visão de mundo que defendem. Outro bloco, no entanto, se colocou contra Israel, seja abertamente ou de forma velada.

Já sabemos em que bloco estamos agora.

Um fato curioso do discurso de desinformação ocorreu esta semana, em um tema que nada tem com a guerra, o levantamento de bloqueios comerciais norte-americanos contra a Venezuela.

O presidente Lula fez o seguinte tuíte: “Recebi com satisfação a notícia de que o governo dos EUA retirou sanções contra a Venezuela, depois que o governo e a oposição venezuelanos assinaram um acordo para eleições justas no ano que vem. Sanções unilaterais prejudicam a população dos países afetados e dificultam processos de mediação e resolução de conflitos. O levantamento total e permanente de sanções contribui para normalizar a política venezuelana e estabilizar a região” (grifo meu).

Por que eu selecionei essa frase? Porque ela é uma ideia que tem sido pisada e repisada pelo bloco que apóia a Rússia na invasão da Ucrânia. As sanções europeias não são mais polêmica e temos outra guerra, então o tema parece que sumiu do noticiário. Só que ele continua muito vivo.

Esta semana houve um encontro dos países da Road and Belt Initiative, a nova Rota da Seda, um projeto de mais de US$ 1 trilhão para estabelecer liderança chinesa internacional. Vladimir Putin foi o destaque entre os convidados de Xi Jinping para o evento em Pequim.

A tônica da fala do líder chinês foi uma condenação aos esforços de países do ocidente para depender menos da economia chinesa. Muitos países temem ficar nas mãos da China porque suas cadeias de fornecimento dependem demais do país.

Outra reclamação foi sobre embargos como o que sofre a Rússia depois que invadiu a Ucrânia. Isso acontece também com a China, mais pontualmente. Um exemplo concreto é a indústria de painéis solares, que evita os produtos feitos por campos de concentração da minoria Uigur. Eram os suprimentos que dominavam o mercado.

No dia em que Joe Biden pisou em Israel, Xi Jinping fazia seu discurso e chamava Putin de querido amigo. “Nós nos opomos a sanções unilaterais, coerção econômica, desvinculação e interrupção das cadeias de suprimentos”, disse o líder chinês. Dias depois, o presidente Lula repete a mesma ideia.

Seria algo natural caso fosse um raciocínio lógico. Não é, é uma narrativa. Lula mente quando diz que é contra embargos unilaterais. Em agosto, por exemplo, o Brasil vetou venda até de ambulâncias para a Ucrânia. O discurso é repetido apenas para alinhar posições. Cada vez veremos esse método ser repetido com mais maestria.

Sarajevo, 2023

Em 1914, Sarajevo assistiu incrédula a um ato de terrorismo, o assassinato daquele que provavelmente seria o próximo Imperador da Austro-Hungria, Franz Ferdinand. A morte do Arquiduque levou a Europa a um processo que acabou por desencadear aquela que ficou conhecida como “A Grande Guerra”, depois rebatizada de “1º Guerra Mundial”. Pouco mais de um século depois, vivemos o mesmo drama.

A ação terrorista do Hamas contra Israel tem potencial para significar algo muito similar ao assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro. Isto significa que uma cadeia de apoios e alianças entre aliados e opositores, em ambas as partes, tem potencial para atingir uma escala muito maior do que é desenhado até o momento. Assim como nas semanas pós-Sarajevo, vivemos tempos que podem prenunciar um conflito de maior dimensão.

O ataque do Hamas contra Israel foi desenhado longe de Gaza e certamente tem digitais iranianas, mas passa também pela Síria, Hezbollah e as conexões de todos com Moscou. Vemos uma clara cadeia que passa por aliados que possuem interesses em comum e usam Israel como vértice de uma estratégia que visa mudar as placas de estabilidade da geopolítica internacional como conhecemos.

Os contornos do ataque terrorista do Hamas estão conectados ao desejo iraniano de evitar o avanço dos acordos celebrados por Israel com diversos países muçulmanos e que inevitavelmente chegaria aos sauditas em pouco tempo. O Irã deseja o controle regional, enquanto os russos desejam um novo front de batalha para o Ocidente e o Hamas, como milícia, atinge o objetivo de atacar Israel. Tudo muito bem calculado.

O risco, entretanto, é enxergar o conflito sair do controle, com envolvimento direto das forças ocidentais na batalha, o que obrigará Irã e Rússia também a entrarem de forma oficial na guerra. Um conflito de escala regional, cresceria para uma frente continental, envolvendo a Ucrânia, impulsionando o surgimento de golpes e revoltas em países satélites, em especial na África, enquanto a Europa, refém dos extremistas, pode experimentar a face mais perigosa do terror, gerando insegurança e medo às vésperas das Olimpíadas de Paris.

Isto não significa uma previsão, mas um risco que precisa ser calculado, especialmente em períodos sombrios como este que vivemos, onde casas e negócios de judeus já surgem marcados com a estrela de Davi na Alemanha e Rússia quase oito décadas após o final da 2ª Guerra Mundial. Um período onde o antissemitismo criminoso fantasiado de apoio palestino perdeu a vergonha e tomou as ruas de diversas capitais do mundo.

Até o momento, os mecanismos internacionais se mostraram mais uma vez ineficazes diante dos jogadores do poder global, uma impotência que pode custar muito caro. O risco de envolvimento mundial no conflito é real e isto pode levar o mundo para uma escalada inimaginável da guerra, assim como ocorreu em 1914, com o assassinato do Arquiduque, por mais que muitos considerassem o risco como ingenuidade. A cadeia de acontecimentos de 2023, iniciada com a carnificina do Hamas em Israel, tem potencial para envolver as grandes potências e levar a geopolítica internacional a um conflito de escala global.

Os Jogos das Potências

Busca-se aqui analisar a evolução recente do macro sistema internacional, adotando essencialmente a visão realista das Relações Internacionais. Tomou-se como referência o período que vai do final de 2021 até o primeiro trimestre de 2023, repleto de acontecimentos que indicam profundas transformações no cenário internacional. Destacam-se a crescente afirmação econômica, tecnológica e estratégica da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse período foi estudado buscando organizar os fatos de forma a torná-los mais inteligíveis e fazer que uma realidade cambiante nos pareça mais clara. O foco são as iniciativas, ações e reações, principalmente das grandes potências, que têm capacidade de projetar seu poder internacionalmente, contribuindo para modificar a configuração mundial de poder. As mudanças, que já vinham ocorrendo, foram aprofundadas na época em exame e tendem a ser duradouras, conformando um cenário internacional com duas superpotências em quadro de hostilidade, buscando formar e consolidar suas alianças. 

As potências médias e regionais, com capacidade de projeção de poder limitada no espaço de sua área de influência regional, já sofrem pressão para se alinharem aos estados líderes no cenário geopolítico em formação. A invasão da Ucrânia pela Rússia e o crescimento da China são aspectos decisivos na conformação de uma estrutura de poder de caráter essencialmente bipolar, com dois centros principais, duas superpotências, os Estados Unidos e a China, mitigada pela presença de grandes potências e potências médias ou regionais. As grandes potências são o Reino Unido, a França e a Rússia, todas integrantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, detentoras de arsenal nuclear e de poder de veto na ONU. Potências médias ou regionais são a Índia, a Indonésia, o Irã, o Egito e o Brasil, capazes de exercer seu poder regionalmente, no seu entorno. 

Dois países merecem atenção especial, a Alemanha e o Japão. Ambos foram derrotados na Segunda Guerra Mundial e tiveram fortes restrições em termos de suas forças armadas e seus armamentos, que passaram a ter caráter limitado, apenas defensivo. No entanto, as recentes tendências do teatro internacional, como o crescimento econômico, tecnológico e bélico da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, têm levado tanto a Alemanha quanto o Japão a se rearmarem. Contam com o apoio firme da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos. Tendo em vista a dimensão de suas economias e seu avanço tecnológico, esses dois países podem rapidamente passar a ter o status de grandes potências. Como pano de fundo desse rearmamento alemão e japonês, temos a estratégia da OTAN e dos americanos de contenção da Rússia na Europa, e da China na Ásia, onde teriam papel importante. No que diz respeito ao Japão, o país tem ainda a função de contrabalançar o poderio chinês no caso de uma tentativa de retomada de Taiwan, bem como a capacidade de se contrapor às ameaças da Coreia do Norte. 

A Índia, que ultrapassou a população chinesa e está em crescimento econômico e tecnológico acelerado, tem laços fortes com potências ocidentais como os Estados Unidos e o Reino Unido e é importante importadora de armas da Rússia. Embora tenha relações comerciais de vulto com a China, permanecem sem solução os conflitos de fronteira sino-indianos. A Índia tem tentado adotar uma posição de equilíbrio na reorganização de forças que se desenha no cenário internacional. Procura manter as relações comerciais com a China, continuar tendo a Rússia como fornecedor de petróleo e armas, ao mesmo tempo em que participa do QUAD, foro informal de coordenação de defesa de que fazem parte, além da Índia, o Japão, os Estados Unidos e a Austrália. Essa coordenação quadrilateral, que foi criada por iniciativa do Japão em 2007 para contrabalançar a crescente presença e influência chinesa, e foi revigorada em 2017 pelos americanos, realiza exercícios militares conjuntos regularmente.

A proximidade sino-russa foi intensa durante a Guerra Fria e agora tem ajudado a Rússia a aliviar os efeitos das sanções impostas pelas potências ocidentais por causa da invasão da Ucrânia. Essa aliança da China e da Rússia cristaliza um poderoso bloco em contraposição aos Estados Unidos e à Aliança Atlântica.

Outra vertente importante na definição de uma nova configuração internacional tem sido o deslocamento do eixo econômico para a Ásia, região com crescente protagonismo tecnológico, industrial  e comercial, em detrimento dos EUA e da Europa, que têm perdido paulatinamente sua antiga hegemonia. Esse deslocamento já influencia as cadeias mundiais de produção e de suprimento e a economia brasileira terá, necessariamente, de se adaptar à nova realidade. 

De outra parte, é interessante notar a utilização pioneira e intensa de novos meios de combate na guerra russo-ucraniana, com o uso intensivo de drones e da cibernética, ao lado de meios convencionais como os blindados. Esses novos meios de combate, testados nos campos de batalha da Ucrânia, devem alterar profundamente as futuras guerras, junto com o uso de inteligência artificial e a nanotecnologia. 

Do ponto de vista macro-estratégico, registre-se a revigoração da OTAN. A Aliança Atlântica, que se encontrava dividida e em estado próximo à letargia durante o anterior governo norte-americano, que a criticava constantemente, tornou-se mais coesa devido à ameaça russa e está tornando efetiva a antiga recomendação de que seus membros devem alocar 2% do PIB para defesa. Ademais, dois países europeus lindeiros com a Rússia, a Finlândia e a Suécia, solicitaram participar da OTAN, abrindo mão de posição de neutralidade longamente estabelecida. A Finlândia já está integrada na Aliança e a Suécia realiza os trâmites necessários. Embora aumentem a capacidade estratégico-militar da OTAN, esse alargamento de participantes na Aliança Atlântica contribui para a sensação de cerco da Rússia. É importante recordar que a possível entrada da Ucrânia na OTAN foi uma das causas alegadas pelo governo russo para a invasão.

Outra vertente que merece ser considerada é a crescente afirmação do  grupo BRICS no cenário internacional. Espaço informal de concertação política e econômica, o BRICS compõe-se do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, ou seja, integram-no dois membros permanentes e com poder de veto do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A China tem utilizado sua presença no BRICS para aumentar seus contatos e sua influência em relação a países de menor desenvolvimento e tem advogado o aumento de sua composição. Esse objetivo, que foi alcançado na Cúpula de 2023 com o processo de aceitação da Argentina, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, do Egito e do Irã, aumenta a dimensão geográfica do BRICS, o que deve levar o fórum, no entanto, a uma diluição e dispersão de seu peso diplomático. A grande beneficiada pelo alargamento do número de membros é sem dúvida a China, que aperfeiçoa sua busca de aproximação com países do terceiro mundo, ao passo que o Brasil perde protagonismo. 

Deve-se observar que, se realmente houver uma bipolaridade essencial e rígida, os países em desenvolvimento, principalmente as potências médias regionais, se confrontarão com escolhas estratégicas difíceis, em cenário de fundamental bipolaridade entre os principais centros de poder, como foram os EUA e a União Soviética no pós Segunda Guerra Mundial, e possivelmente no futuro previsível como deverão ser os Estados Unidos e a China. Nesse quadro, os núcleos de poder exercerão intensa pressão para obterem alinhamentos e  lealdades. O Brasil já tem sido pressionado, mas tem resistido pragmaticamente. Além de ter a China como seu principal parceiro comercial, há uma grande dependência do fornecimento de fertilizantes da Rússia. Ademais, temos uma vocação universalista em termos de política externa, com relações diplomáticas com praticamente todas as nações, além de ter relações comerciais amplas e diversificadas. No que diz respeito à campanha da diplomacia brasileira por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, e nossa participação no Conselho de Segurança, deve-se registrar que existe a possibilidade dessa reforma e da nossa acessão. No entanto, seria provavelmente uma participação sem poder de veto, pois não é crível que os atuais membros abram mão de sua prerrogativa de recusar resoluções que considerem prejudiciais a seus interesses estratégicos. Ademais, apesar de sua pujança agrícola e mineral, o Brasil não tem capacidade bélica que justifique sua presença em um órgão que se responsabiliza pela paz e segurança internacionais, segundo a Carta da ONU.