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Como as democracias nascem

Quero contar aqui um pouco de como o livro foi escrito. Foi uma experiência de interação em rede. As pessoas que se articulam na iniciativa chamada Casas da Democracia – a editora do livro – contribuiram decisivamente para sua elaboração e publicação (1). Além disso, os recursos para editar, publicar e traduzir para o inglês o livro também foram arrecadados por crowdfunding. Mais de duas centenas de pessoas participaram desse processo, também em rede (e os nomes dessas pessoas estão registrados, com um agradecimento especial, nas versões em português e inglês das publicações). Em especial dois nomes devem ser citados, cujas contribuições foram decisivas para a publicação da versão em papel: Gabriel Azevedo e Diogo Dutra. E para a tradução da versão digital em inglês, Severino Lucena.

O livro foi escrito ao longo de sete anos (de 2016 a 2023) a partir de artigos publicados no site Dagobah e das conversações que esses artigos geraram. Artigos não apenas de minha autoria, mas dos principais teóricos contemporâneos da democracia (2) e também textos clássicos, republicados e comentados (3).

Agora, falando um pouco do conteúdo, talvez uma frase possa resumir o livro: a democracia não é a regra do jogo, é o jogo. Como se sabe, depois de 322 a.C. a primeira democracia, surgida em Atenas na passagem do século 6 para o século 5 a.C., ficou desaparecida por mais de dois mil anos. Quando os modernos a reinventaram, a partir do século 17, perderam parte do código original. Sim, o código da democracia – não como a regra do jogo, mas como o próprio jogo – está na democracia ateniense. Para redescobrir as potencialidades criativas da democracia – principal propósito do livro, expresso no seu subtítulo – é preciso decifrar o seu código. Não é, portanto, propriamente por um interesse de historiador que devemos investigar a democracia ateniense. Ao longo do livro foram evidenciadas algumas decifrações. Uma das decifrações é que a democracia como modo-de-vida surgiu antes da democracia como regime político (ou modo político de administração do Estado).

A mudança do jogo para regra do jogo acompanhou uma tendência da democracia de transformar uma realidade política, acorde a um padrão de organização, por uma realidade jurídica. Regra do jogo tem mais a ver com Estado de direito do que com a democracia originária. Isso se manteve quando a democracia foi reinventada pelos modernos a partir do século 17. Foram os elementos sociais da democracia originária que se perderam.

E aqui entramos na tese central do livro.

Desde o final do século passado as redes constituíram meu tema principal de investigação. Foram quase vinte anos explorando a fenomenologia da interação. Concomitantemente comecei a tratar também da democracia. Esse assunto se tornou dominante – não exclusivo, mas quase – em minhas investigações a partir da segunda metade da segunda década.

Durante essa trajetória investigativa e reflexiva descobri que há um condicionamento recíproco entre padrões sociais de organização (rede ou hierarquia) e modos de regulação de conflitos (democracia ou autocracia). Não é que padrões mais distribuídos do que centralizados de organização (redes propriamente ditas) gerem espontaneamente democracia (modos de regulação não-guerreiros de conflitos) e sim que a democracia, que é sempre fruto da interação política, só pode perdurar enquanto os padrões sociais de organização tiverem um grau de distribuição maior do que de centralização. Por isso que as experiências democráticas foram sempre fugazes, localizadas e precárias (ocorrendo apenas, em alguns poucos lugares, em menos de meio milênio durante cinco a seis milênios de história).

Um quarto de século depois de ter iniciado essas explorações cheguei à conclusão de que a democracia como modo-de-vida exige um tratamento comum dos dois temas: redes e democracia. Experimentar a democracia (ou novas formas de democracia) não apenas no Estado, mas nas organizações da sociedade, nas famílias, vizinhanças, grupos de amigos, escolas, igrejas, organizações sociais e empresas, implica tornar mais distribuídos os padrões de organização dessas diferentes formas de sociabilidade (mais rede, menos hierarquia). Não, como já foi assinalado, que a mudança para padrões mais distribuídos de organização vá gerar automaticamente, sem política, mais democracia, quer dizer, mais processos pazeantes de regulação de conflitos e sim que somente assim poderemos ensaiar novas formas de democracia no cotidiano das pessoas, na chamada vida-comum ou na capacidade dessas pessoas de viver a sua convivência. Talvez esta tenha sido a minha única descoberta importante (pelo menos para mim).

O livro é sobre isso.

Notas

(1) Antonio Augusto Casari Kós, Bruno Fernando Riffel, Cláudia Amaral, Diego Jim Fernandes Ferreira, Diego M. Soares, Diogo Dutra, Eric Vieira de Souza, Fernando Lasman, Fernando Cesar Pires Baptista, Fernando Domingues, Fernando Ferrari, Gabriel Azevedo, Geraldo Guedes da Silva, Jessica Kobayashi Correa, Juliano Campos, Leonardo Valverde, Luiz de Campos Jr, Marta Martinz, Mauai Mauro Henrique Toledo, Nilton Lessa, Rafael Almeida, Rafael Ferreira de Paula, Rafael Ummus, Renato J Cecchettini, Severino Lucena , Silvio Duarte, Thiago Padovan e Willame Santos.

(2) Entre outros, Carothers, Coppedge, Diamond, Foa, Fukuyama, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, O’Donnell, Plattner, Przeworski, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt.

(3) Como os de Althusius, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, von Humbolt, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Bobbio, Lefort, Castoriadis, Maturana, Rawls, Berlin, Havel, Dahrendorf, Sen e Dahl – para ficar no final do século 20.

Regimes políticos na América Latina

(com a colaboração de Renato Cecchettini)

Como classificar os regimes dos países da América Latina? As melhores classificações dos regimes políticos do mundo são a do V-Dem Institute (V-Dem) e a da The Economist Intelligence Unit (EIU). Poderíamos, simplesmente, aplicá-las a 21 países da América Latina. Mas antes seria interessante ver os problemas dessas classificações.

CLASSIFICAÇÕES DE REGIMES POLÍTICOS

O V-Dem classifica os regimes em quatro tipos: Liberal Democracy (Democracia Liberal), Electoral Democracy (Democracia Eleitoral), Electoral Autocracy (Autocracia Eleitoral) e Closed Autocracy (Autocracia Fechada). O regime brasileiro é classificado como Electoral Democracy. O V-Dem adota seis índices: Democracia Liberal (uma espécie de síntese, chamado LDI), Democracia Eleitoral, Componente Liberal, Componente Igualitário, Componente Participatório, Componente Deliberativo.

The Economist Intelligence Unit classifica os regimes em quatro tipos: Full Democracy (Democracia Plena), Flawed Democracy (Democracia Defeituosa), Hybrid Regime (Regime Híbrido) e Authoritarian Regime (Regime Autoritário). O regime brasileiro é classificado como Flawed Democracy. A EIU adota cinco índices: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política e Liberdades Civis.

Comecemos com algumas perguntas problematizadoras: Democracias (apenas) eleitorais são regimes da mesma natureza que democracias liberais? E podem ser chamadas propriamente de democracias? O que fazer com os 58 regimes que o V-Dem classifica como democracias eleitorais (1)? O que fazer com os 48 regimes que a The Economist Intelligence Unit (EIU) chama de democracias defeituosas (flaweds democracies) (2) e, ainda, com os 36 regimes que a EIU chama de híbridos (3)?

Não parecem ser todos a mesma coisa. Ainda que sejam considerados (pelo V-Dem) democracias eleitorais, o regime de Portugal não se parece com o da Bolívia e o regime do Canadá não se parece com o do México. Ainda que sejam considerados (pela EIU) democracias defeituosas, o regime da República Checa não se parece com o do Brasil e, menos ainda, com o da Nigéria (hybrid). Quais as diferenças entre eles?

Em primeiro lugar é preciso ver que esses regimes não são democracias (liberais).

Em dados de 2022, as mais avançadas democracias do planeta são as 32 democracias liberais (segundo o V-Dem) (4) ou as 24 democracias plenas (segundo a The Economist Intelligence Unit) (5).

Liberal, no sentido político do termo é quem toma a liberdade (e não a ordem, nem que seja a ordem mais justa imaginável do universo) como sentido da política. Os primeiros democratas atenienses, nesse sentido originário do conceito de liberdade, eram democratas liberais.

Nos termos de hoje um regime é democrático na medida em que observa o princípio liberal da democracia, que implica uma visão negativa do poder político: não propriamente a capacidade do governo de se impor à sociedade, mas a possibilidade da sociedade de controlar o governo. Bons exemplos são as democracias liberais na classificação do V-Dem (4) ou as democracias plenas na classificação da The Economist Intelligence Unit (5).

Claro que um regime democrático liberal tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático (apenas) eleitoral (na classificação do V-Dem). Um regime democrático pleno tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático defeituoso ou do que um regime híbrido (na classificação da The Economist Intelligence Unit).

Quando falamos de democracia estamos falando, no sentido pleno do conceito, de democracia liberal.

Isso porque democracia, nesse sentido forte do conceito, equivale à sociedade democrática (aquela que é capaz de controlar o governo). Isso sugere um exame das classificações correntes de regimes políticos. Aquelas categorias que são chamadas de democracias eleitorais (V-Dem) ou de democracias defeituosas e regimes híbridos (The Economist Intelligence Unit) não deveriam ser chamadas, no sentido pleno do conceito, de democracias e sim de regimes eleitorais em transição. Essa transição pode ser democratizante ou autocratizante na medida em que esses regimes se aproximam ou se afastam das democracias (liberais).

Mas há regimes eleitorais não autoritários (não-iliberais) e há regimes eleitorais autoritários (iliberais). Destrinchando a classificação do V-Dem, há democracias eleitorais não parasitadas por populismos (Canadá, Portugal, Malta), há democracias eleitorais parasitadas por neopopulismos, o populismo atual dito de esquerda (Bolívia, Colômbia, México) e há democracias eleitorais parasitadas por populismos-autoritários, o populismo atual dito de direita ou de extrema-direita, também chamado de nacional-populismo (El Salvador, Armênia, Bulgária). E ainda há democracias eleitorais parasitadas por dois populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita), como é o caso do Brasil afetado pelo lulopetismo e pelo bolsonarismo. Assim como há autocracias eleitorais neopopulistas (Venezuela, Nicarágua, Angola) e autocracias eleitorais populistas-autoritárias (Hungria, Turquia, Índia).

A diagram of political groups

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Regimes eleitorais não-autoritários podem ser considerados Estados democráticos de direito, mas isso não significa que correspondam, necessariamente, à sociedades democráticas. Em outras palavras, nem todos os Estados democráticos de direito possuem (ou melhor, são possuídos por) sociedades capazes de controlar o governo. Por exemplo, em regimes eleitorais não-autoritários parasitados por populismos, há um déficit de democratização da sociedade que impede que eles se convertam em democracias liberais, quer dizer, em democracias no sentido pleno do conceito.

Democracias (apenas) eleitorais (não-liberais) ou democracias defeituosas, enquanto estão sob o domínio de governos populistas, são impedidas de se converter em democracias liberais.

Regimes eleitorais autoritários não são Estados democráticos de direito. Está em aberto a questão de se poderiam ser chamados de Estados de direito (mesmo quando há império da lei). Eles se enquadram mais perfeitamente na categoria de autocracias eleitorais (usada pelo V-Dem).

Há também regimes não-eleitorais (Cuba, China, Arábia Saudita). Sobre esses, na época atual, não há dúvidas. Não são Estados democráticos de direito, nem mesmo Estados de direito (e neles não há império da lei e sim o mando absoluto do líder autocrata ou da sua organização). São as autocracias plenas.

Uma classificação mais condizente com as considerações deste artigo pode ser intentada. Por exemplo, no diagrama abaixo:

A diagram of a political system

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A classificação acima é referenciada no conceito de populismo (que é um comportamento político não-liberal). Mas nem todo regime eleitoral não-liberal é populista. Existem regimes eleitorais que não são parasitadas por populismos e que podem ser considerados transições mais próximas para uma democracia (considerando-se que toda democracia propriamente dita é liberal). Em contrapartida, todas os regimes eleitorais parasitados por populismos, conquanto não sejam autocracias, são transições mais próximas para uma autocracia populista (considerando-se que nem toda autocracia é populista, uma vez que autocracias não-eleitorais não são populistas).

Tudo isso, porém, ainda está longe, bem longe, de uma classificação adequada, que deveria ser centrada no conceito de liberalismo, lato sensu, como política que tem como sentido a liberdade, a rigor incluindo, portanto, o paleo-liberalismo dos primeiros democratas (atenienses), o liberalismo clássico (dos reinventores modernos da democracia) e, quem sabe, um futurível liberalismo pós-moderno (a aparecer – se aparecer – numa quarta onda de democratização que poderia ser considerada uma terceira invenção da democracia) (6).

UMA CLASSIFICAÇÃO POLÍTICA DOS REGIMES POLÍTICOS

Sintetizando, regimes políticos podem ser: A) eleitorais ou B) não-eleitorais.

A) Se forem eleitorais podem ser: Aa) liberais ou Ab) não-liberais.

Se forem liberais serão Aa1) democracias (propriamente ditas ou plenas).

Se forem não-liberais podem ser: Ab1) regimes em transição democratizante (democracias formais), Ab2) regimes em transição autocratizante (só benevolamente chamados ainda de democracias) ou Ab3) regimes eleitorais autoritários (autocracias eleitorais: as novas ditaduras).

Em geral, os regimes eleitorais não-liberais em transição autocratizante são parasitados por populismos (quer pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita, quer pelo neopopulismo, considerado de esquerda).

B) Se forem não-eleitorais serão autocracias fechadas (as velhas ditaduras).

Essa classificação surgiu a partir de modificações das principais classificações adotadas pela Freedom House (FH), pela The Economist Intelligence Unit (EIU) e, principalmente, pelo V-Dem. Ela contempla cinco tipos de regimes políticos:

1) Democracias propriamente ditas (correspondendo ao estrato superior dos Free Countries da FH, às Full Democracies da EIU e parte das Liberal Democracies do V-Dem), que são regimes eleitorais liberais.

2) Regimes em transição democratizante (uma parte dos Free Countries da FH, uma parte das Flaweds Democracies da EIU e uma parte das Electoral Democracies do V-Dem), que são regimes eleitorais não-liberais formais (em geral não parasitados por populismos).

3) Regimes em transição autocratizante (o estrato inferior dos Free Countries e dos Partly-Free Countries da FH, uma parte das Flaweds Democracies e uma parte dos Hybrid Regimes da EIU e partes das Electoral Democracies e das Electoral Autocracies do V-Dem), que são regimes eleitorais não-liberais, em geral parasitados por populismos.

4) Regimes eleitorais autoritários (os Not-Free Countries da FH, algumas das Flawed Democracies e dos Hybrid Regimes da EIU e parte das Electoral Autocracies do V-Dem).

5) Regimes não-eleitorais autóritários (os Not-Free Countries da FH, os Authoritarian Regimes da EIU e as Closed Autocracies do V-Dem).

Um diagrama compreensível segue abaixo:

Não se sabe o valor de X e Y, apenas o da sua soma. Mas a análise política tem revelado, caso a caso concreto, os regimes eleitorais não-liberais considerados democracias eleitorais com governos populistas que estão se alinhando ao eixo autocrático. Por exemplo, África do Sul, Brasil, Bolívia, México, Colômbia, Gâmbia, Indonésia, Namíbia, Níger, Senegal, Serra Leoa subscreveram ou apoiaram a iniciativa do eixo autocrático, via África do Sul, de condenar Israel por genocídio. Politicamente, esses países não estão no mesmo campo dos regimes eleitorais não-liberais também considerados democracias eleitorais (porém sem governos claramente populistas), como, por exemplo, Austria, Bulgária, Canadá, Croácia, Georgia, Grécia, Lituânia, Malta, Moldova, Paraguai e Portugal.

Ou seja, o V-Dem classifica na mesma categoria (democracia eleitoral) tipos de regime que têm comportamentos políticos diferentes, o que dificulta a operacionalização política da classificação. Entende-se que a chamada ciência política não deva ser instrumentalizada politicamente para apontar ou justificar enquadramentos classificatórios que não derivem de critérios objetivos como os adotados pelo V-Dem:

Para os pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, “o princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo” (7).

Parece evidente que, com a ascensão dos populismos do século 21, esse princípio exige uma nova formulação:

O princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (sendo, portanto, contrário ao majoritarismo e ao hegemonismo). Contempla a afirmação de modos-de-vida preferidos pela sociedade expressos pelos desejos das comunidades políticas democráticas, ensejando que a sociedade controle o governo (e nunca o contrário). Adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites e condicionamentos impostos às instituições do Estado. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente [e contido em suas funções], freios e contrapesos efetivos, uma cultura política que valoriza a pluralidade política (compreendendo, inclusive, o reconhecimento das oposições democráticas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime, não encorajando a polarização introduzida pelos populismos) e a abertura para a interação com a sociedade que, juntos, limitam o exercício do poder executivo e balizam o funcionamento dos demais poderes estatais (8).

Regimes eleitorais não-liberais parasitados por populismos, mesmo que sejam chamados de democracias eleitorais, respondem muito fracamente ao quesito em tela (o princípio liberal da democracia). Algum elemento liberal sempre haverá, a rigor, em qualquer regime (enquanto existir sociedade humana).

No diagrama acima vê-se que o que chamamos (quer dizer, o V-Dem chama) de democracias eleitorais denominam duas coisas diferentes: regimes em transição democratizante (não-parasitados por populismos) e regimes em transição autocratizante (parasitados por populismos). Os regimes eleitorais não-liberais que chamamos de democracia são, na verdade transições entre democracia (a democracia propriamente dita, quer dizer, a democracia liberal) e autocracia (eleitoral).

Nos regimes em transição democratizante (não parasitados por populismos) há mais elementos de liberalismo (político) do que nos regimes em transição autocratizantes (parasitados por populismos). Porque os populismos derruem os elementos liberais dos regimes eleitorais (como, por exemplo, a aceitação do pluralismo) (9). Nos dias de hoje (ou sob a terceira onda de autocratização) quase nenhum regime eleitoral vira um regime eleitoral autoritário (uma autocracia eleitoral) sem ter sido parasitado por um populismo (como aconteceu na Venezuela, com o neopopulismo chavista e na Hungria, com o populismo-autoritário orbanista). Claro que pode virar, isto sim, um regime não-eleitoral autoritário (uma autocracia fechada) se for vítima de um golpe de Estado em termos tradicionais (como aconteceu recentemente no Niger), mas estes casos estão longe de ser os mais frequentes atualmente.

REGIMES POLÍTICOS NA AMÉRICA LATINA SEGUNDO O V-DEM

Vamos nos concentrar no ranking gerado pela aplicação do Índice de Democracia Liberal (LDI) do V-Dem 2023 aos seguintes 21 regimes da América Latina:

  1. Costa Rica 0,816
  2. Chile 0,786
  3. Uruguai 0,770
  4. Brasil 0,692
  5. Argentina 0,690
  6. Suriname 0,631
  7. Peru 0,576
  8. Panamá 0,571
  9. Colômbia 0,565
  10. Equador 0,467
  11. República Dominicana 0,438
  12. Paraguai 0,426
  13. Honduras 0,394
  14. Guatelmala 0,309
  15. Bolívia 0,353
  16. México 0,299
  17. El Salvador 0,111
  18. Haiti 0,066
  19. Cuba 0,058
  20. Venezuela 0,055
  21. Nicarágua 0,027

Além do retrato é preciso ver o filme: a evolução (na verdade as modificações) desses regimes ao longo do tempo.

A graph showing the political system

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Claro que temos problemas com os levantamentos do V-Dem. Como ele consulta especialistas de cada país ou região, em alguns casos (como o do Brasil, por exemplo), os critérios adotados não parecem levar em conta que a maioria dos acadêmicos consultados tem uma tendência fortemente de esquerda – o que, pode distorcer o foco das suas avaliações.

Outro problema é que os relatórios baseados em indicadores estáticos não levam em conta os processos em andamento. São fotografias e não o filme. Por exemplo, o caso da Ucrânia, que era uma democracia eleitoral e virou uma autocracia eleitoral segundo o V-Dem, mas que decaiu em razão da guerra. País invadido é inexoravelmente compelido a restringir direitos políticos e liberdades civis. Não valeria classificar o seu regime com base em indicadores normais.

RECLASSIFICANDO OS REGIMES POLÍTICOS DA AMÉRICA LATINA

À luz do que foi exposto acima é possível reclassificar os regimes políticos dos países da América Latina, conforme a tabela abaixo:

A table with text overlay

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1 e 2 | AUTOCRACIAS FECHADAS | Cuba [1] é uma autocracia fechada, uma ditadura de esquerda típica do século 20 – um regime não eleitoral. O Haiti [2] também é uma autocracia fechada, mas não se pode dizer com certeza que é o mesmo tipo de regime do cubano: não se aplica a ele a distinção (anacrônica) esquerda x direita. O regime do Haiti é o caos político.

3, 4 e 5 | AUTOCRACIAS ELEITORAIS | Venezuela [3] e Nicarágua [4] são autocracias eleitorais ditas de esquerda, que começaram seu processo de autocratização depois de serem parasitadas por uma forma de populismo que surgiu no dealbar do século 21, sobretudo na América Latina (o chamado neopopulismo). El Salvador [5] também é uma autocracia eleitoral, dita de extrema-direita, que começou seu processo de autocratização ao ser parasitado por uma forma de populismo que emergiu a partir da segunda década do século 21 (o chamado populismo-autoritário ou nacional-populismo).

6, 7, 8, 9, 10 e 11 | REGIMES ELEITORAIS PARASITADOS POR POPULISMOS | México [6], Colômbia [7], Honduras [8], Bolívia [9] e Brasil [10] são regimes eleitorais, ainda chamados de democracias (apenas eleitorais, segundo o V-Dem ou defeituosas, segundo a EIU), atualmente parasitados por governos neopopulistas (ditos de esquerda). Não viraram ainda autocracias, mas estão sob risco de entrar em transição autocratizante. Argentina [11] é um regime eleitoral também parasitado por um governo populista (dito de direita). Não se sabe ao certo se é um governo populista-autoritário ou nacional-populista (como o de Orbán, na Hungria). Sabe-se, porém, que o regime argentino não decaiu para uma autocracia, embora possa entrar em risco de.

12, 13, 14, 15, 16 e 17 | REGIMES ELEITORAIS FORMAIS | Panamá [12], Paraguai [13], Guatemala [14], República Dominicana [15], Equador [16] e Peru [17] também são, atualmente, regimes eleitorais formais (democracias apenas eleitorais ou defeituosas), quer dizer, não notadamente parasitados por governos populistas. Não estão sob grande risco – neste momento – de entrar em transição autocratizante e poderiam entrar em transição democrátizante convertendo-se em democracias liberais (embora isso também não seja muito provável no curto prazo).

18, 19, 20 e 21 | DEMOCRACIAS LIBERAIS | Costa Rica [18], Chile [19], Uruguai [20] e Suriname [21] são democracias propriamente ditas, ou seja, democracias liberais – as quatro únicas da América Latina.

Notas

(1) Electoral democracies (V-Dem 2023):

  1. Argentina
  2. Armenia
  3. Austria
  4. Bhutan
  5. Bolivia
  6. Botswana
  7. BiH
  8. Brazil
  9. Bulgaria
  10. Canada
  11. Cape Verde
  12. Colombia
  13. Croatia
  14. Dominican Republic
  15. Ecuador
  16. Gambia
  17. Georgia
  18. Ghana
  19. Greece
  20. Guyana
  21. Honduras
  22. Indonesia
  23. Jamaica
  24. Kenya
  25. Kosovo
  26. Lesotho
  27. Liberia
  28. Lithuania
  29. Malawi
  30. Maldives
  31. Malta
  32. Mauritius
  33. Mexico
  34. Moldova
  35. Mongolia
  36. Montenegro
  37. Namibia
  38. Nepal
  39. Niger
  40. North Macedonia
  41. Panama
  42. Paraguay
  43. Peru
  44. Poland
  45. Portugal
  46. Romania
  47. Tomé & P.
  48. Senegal
  49. Sierra Leone
  50. Slovenia
  51. Solomon Islands
  52. South Africa
  53. Sri Lanka
  54. Suriname
  55. Timor-Leste
  56. Trinidad and Tobago
  57. Vanuatu
  58. Zambia

(2) Flaweds democracies (EIU 2022):

  1. Albania
  2. Argentina
  3. Belgium
  4. Botswana
  5. Brazil
  6. Bulgaria
  7. Cabo Verde
  8. Colombia
  9. Croatia
  10. Cyprus
  11. Czech Republic
  12. Dominican Republic
  13. Estonia
  14. Ghana
  15. Greece
  16. Guyana
  17. Hungary
  18. India
  19. Indonesia
  20. Israel
  21. Italy
  22. Jamaica
  23. Latvia
  24. Lesotho
  25. Lithuania
  26. Malaysia
  27. Malta
  28. Moldova
  29. Mongolia
  30. Montenegro
  31. Namibia
  32. North Macedonia
  33. Panama
  34. Philippines
  35. Poland
  36. Portugal
  37. Romania
  38. Serbia
  39. Singapore
  40. Slovakia
  41. Slovenia
  42. South Africa
  43. Sri Lanka
  44. Suriname
  45. Thailand
  46. Timor-Leste
  47. Trinidad and Tobago
  48. United States of America

(3) Hybrid regimes (EIU 2022):

  1. Armenia
  2. Bangladesh
  3. Benin
  4. Bhutan
  5. Bolivia
  6. Bosnia and Hercegovina
  7. Côte d’Ivoire
  8. Ecuador
  9. El Salvador
  10. Fiji
  11. Gambia
  12. Georgia
  13. Guatemala
  14. Honduras
  15. Hong Kong
  16. Kenya
  17. Liberia
  18. Madagascar
  19. Malawi
  20. Mauritania
  21. Mexico
  22. Morocco
  23. Nepal
  24. Nigeria
  25. Pakistan
  26. Papua New Guinea
  27. Paraguay
  28. Peru
  29. Senegal
  30. Sierra Leone
  31. Tanzania
  32. Tunisia
  33. Turkey
  34. Uganda
  35. Ukraine
  36. Zambia

(4) Liberal democracies (V-Dem 2023):

  1. Australia
  2. Barbados
  3. Belgium
  4. Chile
  5. Costa Rica
  6. Cyprus
  7. Czech Republic
  8. Denmark
  9. Estonia
  10. Finland
  11. France
  12. Germany
  13. Iceland
  14. Ireland
  15. Israel
  16. Italy
  17. Japan
  18. Latvia
  19. Luxembourg
  20. Netherlands
  21. New Zealand
  22. Norway
  23. Seychelles
  24. Slovakia
  25. South Korea
  26. Spain
  27. Sweden
  28. Switzerland
  29. Taiwan
  30. United Kingdom
  31. Uruguay
  32. USA

(5) Full democracies (EIU 2022):

  1. Australia
  2. Austria
  3. Canada
  4. Chile
  5. Costa Rica
  6. Denmark
  7. Finland
  8. France
  9. Germany
  10. Iceland
  11. Ireland
  12. Japan
  13. Luxembourg
  14. Mauritius
  15. Netherlands
  16. New Zealand
  17. Norway
  18. South Korea
  19. Spain
  20. Sweden
  21. Switzerland
  22. Taiwan
  23. United Kingdom
  24. Uruguay

(6) Cf. a conclusão do meu artigo de 27/07/2023, As três ondas de democratização e de autocratização: uma nova abordagem, disponível em <https://dagobah.com.br/as-tres-ondas-de-democratizacao-e-de-autocratizacao-uma-nova-abordagem/>.

(7) Cf. Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018), no fundamental artigo Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes <https://doi.org/10.17645/pag.v6i1.1214>.

(8) Franco, Augusto (2023). Como as democracias nascem. São Paulo: Casas da Democracia, 2023.

(9) Cf. o artigo de Juraj Medzihorsky & Stafan I. Lindberg (2023), Walking the Talk: How to Identify Anti-Pluralist Parties. Sage Journals (17/05/2023).

Quantas ditaduras no mundo de hoje são de extrema-direita?

Eis um levantamento de pouco mais de quarenta principais (incluindo todas as mais crueis) ditaduras atuais do mundo para verificar quantas podem ser consideradas de extrema-direita. É uma refutação da falsa alegação de que a extrema-direita é a única (ou a maior) ameaça atual à democracia no mundo.  O assunto já foi tratado em outro artigo desta revista, intitulado A extrema-direita como único inimigo da democracia.

Por certo os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais (como Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro etc.) – a maioria dos quais dita de extrema-direita – são, sim, uma ameaça à democracia, mas não a única (nem a principal). Ademais, só três deles (Bukele, Erdogan e Orbán) governam países que têm regimes que podem ser considerados autoritários. Não tem nem comparação com o número de governantes de ditaduras que se declaram de esquerda ou estão na órbita de influência de regimes que se declaram de esquerda.

Trump, Vance e Bannon são nacional-populistas (de extrema-direita) mas ainda não estão no governo dos EUA, que seguem sendo uma democracia. Se Trump vencer as eleições de 2024 haverá uma significativa mudança na correlação de forças no âmbito mundial, mas os EUA continuarão sendo – nos curto e médio prazos – uma democracia.

Le Pen é nacional-populista, mas não governa a democracia liberal francesa. Wilders, idem, mas não governa a democracia liberal holandesa.

Farage e os ex-militantes do Brexit aumentaram sua representação política nas ultimas eleições, mas estão longe do governo no Reino Unido, uma democracia liberal.

Chrupalla, Weidel e Gauland, da Alternativa para a Alemanha, não estão no governo da Alemanha, uma democracia liberal.

Rikka Purra, do Partido dos Finlandeses, que pode ser considerado de extrema-direita, não governa a Finlândia, uma democracia liberal.

Abascal e Ventura não governam as democracias espanhola e portuguesa.

Por fim, Bolsonaro já saiu do governo do Brasil e está inelegível até 2030.

Além de Bukele, Erdogan e Orbán sobrou apenas Meloni, que poderia ser considerada nacional-populista e governa de fato a Itália, cujo regime, entretanto, continua sendo democrático liberal.

A seguir vamos mostrar que as ameaças concretas à democracia partem muito mais das ditaduras do que de forças políticas nacional-populistas de oposição que parasitam democracias liberais. Isso é tão óbvio que nem seria necessário argumentar. Ditaduras (autocracias fechadas ou eleitorais, regimes autoritários ou não-livres) são o oposto de democracias.

Partimos da classificação do V-Dem (Universidade de Gotemburgo) de todas as autocracias fechadas (incluindo algumas autocracias eleitorais) que é, em grande parte, coincidente com os países não-livres da Freedom House e com os regimes autoritários da The Economist Intelligence Unit. Esses são os três mais reconhecidos centros de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo.

Abaixo vai a lista de ditaduras (em ordem alfabética), seus governantes atuais, os partidos a que pertencem e suas percebidas orientações políticas:

Afeganistão | Hibatullah Azhundzada e seu partido fundamentalista Talibã não podem ser considerados de extrema-direita. O jihadismo ofensivo islâmico não pode, a rigor, ser considerado de direita ou esquerda – ainda que seja um adversário das democracias liberais.

Arábia Saudita | Mohammad bin Salman é o chefe da corte real da Casa de Saud. Não há partidos políticos no país. O staff do Estado é fundamentalista islâmico, influenciado pela seita dos wahhabbis, uma corrente sunita geralmente conhecida pelo nome salafista. Não tem sentido classificar tal regime como de direita ou de esquerda, embora o fundamentalismo islâmico seja contrário às democracias liberais. A Arábia Saudita também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Azerbaijão | Ilham Aliev e seu Partido Novo Azerbaijão orbitam na esfera de influência da ditadura russa. Mas não podem ser classificados como extrema-direita.

Barein| Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa é o primeiro-ministro do Barein, uma monarquia islâmica sem partidos. O regime não pode ser classificado como de esquerda ou de direita.

Bielorrússia | Aleksandr Lukashenko e seu Partido Independente da Bielorússia não são de extrema-direita. O regime da Bielorrússia  faz parte do eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã etc.) articulado contra as democracias liberais.

Burkina Faso | Ibrahim Traoré e seu Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (a junta militar que governa o país depois de um golpe de Estado de 2022) não podem ser classificados como direita ou esquerda.

Camboja | Hun Sen – um ex-comandante do Khmer Vermelho que mudou de lado – que governa o Camboja há quatro décadas, e o seu Partido Popular do Camboja, alinharam a sua ditadura à ditadura chinesa. Obviamente, não são de extrema-direita.

Catar | Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani é uma monarquia absolutista islâmica. Não tem partidos. A família Al Thani governa o país com mão de ferro desde 1825. Não tem o menor sentido classificar esse regime como extrema-direita. Aliás, o Catar dá abrigo à direção atual do Hamas e financia esse grupo terrorista.

Chade | Mahamat Déby é o chefe da junta militar que governa o Chade. Ele e seu Movimento de Salvação Patriótica estão sendo capturados pela ditadura russa de Vladimir Putin. Tal como no caso da Rússia, não faz sentido classificá-los como direita ou esquerda.

China | Xi Jinping e seu Partido Comunista da China não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê. A China também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Coreia do Norte | Kim Jong-un e seu Partido dos Trabalhadores da Coreia não são de extrema-direita.Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Cuba | Díaz-Canel e seu Partido Comunista de Cuba não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

El Salvador | Nayib Bukele e seu partido Nuevas Ideas são nacional-populistas ou populistas-autoritários que podem, sim, ser classificados como de extrema-direita. Antes Bukele integrou a FMLN, Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, de extrema-esquerda.

Emirados Árabes Unidos | Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum é um monarca absolutista de uma ditadura islâmica (sunita). Como em outros casos de regimes autoritários islâmicos não faz muito sentido classificá-lo como de direita ou de esquerda. Mas os EAU estão no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Eritreia | Isaias Afewerki governa um Estado de partido único na Eritréia. Ainda que não faça muito sentido classificar seu regime totalitário como sendo de direita ou de esquerda, o ditador está na esfera de influência de autocracias (como a Turquia e a Venezuela) e de regimes eleitorais parasitados por governos populistas (como o Brasil).

Essuatini | Mswati II (o rei), Ntfombi (a rainha-mãe) e Russell Diamini (o primeiro-ministro) governam essa ditadura africana. Os partidos políticos são proibidos no reino de Essuatini (antiga Suazilândia). Não há política propriamente dita no país. Não faz sentido classificar o regime como de direita ou de esquerda.

Gaza | Ismail Haniya e Yahya Sinwar e seu partido, o Hamas, embora de orientação sunita, estão a serviço do regime teocrático xiita iraniano na sua ofensiva contra as democracias liberais (em especial as de Israel e dos EUA). São hoje teleguiados pelo eixo autocrático para fazer o serviço sujo de inflamar as populações contra a democracia. Não podem ser classificados como de extrema-direita, pelo contrário: são apoiados pela esquerda (populista, classista e identitarista) em todo o mundo.

Guiné Equatorial | O ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo e seu Partido Democrático da Guiné Equatorial estão sendo caputurados pela ditadura chinesa. Obviamente não pode ser classificado como de extrema-direita.

Haiti | É uma autocracia mergulhada no caos político e social. Não se sabe exatamente quem governa o país.

Hungria | Viktor Orbán e seu partido Fidesz governam a autocracia eleitoral húngara, chamada de “democracia iliberal”. Aliadas de Vladimir Putin, as forças políticas dominante na Hungria são, claramente, populistas-autoritárias ou nacional-populistas de extrema-direita.

Iémen | O Iémen é um país em guerra civil onde se configura dualidade de poder. Os terroristas Houthis, financiados pelo Irã, controlam parte significativa do país. Mohammed Ali al-Houthi, chefe do comitê revolucionário supremo, é um vassalo do eixo autocrático na sua investida contra as democracias liberais.

Irã | Ali Khamenei e seu partido Associação dos Clérigos Combatentes não podem ser considerados de extrema-direita. O Irã faz parte do eixo autocrático (juntamente com Rússia, China, Coreia do Norte – todos autodeclarados de esquerda), articulado contra as democracias liberais. O Irã também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Jordânia | O rei Abdullah II bin Al Hussein controla a monarquia jordaniana de devoção islâmica sunita. Não faz sentido classificar o regime como de extrema-direita.

Kuwait | Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah é o atual Emir do Kuwait, uma ditadura islâmica. Não faz sentido classificar o regime monárquico como extrema-direita.

Laos | Sonexay Siphandone e seu Partido Popular Revolucionário do Laos (PPRL) que governam essa república socialista de partido único estão bem longe de ser de extrema-direita. Pelo contrário, historicamente são de esquerda.

Líbia | Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib com seu movimento Libya al-Mustakbal tentam controlar o país. É uma ditadura islâmica (sunita). Vários grupos jihadistas e tribais controlam partes do país. Não cabe classificar o regime como extrema-direita.

Mali | Choguel Kokalla Maïga e seu Movimento Patriótico pela Renovação governam o país. O Mali está sendo capturado pela ditadura russa (o que também está ocorrendo com Mauritânia e Niger).

Marrocos | O rei Maomé VI e o primeiro-ministro Aziz Akhannouch e seu Partido Nacional dos Independentes controlam essa monarquia islâmica.

Myanmar | Min Aung Hlaing e seu Partido de Solidariedade e Desenvolvimento da União (USDP), ligado aos militares que desfecharam um golpe de Estado, controlam essa ditadura asiática.

Nicarágua | Daniel Ortega e seu partido, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Omã | Haitham bin Tariq Al Said é o sultão da monarquia absolutista islâmica que governa Omã.

Rússia | Vladimir Putin e seu partido Rússia Unida são nacional-populistas, mas não podem ser considerados de extrema-direita. Pela simples razão de que apoiam todas as ditaduras que se declaram de esquerda. A Rússia também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Síria | Bashar al-Assad e seu Partido Socialista Árabe Baath não podem ser considerados de extrema-direita. O regime ditatorial sírio é apoiado ostensivamente pela Rússia e faz parte do eixo autocrático articulado contra as democracias liberais.

Somália | Hassan Sheikh Mohamud e seu Partido da União para Paz e Desenvolvimento, anterior Partido Paz e Desenvolvimento (ligado à Irmandade Muçulmana), são operadores de um regime islâmico.

Sudão | O general Abdel Fattah al-Burhan e seu partido Independente são islâmicos militarizados.

Sudão do Sul | Salva Kiir Mayardit e seu partido Movimento Popular de Libertação do Sudão são aliados da ditadura de Angola, que se declara de esquerda (do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola). Não podem ser considerados de extrema-direita.

Tajiquistão | Emomali Rahmon, Kokhir Rasulzoda e seu Partido Democrático Popular do Tajiquistão são nacionalistas, estatistas e autoritários. Orbitam na área de influência da ditadura russa e se alinham ao Partido Comunista Chinês. Nada, portanto, de extrema-direita.

Turquemenistão | Serdar Berdimuhamedow e seu Partido Democrático do Turquemenistão – no poder  há mais de trinta anos – têm profundas raízes comunistas. O partido foi liderado pelo ex-líder do Partido Comunista, Saparmyrat Nyýazow, desde a dissolução da União Soviética. São populistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Nada de direita.

Turquia | Recep Tayyip Erdoğan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) poderiam, com algum esforço, ser considerados de extrema-direita (ou seja, nacional-populistas ou populistas-autoritários). O AKP é defensor do neo-otomanismo e do nacionalismo econômico. Politicamente, se alinha ao eixo autocrático contra as democracias liberais.

Uzbequistão | Shavkat Mirziyayev e seu Partido Liberal Democrático do Uzbequistão são nacionalistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Têm uma ideologia que se poderia considerar de direita na medida em que esposa o liberalismo-econômico, mas não o liberalismo político, quer dizer, a democracia. Esse partido surgiu de um movimento de empreendores e empresários para dar a aparência de multipartidarismo, mas na verdade é controlado pelo Partido Democrático Popular.

Venezuela | Nicolás Maduro e seu Partido Socialista Unido da Venezuela não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Vietnam | Pham Minh Chính é o chefe do Partido Comunista do Vietnam. Não é necessário dizer que não têm nada de direita. O Vietnam é uma ditadura socialista unitária unipartidária.

Um esboço de classificação

1 – De extrema-direita mesmo (entendendo-se por isso os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais) temos três governantes de regimes autocráticos

Nayib Bukele (de El Salvador), Viktor Orbán (da Hungria) e Recep Erdoğan (da Turquia).

2 – De esquerda ou extrema-esquerda temos (historicamente ou de forma declarada) sete governantes de regimes autocráticos

Xi Jinping (da China), Kim Jong-un (da Coreia do Norte), Díaz-Canel (de Cuba), Sonexay Siphandone (do Laos), Daniel Ortega (da Nicarágua), Nicolás Maduro (da Venezuela), Pham Minh Chính (do Vietnam).

3 – Os ditadores na esfera de influência das ditaduras russa e chinesa (ou do eixo autocrático – incluindo o Irã) governam cerca de vinte regimes autocráticos

Além de todas as sete ditaduras declaradamente de esquerda, temos Ilham Aliev (do Azerbaijão), Aleksandr Lukashenko (da Bielorrússia), Hun Sen (do Camboja), Mahamat Déby (do Chade), Ismail Haniya e Yahya Sinwar (de Gaza), Teodoro Obiang Nguema Mbasogo (da Guiné Equatorial), Choguel Kokalla Maïga (do Mali), Vladimir Putin (da Rússia), Bashar al-Assad (da Síria), Salva Kiir Mayardit (do Sudão do Sul), Emomali Rahmon e Kokhir Rasulzoda (do Tajiquistão), Serdar Berdimuhamedow (do Turquemenistão), Shavkat Mirziyayev (do Uzbequistão).

4 – Os ditadores islâmicos governam cerca de quatorze regimes autocráticos

Hibatullah Azhundzada (do Afeganistão), Mohammad bin Salman (da Arábia Saudita), Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa (do Barein), Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani (do Catar), Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum (dos Emirados Árabes Unidos), Mohammed Ali al-Houthi (do Iémen), Ali Khamenei (do Irã), Abdullah II bin Al Hussein (da Jordânia), Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah (do Kuwait), Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib (da Líbia), Maomé VI e Aziz Akhannouch (do Marrocos), Haitham bin Tariq Al Said (de Omã), Hassan Sheikh Mohamud (da Somália), Abdel Fattah al-Burhan (do Sudão).

Note-se que muitos ditadores islâmicos estão na esfera de influência do eixo autocrático e, portanto, são adversários ostensivos das democracias liberais.

5 – Ditaduras não-classificadas

Burkina Faso, Eritréia, Essuatini, Haiti, Myanmar.

Um esboço de conclusão

O eixo autocrático é tendencialmente de esquerda ou extrema-esquerda e não de extrema-direita, ainda que dele participem regimes ditatoriais dúbios (como o russo) e islâmicos (como a teocracia iraniana, suas ditaduras aliadas, como a Síria e seus braços terroristas no Oriente Médio, na Ásia e na África). Ora, esse eixo, hoje, é a principal ameaça à democracia no mundo e não a chamada “internacional fascista” de extrema-direita (embora essa última também seja uma ameaça, porém menor ou secundária em comparação com a primeira).

A estratégia de conquista de hegemonia do neopopulismo no Brasil

A “fórmula” descrita neste artigo é a do neopopulismo ou do populismo de esquerda que floresceu, sobretudo na América Latina, no dealbar do presente século, com Hugo Chávez na Venezuela, Lula e Dilma no Brasil, Rafael Correa e Moreno no Equador, Evo Morales e Arce na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner e Fernández na Argentina, Maurício Funes e Cerén em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia – além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores. E além, é claro, de uma exceção, por não ser propriamente populista: o ditador castrista Miguel Díaz-Canel, de Cuba, uma remanescência marxista-revolucionária do século passado.

Mas o que se comenta a seguir vale, mutatis mutandis, para qualquer processo de conquista de hegemonia (inclusive, em parte, pelos intentados pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita) em regimes democráticos eleitorais (e até, como exceção, em regimes liberais).

Antes, porém, é necessário chegar a um acordo sobre os conceitos de hegemonia e populismo, tal como serão empregados neste artigo.

Hegemonia

Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.

Populismo

O termo populismo designa aqui um comportamento político que surgiu no século 21 e que se caracteriza pela divisão da sociedade com base em uma única ou dominante clivagem (povo x elites ou povo x establishment), o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós” contra “eles”) e a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Cabe notar que os populismos contemporâneos não têm muito a ver com os populismos tradicionais do século 20, caracterizados por demagogia, assistencialismo, clientelismo, irresponsabilidade fiscal: embora tais características permaneçam nos novos populismos do século 21, elas não são mais dominantes. Além do estatismo, que já estava mais ou menos presente no populismo antigo, surgiram (ou acentuaram-se) características como o majoritarismo (ou o hegemonismo), o antipluralismo e a formação de entidades tribais em permanente disputa antipolítica. Os populismos contemporâneos são modos de parasitar democracias eleitorais degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e estiolar substância liberal (sendo, portanto, iliberais ou contra-liberais). Seja para transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais. Existem hoje o populismo-autoritário ou nacional-populismo (Farage, Salvini, Bannon e Trump, Orbán, Le Pen, Wilders, Ventura, Abascal, Alexander Gauland e Alice Weidel, Bolsonaro etc.), dito de extrema-direita e o neopopulismo, dito de esquerda – que será particularmente focalizado no presente artigo.

A CONQUISTA DE HEGEMONIA PELO NEOPOPULISMO NO BRASIL

Vamos descrever a estratégia de conquista de hegemonia comentando o seguinte diagrama que  focaliza, particularmente, o caso do neopopulismo lulopetista no Brasil.

Advertências

Mas é necessário fazer duas advertências antes de começar. A primeira advertência é que, embora possa parecer assim, para alguns, não se trata de uma conspiração e sim de uma co-inspiração. As peças não se encaixam a partir de um plano diretor concebido nas sombras por um grupo secreto ou clandestino e nem se encaixam antes de as possibilidades práticas se manifestarem. Padrões autocráticos que remanesceram no subsolo da consciência de diversos setores considerados de esquerda ou progressistas, em algum momento de sintonizaram e se sinergizaram. Então a estratégia de conquista de hegemonia foi se conformando por composição de partes cognatas ou afins. Isso é o que significa co-inspiração. O PT jamais anunciou uma estratégia pronta e acabada. Mas é possível conectar suas concepções e práticas, propostas, medidas ou tentativas de aplicá-las, de sorte a compor um retrato dessa estratégia.

segunda advertência é que a estratégia de conquista de hegemonia examinada aqui não é extremista (usamos a palavra, embora esse conceito de ‘extremista’ seja inconsistente como categoria de análise), não quer destruir as instituições do Estado de direito e sim ocupá-las e hegemonizá-las, fazendo maioria em seu interior. Não prevê golpes de Estado, muito menos insurreições revolucionárias ou guerras populares – embora auto-golpes possam acontecer ao se configurarem ambientes favoráveis à quebra da ordem constitucional por parte de um governo neopopulista (como ocorreu na Venezuela e na Nicarágua). Mas isso pode ser considerado um desvio da estratégia original, que prevê um tratamento homeopático, não alopático. Para fazer um paralelo com os procedimentos dos velhos alquimistas, é uma via úmida, não uma via seca. Difícil é, porém, para quem não está realmente convertido à democracia (liberal), resistir à tentação de encurtar o caminho quando a correlação de forças se constela francamente favorável.

Um esquema descritivo

No diagrama abaixo estão os elementos principais da estratégia de conquista de hegemonia. É um desenho mais descritivo do que analítico.

A diagram of a diagram of the government

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1 – O PAPEL DO LÍDER POPULISTA

Apadrinhar e mesmerizar

Um líder com alta gravitatem é fundamental para dar um curto circuito nos mecanismos de proteção da democracia contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Ele deprime o sistema imunológico da democracia ao estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais, inabilitando seus sistemas de freios e contrapesos. A popularidade do líder é função da sua capacidade de apadrinhar as pessoas (identificando-se com elas e vendendo a ideia de que será capaz de resolver os seus problemas por elas) e de mesmerizar as massas, criando poços de potencial que deformam o campo interativo da convivência social. É como um buraco negro que suga todas as energias da sociedade, sulcando creodos e causando anisotropias nesse campo.

No caso do Brasil, no campo neopopulista, a partir do início deste século, esse papel de apadrinhar e mesmerizar é cumprido pelo líder Luis Inácio Lula da Silva.

O lider populista substitui o povo ao se apresentar como a síntese do povo. Encarnando-se como uma espécie de substituto do povo, o líder populista torna o povo desnecessário. E, pior, todos que dele discordam deixam de ser o (verdadeiro) povo.

Como afirmou o próprio Lula, em fevereiro de 2018, no Twitter:

“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.

E isso foi repetido por ele no final de junho de 2024, na mesma mídia social (já no exercício do seu terceiro mandato e quinto do PT):

“Eu não sou só um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo na presidência da República”.

O último tweet é uma variação do “L’État c’est moi” do monarca absolutista Luis XIV, com um passo adiante: “Je suis le peuple”.

Mais recentemente (em 06/07/2024), Lula declarou em um comício oficial:

“Quando eu estiver fazendo uma coisa errada, ao invés de vocês falarem ‘o Lula está errando’, vocês têm que falar “eu tô errando, porque o Lula é o nosso povo na presidência”.

A principal perturbação causada no campo interativo pelo líder populista é polarizar. Vamos analisar isso do ponto de vista das redes sociais (a referência aqui é à fenomenologia da interação entre pessoas, não às mídias sociais, como Facebook, X ou ex-Twitter, Instagram etc.). A polarização é chamada de afetiva (ou de emocionares – como disposições para a ação, independentemente de concordâncias ou discordâncias entre diferentes escolhas racionais) porque o campo interativo foi deformado. Como foi dito, mas vale repetir, a melhor coisa para deformar um campo é a presença de centros de alta gravitatem envolvidos em uma disputa adversarial (como é próprio dos populismos) que sugam as energias da sociedade parasitando o fluxo interativo da convivência social e sulcando caminhos, aqui chamados de creodos. Tornam-se espécies de buracos negros, onde tudo se abisma. O parasitismo pode, em alguns casos, tornar-se obsessor, quase um vampirismo. Então as pessoas escorrem por esses creodos sem fazer quaisquer juízos sobre suas qualidades e características.

2 – O PAPEL DO PARTIDO HEGEMONISTA

Defender e atacar

Então a primeira providência para conquistar hegemonia – além de dispor de um líder com as características descritas acima – é constituir um organismo vocacionado à hegemonia (ou seja, o organismo deve ser, ele mesmo, hegemonista) composto por militantes habilitados à praticar a política como continuação da guerra por outros meios, dirigidos estes, por sua vez, por um líder populista identificado com o próprio organismo. Ao fazer guerra, defendendo (seus integrantes e aliados) e atacando (seus oposicionistas, dissidentes e inimigos), os militantes tribalizam a política, obrigando todas as demais forças políticas a fazer o mesmo: os sem-tribo ficam completamente inabilitados para interagir no cenário político. E o fato dos outros também se tribalizarem reforça a degeneração da política como guerra do “nós” contra “eles” (ou seja, todos que não são “nós” ou não estejam subordinados à nossa direção).

A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo, uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias nas quais foram erigidos. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.

A conquista da hegemonia se dá primeiramente na sociedade e só depois no Estado. Uma vez tendo controlado o Estado, o organismo hegemônico avança em direção ao seu propósito de transformar a população em simpatizante da sua causa.

Os militantes então buscam estabelecer sua hegemonia nas mídias, nos partidos (da coalizão hegemonista), nas universidades e escolas, nas corporações (sindicais e assemelhadas), nos movimentos sociais e ONGs (que passarão a atuar como correias de transmissão do organismo hegemônico) e nos órgãos estatais.

Sem um partido com tais características (com “cabeça, tronco e membros” – como disse Lula, revelando que há uma diferença de status organizativo entre a “cabeça” e os “membros” -, ou seja, dirigentes, estrutura vertical de comando profissionalizada – o tronco; e os militantes) não é possível implementar uma estratégia de conquista de hegemonia. No caso do Brasil, os dirigentes e militantes do PT estão construindo e reforçando, pelo tempo de quase duas gerações (44 anos), esse organismo. Sim, isso não surge da noite para o dia, mas requer uma longa e árdua caminhada sujeita a vários percalços (derrotas sucessivas em eleições presidenciais em 1989, 1994, 1998; condenações e prisões dos principais dirigentes partidários por corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, associação criminosa ou formação de quadrilha, nos processos do Mensalão e do Petrolão; impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; prisão de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por 580 dias, de abril de 2018 a novembro de 2019).

A seguir uma pequena descrição de como os dirigentes e militantes atuam:

Nas mídias. Os dirigentes e militantes do PT criaram uma rede suja de sites e blogs para vender versões favoráveis ao partido (em 2014 já existiam: Brasil247, Forum, DCM, Opera Mundi, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Tijolaço, Rede Brasil Atual, Plantão Brasil, Outras Palavras, Carta Maior, Caros Amigos, Brasil de Fato, Mídia Ninja etc.). Com o advento das mídias sociais, criaram os MAVs (núcleos de militantes chamados de Mobilização em Ambientes Virtuais) e, mais recentemente, uma espécie de tropa de assalto, o “Gabinete da Ousadia” (por imitação ao chamado “Gabinete do Ódio” do governo Bolsonaro). Com a chegada ao governo (nos mandatos anteriores de Lula e Dilma, mas sobretudo no mandato atual de Lula), o PT passou a comprar a boa vontade dos grandes, médios e pequenos meios profissionais de comunicação com verbas de publicidade, conseguindo transformar alguns deles (inclusive canais de TV) naquilo que se chamava de “imprensa chapa-branca” ou assessoria de comunicação paralela (oficiosa) do governo. Militantes do PT viraram jornalistas e passaram a parasitar as redações de jornais, revistas e TVs. Em geral os oriundos de cursos universitários de jornalismo, de inclinação claramente esquerdista, formaram uma espécie de infantaria partidária. Antigos críticos passaram por uma conversão miraculosa e deram uma volta de 180 graus em sua orientação política (trânsfugas da democracia, de jornalistas, viraram propagandistas). Outros perderam a verve crítica ao poder que caracterizou seu comportamento nas últimas décadas. Outros, ainda, passaram a fazer jornalismo de fofoca, recebendo em tempo real pelo celular, enquanto estão no ar, informações de coxia plantadas por dirigentes partidários.

Nos partidos aliados. Na coalizão de partidos aliados, o PT, desde que surgiu, sempre foi amplamente hegemônico, satelizando as demais agremiações ditas de esquerda (PCdoB, PSOL, PDT, PSB etc.). O PT sempre atuou no campo de seus aliados ideológicos para ser uma espécie de “Central Única da Esquerda”. Internamente abrigou e estimulou uma profusão de tendências com o objetivo de impedir que essas forças políticas se estruturassem como organizações autônomas (e, também, mas não menos importante, para educar os seus militantes na luta interna, preparando-os para a prática da política como continuação da guerra por outros meios – e isso só se consegue configurando o ambiente partidário como um campo de luta interna permanente, quase uma associação de “inimigos íntimos”).

Nas universidades. Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).

Nas corporações. As corporações sindicais foram o berço do PT – ou um dos berços: os outros dois foram a esquerda marxista-leninista sobrevivente da ditadura militar e a chamada igreja da libertação, que abraçou a ideologia – chamada de teologia – da libertação. O papel principal, porém, foi desempenhado pelo chamado sindicalismo autêntico do ABC paulista e, em seguida, da CUT – Central Única dos Trabalhadores. Em vários períodos da história recente houve tal confusão entre sindicatos, centrais sindicais e partido, que os próprios militantes se confundiam, sem saber direito em que ambiente estavam. Era tudo, para efeitos práticos, a mesma coisa. Delúbio Soares, por exemplo, oriundo do meio sindical, virou dirigente partidário, mantendo o mesmo comportamento de sindicalista (ou seja, guiando-se pela máxima do “manda quem banca” e do uso privado – partidário – de recursos coletivos). Eles diziam – entre eles – que “sindicato é fonte de receita e partido é fonte de despesa”. Não apenas muitos candidatos foram extraídos do movimento sindical, mas boa parte das suas campanhas eleitorais (e aqui entra a maioria dos velhos dirigentes do PT) foi feita com recursos de toda ordem desviados do movimento sindical.

Nos movimentos sociais. Cabe dizer, preliminarmente, que a expressão ‘movimentos sociais’ é incorreta. Em geral são organizações hierárquicas, não movimentos. Organizações que, tais como os sindicatos, atuam como correias de transmissão do partido na sociedade e, inclusive, no Estado. O melhor exemplo é o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (de João Pedro Stedile) e o MTST (de Guilherme Boulos). O MST é uma organização política marxista-revolucionária, abrigada (e escondida) dentro de um movimento social, surgido em 1984. O MST tem direção estratégica e todas as demais características de uma organização revolucionária à moda antiga. Mas – atenção – o MST não é um mero aparelho do PT. As relações estratégicas do MST com o PT existem, mas com o “Partido Interno” (a referência aqui, para quem não se recorda, é ao 1984 de George Orwell). Cabe destaque também para o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, que é uma espécie de clone urbano do MST, surgido em 1997.

Nas ONGs. Sob o reinado petista as ONGs passaram, como brincou certa vez Manuel Castells, de organizações não-governamentais à organizações neo-governamentais. Sobretudo depois que chegou ao governo central, o PT passou a financiar as ONGs amigas, que dele ficaram dependentes. Cabe destacar aqui, pelo seu papel pioneiro, a ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, criada em 1991, abrigando, em parte, antigos dirigentes e militantes ou simpatizantes de organizações revolucionárias (algumas clandestinas) que ficaram sem seus aparelhos após a repressão da ditadura militar. Parte desses militantes tinham, inicialmente, uma visão crítica do PT, mas acabaram cedendo diante da expectativa do poder com a ascensão de Lula como principal líder da esquerda brasileira e, depois, com sua eleição e reeleição para a presidência da República.

Nos órgãos estatais. Chegando ao Estado, inicialmente pela eleição de parlamentares e executivos municipais e estaduais e, depois, ao governo federal, há uma mudança clara na correlação de forças. Ocupar o governo e estabelecer maiorias nos parlamentos (por qualquer meio, legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo – alugando parlamentares por meio de mesadas em dinheiro, da liberação de verbas para emendas legislativas ou da nomeação de seus apaniguados para cargos públicos) de sorte a poder conduzí-lo é fundamental para conseguir aparelhar a administração pública, as empresas estatais e os órgãos de controle, até – se for possível – as forças armadas e policiais e controlar o judiciário, seja por meio de nomeações legais, seja através de um processo de sedução ou de captura envolvendo, em alguns casos, a oferta de benesses indiretas e, em outros, a chantagem não declarada, mas insinuada, de revelar segredos comprometedores dos não-alinhados. O PT chegou a propor, por decreto (Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014), durante o governo Dilma Rousseff, a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado (sim, o lulopetismo aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então).

3 – O PAPEL DA IMPRENSA CHAPA-BRANCA

Interpretar e disseminar

O tema já foi tratado parcialmente acima, nos comentários sobre o papel dos militantes nas mídias (a infantaria petista nos jornais e TVs). Mas merece ser aprofundado mais um pouco. A chamada imprensa (os meios profissionais de comunicação) cumpre tarefas fundamentais aointerpretar e disseminar notícias favoráveis à estratégia de conquista de hegemonia; ou melhor, ao disseminar suas próprias interpretações como se fossem notícias.

Transformando opiniões em fatos pela repetição e difusão exaustivas, veículos profissionais de comunicação passaram a fazer parte, para efeitos práticos, de uma espécie de “partido ampliado”. Alguns canais de TV – mesmo incorporando alguns comentaristas críticos do governo (contados nos dedos de uma mão) – viraram centrais de abastecimento de munições para militantes e simpatizantes do partido oficial.

Há pesquisas mostrando que os militantes petistas se informam principalmente pela TV, ao contrário dos bolsonaristas, que preferem as mídias sociais e os programas de mensagens. Os petistas nunca abandonaram o sonho de ter um canal próprio de TV (tipo uma TV Pravda). Não deu certo com a antiga TV Lula, nem com as tentativas mais recentes de ter um canal partidário. Agora eles acham que deu certo com a Globo News e adotaram esse canal como se fosse seu próprio espaço de discussão. Por isso ficam tão indignados e intolerantes quando surge alguém na emissora que, destoando da média dos comentaristas, ousa criticar o governo e suas políticas nacionais e internacionais.

Então, quando aparece um analista emitindo opiniões destoantes daquelas legitimações chapa-branca proferidas por outros comentaristas alinhados ao governo Lula, os militantes iniciam imediatamente uma campanha de cancelamento dos primeiros chamando-os de fascistas para baixo (e aqui vêm os palavrões e as ofensas de todo tipo). Parece uma coisa menor, mas não é. Deve-se sempre olhar os sinais, os sinais fortes e os sinais fracos. O processo de autocratização começa sempre assim, ceifando uma flor singular num canto do jardim…

Se a emissora se deixar capturar por essa patrulha do abafa, que visa a espancar a pluralidade, virando uma espécie de Jovem Pan antiga com o sinal trocado, estará prestando um desserviço ao jornalismo e à democracia. A imprensa é uma instituição fundamental do regime democrático. Pode até, eventualmente, ser favorável a um governo, mas jamais pode aceitar ser parte orgânica do seu sistema de governança – como parece ser o caso.

Foi necessário que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretassem e disseminassem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos do organismo. Mídias comerciais, em alguns casos, transformaram-se em plataformas de lançamento para a guerra nas mídias sociais (ao mesmo tempo em que passaram a ser pautadas por essas últimas). Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, o PT descobriu a importância de infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir ou chantagear os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.

É significativo que o PT sempre tenha defendido o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Mais recentemente, passou a insistir na proposição de leis (ou de reforma de leis aprovadas no parlamento por intervenção política do Supremo Tribunal Federal) que, a pretexto de coibir fake news, criam simulacros de “ministérios da verdade”).

Não se pode esquecer aqui dos papeis dos institutos de pesquisa de opinião e das agências de checagem de notícias. É evidente que parte dessas instituições é simpática ao partido oficial. No caso dos institutos, para dar um exemplo, basta acompanhar a série histórica de pesquisas de intenção de voto de empresas como o IPEC, sempre com resultados fora (acima) da curva favoráveis ao candidato Lula em 2002 – o que ficou patente após o resultado oficial do pleito. Isso não significa necessariamente fraude, falsificação grosseira dos resultados das pesquisas, mas é operado de modo mais sutil, escolhendo uma base de dados mais favorável, o momento azado para a realização de um levantamento, a ordem das perguntas, o modo como estão formuladas e encadeadas etc. No caso das agências de checagem é a mesma coisa: boa parte delas focaliza mais os adversários do que os aliados do partido hegemonista.

Ainda deveriam ser mencionadas organizações como o Sleeping Giants, supostamente dedicadas a combater discursos de ódio e desinformação, que articulam o boicote (na verdade, a chantagem) a patrocinadores tentando sufocar financeiramente opositores do governo – em muitos casos até com justificadas razões. Mas é inegável que seus alvos são escolhidos seletivamente.

4 – O PAPEL DOS JURISTAS PARTIDÁRIOS

“Legalizar” e legitimar

Foi necessário que um contencioso de juristas estivesse pronto para “legalizar” e legitimar as ações do organismo e do seu líder. O principal papel dos juristas é reduzir problemas políticos a problemas legais, com isso evitando juízos políticos desfavoráveis ao organismo e ao seu líder, posto que, de pontos de vista estritamente legais (em geral procedimentais-formais), sempre há uma maneira de defender que não houve delito. Assim, se um julgamento foi anulado por erros processuais, por decurso de prazo ou pela idade avançada do réu, isso passa a significar que o réu foi absolvido e, portanto, que é inocente.

Exemplos de juristas partidários ou a serviço do partido hegemonista são hoje, no Brasil, o chamado Grupo Prerrogativas e várias associações de juizes, procuradores e advogados pela democracia. O Prerrogativas merece destaque. Não se sabe bem qual é a sua natureza jurídica, se tem CNPJ, se é um “movimento social”, se é uma organização da sociedade civil (uma ONG, como a Transparência – esta última, aliás, alvo de seus ataques). O Prerrogativas não apenas “legaliza” e legitima tudo que Lula faz de ilegal e ilegítimo, mas trabalha também para coonestar – com alegações claramente falsas – comportamentos ofensivos à democracia cometidos por organizações revolucionárias, como o MST (outra entidade de natureza misteriosa). Para todos os efeitos se comporta como uma organização para-partidária: seus membros são petistas ou fizeram campanha para o PT. Se mete em assuntos do poder legislativo: militou contra CPIs (como a do MST). Se mete em assuntos do poder judiciário: fez a defesa do ministro Dias Toffoli na imprensa (para incriminar a Transparência Internacional). Recentemente, o coordenador do grupo, para “legalizar” o que fez Lula em comício pró-Boulos, disse que pedir voto em palanque antecipadamente não afronta a lei pois é liberdade de expressão.

5 – O PAPEL DOS FAMOSOS, ARTISTAS E INFLUENCERS

Empatizar e mitificar

O PT foi o primeiro partido a entender que, no âmbito da sociedade, é necessário que diferentes plantéis de famosos, como os artistas de todas as áreas (atores e diretores de novelas e filmes, cantores, compositores e músicos, desportistas etc.), admirados por extensas parcelas da população, contribuam para aumentar a empatia com o organismo e com seu líder, chegando ao ponto de mitificar este último. Entenda-se bem: todas essas celebridades têm o direito, numa democracia, de apoiar um candidato ou o governo de um partido que julgam mais progressista, mais afeito à proteção dos direitos humanos, mais incentivador do mundo dos espetáculos (sobretudo com verbas oficiais) ou mesmo um representante mais fiel dos pobres. Mas não é disso que se trata aqui e sim do resultado de uma ação coordenada. Tudo isso, que deve parecer espontâneo é, em grande parte, organizado – pelo menos inicialmente – pela força política hegemonista. Ultimamente, passaram também a cumprir importante – e decisivo – papel os chamados influencers, como Felipe Neto.

O papel dos famosos, artistas e influencers, como foi dito, não é só gerar empatia pelo líder (Lula) e obter votos para ele quando se candidata, mas também mitificá-lo. Lula seria mais do que uma espécie de líder genial dos povos, seria a própria síntese do povo, semelhante a um demiurgo ou uma quase-divindade. E o próprio Lula, como vimos acima, insiste em alimentar esse mito.

6 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES DO JUDICIÁRIO

Nomear e controlar

Todos os neopopulistas tentam controlar o poder judiciário, em especial as supremas cortes de justiça dos regimes que parasitam. Alguns regimes, que já viraram ditaduras (como os da Venezuela e da Nicarágua), destruiram completamente a independência da justiça e passaram a demitir juízes de carreira ou contrários às suas investidas e a indicar seus esbirros para ocupar os tribunais. Mas outros governos neopopulistas, que parasitam regimes que ainda são considerados democracias (como a Bolívia e não se sabe em que medida o México e Honduras) também intervêm no poder judiciário. Em geral, os objetivos são legalizar a acumulação de mandatos falsificando a rotatividade democrática para se delongar nos governos e, em seguida, reformar as decisões parlamentares contrárias aos seus interesses.

O PT também nomeia membros que lhe são simpáticos no poder judiciário (sobretudo no STF, TSE e STJ) e, inclusive, militantes, como fez com o ex-advogado do partido (Dias Toffoli) e de Lula (Cristiano Zanin) para a suprema corte. Mas vai além. Atualmente (2023-2024), verificando-se minoritário no parlamento, nas mídias sociais e nas ruas, o PT busca compensar essa correlação de forças que lhe é desfavorável “governando” com o STF, ou seja, reformando, no “tapetão”, decisões do Congresso que prejudicam sua estratégia.

No Brasil, particularmente, há um perigo ainda maior: a normalização da atuação política do poder judiciário. Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante, sobretudo no judiciário. As formulações de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’, são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.

O problema é que vai crescendo, entre membros do poder judiciário, a ideia autoritária de “democracia militante” para combater – preemptivamente – ataques à democracia. Se a Justiça vira militante, ela se ideologiza. Deixa de ser imparcial ao esposar uma interpretação particular. E fica então vulnerável a ser controlada, direta ou indiretamente, por um partido.

7 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO PARLAMENTO

Eleger e conduzir

Aqui se trata de eleger o maior número de pessoas para os parlamentos, sobretudo para o Congresso Nacional. O objetivo é fazer maioria nas casas legislativas. Como isso é difícil de ser obtido com força própria ou com forças do próprio campo populista de esquerda e como um partido hegemonista é avesso à alianças (ou melhor, faz alianças quando está fraco para ficar mais forte e, ficando mais forte, mata seus aliados ao final), a tarefa de conduzir o parlamento usa todos os tipos de recursos para aprovar suas pautas e para eleger os presidentes das mesas legislativas. Na história recente do PT temos o exemplo do Mensalão (uma espécie de contribuição regular, não obrigatoriamente mensal, para alugar representantes fisiológicos ou corruptos de outras siglas levando-os a votar com o governo). Recentemente o uso de expedientes como esse ficaram mais difíceis no Brasil com o aumento do poder do parlamento sobre o orçamento (as emendas compulsórias e o chamado orçamento secreto).

8 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO GOVERNO

Eleger e aparelhar

Eleger governantes (executivos) – para ter o poder de nomear e demitir – é central na estratégia do neopopulismo lulopetista. O neopopulismo chega ao governo pelo voto e depois tenta se prorrogar no governo por tempo suficiente para conquistar os centros de decisivos de poder. Aparelhar tudo com militantes e simpatizantes partidários é fundamental: na administração direta, nas estatais, nos órgãos de controle e, se for possível, nas forças armadas e policiais.

É por isso que um partido hegemonista é tão avesso a autonomia de órgãos de Estado, como o banco central, as agências reguladoras e outros órgãos de controle, pois são uma restrição ao seu poder de mandar (nomear e demitir), governamentalizando e partidarizando instituições que deveriam ser de Estado e não de um governo particular. A estratégia do neopopulismo prevê uma privatização partidária da esfera pública.

Uma vez controlando o governo e os órgãos chaves do Estado, o processo de conquista de hegemonia volta-se novamente para a sociedade. Caberá então ao Estado, controlado pelo organismo hegemonista, educar a sociedade para estabelecer sua hegemonia de longa duração sobre ela.

Educar é tudo em um processo de autocratização não-disruptivo (ou seja, que não adote as vias do golpe de Estado ou do auto-golpe, da insurreição ou da guerra popular). Platão, o patriarca do pensamento autocrático ocidental, lançou os fundamentos dessa ação na sua distopia (ou retropia) totalitária, incorretamente intitulada ou traduzida como A República. Não havia, em Platão, um projeto propriamente político e sim um projeto pedagógico, um projeto de educação.

Está certo! Quem quer conquistar hegemonia não se dedica propriamente à política. Seu objetivo é extra-político. Hannah Arendt (1951), em obra ja citada aqui, estudando as maiores experiências autoritárias do século 20, concluiu que “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”. Só um movimento totalitário que consiga se materializar como governo totalitário pode obter, ainda que temporariamente, os resultados de uma autocratização total. Mas isso não significa que movimentos, governos e regimes autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) dos traços que caracterizam os totalitarismos.

Limitações da estratégia neopopulista de conquista de hegemonia

A estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar “por dentro” o “DNA” da democracia, tem muitas limitações.

Os populistas contam com a sua capacidade de permanecer nos governos que conquistam eleitoralmente, violando a rotatividade ou alternância democrática. Eles têm razões para acreditar nessa resiliência. Nenhum partido populista, seja considerado de direita (nacional-populista) ou de esquerda (neopopulista), sai facilmente do poder apenas pelo voto. Os exemplos são fartos.

À direita. o partido de Viktor Orbán não saiu: ele foi reeleito. O partido de Recep Erdogan não saiu: ele foi reeleito. O partido de Narendra Modi não saiu: ele foi reeleito. O partido de Vladimir Putin não saiu: ele foi reeleito. No campo do populismo-autoritário o partido de Donald Trump é uma das poucas exceções: saiu, mas deslegitimou a vitória de Joe Biden e está tentando voltar à presidência dos EUA com amplas chances de vitória.

À esquerda. O partido de Daniel Ortega, na Nicarágua, não saiu: ele foi reeleito n vezes. O partido Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, não saiu: o primeiro faleceu e o segundo, seu sucessor, foi reeleito n vezes. O partido de Rafael Correa, no Equador, não saiu: ele foi reeleito e emplacou seu sucessor Lenin Moreno. O partido de Evo Morales, na Bolívia, não saiu: ele foi reeleito n vezes até que sofreu um contra-golpe parlamentar em reação à sua tentativa de auto-golpe e, depois, elegeu seu sucessor Luis Arce (do mesmo Movimento ao Socialismo) com o qual se desentendeu. O partido de Manuel Zelaya, em Honduras, não saiu: ele foi preso, mas em seguida elegeu sua mulher Xiomara Castro. O partido de Lula e Dilma Rousseff, no Brasil, não saiu: Lula foi reeleito e fez sua sucessora Dilma, que sofreu impeachment. O partido de Fernando Lugo, no Paraguai, não saiu: ele sofreu impeachment. O partido de Maurício Funes, em El Salvador, não saiu: ele fez seu sucessor, Salvador Cerén, da mesma Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional. À esquerda, Cerén é a única exceção (já que Cristina Kirchner, na Argentina, não conta muito ao não ter conseguido emplacar Daniel Scioli seu sucessor, talvez porque ainda estivesse em transição do velho populismo peronista para o neopopulismo contemporâneo; mas ela voltou ao poder como vice de Alberto Fernandez cujo candidato a sucessor, Sérgio Massa, perdeu então as eleições para Javier Milei).

Com as exceções, mencionadas acima, que confirmam a regra, nenhum partido que abrigava esses populistas saiu do governo normalmente apenas pelo voto.

Mesmo assim, essa estratégia é de difícil implantação. Em primeiro lugar, porque ela é muito longa; ou seja, prevê um caminho difícil e arriscado, sujeito a imprevistos de toda ordem: legais e extra-legais, eleitorais ou não.

Por exemplo, um líder populista pode não ser reeleito, quebrando a continuidade da estratégia. Pode sofrer impeachment (como ocorreu com Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012 e com Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016). Seu principal líder pode ser preso por corrupção e outros crimes (como ocorreu com Lula, no Brasil, do início de 2018 ao final de 2019, ficando impedido de concorrer novamente). Pode ser vítima de um golpe ou contra-golpe em resposta a uma tentativa de auto-golpe (como ocorreu com Evo Morales, na Bolívia, em 2019). Pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o candidato de Cristina Kirchner, Daniel Scioli, na Argentina, em 2015); ou seu sucessor pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o sucessor de Maurício Funes, Salvador Cerén, em El Salvador, em 2019). Pode se desentender com seu sucessor (como ocorreu com Rafael Correa, no Equador, que entrou em disputa com Lenin Moreno, em 2018 e com Evo Morales, na Bolívia, que se desentendeu com Luís Arce recentemente).

Em segundo lugar, é uma estratégia que coloca desafios quase insuperáveis em países em que a democracia está minimamente consolidada. Depois da chegada eleitoral ao governo, o líder populista precisa ampliar a duração de seu mandato (o que as leis costumam proibir). Para tanto, tem que intervir no judiciário (em geral nas supremas cortes), substituir juízes (ou ministros) por militantes ou simpatizantes de seu partido (o que também não pode ser feito sem violar as leis vigentes). Não havendo – como no caso do Brasil – correlação de forças favorável que permita uma quebra do arcabouço legal, rasgando-se a Constituição, a solução é eleger sucessores do mesmo partido por tempo suficiente para alterar a composição das cortes de justiça lentamente (um por um) – o que leva à primeira dificuldade apontada acima (a extensão característica desse caminho).

Consideradas essas duas primeiras dificuldades, é explicável que partidos e líderes neopopulistas tenham cedido à tentação de converter seus regimes em ditaduras encurtando o caminho para a tomada do poder (como aconteceu na Venezuela de Chávez e Maduro e na Nicarágua de Ortega).

Outro desafio, que pode ser quase insuperável em algumas circunstâncias, é conseguir o controle das forças armadas e policiais. Em países – como, novamente, o Brasil – em que essas forças são antipáticas às ideias e práticas populistas de esquerda, isso requer também um longo caminho de intervenção legal nas listas de promoção de oficiais superiores, de mudança dos currículos da formação militar e de troca dos professores ou instrutores encarregados dessa atividade. A direção nacional do PT chegou a colocar a necessidade dessas providências, mas não teve força suficiente para levá-las a cabo.

Há ainda o desafio de conseguir recursos de monta, suficientes para financiar as operações dos militantes em todos as áreas de atividades, na sociedade e no Estado. Isso, em geral, abre um flanco legal (criminal). Não por acaso, muitos populistas de esquerda foram acusados de corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha (ou de organização criminosa), sendo então processados, condenados e presos. Não aconteceu somente no Brasil, onde todos os principais dirigentes petistas – sobretudo presidentes, ex-presidentes e tesoureiros da organização – acabaram encarcerados.

Por último, há o desafio de montar uma coalizão internacional de apoio. No âmbito da América Latina isso foi feito com o Foro de São Paulo e várias outras iniciativas oficiais (tipo Unasul), ou mesmo oficiosas ou informais. Com a ascensão de um eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua), ficou mais fácil alcançar tal objetivo, inclusive via BRICS (uma articulação política escondida sob a fachada de bloco econômico, coalhada de ditaduras e regimes eleitorais parasitados por populismos em que não figura nem uma democracia liberal) ou via o delírio chamado Sul Global (um substituto do velho terceiro-mundismo anti-imperialista), mas abre um flanco político perigoso que afasta os regimes eleitorais parasitados por governos neopopulistas (México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul etc.) do concerto dos países democráticos, sobretudo das democracias liberais (EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia). Ou seja, os países que tomam esse caminho perdem o discurso de que são democráticos ou de que estão defendendo a democracia ao polarizar seus ambientes políticos internos sob o pretexto de combater o populismo-autoritário (convertendo falsamente todos os que não estão subordinados às suas diretivas em extrema-direita, com o objetivo de impedir o surgimento de oposições democráticas).

É na política externa que o lulopetismo revela claramente o seu caráter não democrático – o que vale também para seus homólogos no campo do populismo de esquerda. Todas essas vertentes populistas: são contrárias (ou indiferentes) ao fortalecimento da União Europeia; discordam do apoio político, financeiro e militar à Ucrânia invadida pela Rússia; não apoiam as sanções a Putin; não apoiam a democracia isralense (não se fala aqui de apoiar o governo populista-autoritário de Netanyahu e sim de defender a único regime democrático do Oriente Médio); não condenam claramente o terrorismo do Hamas, do Hezbollah e do IRGC (a Guarda Revolucionária Iraniana ou Pásdárán); não repudiam o antissemismo (quando disfarçado de antissionismo); não defendem Taiwan contra as ameaças de invasão e anexação da ditadura chinesa; não defendem as democracias liberais contra as investidas do eixo autocrático; e não recusam o anti-americanismo (pelo contrário, o reforçam). Esses posicionamentos, de verificação bem prática, são suficientes para definir um caráter político avesso à democracia.

O fato de o nacional-populismo ou populismo-autoritário, dito de extrema-direita, ser uma ameaça (social) de curto prazo, mais agressiva e boçal à democracia, não normaliza, nem minimiza, a ameaça (política) de médio e longo prazos, do neopopulismo dito de esquerda.

A lógica da abundância

Reciclando um texto publicado na Escola-de-Redes há mais de dez anos

Antes de começar, um esclarecimento necessário. O que hoje se chama, equivocadamente, no Brasil e em outros países, de redes sociais são, na verdade, mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia): pode ser por conversas presenciais, sinais de fumaça, tambores, por e-mail, por telefone, pelo X ou pelo Facebook ou Instagram, até pelo WhatsApp ou Telegram (que nem são propriamente mídias sociais e sim programas de mensagens). Ou seja, redes sociais não são tecnologias, dispositivos, ferramentas, sites, algorítmos. Mídias sociais e programas de mensagens podem ser usados como ferramentas de netweaving, quer dizer, de articulação e animação de redes de pessoas, que chamamos – aqui, sim, propriamente – de redes sociais.

Redes sociais não são uma nova forma de organização e sim padrões de organização. Convencionou-se chamar de redes sociais as redes mais distribuídas do que centralizadas, tomando como base o famoso diagrama de Paul Baran (1964), publicado no paper On distributed communications, das topologias de rede:

Uma das coisas mais bacanas das redes sociais distribuídas (quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas) é a chamada “lógica da abundância”. Dizendo de outra maneira, de uma perspectiva menos estrutural e mais processual: se você não produz artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).

Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são – em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. Por exemplo, queremos escolher 5 pessoas para uma função qualquer, mas 10 pessoas estão postulando. Problema? Que nada! Basta escolher as 10. Quem disse que teriam que ser apenas 5? Essa determinação está, por acaso, nos “Dez Mandamentos”? Isso só será um problema se nos tornarmos escravos dos estatutos e regimentos: sim, em algum lugar foi definido que teriam que ser 5 pessoas, mas e daí? Qual o problema de mudar essa definição?

Ah! Mas é muita gente, não cabe na sala, vai dificultar o processo de decisão… Todas essas são, é óbvio, desculpas esfarrapadas para produzir artificialmente escassez. Não cabe na sala? Arrumamos uma sala maior ou fazemos um rodízio de quem entra e quem fica fora de cada vez. Vai dificultar o processo de decisão? Criamos duas instâncias e redefinimos as responsabilidades pelas funções.

O fato é que somente em estruturas hierárquicas (quer dizer, mais centralizadas do que distribuídas) essas coisas são realmente problemas. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriárquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo. Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não concordarem? Ora, bolas, os que não concordarem não devem aderir. E sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa aderirão a ela. E assim por diante.

O papel dos administradores das ferramentas de netweaving usadas em uma rede não é o de chefes, nem mesmo o de líderes. Eles devem ser netweavers, não coordenadores. Nem sempre um netweaver é a pessoa mais importante. Tem os hubs. Tem os inovadores. Tem os catalisadaores de processos de aprendizagem. Tem os guardiães do kernel. Todos esses papéis são tão ou mais importantes em uma rede do que o de netweaver.

As eleições para o parlamento europeu e a defesa do mundo livre

As eleições para o parlamento europeu devem ser vistas no contexto da segunda guerra fria, já instalada e movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. Apurados os resultados, pode-se dizer que venceu o mundo livre.

Não importa se quem defende as democracias liberais é dito de direita (como Ursula von der Leyen) ou de esquerda ou centro-esquerda (como Scholz ou Frederiksen).

E não importa se quem ataca as democracias liberais é dito de direita (Orbán ou Erdogan) ou de esquerda (Xi Jinping ou Kim Jong-un). Ou mesmo Putin, que apoia tanto a extrema-direita como a esquerda populista, desde que militem contra a ordem liberal e o mundo livre.

O eixo autocrático articula as maiores e mais cruéis ditaduras do planeta e os regimes iliberais (autocráticos, ainda que eleitorais): Rússia, China, Coréia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, Cuba, Venezuela, Nicarágua.

E o eixo autocrático está investindo para alinhar a si regimes eleitorais (que são chamados de democracias, mas não são democracias liberais) parasitados por populismos, como México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil e África do Sul.

O fundamental, então, não é ser ou se dizer de direita ou de esquerda e sim defender a ordem liberal e o mundo livre contra as investidas do eixo autocrático. A Europa tem a maior concentração de democracias liberais do planeta. Segundo o V-Dem 2024, a Europa tem 18 democracias liberais em 50 países (36%). Nas Américas são 7 democracias liberais em 36 países (19,4%). Na Oceania 2 em 14 países (14,29%). Na Ásia 4 em 49 países (8,2%). Na África 1 democracia liberal em 54 países (1,6%). Essas democracias liberais precisam ser defendidas

Mas não se trata mais, apenas, de defender a ordem internacional baseada em regras. Eclodida uma segunda grande guerra fria, trata-se de defender o mundo livre (as democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático visando a exterminá-las.

Então são quatro as prioridades agora:

1 – Defender a União Europeia.

2 – Defender a Ucrânia contra a invasão do ditador Putin.

3 – Defender Israel contra os ataques da teocracia iraniana e seus braços terroristas (Hamas, Hezbollah, Houthis etc).

4 – Defender Taiwan contra as tentativas de invasão e anexação da ditadura chinesa.

Ao contrário do que fizeram parecer alguns meios de comunicação, os que não concordavam com essas prioridades não ganharam, perderam as eleições para o parlamento europeu.

Casas da Democracia

I – O projeto

As Casas da Democracia são uma nova oportunidade de conexão e interação para quem se sintoniza com as ideias de que não existe democracia sem democratas, de que há um déficit acentuado de democratas na sociedade atual e de que é possível multiplicar o número desses democratas, ou seja, de agentes capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática, mesmo sem conformar maiorias (fermento não é massa).

As Casas da Democracia não são para todos, para a maioria ou para muitos, nem para poucos ou para um grupo seleto (previamente selecionado) de pessoas. São abertas a qualquer um. Não são a luz de um poderoso holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Uma rede de comunidades políticas locais, articulada de baixo para cima, em todas as localidades onde existam pessoas que desejem encontrar outras pessoas que se sintonizem com elas.

As Casas da Democracia não são uma organização centralizada e sim uma rede (mais distribuída do que centralizada). Regem-se pela lógica da abundância e não da escassez. São uma iniciativa Apache, não Asteca. Estão mais para Alcoólicos Anônimos do que para Microsoft.

As Casas da Democracia não têm chefe. Ninguém (nem mesmo os promotores iniciais da proposta) fala pelas Casas da Democracia em geral porque não existe essa organização nacional (abstrata): os que se articulam em uma casa, falam pela sua própria casa.

Cada Casa da Democracia é autônoma para adotar a sua forma de organização (desde que seja em rede), seu modo de funcionamento (desde que seja democrático) e decidir sobre suas atividades (desde que sejam compatíveis com os princípios da iniciativa). Cada Casa da Democracia deverá conseguir os meios e captar os recursos necessários para o seu funcionamento.

Qualquer pessoa descontente com a organização, o modo de funcionamento ou as atividades de uma Casa da Democracia pode sair e, se quiser, fundar sua própria casa.

Para fundar uma Casa da Democracia basta articular um conjunto de pessoas (no mínimo três: o átomo, ou melhor, a molécula inicial de uma rede) dispostas a fazer isso, que concordem com os princípios da iniciativa.

Ainda que seja desejável, não é necessário ter uma estrutura física para fundar uma Casa da Democracia. Mas é preciso ter uma rede de pessoas dispostas a interagir regularmente. As Casas da Democracia são sempre locais: podem ser organizadas em municípios, regiões de um município ou bairros. Mas também podem se reunir virtualmente.

As Casas da Democracia são apartidárias. Podem delas participar pessoas que pertençam a quaisquer partidos ou sem partido, desde que tomem a democracia como valor universal e como principal valor da vida pública, rejeitem os populismos e estejam dispostas a experimentar a democracia não apenas como modo de influir no Estado e sim também como modo de vida na sociedade.

II – Os princípios

Casas da Democracia é o nome de uma nova iniciativa política, organizada em rede distribuída, que procura conectar democratas brasileiros, reuni-los e multiplicá-los a partir de suas cidades.

Essa iniciativa pretende configurar, de baixo para cima, em localidades de todo o país, ambientes de livre-aprendizagem da democracia: as chamadas Casas da Democracia. E também procura experimentar novas formas de democracia local, não apenas como modo de administração política do Estado e sim também como modo de vida ou de convivência social, democratizando, onde for possível, diversas formas de sociabilidade existentes (dentre outras, as famílias, as escolas, as igrejas, as organizações civis, as empresas e os órgãos estatais, além dos grupos de amigos, as comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem e de projeto).

A estrutura e o funcionamento das Casas da Democracia são independentes de qualquer partido. Pessoas sem filiação partidária ou filiadas a quaisquer partidos podem participar das atividades das Casas da Democracia, desde que concordem com seus princípios e observem seu modo de funcionamento.

O movimento das Casas da Democracia é liberal no sentido político originário (democrático) do termo, quer dizer, dos que acham que a liberdade (e não a ordem) é o sentido da política e, vice-versa, dos que acham que ninguém pode ser livre sozinho: uma pessoa só é livre plenamente enquanto pode interagir na comunidade política. Um movimento, portanto, que defende o liberalismo político e não apenas o liberalismo-econômico. Nesse sentido, é um movimento de recusa aos populismos (ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita) que são i-liberais e majoritaristas.

As Casas da Democracia são um movimento de pessoas dispostas a interagir politicamente para defender a democracia que temos sem deixar de buscar novas formas de democracia que queremos, atuando sempre a partir de suas localidades.

É um movimento que procura conservar o que deve ser conservado (as instituições do Estado democrático de direito), reformar o que precisa ser reformado (a começar pela reforma da política) e inovar para dar continuidade ao processo de democratização do Estado e da sociedade.

Sim, trata-se – fundamentalmente – de um movimento de inovação democrática, que quer colocar na pauta temas contemporâneos que ainda não compareceram no debate político, como, por exemplo, a crise e os limites da democracia representativa e a experimentação de novas formas mais interativas de democracia numa emergente sociedade-em-rede, um novo federalismo diante da crise do Estado-nação, a superação da contraposição localismo não-cosmopolita x globalismo e a realidade emergente da glocalização, a superação da contraposição estiolante monoculturalismo x multiculturalismo: rumo à inevitável (e desejável) miscigenação cultural, a superação da inadequada classificação e da divisão das forças políticas em esquerda x direita e a superação da velha divisão entre visões mercadocêntricas e estadocêntricas do mundo: a sociedade como forma autônoma (subsistente por si mesma) de agenciamento, ao lado (e além) do mercado e do Estado.

O movimento das Casas da Democracia também quer discutir e ensaiar novas experiências de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas (sem abolirem a representação), com mandatos revogáveis, regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações glocais).

A ideia das Casas da Democracia partiu das seguintes constatações:

 Não existe democracia sem democratas.

 Os democratas sempre foram minoria. Seu papel precípuo não é arrebanhar maiorias e sim agir como agentes fermentadores da formação de uma opinião pública democrática. Fermento não é massa. O importante não é que os democratas sejam maioria numérica e sim que consigam ensejar a formação de uma opinião pública democrática.

 Democratas não são liberais apenas no sentido econômico do termo e sim liberais-políticos (que tomam a liberdade como sentido da política e a democracia como valor universal e principal valor da vida pública).

 Mas uma minoria tão ínfima de liberais-políticos (como a que temos) não é capaz de cumprir o papel de defender a democracia (que temos), impedindo que ela se torne menos liberal e mais majoritarista (como querem os populistas) e, simultaneamente, avançar na direção das democracias mais interativas que queremos (mais conformes à morfologia e a dinâmica da sociedade contemporânea).

Esta é a razão principal pela qual virou um imperativo democrático da hora, numa época como a que vivemos, de recessão e desconsolidação democráticas, configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia voltados para a inovação política e social.

Em suma, liberais-políticos não se formam espontaneamente em volume desejável porque a cultura predominante não é liberal e porque estão em curso uma recessão e uma desconsolidação democráticas. Vivemos atualmente sob uma terceira onda de autocratização. Assim, é necessário proporcionar processos de aprendizagem teóricos e práticos da democracia que sejam permanentes. Este é o objetivo das Casas da Democracia.

As Casas da Democracia conformam uma grande rede, mais distribuída do que centralizada, de democratas que assumem como sua função precípua promover a aprendizagem democrática permanente, por meio do estudo, da reflexão e da experimentação.

É um empreendimento apache, não asteca, que objetiva acender muitos pontos de luz, no maior número possível de localidades, entendendo que a democracia não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas.

É um programa que estimula o espírito do voluntariado (como um hábito do coração) e incentiva a livre iniciativa e não a obediência, regido mais pela lógica da abundância do que da escassez (ou seja, em que a maioria nunca obriga a minoria a seguir suas decisões).

É um projeto que busca se reger por uma dinâmica cooperativa, não adversarial, configurando ambientes aprazíveis de convivência e não de constante luta interna.

É um chamado às “andorinhas” que estão dispersas para que possam se encontrar, se comprazer na sua convivência e se reproduzir.

Qualquer pessoa que concorde com os princípios e a forma de organização das Casas da Democracia pode se conectar a uma de suas casas.

As Casas da Democracia são sempre organizadas por cidade (ou, no caso de grandes cidades, por regiões distritais ou bairros). Elas são autogeridas por seus participantes. Não há uma administração central.

As Casas da Democracia são novos ambientes interativos capazes de ensejar a conexão e a multiplicação de agentes democráticos. Ninguém muda de opinião se não mudar de rede. Ninguém se converte à democracia porque ouviu discursos democráticos ou porque leu textos teóricos de democracia. É necessário interagir em novos ambientes democráticos.

Os links locais regulam o mundo. As Casas da Democracia são novas redes locais onde cada um pode reconhecer os seus pares e ser reconhecidos por eles. São espécies de “polis paralelas”, formadas por sintonia, oferecendo novos nichos antropológicos de reconhecimento mútuo que possibilitem a obtenção de sinergias para a proposição e a realização de projetos democráticos inovadores.

III – A visão

Não temos hoje, no Brasil, um número suficiente de pessoas que saibam explicar por que acham que a democracia é um valor universal e o principal valor da vida pública, que consigam distinguir uma posição liberal (em termos políticos) de uma posição i-liberal, que possam mostrar por que democracia não é a mesma coisa que majoritarismo e que estejam capazes de criticar os populismos contemporâneos mostrando por que eles são os principais adversários da democracia.

Claro que as pessoas que concordam com a democracia (a preferem à autocracia ou, pelo menos, a aceitam ou toleram) são – felizmente – muito mais numerosas. A maioria da nossa população (ou quase) tende a concordar com a democracia, conquanto o número dos que não a valorizam venha aumentando assustadoramente, no Brasil e no mundo.

Larry Diamond (2015) traçou um quadro da recessão democrática (na qual entramos em meados da primeira década deste século). Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2016-2017) detectaram a desconexão e a desconsolidação democráticas dos últimos anos. O mesmo Mounk e Jordan Kyle (2018) avaliaram empiricamente o estrago que o populismo faz na democracia. Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), juntamente com o pessoal do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo), têm analisado a terceira onda de autocratização em que estamos imersos. Mas quantos entendem tudo isso? E quantos estão interessados nisso?

Não. Não é uma coisa para especialistas. Se não tivermos alguma noção dessas coisas como vamos poder cumprir o papel de agentes fermentadores do processo de formação da opinião pública no mundo atual? Ou como vamos conseguir ser protagonistas de uma nova alternativa democrática na atualidade?

Em uma época onde vicejam pulsões autoritárias dos que negam ou se aproveitam das catástrofes para degenerar a democracia – seja, para nós, os democratas, uma espécie de Idade Média. Hora de fermentação, hora do grão morrer para germinar, hora de crescer escondido na escuridão geral e de usar nossos mil pontos de luz locais para fazer isso…

Sim, estamos em um daqueles momentos de virada em que as saídas tradicionais não adiantam.

A ideia pode até parecer heterodoxa, mas não deixa de ser fascinante. Não é possível enfrentar esta terceira onda de autocratização que nos assola manobrando nossos minúsculos barcos na superfície do mar revolto. Para atravessar a tormenta vamos ter de fazer acampamentos como aqueles imaginados por Ray Bradbury (1953), em Farenheit 451, onde pessoas-livro não deixavam o fio se interromper. Ou como, no relato de Thomas Cahill (1995), os monges irlandeses salvaram a (dita) civilização.

Václav Havel (1978), em O Poder dos Sem-Poder, usando uma ideia seminal de Václav Benda, aventou a hipótese da “polis paralela” como modo orgânico de resistência à dominação autoritária (que ele chamava de “pós-totalitária”). Não uma fuga, dizia ele:

“A polis paralela aponta para além de si mesma e faz sentido apenas como um ato de aprofundar a responsabilidade de um e para o todo, como uma maneira de descobrir o local mais apropriado para essa responsabilidade, não como uma fuga a ela”.

É disso que estamos falando.

Deu para visualizar?

Se tivermos algumas pessoas interagindo de modo distribuído em vários clusters, em cidades de todas as regiões, usando seus pequenos pontos de luz para trabalhar na escuridão (promovendo ambientes de aprendizagem da democracia, escrevendo nos jornais locais, pontificando nas TVs e rádios, com canais no Youtube e nas mídias sociais, se candidatando a cargos executivos e legislativos por velhas e novas agremiações, atuando em instituições do Estado e da sociedade), uma grande rede democrática pode ir se articulando sob a tormenta.

Sim, a democracia, como foi dito, não é a luz de um holofote e sim a de miríades de pequenas velas. Sempre foi assim, aliás. Quantos democratas convictos – que tomavam o sentido da política como a liberdade (e não a ordem) e atuavam condizentemente com isso – existiam em Atenas nos séculos 5 e 4 a. C., ou no parlamento inglês dos Bill of Rights no século 17? Muito poucos. Mas sem esses poucos, a democracia não teria chegado até nós.

Podemos ser poucos, mas não tão poucos que não sejamos capazes de fermentar o processo de formação da opinião pública. Sim, é para isso que existem os democratas, não para virarem maioria (quem aposta nisso – no majoritarismo – são os populistas, ditos de esquerda ou de direita ou extrema-direita, hoje os principais adversários da democracia no mundo e no Brasil).

Para Péricles – segundo o relato de Tucídides – Atenas era a escola da Grécia. Antes de tudo uma escola de democracia. A rigor uma não-escola, como burocracia do ensinamento, posto que a polis não estava murada, não exigia nada de ninguém. Não era como a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles. As ruas e praças da cidade eram os ambientes de aprendizagem em que se exercitavam os democratas, sobretudo os sofistas. O projeto antipolítico platônico era um projeto de ensino. O de Péricles, ao contrário, era um projeto verdadeiramente político, de aprender na livre interação entre os cidadãos mediada pelos fluxos da cidade – e a polis, como percebeu o último Hillman (1993), no brilhante discurso Psicologia, Self e Comunidade, era isso:

“Como nós imaginamos nossas cidades, como nós visualizamos seus objetivos e valores e realçamos sua beleza define o Self de cada pessoa desta cidade, pois a cidade é a exibição sólida da alma comum. Isto significa que você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o significado básico da palavra polis — fluxo e muitos. Para melhorar a você mesmo, você melhora a sua cidade. Esta ideia é tão intolerável ao Self individualizado que ele prefere a decepção do isolamento tranquilo e do retiro meditativo como o caminho para o Self. Eu estou sugerindo o contrário. Self é o verdadeiro caminho, as ruas da cidade”.

Eis aí o desafio. Não é uma ideia fascinante?

IV – A ação

Você quer uma nova política? Então pare de chamá-la de nova. Na civilização patriarcal a maior novidade nesse campo já aconteceu: ela se chama democracia. Para construir uma política democrática, entretanto, é necessário recomeçar de baixo – experimentando a democracia como modo-de-vida: em cada cidade, em cada bairro, em cada organização.

O projeto Casas da Democracia é simples. Há um déficit acentuado de democratas na sociedade brasileira. Isso significa que é preciso multiplicar o número de democratas estimulando a aprendizagem da democracia. Mas a aprendizagem da democracia tem as características de uma conversão: uma conversão não-religiosa, mas uma conversão. Essa conversão implica uma mudança do emocionar e do pensar. Ora, ninguém pode experimentar tal mudança se não mudar de rede (não adianta tentar convencer as pessoas com discursos). E, ademais, é preciso mudar as redes nas quais as pessoas conversam recorrentemente, no dia-a-dia – interagindo entre si e agindo juntas (pois são os links locais que regulam o mundo). Então cada Casa da Democracia é uma nova rede local (e por isso elas são constituídas de baixo para cima: por proximidade, com base sócio-territorial municipal ou distrital), um novo ambiente configurado para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem (ao se sintonizarem) e para fazer coisas juntas (ao se sinergizarem). Trata-se de conectar por desejos congruentes. É a única saída para não arregimentar por interesses. Se arregimentar por interesses, dá mais do mesmo. Cada Casa da Democracia é um novo nicho de “pegajosidade antropológica” capaz de ensejar que as pessoas fiquem próximas o suficiente para possibilitar as mudanças implicadas na conversão à democracia.

Eis algumas sugestões, que devem ser tomadas apenas como inspiração, não como uma pauta obrigatória de ações que devam ser realizadas pelas Casas da Democracia:

1) Envolver mais pessoas da sua localidade em processos de aprendizagem da democracia

2) Fazer palestras sobre democracia nas instituições de ensino e em outras organizações locais do Estado, da sociedade ou do mercado

3) Experimentar mudanças democráticas na gestão de organizações da localidade (do Estado, da sociedade ou do mercado); por exemplo, substituindo a lógica da escassez pela lógica da abundância

4) Experimentar substituir votações por sorteio, sempre que possível, nos procedimentos internos de organizações da localidade

5) Estimular a construção de equipamentos urbanos que facilitem a convivência (praças, bancos, sombras, calçadas, calçadões etc.) e publicizar as praças existentes configurando ambientes comuns (geração social de commons)

6) Organizar assembleias populares nas regiões administrativas ou nos bairros para discutir os problemas da localidade e para apresentar soluções

7) Realizar as próprias reuniões das Casas da Democracia em ambiente público e aberto, sempre que possível

8) Organizar sessões de cinema em praças, com conversação ao final

9) Criar ambientes comunitários de livre-aprendizagem sem restrições de entrada (etárias, de escolaridade etc.)

10) Instalar sessões de cocriação de soluções (tipo festivais de ideias e projetos) para os problemas da cidade, do bairro e das organizações locais e promover o desenvolvimento local

11) Participar regularmente de programas de rádio e TV com audiência significativa na cidade ou na localidade

12) Preparar candidatos comprometidos com a democracia para as próximas eleições

13) Capacitar legisladores e governantes eleitos para exercerem democraticamente seus mandatos

14) Fundar um jornal local (digital ou em papel) com análises do que está acontecendo, na localidade, na região, no país e no mundo, de um ponto de vista democrático

15) Fundar uma rádio comunitária

16) Estimular os representantes eleitos que usem aplicativos de comunicação com seus eleitores e criar novos mecanismos de interação democrática dos cidadãos na esfera pública

17) Propor mandatos coletivos ou co-vereanças

18) Criar (e testar) novos indicadores locais de democracia

19) Fazer um levantamento dos sinais de avanço do autoritarismo ou de desconsolidação da democracia na localidade (por exemplo, monitorar a porcentagem de pessoas que aderem à alternativas populistas)

20) Fazer um levantamento dos ativos democráticos da localidade.

Visite o site das Casas da Democracia.

As eleições para o parlamento europeu e a defesa do mundo livre

As eleições para o parlamento europeu devem ser vistas no contexto da segunda guerra fria, já instalada e movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. Apurados os resultados, pode-se dizer que venceu o mundo livre.

Não importa se quem defende as democracias liberais é dito de direita (como Ursula von der Leyen) ou de esquerda ou centro-esquerda (como Scholz ou Frederiksen).

E não importa se quem ataca as democracias liberais é dito de direita (Orbán ou Erdogan) ou de esquerda (Xi Jinping ou Kim Jong-un). Ou mesmo Putin, que apoia tanto a extrema-direita como a esquerda populista, desde que militem contra a ordem liberal e o mundo livre.

O eixo autocrático articula as maiores e mais cruéis ditaduras do planeta e os regimes iliberais (autocráticos, ainda que eleitorais): Rússia, China, Coréia do Norte, Irã, Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, Cuba, Venezuela, Nicarágua.

E o eixo autocrático está investindo para alinhar a si regimes eleitorais (que são chamados de democracias, mas não são democracias liberais) parasitados por populismos, como México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil e África do Sul.

O fundamental, então, não é ser ou se dizer de direita ou de esquerda e sim defender a ordem liberal e o mundo livre contra as investidas do eixo autocrático. A Europa tem a maior concentração de democracias liberais do planeta. Segundo o V-Dem 2024, a Europa tem 18 democracias liberais em 50 países (36%). Nas Américas são 7 democracias liberais em 36 países (19,4%). Na Oceania 2 em 14 países (14,29%). Na Ásia 4 em 49 países (8,2%). Na África 1 democracia liberal em 54 países (1,6%). Essas democracias liberais precisam ser defendidas

Mas não se trata mais, apenas, de defender a ordem internacional baseada em regras. Eclodida uma segunda grande guerra fria, trata-se de defender o mundo livre (as democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático visando a exterminá-las.

Então são quatro as prioridades agora:

1 – Defender a União Europeia.

2 – Defender a Ucrânia contra a invasão do ditador Putin.

3 – Defender Israel contra os ataques da teocracia iraniana e seus braços terroristas (Hamas, Hezbollah, Houthis etc).

4 – Defender Taiwan contra as tentativas de invasão e anexação da ditadura chinesa.

Ao contrário do que fizeram parecer alguns meios de comunicação, os que não concordavam com essas prioridades não ganharam, perderam as eleições para o parlamento europeu.

A Netwar

A netwar é a nova forma de guerra em uma sociedade-em-rede. Não é, como geralmente se pensa, a luta sem quartel travada nas mídias sociais (que dela representam apenas um pequeno aspecto). Antes de qualquer coisa, a netwar é social, não digital. É uma guerra que alcança as redes de pessoas (inclusive as que não interagem nas mídias sociais).

Para entender isso temos de voltar ao início da segunda década deste século, quando houve uma explosão das mídias sociais (incorretamente chamadas, no Brasil e em outros países, de redes sociais). Mídias sociais não são redes sociais. Poderiam ser, no máximo, ferramentas de netweaving. Acabaram, infelizmente, sendo o oposto ao conspirar contra as redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia). Não, não são ferramentas, dispositivos tecnológicos, sites, aplicativos, programas, algoritmos.

A netwar extravasa, não elimina, as guerras quentes (os conflitos armados que comumente chamamos de guerra). Aliás, o fato de um conflito ser armado só agrava circunstancialmente sua gravidade (pela ameaça mais premente às vidas humanas e dos demais seres vivos). Essencialmente, porém, ela altera o modo de regulação dos conflitos tornando-o menos pazeante e mais adversarial ou antagônico, ao produzir inimigos. Sim, a guerra, qualquer guerra, não é destruição de inimigos (um “efeito colateral”), mas construção de inimigos. Não importa se o inimigo da vez é a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de George Orwell (1949). A guerra constroi inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais, adotando padrões de organização hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos.

A netwar diminui os graus de distribuição das redes sociais e, consequentemente, altera a sua conectividade e a sua interatividade (ver imagem abaixo).

Imagem ilustrativa by Renato Cecchettini. Ao cortar conexões, a netwar multicentraliza a rede, quer dizer, converte uma rede mais distribuída do que centralizada em uma rede mais centralizada do que distribuída.

Não é “guerra de propaganda”. É reengenharia topológica. Ela multicentraliza (e estilhaça) as redes em miríades de esferas privadas opacas. É uma espécie de clustering fortemente restringido. A chamada tribalização, ou ilhamento em bolhas, é um dos efeitos observáveis dessa perturbação na fenomenologia da interação. A netwar desatalha, ou seja, corta as conexões (atalhos) entre os clusters. Ao fazer isso, conecta para dentro e desconecta para fora. E exclui nodos dos mundos sociais que habitavam. Com tudo isso, ela altera molecularmente comportamentos numa velocidade inimaginável, como numa reação em cadeia. Novos organismos sociais, malignos para a democracia, nascidos dessa operação, erigem-se em dias ou até em horas, talvez. Não há comparação com o tempo gasto para estruturar uma SS (Schutzstaffel) ou um Exército de Guardiães da Revolução Islâmica (Pásdárán), mais conhecido como Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC).

A netwar que está em curso – na segunda guerra fria que já eclodiu – é muito mais perigosa para as democracias do que todas as guerras mundiais do século passado (a primeira e a segunda guerras e a primeiro guerra fria).

Toda realidade política sob a terceira onda de autocratização em que vivemos está afetada por essa segunda guerra fria que se instalou, notadamente, a partir da terceira década do século 21. Como foi dito, não é uma terceira guerra mundial, nos moldes das duas anteriores, nem é uma reedição da primeira guerra fria do século 20, porque não é uma guerra de blocos demarcados sobre a geografia do globo. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é fractal, se instala dentro de cada país.

Um eixo autocrático, o mais poderoso já conformado em toda a história humana (Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, além de várias outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África e de Bharat – este último ainda uma incógnita), está movendo uma netwar mundial, uma campanha de isolamento e exterminação das democracias liberais. E, para tanto, está conquistando o alinhamento de regimes eleitorais não liberais parasitados por populismos (México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, Indonésia et coetera).

Essa segunda guerra fria é uma guerra essencialmente política (ou antipolítica, quer dizer, contra a política: que não é guerra e sim evitar a guerra), com múltiplos eventos regionais de guerra quente (conflitos armados) que servem, fundamentalmente, para alimentar a netwar. A guerra do Hamas contra Israel não é uma guerra regional visando a alcançar objetivos militares locais, mas uma das espoletas para a explosão de uma netwar global. Mesmo que vença militarmente no terreno de Gaza, Israel já perdeu a netwar cujo palco é o mundo inteiro (e tanto é assim que se manifesta nos campi das universidades americanas, passando pelas ruas e praças de Paris, de Londres e de Bogotá, até chegar na avenida Paulista no Brasil). A guerra de Putin contra a Ucrânia não é só contra a Ucrânia, para conquistar território e se apropriar de recursos naturais, e sim contra a ordem liberal vigente na Europa e nos Estados Unidos. E ela é travada em todo lugar, até na Assembleia Geral da ONU e no seu Conselho de Segurança.

As três dezenas de democracias liberais que restaram não vão conseguir passar incólumes por essa nova guerra mundial que já está em curso: ao que tudo indica haverá declínio de direitos políticos e liberdades civis até mesmo nesses países de democracia mais avançada ou plena (União Europeia sem Hungria, Reino Unido, Noruega e Suíça, EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia).

Não se sabe ainda o que acontecerá, mas já se pode apostar que não será bom para as democracias.

Livres da Polarização

*Artigo de Augusto de Franco, Roberto Freire, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini

Há no Brasil de hoje dezenas de milhões de eleitores que não se sentem representados pelas forças que dominam a arena política. São esses – em boa parte – os que apoiam a democracia como um valor universal e que são contra toda sorte de preconceitos e discriminações. São os que acreditam na eficiência do Estado, mas defendem uma economia livre, querem aliar desenvolvimento e sustentabilidade, desejam empreender, mas precisam de apoio ou, quando menos, que não sejam atrapalhados, os que sabem que segurança é inteligência e a violência, irmã da desigualdade.

São os que não acham que um pouquinho de inflação faz bem, nem querem leis dos anos 1940 regulando o trabalho, como ficou patente com a decisão dos líderes governistas de abandonar o projeto com o qual o governo pretendia transformar em trabalhadores CLT os motoristas e entregadores de aplicativo. São os que não veem legitimidade em invasões e depredações de patrimônio público ou privado, sejam eles patrocinados pelo MST ou por partidários de golpes de Estado. São os que defendem, de forma intransigente, as liberdades de expressão, organização e manifestação de acordo com as regras do Estado Democrático de Direito.

Eles não estão nos extremos ou polos que viraram instrumento de análise da divisão a que o lulismo e o bolsonarismo submeteram a sociedade, ambos em busca do poder pelo poder. Eles não defendem, nem justificam, grupos terroristas como o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e demais milícias do Oriente Médio que servem aos propósitos da teocracia iraniana e estão sendo usados pelas grandes autocracias do planeta contra os regimes democráticos – tampouco apoiam Nicolás Maduro, Vladimir Putin ou outros ditadores, de esquerda, de direita ou fundamentalistas religiosos.

Quem falará pelos cerca de 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas? Os partidos políticos falharam em interpretar os sentimentos, captar as aspirações e endereçar soluções para os problemas desse imenso contingente populacional. Os que não minguaram viraram satélites dos dois campos que alimentam a clivagem social e política brasileira. Não por outra razão, pesquisa recente do Datafolha mostra que aumentou a desconfiança da população dos partidos políticos. Os números, aliás, são alarmantes: só 43% confiam “um pouco”.

A construção de alternativas à polarização, portanto, terá de partir dos insatisfeitos com esse estado de coisas. E, nesse campo, há grande diversidade. De intelectuais a políticos, passando por jovens idealistas, professores, profissionais liberais, trabalhadores de chão de fábrica e de empresas de tecnologia, entregadores e motoristas de aplicativos, empresários, agricultores, artistas, sindicalistas, cientistas, enfim, pessoas comuns que querem viver, estudar, trabalhar, empreender, se divertir, amar e se congraçar com seus semelhantes sabendo que somente a democracia pode configurar ambientes pacíficos onde seus direitos políticos e suas liberdades civis sejam respeitados e valorizados.

Uma oposição democrática aos populismos, no governo ou fora dele, já existe no Brasil. Ela ainda é pequena e está dispersa, mas não crescerá por mágica nas eleições deste ano ou nas próximas. Isso só vai acontecer se as forças políticas democráticas começarem a se articular para influenciar de pronto a agenda nacional, resgatando o espaço público dos populismos de esquerda e direita que o sequestraram. Isso exige conversação livre e franca entre pessoas que não imaginam ter o monopólio da verdade e que estão abertas a ouvir e entender os pontos de vista do outro e, se necessário, a mudar seus próprios pontos de vista, seja em busca de convergência, seja porque alguém teve uma ideia melhor. Isso exige empenho contínuo, um exercício permanente de olhar para a frente, de pensar o País para além das disputas de poder.

Há muita gente disposta a isso, dentro e fora dos partidos, centristas, à esquerda ou à direita, nos mais diversos Estados. Gente cansada do destrutivo e paralisante “nós contra eles”. Gente que espera há anos por políticas que deram certo em outros lugares do mundo, independentemente da ideologia de seus idealizadores, mas que aqui são sabotadas pela polarização. Seja na educação, com a reforma do ensino médio, ou no saneamento básico, com o marco legal, para ficar em dois exemplos recentes de tentativa de retrocesso.

Que todos esses comecem a se conectar, virtual ou presencialmente, não importa se em grande ou pequeno número. O resultado desse esforço não será uma frente de pessoas que pensam igual, mas uma ecologia de diferenças coligadas. Não se articularão apenas para lançar candidatos, embora daí nascerão opções aos extremos, mas para congregar quem deseja trabalhar pela despolarização. Em nome dos milhões de brasileiros que almejam viver em um país melhor e estão fartos de quem lucra com a divisão da sociedade brasileira.

*Roberto Freire é político e advogado, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini são políticos e médicos, Augusto de Franco é político e escritor.