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Lula na ONU: “A voz do sul global” contra o “mito da superioridade ética do Ocidente”

Há tempos tenho chamado atenção, em meus artigos, para o desprezo que o presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, tem pela democracia liberal. É algo que ele não esconde, mas faz questão de expressar em alto e bom som, em contextos internacionais importantes.

Por outro lado, sabemos o quanto ele insistiu em construir uma “narrativa” na qual a ditadura de Nicolás Maduro fosse concebida como uma democracia, assim como nos recordamos da estapafúrdia analogia que ele fez, em 2021, entre o tempo que seu amigo ditador Daniel Ortega e a chanceler alemã Angela Merkel permaneceram no poder, aumentando o anedotário das frases cínicas com que costuma defender os companheiros de ideal de tirania.

O que se poderia esperar, portanto, do discurso de Lula na ONU a não ser o cinismo, as platitudes e o exibicionismo moral de sempre, ajudado, dessa vez, pela pauta nacionalista entregue de bandeja a ele pela direita aloprada bolsotrumpista que o fortaleceu na medida em que tentou chantagear o Brasil, tornando o país refém de suas idiossincrasias?

Ao defender o Brasil das indevidas ingerências estrangeiras, o discurso de Lula foi até razoável, mas logo decaiu nos chavões de sempre, como o clamor pela censura nas redes (“a internet não pode ser uma terra sem lei”; “regular não é restringir a liberdade de expressão”); a defesa das ditaduras amigas (“a via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”; “é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo”) e a ausência de condenação à Rússia pela guerra na Ucrânia (“No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar).

No contexto da já esperada e repetitiva verborragia contra Israel, Lula afirmou que lá nos escombros de Gaza “também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

A frase é forte e pode ter algum efeito retórico sobre os incautos. Por isso mesmo convém perguntar: por que só nos escombros de Gaza o direito internacional humanitário foi sepultado? Não o foi nos escombros dos kibutz em Israel onde civis foram massacrados pelo Hamas nem nos escombros das cidades ucranianas bombardeadas por ordem de Putin?

O direito internacional humanitário também não morreu nas masmorras da Venezuela onde presos políticos são torturados nem nos cárceres iranianos onde mulheres são estupradas e espancadas e gays são enforcados? O direito internacional humanitário não foi sepultado na repressão na Nicarágua, em Cuba, no Afeganistão e demais países comandados pela extrema esquerda ou pela teocracia islâmica?

A segunda parte da frase retórica de Lula, acerca do sepultamento do “mito da superioridade ética do Ocidente” precisa ser analisada com um pouco mais de calma, sendo necessária uma digressão histórica e filosófica, para a qual peço ao leitor certa dose de paciência.

Sul Global X Ocidente

Lula tem tentado se impor como líder do Sul Global. Nas frases finais do referido discurso na ONU, ele exortou: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”. Mas o que diz essa voz?

A expressão “Sul Global” tem hoje enorme circulação, tanto em discursos políticos (especialmente em organismos internacionais) quanto em teorias acadêmicas (na filosofia e nas ciências sociais). Por trás do termo aparentemente geográfico há, portanto, um claro projeto político-ideológico.

O Congresso de Bandung (1955) pode ser considerado como o primeiro grande marco político dessa coalizão que reuniu inicialmente 29 nações recém-independentes da África e da Ásia, incluindo vários países de maioria muçulmana. 

A pauta desse congresso foi impulsionada por um forte sentimento anticolonialista e “antirracista”, denunciando o domínio das potências ocidentais. Tensões relacionadas ao conflito árabe-israelense já ficaram ali evidentes, com os países árabes boicotando a presença de Israel. O comunicado final de Bandung apoiou a causa árabe contra Israel.

Em 1961, a Conferência de Belgrado criou o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), núcleo original do que depois seria chamado de “Sul Global”. 

Nos anos 1990–2000, a nova expressão ganhou força como nova identidade política com foco na contestação da hegemonia ocidental. Assim, o “Sul Global” tornou-se uma categoria geopolítica (cooperação Sul-Sul, BRICS), uma categoria moral (resistência à dominação ocidental), e uma categoria epistemológica (alternativa de saber e cultura).

No que diz respeito às raízes intelectuais, a visão de mundo Sul Global é marcada pela dicotomia difundida pela corrente marxista latino americana para a qual o Ocidente/Norte é sempre opressor e o Sul é sempre vítima e resistência. Também tem relevância em tal corrente, a dimensão soteriológica na política, desenvolvida por nomes da teologia da libertação que propuseram uma leitura na qual o “pobre do Sul” encarna o Cristo oprimido da história.

Outra linhagem intelectual é a de viés cultural e epistemológico, que ficou conhecida como pensamento decolonial, que fala em “colonialidade do poder” e “epistemologias do Sul”, alegando que o Ocidente construiu o Oriente como “outro inferior”, propondo em contrapartida a libertação psicológica e cultural do “colonizado” através de um sujeito moral e epistêmico capaz de denunciar a “falsidade universalista do Ocidente”.

Para se contrapor ao modelo de racionalidade iluminista, universalista, eurocêntrico, que ele julgam excludente, a ideologia sul global sustenta-se também em filósofos contemporâneos pós-modernos mais conhecidos, como Nietzsche e Foucault (crítica da verdade e do poder), passando por Derrida (desconstrução) e Levinas (ética da alteridade).

Decolonialismo: o antiocidentalismo irresponsável

A crítica ao “Ocidente” tem alguns méritos — lembra que o progresso europeu esteve entrelaçado com dominação; levada ao extremo, porém, ela substitui universalidade racional por relativismo moral, induz ao vitimismo histórico e nega as fontes autocríticas do próprio Ocidente.

Ao rejeitar o ideal de uma razão comum, dissolve-se o horizonte de entendimento universal. Ao transformar o Ocidente em inimigo absoluto, a ideologia sul-global perde o horizonte universalista da própria justiça, que alega defender.

O desdém pela tradição jurídica e política ocidental é epistemologicamente e politicamente problemático.

Há crimes e violências reais associados ao colonialismo e ao imperialismo europeu; mas também há realizações normativas — direitos, Estado de direito, universalismo jurídico — que emergiram no Ocidente e tiveram efeitos emancipatórios genuínos. As duas coisas são verdadeiras simultaneamente.

Julgar tradições por sua melhor versão possível (e não por suas piores práticas) é um requisito mínimo de justiça intelectual: quando avaliamos a tradição jurídico-política ocidental devemos pesar tanto suas instituições efetivas quanto suas justificações teóricas.

Discursos decoloniais tendem a afirmar que, por terem origem em contextos europeus marcados por violência, as categorias das democracias liberais seriam intrinsecamente ilegítimas. Isso confunde origem histórica contingente com validez normativa universal.

Kant, por exemplo, formulou um ideal jurídico-moral (a constituição civil e a paz perpétua) como objetivo universal; rejeitar a validade universal dessas categorias por causa de seu uso histórico desemboca em puro relativismo prático de pendor revolucionário.

Reduzir o Ocidente a “colonialismo” é negar o curso da história, é desconsiderar que a tradição ocidental contém mecanismos de autocrítica e reformas. 

Direitos humanos, movimentos abolicionistas, pressões por responsabilização, processos constitucionalizantes que formulam limites e normas são instrumentos do sistema político ocidental que o antiocidentalismo irresponsável não quer reconhecer.

Se se rejeita o universalismo jurídico, o resultado prático muitas vezes é a fragmentação normativa que desfavorece justamente os mais vulneráveis, invalidando direitos de minorias, proteção contra violência de Estado e padrões processuais que limitam o arbítrio. 

A defesa da pluralidade acaba se transformando, assim, na recusa de princípios mínimos de justiça (por exemplo, a impossibilidade de criticar determinadas práticas islâmicas de opressão contra as mulheres ou a recusa em reconhecer um indivíduo algoz porque, como minoria étnica, ele estaria na categoria de vítima),

A tradição jurídico-política ocidental contém argumentos explícitos em favor da dignidade humana, do monopólio da força legítima, do Estado de direito e da separação dos poderes — dispositivos que, quando aplicados corretamente, limitam a opressão. Desconsiderá-los é abrir mão de instrumentos que povos colonizados também usaram para promover emancipação.

A ideologia decolonial substitui o que chama de eurocentrismo por uma narrativa reducionista e dogmática na qual toda autoridade ocidental é opressora e toda autoridade não-ocidental é genuína, o que promove o silenciamento de críticas internas legítimas em sociedades não-ocidentais, sacrificando direitos universais no altar do relativismo multicultural.

Em nome de causas justas, como a crítica às desigualdades históricas ou à exploração colonial, muitos dos que hoje se apresentam como defensores dos povos “do Sul global” passaram a rejeitar, quase por princípio, toda a herança político-jurídica ocidental. O resultado é uma espécie de niilismo disfarçado de consciência crítica.

Quando se rejeita a tradição ocidental em bloco, o que se perde não é apenas uma cultura, mas o próprio vocabulário da liberdade. Sem o conceito ocidental de pessoa, não há direitos humanos; sem o conceito ocidental de lei racional, não há justiça; sem a tradição ocidental da consciência, não há responsabilidade moral.

A superioridade ética do Ocidente é um mito?

A tradição político-jurídica do Ocidente é uma longa e laboriosa construção do espírito no tempo. Para Hegel, a história universal é o progresso na consciência da liberdade — e ele via na Europa, isto é, no Ocidente, o ponto incontornável desse processo; não por uma questão de raça ou de geografia, mas porque ali se estabeleceu a liberdade como princípio e fundamento de toda vida humana.

Hegel considerava o Ocidente superior do ponto de vista ético-jurídico porque nele a liberdade alcançou sua forma universal, objetivada nas instituições racionais do Estado moderno. Essa superioridade é estrutural dentro da filosofia da história hegeliana, que avalia os povos pelo grau de realização da liberdade.

Europa ist also eigentlich das Ende und der Mittelpunkt der Weltgeschichte” “A Europa é na verdade o fim e o centro da história mundial.” Essa é a formulação usada por Hegel para afirmar a centralidade da Europa na história universal, dentro de seu esquema teleológico do Espírito.

Essa concepção tem um núcleo ético-jurídico: a liberdade, para Hegel, não é um capricho individual, mas a coincidência entre a vontade particular e a vontade racional — aquilo que se expressa nas leis justas, nas constituições, nos direitos civis.

A tradição ocidental produziu, nesse sentido, o que poderíamos chamar de “gramática da liberdade”: conceitos como responsabilidade, soberania popular, contrato social, limitação do poder e dignidade da pessoa. 

É por meio deles que a vida política se torna espaço de racionalidade e não de mera força. Nenhuma civilização está imune à corrupção do poder, mas só o Ocidente construiu, de modo consistente, mecanismos institucionais e normativos para contê-lo.

Kant já havia oferecido o fundamento moral dessa construção. Para ele, o homem é fim em si mesmo, nunca mero meio. No plano político, isso implica repúblicas constitucionais e leis universais; no plano internacional, implica a busca por uma “paz perpétua” fundada em uma federação de Estados livres.

O universalismo kantiano — frequentemente acusado de eurocêntrico — é, na verdade, a forma mais radical de anticolonialismo: ele afirma que nenhum povo pode ser usado como instrumento da ambição de outro. O verdadeiro cosmopolitismo, para Kant, não anula as diferenças culturais, mas reconhece em todas as pessoas a mesma dignidade moral.

Alexis de Tocqueville, ao observar a América nascente, notou que a herança ocidental se expandia para além da Europa, gerando uma forma inédita de igualdade civil e de associativismo cívico. Para Tocqueville, a democracia moderna é uma experiência moral antes de ser um regime político: depende de virtudes, de hábitos de responsabilidade, de uma pedagogia da liberdade.

O que impressionava o pensador francês não era o poder do Ocidente, mas sua capacidade de se autorregular, de corrigir seus excessos pela via da opinião pública, da imprensa livre, da divisão de poderes e da confiança mútua entre cidadãos.

O filósofo Eric Voegelin, por sua vez, interpretou a história ocidental como o esforço permanente de manter viva a tensão entre ordem e transcendência. 

O Ocidente, dizia ele, é uma ordem aberta: jamais reduz a realidade política a uma ideologia total. É por isso que as experiências totalitárias do século XX, embora nascidas no seio europeu, são, para Voegelin, negações da Europa — sintomas de uma ruptura espiritual, de uma perda da medida que só pode ser restabelecida pelo retorno ao fundamento ético da pessoa e da lei.

Intuição parecida teve Joseph Ratzinger — o papa Bento XVI — quando, em sua célebre intervenção no Parlamento Alemão, em 2011, advertiu que a Europa corria o risco de se destruir ao negar as suas próprias raízes espirituais.

A identidade íntima da Europa, disse ele, consiste na síntese entre razão e fé, entre a herança grega da filosofia e a herança bíblica da dignidade humana. É essa união que produziu o conceito de direito natural e, mais tarde, de direitos humanos

O equilíbrio europeu foi justamente o esforço de integrar essas duas dimensões — o logos grego e a consciência moral cristã — em instituições capazes de proteger o homem contra o próprio homem.

Nessa perspectiva, o Ocidente não é mera geografia, mas forma de consciência. É o reconhecimento de que há uma ordem moral superior ao poder, e que o direito deve servir à pessoa, não ao Estado.

Essa é a sua grandeza — e é também o motivo pelo qual o Ocidente foi capaz de se criticar, de se reformar, de abolir a escravidão, de renegar o holocausto, de proteger minorias. Todas essas lutas internas foram alimentadas por princípios universais.

Quando o Ocidente duvida de si mesmo, o mundo inteiro perde sua bússola moral. O Ocidente não é inocente, mas também não é culpado pelos males do mundo.

O discurso de Lula na ONU tentou desconstruir o “mito da superioridade ética do Ocidente”, e tudo o que conseguiu foi desconstruir, mais uma vez, o mito da sua própria superioridade moral.

Por que Lula não é um democrata

O fato de Lula sempre ter se submetido ao resultado nas várias eleições que perdeu (uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República) não o torna um democrata.

O fato dele jamais ter buscado fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder não o torna um democrata.

O fato de que ele respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva, não o torna um democrata.

O fato de que nunca instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele, não o torna um democrata.

Todas as alegações acima são feitas por contraposição ao que fez Bolsonaro, que também não é um democrata. Mas se opor a alguém que não é democrata não torna ninguém democrata. Stalin se opunha ao antidemocrático Hitler, mas isso não significa que fosse democrata. O autor deste artigo se opôs à ditadura militar brasileira e não era, na época, um democrata.

Quem não é golpista não faria nada disso que fez um golpista como Bolsonaro. Lula não é golpista. Por isso não faz essas coisas. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrata.

Repetindo. Tentar dar golpe de Estado torna qualquer um antidemocrático. Mas não querer dar golpe de Estado não torna ninguém democrático.

Quem adotar uma estratégia hegemonista não dará golpe de Estado, mas mesmo assim será antidemocrático. Para entender isso é preciso ver que existem dois caminhos principais para autocratizar um regime político: o golpe de Estado (à moda antiga) e a erosão democrática (que já é a via predominante no século 21).

Sim, as democracias no século 21 não caem mais, na maior parte dos casos, por golpes de Estado (à moda antiga, com protagonismo militar), como tentaram fazer os bolsonaristas no Brasil (sem sucesso) e os gorilas de Mianmar (com sucesso). Agora 70% dos processos de autocratização ocorrem por erosão democrática, na maioria das vezes lentamente, sem ruptura violenta e até sem rasgar as Constituições.

Tal ocorre quando uma força hegemonista, tendo chegado ao governo pelo voto, se dedica a ocupar as instituições, não para destruí-las e sim para fazer maioria em seu interior colocando-as a serviço do seu projeto de poder. Pois o que visam não é dar uma quartelada anacrônica e sim conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo, violando o princípio da rotatividade ou alternância democrática.

Mas então, o leitor pode perguntar, o que é necessário para qualificar um ator político como um democrata? Basicamente, o seguinte.

Em primeiro lugar, democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja dita de direita ou de esquerda). Entendem que a democracia é um processo constante de desconstituição de autocracia, não uma utopia, um modelo perfeito de regime político ou de sociedade ideal.

Aqui neste primeiro critério Lula já não passa. Ele se opõe à ditaduras de direita, mas se alia à ditaduras de esquerda. Fez assim historicamente com Cuba e também com Angola, Venezuela e Nicarágua. Mais recentemente se alinhou à Rússia de Putin, foi simpático à teocracia do Irã (e nunca condenou claramente seus braços terroristas) e defendeu manter relações políticas (não apenas, nem principalmente comerciais – foi ele próprio que o disse, e isso foi antes de Trump 2) – com a China de Xi Jinping. Na sua primeira viagem à China depois de eleito pela terceira vez, no dia 14 de abril de 2023 (em pleno governo Biden nos EUA), Lula declarou: “A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial… [para]elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”.

Em segundo lugar, quando dirigindo governos, democratas podem estabelecer relações comerciais com quaisquer países, mas não entram em articulações políticas compostas majoritariamente por ditaduras, se alinhando a eixos autocráticos de países para combater as democracias liberais. Todavia, democratas chefiando governos não sabotam sanções dos países democráticos impostas a regimes que violam as leis internacionais e os direitos humanos.

Nesse segundo critério Lula também não passa. Uma prova disso é seu empenho em turbinar o BRICS, uma articulação política (disfarçada de bloco econômico) composta por 80% de ditaduras. Além disso, sabotou às sanções dos países democráticos ao regime de Putin, multiplicando o comércio com a ditadura russa (sobretudo com a compra de óleo em grande quantidade, financiando indiretamente a invasão da Ucrânia).

Em terceiro lugar, democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”); ou seja, para os democratas, a democracia não é uma luta para impor às sociedades uma ordem por eles concebida (nem mesmo se for uma ordem que avaliam ser a mais justa imaginável do mundo).

Lula também seria reprovado neste terceiro critério. Foi o seu partido – e todo mundo sabe, não é possível esconder – que introduziu o “nós contra eles” na política brasileira, gerando uma revolta de amplos setores da população com o petismo. Isso fez crescer o antipetismo, que só existe porque existe petismo. Acrescente-se que o PT é um partido hegemonista, que acha que a única maneira de implantar um projeto político é fazendo maioria em todo lugar (de um DCE universitário, passando por uma agência reguladora, até chegar a um tribunal superior de justiça) para impor a predominância de um modo de pensar e de se comportar politicamente.

Em quarto lugar, democratas protegem os direitos individuais e das minorias (sociais e políticas) contra a tirania do Estado e a tirania da maioria.

Aqui temos, igualmente, uma clara linha divisória que não pode ser ultrapassada por um democrata. Mas que Lula ultrapassa. Ele defende os direitos das minorias sociais, mas não os das minorias políticas, que – a seu ver e ao ver do PT – devem ser deslegitimadas quando se opõem aos projetos populares. Embora sendo estatista (ou tendo uma visão estadocêntrica do mundo) ele não é favorável (pelo menos até agora, antes de ter conquistado hegemonia) à tirania do Estado, mas acha “natural” que a maioria imponha sua vontade às minorias (políticas). Sua visão de democracia está alicerçada na crença de que democracia é a vontade da maioria e que uma maioria eleitoral confere a quem a recebeu legitimidade para realizar o seu projeto, não sendo necessário negociar com as minorias (a não ser quando isso for necessário para emplacar seus projetos). Isso, é claro, desde que tal maioria eleitoral seja conferida a quem está realmente “do lado do povo” ou “do lado certo da história”.

Em quinto lugar, democratas defendem que a sociedade deve controlar o governo e não o contrário, porque avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado.

Bem… aqui temos o melhor exemplo de incompatibilidade total com o pensamento de Lula. Ele acha que um governo que está “do lado do povo” é o máximo da democracia (que confunde, porém, com cidadania ofertada pelo líder identificado com o povo, como veremos adiante). Estatista, como já se disse aqui, Lula encara a sociedade como dominium do Estado (quando esse Estado está “nas mãos certas”, ou seja, nas mãos dos legítimos representantes do povo). Sim, o PT acha que cabe ao governo popular controlar e comandar a sociedade, inclusive a economia. Por isso não aceita a independência do Banco Central e das Agências Reguladoras e tenta burlar a lei das estatais para nomear para suas diretorias seus militantes ou aliados políticos. O Estado é o grande ator, posto que só ele (quando “nas mãos certas”) pode combater os inimigos do povo e levar adiante à consumação dos interesses populares. Este quinto critério, no qual Lula também é reprovado, é a prova do seu caráter não-liberal (ou iliberal).

Em sexto lugar, democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais). Democratas acreditam que a liberdade de alguém começa justamente quando começa, e não quando termina, a liberdade do outro (ou seja, que ninguém pode ser livre sozinho).

Para Lula e o PT, entretanto, a política só tem sentido se for uma luta para implantar uma ordem mais justa (concebida por eles ex ante à interação das pessoas). Portanto, o sentido da política, para eles, é a ordem – não a liberdade. Quanto ao conceito democrático originário de liberdade, eles não fazem a menor ideia do que seja. Liberdade se reduz, na sua concepção, à libertação de um poder opressor (desde que esse poder seja inimigo do povo, estando do lado errado da história).

Em sétimo lugar, democratas não querem destruir nenhum ‘sistema’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade. São reformistas inovadores, não reacionários disfarçados de conservadores, nem revolucionários travestidos de progressistas.

Essa ideia de que há um grande inimigo responsável por todo mal que ocorre no mundo está entranhada no PT (e Lula, sim, o Lula, compartilha dela). O grande inimigo, claro, é o capitalismo e suas construções: as classes dominantes (os ricos), o imperialismo norte-americano (e, numa inclusão posterior, insuflada pelo identitarismo, o neocolonialismo eurocêntrico e heteronormatizador). Isso se explica porque o marxismo está na raiz da ideologia do PT (1). Ocorre que a democracia jamais nasceu de revoluções que destruíram um ‘sistema’ (ou modo de produção e suas construções sociais e políticas) ou substituíram no poder uma classe social por outra classe (tal como o marxismo define essa noção) e sim de reformas que introduziram inovações. Se, para inventar a democracia pela primeira vez, os atenienses tivessem que ter destruído o modo de produção escravista que vigorava na época, jamais teríamos ouvido a palavra democracia. Se os parlamentares que propuseram os Bill of Rights em oposição ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17, tivessem primeiro que ter desconstituído todo o sistema econômico, social e político, instalado naquele então na Europa e no mundo, a democracia jamais teria sido reinventada (2). No seu estrato intelectual, o PT foi organizado por militantes da primeira grande guerra fria, que continuaram se comportando como militantes da primeira grande guerra fria mesmo após a queda do muro de Berlim (que não caiu dentro de suas cabeças) e o colapso da União Soviética (que, in pectore, lamentaram). O seu anti-imperialismo norte-americano vem daí: não é um anti-imperialismo apenas quando republicanos conservadores como Reagan, Bush pai e filho e republicanos-MAGA, como Trump, estão no poder, mas também quando os democratas Clinton, Obama e Biden governaram. Não é um anti-imperialismo por princípio, pois transige com o imperialismo de Putin. É um vício. Lula adquiriu esse vício, que é antidemocrático.

Em oitavo lugar, democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas, nem ser uma massa cada vez mais volumosa para impor, pela força do seu número, sua vontade aos demais atores políticos e à sociedade. São o fermento, não a massa.

Lula é um condutor de massas, um líder que, segundo sua própria apreciação (muito favorável a si mesmo), já sintetiza o povo que pretende conduzir. Além disso é majoritarista, como foi mencionado anteriormente neste artigo.

Em nono lugar, democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que seguem os líderes populistas) às elites (ou ao ‘sistema’).

Lula é populista, um populista de esquerda ou neopopulista (uma das duas espécies principais de populismos do século 21, além do populismo-autoritário ou nacional-populismo, dito de direita) que surgiu no movimento de ascensão de Chávez (e depois Maduro) na Venezuela, Evo (e depois Arce) na Bolívia, Correa (e depois Moreno) no Equador, Lugo (sem sucessor) no Paraguai, Funes (e depois Cerén) em El Salvador, Obrador (e depois Claudia) no México, Zelaya (e depois Xiomara) em Honduras, Cristina (e depois Fernandez) na Argentina. O fato de ele não ser um neopopulista que tenha virado ditador – como Ortega e Maduro viraram – não altera a natureza iliberal do seu populismo (e dos demais neopopulismos que surgiram na mesma onda) (3).

Em décimo lugar, democratas não reduzem a democracia à eleições.

Bom, dizer o quê? O PT (e Lula, pois o PT é em tudo indistinguível de Lula, a não ser em potencial eleitoral) é eleitoralista. Pode-se dizer que, já nos seus primórdios, o PT abandonou a perspectiva revolucionário-rupturista de parte de seus fundadores para adotar a via eleitoral, mas não porque achou que é melhor para a democracia a alternância pacífica nos governos via eleições e sim porque avaliou que o caminho revolucionário anterior era inadequado (posto que com poucas chances de sucesso) nas novas condições do mundo após a derrocada do socialismo real. Uma prova disso é o conselho que Lula deu aos dirigentes das FARC, no sentido de que depusessem as armas, construíssem um partido (nos moldes do PT) e disputassem eleições (como fez Chávez, como fez ele próprio, como fez Evo, como fez Correa e como, depois do fracasso da revolução sandinista, como fez Ortega). O PT ama de paixão eleições, mas não aceita a rotatividade ou alternância democrática. As eleições, para o PT, não fazem parte do metabolismo normal dos regimes democráticos, mas são um meio (instrumental) para alcançar e reter o poder em suas mãos indefinidamente. As eleições, para Lula e para o PT, são o caminho tático possível para chegar ao governo e nele se delongar até ter condições de tomar o poder (não dando um golpe, mas conquistando hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido). O regime eleitoral (ao qual se reduz, segundo eles, para todos os efeitos práticos, a democracia) é um meio instrumental de travar a luta política como uma espécie de guerra (onde as armas passam a ser os votos), mas a dinâmica adversarial é a mesma. Outra prova disso é que o PT não faz aliados fora do campo de esquerda que hegemoniza, a não ser para ficar mais forte e, quando não precisar mais desses aliados tático-instrumentais, matá-los como agentes políticos ao final.

Em décimo-primeiro lugar, democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade).

Lula e o PT não aceitam vários desses critérios da legitimidade democrática. Quando estão no governo, não respeitam a publicidade ou transparência (e tanto é assim que decretam sigilos de até 100 anos em documentos que nada têm a ver com segurança nacional), têm horror da rotatividade ou alternância (pois ela não seria legítima quando os vencedores das eleições são inimigos do povo, ou seja, qualquer um que esteja fora do seu campo do esquerda ou a ele subordinado: e tanto é assim que pediram o impeachment de todos os presidentes não-petistas eleitos na Nova República – com exceção de Bolsonaro, pois queriam deixá-lo sangrando para batê-lo mais facilmente nas urnas e voltar ao governo), violam a legalidade (como demonstram os casos do mensalão e do petrolão, entre outros) e só reconhecem a validade da institucionalidade quando podem ocupar e controlar as instituições.

Em décimo-segundo lugar, democratas defendem instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes, sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos, judiciário independente e autocontido em suas atribuições.

Lula e o PT acham que tudo isso é conversa “para inglês ver”. Defendem, sim, instituições estáveis, desde que estejam no controle dessas instituições (por meio da sua ocupação ou aparelhamento e da formação de maiorias no seu interior). Defendem judiciário independente e autocontido em suas atribuições somente quando estão na oposição: se estão no governo querem um judiciário como aliado político e por isso indicam seus militantes ou simpatizantes para compor os tribunais (no caso da suprema corte Lula indicou um advogado do partido, o seu próprio advogado pessoal e um agente político do seu governo, ex-membro do Partido Comunista do Brasil).

Em décimo-terceiro lugar, democratas defendem que as oposições políticas democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático (que, avaliam, não pode existir em sua plenitude sem oposição).

Lula e o PT nunca reconheceram e valorizaram as oposições (mesmo as democráticas) como peças fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático. Mesmo as oposições democráticas são encaradas como forças antipopulares, representantes das elites (ou dos ricos) contra o povo, quando não fascistas – e então deslegitimadas (como ocorreu com o PSDB após a primeira vitória de Lula em 2002). Eles não aceitam a evidência de que situação há em qualquer regime (inclusive nos regimes autocráticos), mas oposição (democrática) só nas democracias. Ou seja, de que não há democracia (no sentido liberal ou pleno do termo) sem oposição democrática (atuante). Ora, se um governo se diz democrático, mas não reconhece e valoriza a oposição democrática como fundamental para o bom funcionamento do regime, então esse governo não é, na verdade, democrático, ainda que o regime político possa ser considerado formalmente democrático, como foi o caso nos governos do PT. Em geral um governo que deslegitima as oposições – não apenas as antidemocráticas, mas também as democráticas – é um governo antipluralista (o que é uma característica iliberal do populismo).

Em décimo-quarto lugar, democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (e não só das minorias sociais, mas também das minorias políticas). Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

Lula e o PT confundem o conceito de democracia com o conceito de cidadania. Falam de cidadania para todos ofertada pelo Estado, quando “nas mãos certas”, quer dizer, comandado por forças políticas ditas progressistas. Pior, acreditam que a cidadania seria conferida ao povo pelo líder populista. Conquanto cidadania universalizada seja um bom propósito, portanto desejável, ela não é a mesma coisa que democracia. Isso pode ser ofertado por regimes não-democráticos, quer dizer, por autocracias (4). Para Lula e para o PT a igualdade socioeconômica é pré-condição para a liberdade política e por isso desqualificam todas as democracias liberais ou plenas que existem no mundo como democracias para as elites e não para o povo (5). Essa é uma posição claramente antidemocrática.

Em décimo-quinto lugar, democratas reconhecem a soberania como um valor nacional, mas não como um valor universal acima da democracia. A soberania de um país não pode se sobrepor ao valor universal da democracia, nem de suas dimensões correlatas: por exemplo, democratas reconhecem e apoiam a Declaração Universal de Direitos Humanos (o que não fariam em relação à quaisquer declarações nacionais de direitos humanos, que poderiam ser forjadas por autocracias). Democratas avaliam que a soberania é um conceito que se aplica a países (Estados-nações) e não aos governantes, aos seus partidos e a outras instituições, privadas ou públicas, por eles controladas.

Lula se travestiu de defensor da soberania por meio de uma narrativa (e de uma propaganda) soberanista (que toma a soberania dos Estados-nações como um valor absoluto). Mas todo soberanismo é incompatível com a democracia. Se a soberania fosse um valor absoluto não se poderia tomar medidas contra tiranias que invadem outros países para subjugá-los (como está fazendo a Rússia com a Ucrânia). Por isso o governo do PT, liderado por Lula, coloca-se “ativa e altivamente” contra as justas sanções dos países democráticos às tiranias de Cuba, Venezuela, Irã e Rússia, com a alegação de que isso estaria violando a soberania desses países. E, inclusive, sabota essas sanções. Além disso, por motivos eleitoreiros, Lula aproveitou as sanções impostas por Trump para estruturar e antecipar ilegalmente sua campanha de 2026 em torno da ideia-força de defesa da soberania nacional, o que o leva a encenar patriotadas diárias para tentar unir o povo em torno da sua candidatura. De “salvador da democracia” em 2022, Lula quer voltar como o “salvador da soberania” em 2026.

Para qualquer pessoa honesta as provas apresentadas acima bastam para mostrar que Lula e o PT não são democráticos.

O fato de termos tão poucos artigos como este na nossa grande imprensa e, inclusive, na imprensa alternativa, revela a extensão e a profundidade do analfabetismo democrático entre nós e a falta de programas de aprendizagem da democracia. Na verdade, revela o defict de agentes democráticos na sociedade brasileira. E como não existe democracia sem democratas, isso deve ser motivo de grande preocupação.

Notas

(1) Todos os primeiros dirigentes do partido, os fundadores que tinham condições de formulação teórica, eram revolucionários marxistas – ou ex-revolucionários marxistas que não conseguiram se desvencilhar das matrizes marxistas de interpretação do mundo. Uma das três correntes que constituíram o PT era formada pelos dirigentes e militantes de antigas organizações políticas, colocadas na clandestinidade pela ditadura militar, alguns recém liberados de prisões brasileiras e outros voltando do exílio, era composta por marxistas, em geral, por marxistas-leninistas. É obvio que muitos líderes fundadores do PT, sobretudo os sindicalistas que compõem uma das três correntes da sua constituição, não foram marxistas, mas acabaram concordando com a visão marxista de que há uma imanência histórica, de que a história vai para algum lugar e tem leis que podem ser conhecidas por quem conhece a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade, de que a luta de classes é o motor da história, de que o sentido da política é uma espécie de guerra (sem derramamento de sangue, se não for necessário) para implantar uma ordem mais justa, inspirada nos interesses da classe trabalhadora. A terceira corrente de constituição do PT, formada pelos militantes da igreja do povo, inspirados pela teologia da libertação, também estava sob forte influência dessas ideias. Tais concepções, entretanto, não eram (e continuam não sendo) democráticas. Eram ideias revolucionárias, ainda que os revolucionários que as carregavam tivessem adotado a via eleitoral de chegar inicialmente ao governo para então, só depois, tentar tomar o poder (embora não necessariamente por meios violentos).

(2) A democracia surge em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., por meio de reformas: a reforma de Clístenes (que, em 508 a.C. substituiu o genos, os clusters familiares da aristocracia fundiária, pelo demos, os distritos em que qualquer um podia participar), a reforma (de origem desconhecida) que introduziu o sorteio no lugar de eleições (pois os oligarcas, mais organizados e com mais recursos, ganharam quase todas as disputas nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes) e da reforma de Efialtes (que, em 461 a.C., retirou o poder político do Areópago, uma espécie de suprema corte da época).

(3) Aqui é preciso entender que os populismos do século 21 não podem ser definidos como foram os populismos do século 20 e, muito menos, como foram os populismos dos séculos anteriores. Não é propriamente demagogia, clientelismo, assistencialismo e irresponsabilidade fiscal (embora algumas dessas características tenham permanecido). Os populismos do século 21 são comportamentos políticos guerreiros(baseados na prática da política como continuação da guerra por outros meios, na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin) que usam os regimes eleitorais (em geral os democráticos defeituosos, mas também os plenos) para impedir que esses regimes ascendam à condição de (ou se mantenham como) democracias liberais. Os populismos (de esquerda ou direita) são hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários da democracia liberal.

(4) Singapura, uma autocracia eleitoral (segundo o V-Dem 2025), está fazendo isso. A China, uma autocracia fechada, diz que está fazendo isso a partir do seu próprio conceito de democracia: a chamada “democracia popular de processo integral”. Mas essa “democracia” chinesa não atende aos critérios democráticos listados neste artigo. Cuba, outra autocracia fechada, segundo Lula, faz isso. Para ele “o único país [na América Latina] que conseguiu dar um salto foi Cuba… eles resolveram o problema da cidadania”.

(5) Populistas de esquerda e de direita escarnecem quando se fala do mundo democrático. Mas tomando os relatórios de duas das principais instituições que monitoram os regimes políticos no mundo – o V-Dem e a The Economist Intelligence Unit – é fácil fazer uma lista de quem compõe hoje o mundo democrático. São consideradas (em 2025) democracias liberais ou plenas (ou ambas) menos de 35 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chéquia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estónia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai. Sim, os EUA ainda estão na lista, embora talvez por pouco tempo em razão dos ataques de Trump (que é um populista-autoritário), mas governo não é regime. De qualquer modo, esses não são os aliados preferenciais de Lula e do PT. Por que? Ora, porque eles não são democráticos.

A “salvação da democracia”: Lula, STF e o novo contrato social do Brasil

Recentemente participei de um evento com a função de comentar um dado artigo acadêmico que tratava das diferenças entre liberalismo e conservadorismo. 

O artigo, de muito rigor metodológico, sugere que a divergência mais relevante entre as referidas vertentes políticas está na forma como definem, hierarquizam e justificam as noções de ordem e liberdade, sendo consequentemente simplistas as tentativas de estabelecer diferenças tomando por critério apenas agendas políticas e outros elementos contingentes.

Meu papel na conferência foi defender que ambas as tendências se inserem no fluxo natural de desenvolvimento saudável da tradição política ocidental da qual são vetores resultantes que se reequilibram mutuamente quando uma das duas tende a sair do campo mais abrangente de valores que lhes sãos comuns.

O liberalismo foi fundamental na reinterpretação moderna da noção de soberania. No final do século XVI, tal noção aparecia ligada à plenitude do poder estatal; com a teoria da separação dos poderes, desenvolvida no século XVIII, em pleno iluminismo, freios jurídicos lhe são impostos.

A ideia é antiga. Se, por um lado, seria um óbvio anacronismo referir-se, por exemplo, a Aristóteles como o primeiro liberal, não é sem relevância notar que há, em sua reflexão política, uma valorização do equilíbrio de poder, uma tipologia de governos, uma noção de lei como expressão da razão, além de uma defesa da propriedade: sementes de preocupações que podem ser lidas como tipicamente liberais. Além disso, alguns autores medievais e renascentistas também teorizaram acerca de tais questões.

O filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704), constantemente referido como “pai do liberalismo”, retoma, portanto, uma tradição, embora reformule-a dentro de um paradigma moderno de ruptura com a cosmovisão clássica e medieval.

Diferentemente de Thomas Hobbes (1588-1679), autor de Leviatã, para quem o poder soberano não conhece limite jurídico nem limite ético, para Locke os direitos naturais do homem (vida, liberdade, propriedade) são o limite diante do qual a interferência do poder estatal haverá sempre de recuar. A razão de ser do próprio Estado é assegurar a não-violação de tais direitos. O direito inglês, na verdade, era centrado na common law e qualquer lei do parlamento que com ela contrastasse deveria ser considerada nula e sem efeito.

Os franceses Montesquieu (1689-1755) e Voltaire (1694-1778), dois grandes expoentes do iluminismo, foram ambos admiradores do sistema político britânico e, após estadia na ilha, confrontaram as liberdades ingleses ao absolutismo monárquico vivido na França.

Em suas Lettres philosophiques (também conhecida como cartas inglesas), Voltaire descreve e elogia os costumes e as instituições inglesas, destacando a limitação da soberania real pelo parlamento, assim como a liberdade de imprensa, de comércio e a tolerância religiosa como alicerces de um governo justo e eficaz.

Montesquieu expõe igualmente elevada opinião acerca das estruturas políticas da Inglaterra, cuja excelência estaria na divisão de poderes do Estado. Sua visão acerca disso ficou imortalizada na célebre obra O espírito das leis, na qual a divisão do poder é apresentada como condição da fruição da liberdade.

Montesquieu expõe a necessidade da moderação, da limitação do poder, da sua descentralização e distribuição institucional em diferentes órgãos. Tal disposição das coisas faz-se necessária “para que não se possa abusar do poder”, para que “o poder pare o poder.

Tal teoria, sabemos, é o cerne do Estado de direito e da democracia, se por democracia entendermos a exigência de distribuição de poder, modernamente realizada como democracia representativa e cuja ênfase recai menos no ideal da igualdade e mais no conjunto das regras que precisam ser obedecidas para que o poder político seja distribuído.

Essa concepção formal de democracia, como bem explica Norberto Bobbio, na obra “Liberalismo e Democracia”, é a que está historicamente ligada à formação do Estado liberal. 

Existe outro significado de democracia também historicamente legítimo: aquele que apela para uma democracia substancial e que está sempre buscando aprofundá-la.

Esse outro significado, porém, dificilmente é compatível com a tradição política que acabamos de descrever porque pressupõe a ruptura com valores essenciais que liberais e conservadores – modulando-se e corrigindo-se mutuamente – lutam para preservar.

O contrato social de Rousseau e a democracia totalitária

Qual seria, então, a referência teórica moderna dos “democratas” iliberais? Arrisco-me a dizer que a maioria dos que se arvoram defensores da democracia, no Brasil atual, são, consciente ou inconscientemente, herdeiros das ideias mais radicais de Jean-Jacques Rousseau, o genial, controverso, ambíguo e paradoxal genebrino, a quem o poeta Heinrich Heine referiu-se como sendo “a cabeça revolucionária da qual Robespierre não foi senão a mão executora.

Para uns, um iluminista, para outros, um anti-iluminista – a depender do que se entenda pelas luzes – Rousseau provocou uma inflexão na forma como a filosofia política ocidental vinha se desenvolvendo.

Em seu Discurso sobre a desigualdade, ele apresenta impactante e poética crítica à propriedade. Eis a célebre passagem, consagrada e reverenciada por todos que se identificam com tal visão de mundo:

“O primeiro que, após ter cercado um terreno, pensou dizer ´isto é meu´, e encontrou muito outros ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, conflitos, homicídios, quantas desgraças e quantos horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os marcos ou ultrapassando o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes: ´cuidado para não dar ouvidos a esse impostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos e a terra não é de ninguém´”

A sociedade civil, a civilização, portanto, é uma desgraça. Com o pessimismo de Rousseau, a ótica interpretativa da história se inverte; o progresso festejado pelos iluministas é uma ilusão. A situação é de tal modo grave que não há possibilidade de curar a doença da sociedade apenas com reformas. É preciso um novo pacto social, fundado em novos pressupostos.

Se, na modernidade, Locke cultiva brotos nascidos das sementes liberais d´A Política de Aristóteles, Rousseau, rega, por sua vez, as sementes coletivistas d´A República de Platão.

A radical inflexão rousseauniana é decisiva para afastar a França da saudável influência de um iluminismo jurídico reformador e prudente, inspirado no modelo inglês, e encaminhar a nação para um iluminismo jurídico revolucionário que apregoa a necessidade de um novo contrato e de um novo homem.

Rousseau leva ao extremo a problemática identificação entre política e moral, fazendo do Estado um lugar de salvação individual e coletiva e propugnando a religião civil, em detrimento do cristianismo o qual, segundo ele, é totalmente contrário ao espírito social.

Por ser “uma religião totalmente espiritual que separa os homens da terra”, o cristianismo, segundo Rousseau, afasta os homens da vida cívica e enfraquece a República. Por não ter qualquer relação especial com o corpo político, “deixa às leis somente a força que tiram de si mesmas, sem acrescentarem nenhuma”.

A religião civil, por outro lado, teria por dogma a santidade do contrato e das leis, sustentando a coesão moral da República. Sob o pretexto da defesa do bem comum, o cidadão deve se deixar absorver no todo do corpo social, sacrificando sua individualidade no altar da “Vontade geral”

Estamos lidando aqui com uma concepção religiosa de política ou com uma das etapas da virada antiliberal que colocou a política no lugar da religião, exigindo que o cidadão deposite no Estado a mesma fé que um cristão deposita em Deus.

Não é incorreto dizer que o contrato social postulado por Rousseau dá origem a um estado democrático, na medida em que postula que o poder soberano deve estar nas mãos não de um príncipe ou de uma aristocracia, mas da coletividade. 

Por outro lado, ao eliminar as mediações institucionais que limitariam tal poder, o contrato enseja a tirania da maioria ou a democracia totalitária, tão temida por conservadores e liberais.

Revolução francesa e conservadorimo moderno

Solicitado pelo rei da Polônia, Estanislau II, a ajudá-lo a refletir sobre como salvar e reformar a Polônia, Rousseau chegou a escrever: “jamais se viu um povo corrompido voltar à virtude […]. Não há mais remédio, a não ser o de uma grande revolução quase tão terrível quanto o mal que poderia curar, e que é reprovável desejar e impossível prever”.

A revolução terrível em nome da virtude não aconteceu na Polônia, mas ocorreu na França, quando o “incorruptível” Robespierre, conduzindo com mãos de ferro o Comitê de Salvação Pública, endurecendo a revolução liberal até o terror, fez descer a guilhotina sobre todas as cabeças que supostamente conspiravam contra a República.

Antes mesmo de Robespierre adquirir poder relevante, quando a revolução estava ainda em seus primeiros estágios, após a queda da Bastilha, o irlandês Edmund Burke (1729-1797) publicou Reflections on the Revolution in France, obra considerada marco do conservadorismo moderno, na qual explica que a destruição das instituições históricas, iniciada pela revolução francesa, ameaçava o próprio tecido da civilização europeia.

A ambiguidade disso está no fato de que Burke era membro do partido Whig, ou seja, o partido liberal da Inglaterra do século XVIII, que defendia a limitação do poder real, a constituição e eram herdeiros da revolução gloriosa, em contraposição aos Tories, que compunham uma visão de mundo mais reacionária.

O conservadorismo moderno nasce, portanto, não de um reacionarismo anti-iluminista, mas de uma reflexão sobre os descaminhos que o ímpeto radical, transgressor e revolucionário poderia tomar. Não de uma defesa do absolutismo, mas sim de uma crítica à ruptura revolucionária.

E o Lula? E o STF?

A essa altura já deve estar impaciente o desprevenido leitor que, seduzido pelo título, deitou os olhos nesse artigo esperando considerações acerca da politicalha ordinária do Brasil atual.

Não julgue que ajo com má-fé ao sugerir reflexões e evitar, nesse quesito, verdades acabadas. A digressão político-filosófica aliada ao título sugestivo do artigo já dá por si só o que pensar. Mas sigamos juntos um pouco mais.

O que entendem por democracia aqueles que por aqui se arrogam seus defensores? Que tipo de democracia desejam? uma democracia liberal ou uma democracia totalitária? Lula já deixou claro, inúmeras vezes, seu desapreço pela democracia liberal.

“A democracia liberal demonstrou-se insuficiente e frustrou as expectativas de milhões”, discursou o presidente do Brasil, ano passado, no evento “Em defesa da democracia: lutando contra o extremismo”, organizado por ele e pelo presidente espanhol, o socialista Pedro Sanchez.

A democracia liberal não foi capaz de responder aos anseios e necessidades contemporâneas”, insistiu Lula em julho deste ano, no evento “Democracia sempre”, reunião realizada no Palácio de La Moneda, Chile, ao lado dos presidentes Boric, Pedro Sanchez, Petro e Yamandu.

Outro ponto que merece reflexão é a pública e notória defesa que o ministro Luís Roberto Barroso faz da função de “vanguarda iluminista” do STF. 

Ele próprio declara ser dever do tribunal “empurrar a história” para frente. Mas que tipo de iluminismo defendem os ministros do Supremo que se julgam iluminados? O iluminismo comedido de um Montesquieu, que pregava a divisão e harmonia dos três poderes, ou o iluminismo fanático de um Robespierre?

Robespierre também se considerava um iluminista e também esteve à frente de um Tribunal. No caso, o Tribunal Révoluttionaire, que julgava de forma rápida e sumária, condenando à morte os acusados de conspirar contra a República. 

Inspirado em Rousseau, Robespierre “iluminava” a sociedade de forma coercitiva, tomando medidas extremas para criar uma república virtuosa.

Claro, não temos mais guilhotinas. Está fora de moda. Mas temos leis. Leis pervertidas, como já prenunciava F. Bastiat (1801-1850), em seu opúsculo Le Loi. Não leis que servem à justiça ao protegerem a vida, a liberdade e a propriedade, mas leis distanciadas de sua própria finalidade, leis voltadas para a consecução de um objetivo inteiramente oposto: “A lei transformada em instrumento de qualquer tipo de ambição, em vez de ser usada como freio para reprimi-la! A lei servindo à iniquidade, em vez de, como deveria ser sua função, puni-la!

Dentre os ilustres togados, Barroso não é dos piores. Seu exemplo apenas veio a calhar devido à sua arrogante pretensão iluminista. Alexandre de Moraes, cuja retórica está centrada na “defesa da democracia”, tem sido mais eficaz em descaracterizá-la, minando seus alicerces ao combater seus mais atabalhoados adversários.

Em matéria de ataque à liberdade de expressão, Dias Toffoli disputa com Moraes o troféu de censor da República, mas, em matéria de perverter a lei, de transformá-la em “instrumento de qualquer tipo de ambição”, o criador do Fórum Jurídico de Lisboa é hors conscours. Mas não falemos dele. Bolsonaro não deixa. “Esqueça qualquer crítica ao Gilmar”, escreveu o ex-presidente em mensagem ao seu filho, divulgada no relatório da Polícia Federal.

Eis a situação caótica do Brasil: o Supremo Tribunal Federal que, revisando sua própria jurisprudência, possibilitou a saída do presidente Lula da prisão, vê-se hoje na iminência de condenar um ex-presidente que tentou dar um golpe de Estado.

Golpe que precisa de militar, que escancara o desejo de instaurar uma ditadura e é planejado por pessoas broncas, pouco ilustradas, abertamente reacionárias é coisa antiga e ineficaz. Mas serviu muito bem de pretexto para algo mais sutil: justificar o pacto entre Lula e o STF e o novo “contrato social” por meio do qual eles salvarão a “democracia” no Brasil.

Uma força maligna do ponto de vista da democracia

O PT se converteu em uma força maligna do ponto de vista da democracia. Não que as pessoas que o compõem sejam malignas, longe disso. São pessoas normais, com virtudes e limitações como todos nós. Mas o organismo que foi se engendrando desenvolveu de modo negativo os traços militantes da primeira guerra fria (o atávico anti-imperialismo norte-americano do PT vem daí) e da luta contra a ditadura militar em condições desumanas, que impuseram extremo sofrimento aos (futuros dirigentes partidários) que se opuseram àquele regime.

Isso tudo foi racionalizado, a partir de uma visão marxista, como crença de que a história vai para algum lugar que pode ser conhecido de antemão pelos que têm a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade (o próprio marxismo), de que a luta de classes é o motor da história e de que o sentido da política é a ordem (ou seja, de que a política é guerra para implantar uma ordem mais justa) e não a liberdade (que seria a própria definição de democracia). Adquiriu assim características de uma espécie de “Irmandade Muçulmana” (de uma religião laica).

Infelizmente, o PT não conseguiu se desvencilhar dessa herança e os seus militantes mais jovens foram contaminados pelos mais velhos com o vírus de uma cultura adversarial que vê e aponta culpados ou inimigos em vez de identificar e tentar resolver problemas. A luta interna incessante entre as diversas tendências foi o campo de treinamento para produzir um tipo de agente partidário avesso à democracia como modo de vida, em que derrotar o outro tornou-se mais importante do que se comprazer na convivência com ele.

O ambiente antissocial que se configurou internamente ficou então marcado, no plano do emocionar, por ressentimento e desejo de vingança; no plano político, por hegemonismo, antipluralismo e política praticada como continuação da guerra por outros meios, quer dizer, construção continuada de inimigos (na base do “nós contra eles”); no plano moral, pela convicção de que “nós” estamos sempre do lado certo da história e que somos (moralmente) superiores a “eles” – ou seja, a todos os demais atores.

Isso tudo gerou um organismo intrinsecamente antidemocrático, embora proclame defender (e até querer salvar) a democracia, tomada, porém, como adesão sôfrega à disputa eleitoral (a guerra por votos), como promoção da igualdade (socioeconômica) como precondição para a liberdade (política), como cidadania para todos ofertada pelo Estado comandado pelo líder populista e como soberania (nacional) alçada à qualidade equiparável, se não superior, à democracia como valor (universal).


Muitos analistas, sobretudo acadêmicos, discordarão dessa apreciação. Em primeiro lugar porque são, em sua maioria, marxistas (por profissão de fé ou por profissão mesmo, conquanto alguns neguem). Em segundo lugar porque pensam que sabem o que é o PT, seja porque leram teses universitárias sobre o partido, seja porque militaram perifericamente no “partido externo” (e até hoje acreditam que são uma tendência externa capaz de influir na direção do “partido interno”). O que posso dizer? Fui dirigente nacional do partido nos seus primeiros dez anos de vida (do qual me afastei em 1994) e presenciei os movimentos iniciais de geração desse organismo que se tornou maligno do ponto de vista da democracia. A evidência mais contundente do desfecho dessa trajetória antidemocrática, trinta anos depois, é o alinhamento atual do PT ao eixo autocrático, composto pelas maiores ditaduras do planeta (Rússia, China, Irã etc.) em guerra contra as democracias liberais.ch

Democratas, populistas e autocratas

Boric (do Chile) é de esquerda, eu apoio Boric. Lacalle Pou (do Uruguai) é de direita, eu apoiava Pou. Agora Orsi (que sucedeu Boric no Uruguai) é de esquerda, eu apoio Orsi. Úrsula (da União Europeia) é dita de direita, eu apoio Úrsula. Por quê? Porque não são populistas nem autocratas. Estou pouco ligando se se dizem ou são ditos de esquerda ou de direita.

Lula (do Brasil) é de esquerda, eu não apoio Lula. Bolsonaro (do Brasil) se diz de direita, eu não apoio Bolsonaro. Petro (da Colômbia) é de esquerda, eu não apoio Petro. Trump (dos EUA) se diz de direita, eu não apoio Trump. E não apoio nenhum desses não porque sejam de esquerda ou de direita e sim porque são populistas.

Também não apoio Xi Jinping (da China), Canel (de Cuba) e Kim Jong-un (da Coreia do Norte) não porque sejam de esquerda e sim porque são autocratas. E não apoio igualmente Orbán (da Hungria), Erdogan (da Turquia) e Bukele (de El Salvador) não porque sejam de direita e sim porque são autocratas.

Contra autocratas, como é óbvio, só temos a democracia. Mas contra populistas, o que já não é tão óbvio, também só temos a democracia. Os novos populismos do século 21 são adversários da democracia, ainda que a parasitem. Não são propriamente ideologias e sim comportamentos políticos baseados na divisão da sociedade em uma única clivagem (povo x elites), no encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós contra eles”) e na ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Em alguns casos, não todos, os populismos são mais rudes e querem chegar ao governo pelo voto para, em seguida, acabar com o regime político democrático, seja erodindo progressivamente a democracia – desativando seus mecanismos de freios e contrapesos, seja, até, desferindo um golpe de Estado (ou auto-golpe) a partir do governo. Não é relevante que os populistas que se comportam assim se digam ou sejam ditos de esquerda ou de direita.

Os populistas vicejam em regimes eleitorais – chamados ainda de democracias, mesmo que não sejam liberais – porque esses regimes têm falhas “genéticas”: não têm proteção eficaz contra o discurso inverídido, não têm proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, não têm proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam e não têm proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interação de opiniões. Pouco importa se os populistas que penetram por essas brechas se declarem ou sejam considerados de esquerda ou de direita.

Então vamos simplificar tudo. Passou da hora de jogar fora no lixo esse papo de esquerda e direita. Os líderes e suas forças políticas podem ser classificados hoje basicamente em três tipos: democratas, populistas e autocratas.

A diagram of the political party

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Democratas (como Frederiksen, da Dinamarca e Merz, da Alemanha) não são populistas, nem autocratas. Não importa se a primeira é dita de esquerda (ou progressista) e o segundo é dito de direita (ou conservador).

Populistas podem ser autocratas (como Maduro, da Venezuela e Bukele, de El Salvador) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda e o segundo é dito de direita. Mas populistas podem também não ser autocratas (como Xiomara, de Honduras e Fico, da Eslováquia) – e não importa se a primeira se identifica com a esquerda e o segundo com a direita.

Autocratas podem não ser populistas (como Chính, do Vietnam e Min Aung Hlaing, de Mianmar) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda (e socialista) e o segundo é considerado de direita (um ditador militar).

Note-se que, nos pares citados acima como exemplos, sempre um é dito de esquerda e o outro de direita. Isso é para mostrar que não há diferença relevante entre eles em termos de comportamento político.

É claro que se pode detalhar a classificação proposta aqui para revelar as diferenças entre dois tipos de democratas, dois tipos de populistas e dois tipos de autocratas, como na imagem abaixo:

A diagram of different colors of circles

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Entre os democratas, temos os democratas liberais (como Rodrigo, da Costa Rica) e os democratas apenas eleitorais (como Plenkovic, da Croácia).

Entre os populistas, temos os neopopulistas (como Arce, da Bolívia) e os populistas-autoritários ou nacional-populistas (como Modi, da Índia).

Entre os autocratas, temos os autocratas eleitorais (como Putin, da Rússia) e os autocratas não-eleitorais (como bin Salman, da Arábia Saudita).

Claro que, como já foi dito, há uma interseção entre populistas e autocratas (no caso, autocratas eleitorais). O neopopulista Ortega (da Nicarágua) e o nacional-populista Erdogan (da Turquia) são também autocratas eleitorais.

Mas essas subclassificações não alteram a divisão básica entre democratas, populistas e autocratas.

Também não ajuda classificar as forças políticas em conservadores, liberais e socialistas – colocando os dois últimos como progressistas (quando muitos que se declaram socialistas são regressistas). Além disso, essa classificação ideológica exclui a possibilidade da existência de liberal-conservadores. As forças políticas não podem ser classificadas pelas ideologias confessadas por seus líderes e sim pelo comportamento político do conjunto de seus agentes.

O que é um comportamento democrático

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas ideologias confessadas por seus integrantes em vez de pelo comportamento praticado por eles, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz conservador, liberal ou socialista. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas suas posições nos lados em confronto da política praticada como continuação de guerra por outros meios, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz de esquerda ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelos rótulos de suas crenças ou visões de mundo, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz social-democrata de esquerda ou centro-esquerda ou social-liberal de centro, centro-direita ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Piora tudo, é claro, se quisermos dividir as forças políticas em progressistas x fascistas ou em comunistas globalistas x patriotas nacionalistas. É nesse lugar escuro, nesse pátio fétido da polarização, em que, infelizmente, nos encontramos.

Chegamos então ao centro da questão. O que é um comportamento democrático? Em primeiro lugar é um comportamento não-populista, pluralista e liberal (no sentido político do termo). Isso resumo (quase) tudo, mas precisa ser debulhado.

Democratas defendem – não importa se ditos conservadores, liberais ou socialistas; de esquerda (como Boric) ou de direita (como Lacalle Pou); social-democratas ou social-liberais – as seguintes ideias:

Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).

Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (e, portanto, recusam o majoritarismo e o hegemonismo).

Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.

Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).

Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.

Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).

Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.

Império da lei e judiciário independente (e auto contido em suas atribuições).

Forças armadas subordinadas ao poder civil.

A sociedade controla o governo e não o contrário (pois avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado – o que pressupõe recusa ao estatismo).

Tudo bem como ideário. Mas como democratas se comportam, na prática?

Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (ditadura ou autocracia), seja dita de esquerda ou de direita, religiosa ou laica.

Democratas se opõem a governos antidemocráticos (mesmo quando governando em regimes democráticos) e a oposições antidemocráticas (que queiram não apenas mudar o governo, o que é legítimo, mas alterar a natureza do regime democrático ou substituí-lo por regimes não democráticos).

Democratas se opõem a governos, mesmo democráticos, dos quais discordam (pois sabem que a democracia funciona com situação democrática e oposição democrática e que, por isso, as oposições democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como fundamentais para o bom funcionamento de regime).

Democratas recusam a guerra (ou não praticam a política como continuação da guerra por outros meios): repudiam o antipluralismo, o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”, pois avaliam que política não é guerra e sim evitar a guerra.

Democratas atuam, fundamentalmente, no sentido de fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática; ou seja, não se dedicam a tentar converter todos os indivíduos de uma população em democratas – pois sabem que isso é impossível: nunca aconteceu no passado, não acontece hoje e não acontecerá no futuro, até porque não faz sentido – e sim a criar condições para que a interação das opiniões diversas e plurais que existem na sociedade tenha como resultante, por emergência, uma opinião pública (que não é a mesma coisa que a soma das opiniões privadas dos indivíduos) democrática. Nesse sentido, pode-se dizer que não são a massa, mas o fermento na massa.

Em Defesa dos Conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

Foto: Frederico Brasil/TheNews2/Estadão Conteúdo.

Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro

Tudo o que eu tenho escrito e dito de relativamente importante a propósito de filosofia política pode ser resumido em uma tentativa de mostrar a necessidade de nos recolocarmos no fluxo da evolução de uma tradição democrática, liberal e humanista que se iniciou na Grécia como um anelo, um anseio, um elã por justiça e por liberdade.

A configuração social, o regime político, o sistema de governo que mais se aproxima da concretização desse anseio é a democracia.

O ter que qualificar tal modelo ao qual me refiro como democracia liberal seria desnecessário se a palavra democracia não tivesse sido deturpada, manipulada e instrumentalizada para defender justamente o seu oposto, dando ares de legitimidade a ações que lhe defraudam os princípios.

Essa manipulação maquiavélica daquilo que, para além de um mero conceito, é também um valor, atingiu níveis estratosféricos de cinismo, no Brasil, na semana passada, marcada pela patética cerimônia lulista em lembrança dos dois anos do 8 de janeiro de 2023, pela presença de representantes brasileiros e dirigentes petistas na posse de um ditador e pela histeria censora em torno da decisão da Meta de descentralizar a checagem de postagens nas redes sociais.

Abraço de amante na democracia relativa

Como foi bem pontuado por alguns poucos editoriais e artigos de quem prefere exercer o senso crítico à bajulação, Lula se apropriou do 8 de janeiro para posar, mais uma vez, de grande defensor da democracia. Nada mais distante da verdade.

Em um discurso que deveria ser solene, o presidente largou essa pérola: não sou nem marido, eu sou um amante da democracia. Porque, a maioria das vezes, os amantes são mais apaixonados pelas amantes do que pelas mulheres.”

Ah, a linguagem! Essa dama que os mal-intencionados tentam manipular, acabando presos nas suas complexas redes de sentido. Ao tentar exagerar o seu suposto ardor amoroso pela democracia, Lula apenas entregou a baixeza do seu caráter como homem: um homem vulgar, para quem é normal ter amantes e amá-las mais que a própria esposa.

Depois da tosca improvisação do discurso, Lula deu continuidade ao cerimonial patético: partiu rumo ao evento “abraço à democracia” onde minguadas centenas de militantes de esquerda deram as mãos e simbolizaram um abraço em torno da palavra democracia, escrita com flores que estavam em vasos no chão da Praça dos Três Poderes.

Lula X Maria Corina Machado

Em 9 de janeiro, um dia depois da encenação novelesca do suposto amor lulista pela democracia, dava-se, no país vizinho, um ato de genuína coragem e zelo democrático: milhões de venezuelanos saíam mais uma vez às ruas para cobrar respeito à vontade popular, que elegeu o ex-diplomata Edmundo González Urrutia como presidente da República.

A intimorata líder Maria Corina Machado saiu da clandestinidade e foi ter com o povo. Antes disso, já havia declarado: “se alguma coisa acontecer comigo, a instrução é muito clara para a minha equipe, para os venezuelanos: ninguém vai negociar a liberdade da Venezuela por minha causa.”

Como brilha a virtude para quem tem olhos para discerni-la! Como a força e grandeza dessa mulher ofusca e apequena ainda mais certas figuras que desempenham o papel de liderança política! Lula, por exemplo, jamais citou o seu nome. Certa feita, comparou-se a ela sem citar seu nome e, em tom de deboche, asseverou não ter ficado chorando quando ele próprio foi impedido de se candidatar…

Ah, a inveja! Como sofre a alma que dela padece…como se contorce o indivíduo vaidoso e moralmente débil, fustigado no seu orgulho ao ser confrontado por um indivíduo valoroso, portador da honra de que ele carece. Sobra-lhe isso: o deboche.

Ao sair da grandiosa manifestação, Corina Machado teve a moto que a conduzia interceptada pela Guarda Nacional Bolivariana. Ela foi, então, forte e bruscamente arrancada do seu veículo e colocada em outra moto entre dois homens.

Graças às redes sociais (essa ferramenta de interação global que a esquerda lulista está fortemente empenhada em censurar), a notícia do seu sequestro se espalhou rapidamente e, em questão de minutos, autoridades de diversos países mandaram duros recados exigindo sua imediata liberação. O Brasil de Lula, claro, permaneceu em silêncio.

“Amante secreto de Maduro”

No dia seguinte, 10 de janeiro, como se nada tivesse ocorrido, Lula enviou à Venezuela uma embaixadora brasileira para, ao lado dos ditadores de Cuba e da Nicarágua, participar do teatro que consumou o autogolpe de Estado com o qual Nicolás Maduro pretende se perpetuar no poder e continuar matando seu povo de terror e de fome.

A proximidade dos dois eventos – o “abraço da democracia” na Praça dos três poderes, em 8 de janeiro, e o endosso do Brasil ao golpe do ditador vizinho, no dia 10 – explicitou ainda mais a incoerência, a hipocrisia, o cinismo e até a maldade de quem se vale do nome democracia para fazer avançar a tirania, que é o seu exato oposto.

Dentre os vários comentários e trocadilhos aos quais o discurso improvisado de Lula, em 8 de janeiro, deu ensejo, foi do senador Sergio Moro o mais certeiro. Lula não é amante da democracia; “Lula é o amante secreto de Maduro.”