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Uma força maligna do ponto de vista da democracia

O PT se converteu em uma força maligna do ponto de vista da democracia. Não que as pessoas que o compõem sejam malignas, longe disso. São pessoas normais, com virtudes e limitações como todos nós. Mas o organismo que foi se engendrando desenvolveu de modo negativo os traços militantes da primeira guerra fria (o atávico anti-imperialismo norte-americano do PT vem daí) e da luta contra a ditadura militar em condições desumanas, que impuseram extremo sofrimento aos (futuros dirigentes partidários) que se opuseram àquele regime.

Isso tudo foi racionalizado, a partir de uma visão marxista, como crença de que a história vai para algum lugar que pode ser conhecido de antemão pelos que têm a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade (o próprio marxismo), de que a luta de classes é o motor da história e de que o sentido da política é a ordem (ou seja, de que a política é guerra para implantar uma ordem mais justa) e não a liberdade (que seria a própria definição de democracia). Adquiriu assim características de uma espécie de “Irmandade Muçulmana” (de uma religião laica).

Infelizmente, o PT não conseguiu se desvencilhar dessa herança e os seus militantes mais jovens foram contaminados pelos mais velhos com o vírus de uma cultura adversarial que vê e aponta culpados ou inimigos em vez de identificar e tentar resolver problemas. A luta interna incessante entre as diversas tendências foi o campo de treinamento para produzir um tipo de agente partidário avesso à democracia como modo de vida, em que derrotar o outro tornou-se mais importante do que se comprazer na convivência com ele.

O ambiente antissocial que se configurou internamente ficou então marcado, no plano do emocionar, por ressentimento e desejo de vingança; no plano político, por hegemonismo, antipluralismo e política praticada como continuação da guerra por outros meios, quer dizer, construção continuada de inimigos (na base do “nós contra eles”); no plano moral, pela convicção de que “nós” estamos sempre do lado certo da história e que somos (moralmente) superiores a “eles” – ou seja, a todos os demais atores.

Isso tudo gerou um organismo intrinsecamente antidemocrático, embora proclame defender (e até querer salvar) a democracia, tomada, porém, como adesão sôfrega à disputa eleitoral (a guerra por votos), como promoção da igualdade (socioeconômica) como precondição para a liberdade (política), como cidadania para todos ofertada pelo Estado comandado pelo líder populista e como soberania (nacional) alçada à qualidade equiparável, se não superior, à democracia como valor (universal).


Muitos analistas, sobretudo acadêmicos, discordarão dessa apreciação. Em primeiro lugar porque são, em sua maioria, marxistas (por profissão de fé ou por profissão mesmo, conquanto alguns neguem). Em segundo lugar porque pensam que sabem o que é o PT, seja porque leram teses universitárias sobre o partido, seja porque militaram perifericamente no “partido externo” (e até hoje acreditam que são uma tendência externa capaz de influir na direção do “partido interno”). O que posso dizer? Fui dirigente nacional do partido nos seus primeiros dez anos de vida (do qual me afastei em 1994) e presenciei os movimentos iniciais de geração desse organismo que se tornou maligno do ponto de vista da democracia. A evidência mais contundente do desfecho dessa trajetória antidemocrática, trinta anos depois, é o alinhamento atual do PT ao eixo autocrático, composto pelas maiores ditaduras do planeta (Rússia, China, Irã etc.) em guerra contra as democracias liberais.ch

Democratas, populistas e autocratas

Boric (do Chile) é de esquerda, eu apoio Boric. Lacalle Pou (do Uruguai) é de direita, eu apoiava Pou. Agora Orsi (que sucedeu Boric no Uruguai) é de esquerda, eu apoio Orsi. Úrsula (da União Europeia) é dita de direita, eu apoio Úrsula. Por quê? Porque não são populistas nem autocratas. Estou pouco ligando se se dizem ou são ditos de esquerda ou de direita.

Lula (do Brasil) é de esquerda, eu não apoio Lula. Bolsonaro (do Brasil) se diz de direita, eu não apoio Bolsonaro. Petro (da Colômbia) é de esquerda, eu não apoio Petro. Trump (dos EUA) se diz de direita, eu não apoio Trump. E não apoio nenhum desses não porque sejam de esquerda ou de direita e sim porque são populistas.

Também não apoio Xi Jinping (da China), Canel (de Cuba) e Kim Jong-un (da Coreia do Norte) não porque sejam de esquerda e sim porque são autocratas. E não apoio igualmente Orbán (da Hungria), Erdogan (da Turquia) e Bukele (de El Salvador) não porque sejam de direita e sim porque são autocratas.

Contra autocratas, como é óbvio, só temos a democracia. Mas contra populistas, o que já não é tão óbvio, também só temos a democracia. Os novos populismos do século 21 são adversários da democracia, ainda que a parasitem. Não são propriamente ideologias e sim comportamentos políticos baseados na divisão da sociedade em uma única clivagem (povo x elites), no encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós contra eles”) e na ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Em alguns casos, não todos, os populismos são mais rudes e querem chegar ao governo pelo voto para, em seguida, acabar com o regime político democrático, seja erodindo progressivamente a democracia – desativando seus mecanismos de freios e contrapesos, seja, até, desferindo um golpe de Estado (ou auto-golpe) a partir do governo. Não é relevante que os populistas que se comportam assim se digam ou sejam ditos de esquerda ou de direita.

Os populistas vicejam em regimes eleitorais – chamados ainda de democracias, mesmo que não sejam liberais – porque esses regimes têm falhas “genéticas”: não têm proteção eficaz contra o discurso inverídido, não têm proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia, não têm proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam e não têm proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interação de opiniões. Pouco importa se os populistas que penetram por essas brechas se declarem ou sejam considerados de esquerda ou de direita.

Então vamos simplificar tudo. Passou da hora de jogar fora no lixo esse papo de esquerda e direita. Os líderes e suas forças políticas podem ser classificados hoje basicamente em três tipos: democratas, populistas e autocratas.

A diagram of the political party

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Democratas (como Frederiksen, da Dinamarca e Merz, da Alemanha) não são populistas, nem autocratas. Não importa se a primeira é dita de esquerda (ou progressista) e o segundo é dito de direita (ou conservador).

Populistas podem ser autocratas (como Maduro, da Venezuela e Bukele, de El Salvador) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda e o segundo é dito de direita. Mas populistas podem também não ser autocratas (como Xiomara, de Honduras e Fico, da Eslováquia) – e não importa se a primeira se identifica com a esquerda e o segundo com a direita.

Autocratas podem não ser populistas (como Chính, do Vietnam e Min Aung Hlaing, de Mianmar) – e não importa se o primeiro se diz de esquerda (e socialista) e o segundo é considerado de direita (um ditador militar).

Note-se que, nos pares citados acima como exemplos, sempre um é dito de esquerda e o outro de direita. Isso é para mostrar que não há diferença relevante entre eles em termos de comportamento político.

É claro que se pode detalhar a classificação proposta aqui para revelar as diferenças entre dois tipos de democratas, dois tipos de populistas e dois tipos de autocratas, como na imagem abaixo:

A diagram of different colors of circles

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Entre os democratas, temos os democratas liberais (como Rodrigo, da Costa Rica) e os democratas apenas eleitorais (como Plenkovic, da Croácia).

Entre os populistas, temos os neopopulistas (como Arce, da Bolívia) e os populistas-autoritários ou nacional-populistas (como Modi, da Índia).

Entre os autocratas, temos os autocratas eleitorais (como Putin, da Rússia) e os autocratas não-eleitorais (como bin Salman, da Arábia Saudita).

Claro que, como já foi dito, há uma interseção entre populistas e autocratas (no caso, autocratas eleitorais). O neopopulista Ortega (da Nicarágua) e o nacional-populista Erdogan (da Turquia) são também autocratas eleitorais.

Mas essas subclassificações não alteram a divisão básica entre democratas, populistas e autocratas.

Também não ajuda classificar as forças políticas em conservadores, liberais e socialistas – colocando os dois últimos como progressistas (quando muitos que se declaram socialistas são regressistas). Além disso, essa classificação ideológica exclui a possibilidade da existência de liberal-conservadores. As forças políticas não podem ser classificadas pelas ideologias confessadas por seus líderes e sim pelo comportamento político do conjunto de seus agentes.

O que é um comportamento democrático

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas ideologias confessadas por seus integrantes em vez de pelo comportamento praticado por eles, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz conservador, liberal ou socialista. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelas suas posições nos lados em confronto da política praticada como continuação de guerra por outros meios, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz de esquerda ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Enquanto não pararmos de querer classificar as forças políticas pelos rótulos de suas crenças ou visões de mundo, não esclareceremos nada. Para a democracia, não importa se alguém se diz social-democrata de esquerda ou centro-esquerda ou social-liberal de centro, centro-direita ou de direita. Importa muito, entretanto, se o seu comportamento é democrático ou populista, antipluralista e, consequentemente, iliberal.

Piora tudo, é claro, se quisermos dividir as forças políticas em progressistas x fascistas ou em comunistas globalistas x patriotas nacionalistas. É nesse lugar escuro, nesse pátio fétido da polarização, em que, infelizmente, nos encontramos.

Chegamos então ao centro da questão. O que é um comportamento democrático? Em primeiro lugar é um comportamento não-populista, pluralista e liberal (no sentido político do termo). Isso resumo (quase) tudo, mas precisa ser debulhado.

Democratas defendem – não importa se ditos conservadores, liberais ou socialistas; de esquerda (como Boric) ou de direita (como Lacalle Pou); social-democratas ou social-liberais – as seguintes ideias:

Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).

Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (e, portanto, recusam o majoritarismo e o hegemonismo).

Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.

Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).

Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.

Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).

Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.

Império da lei e judiciário independente (e auto contido em suas atribuições).

Forças armadas subordinadas ao poder civil.

A sociedade controla o governo e não o contrário (pois avaliam que a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado – o que pressupõe recusa ao estatismo).

Tudo bem como ideário. Mas como democratas se comportam, na prática?

Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (ditadura ou autocracia), seja dita de esquerda ou de direita, religiosa ou laica.

Democratas se opõem a governos antidemocráticos (mesmo quando governando em regimes democráticos) e a oposições antidemocráticas (que queiram não apenas mudar o governo, o que é legítimo, mas alterar a natureza do regime democrático ou substituí-lo por regimes não democráticos).

Democratas se opõem a governos, mesmo democráticos, dos quais discordam (pois sabem que a democracia funciona com situação democrática e oposição democrática e que, por isso, as oposições democráticas devem ser reconhecidas e valorizadas como fundamentais para o bom funcionamento de regime).

Democratas recusam a guerra (ou não praticam a política como continuação da guerra por outros meios): repudiam o antipluralismo, o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”, pois avaliam que política não é guerra e sim evitar a guerra.

Democratas atuam, fundamentalmente, no sentido de fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática; ou seja, não se dedicam a tentar converter todos os indivíduos de uma população em democratas – pois sabem que isso é impossível: nunca aconteceu no passado, não acontece hoje e não acontecerá no futuro, até porque não faz sentido – e sim a criar condições para que a interação das opiniões diversas e plurais que existem na sociedade tenha como resultante, por emergência, uma opinião pública (que não é a mesma coisa que a soma das opiniões privadas dos indivíduos) democrática. Nesse sentido, pode-se dizer que não são a massa, mas o fermento na massa.

Em Defesa dos Conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

Foto: Frederico Brasil/TheNews2/Estadão Conteúdo.

Lula: um abraço na democracia, outro em Maduro

Tudo o que eu tenho escrito e dito de relativamente importante a propósito de filosofia política pode ser resumido em uma tentativa de mostrar a necessidade de nos recolocarmos no fluxo da evolução de uma tradição democrática, liberal e humanista que se iniciou na Grécia como um anelo, um anseio, um elã por justiça e por liberdade.

A configuração social, o regime político, o sistema de governo que mais se aproxima da concretização desse anseio é a democracia.

O ter que qualificar tal modelo ao qual me refiro como democracia liberal seria desnecessário se a palavra democracia não tivesse sido deturpada, manipulada e instrumentalizada para defender justamente o seu oposto, dando ares de legitimidade a ações que lhe defraudam os princípios.

Essa manipulação maquiavélica daquilo que, para além de um mero conceito, é também um valor, atingiu níveis estratosféricos de cinismo, no Brasil, na semana passada, marcada pela patética cerimônia lulista em lembrança dos dois anos do 8 de janeiro de 2023, pela presença de representantes brasileiros e dirigentes petistas na posse de um ditador e pela histeria censora em torno da decisão da Meta de descentralizar a checagem de postagens nas redes sociais.

Abraço de amante na democracia relativa

Como foi bem pontuado por alguns poucos editoriais e artigos de quem prefere exercer o senso crítico à bajulação, Lula se apropriou do 8 de janeiro para posar, mais uma vez, de grande defensor da democracia. Nada mais distante da verdade.

Em um discurso que deveria ser solene, o presidente largou essa pérola: não sou nem marido, eu sou um amante da democracia. Porque, a maioria das vezes, os amantes são mais apaixonados pelas amantes do que pelas mulheres.”

Ah, a linguagem! Essa dama que os mal-intencionados tentam manipular, acabando presos nas suas complexas redes de sentido. Ao tentar exagerar o seu suposto ardor amoroso pela democracia, Lula apenas entregou a baixeza do seu caráter como homem: um homem vulgar, para quem é normal ter amantes e amá-las mais que a própria esposa.

Depois da tosca improvisação do discurso, Lula deu continuidade ao cerimonial patético: partiu rumo ao evento “abraço à democracia” onde minguadas centenas de militantes de esquerda deram as mãos e simbolizaram um abraço em torno da palavra democracia, escrita com flores que estavam em vasos no chão da Praça dos Três Poderes.

Lula X Maria Corina Machado

Em 9 de janeiro, um dia depois da encenação novelesca do suposto amor lulista pela democracia, dava-se, no país vizinho, um ato de genuína coragem e zelo democrático: milhões de venezuelanos saíam mais uma vez às ruas para cobrar respeito à vontade popular, que elegeu o ex-diplomata Edmundo González Urrutia como presidente da República.

A intimorata líder Maria Corina Machado saiu da clandestinidade e foi ter com o povo. Antes disso, já havia declarado: “se alguma coisa acontecer comigo, a instrução é muito clara para a minha equipe, para os venezuelanos: ninguém vai negociar a liberdade da Venezuela por minha causa.”

Como brilha a virtude para quem tem olhos para discerni-la! Como a força e grandeza dessa mulher ofusca e apequena ainda mais certas figuras que desempenham o papel de liderança política! Lula, por exemplo, jamais citou o seu nome. Certa feita, comparou-se a ela sem citar seu nome e, em tom de deboche, asseverou não ter ficado chorando quando ele próprio foi impedido de se candidatar…

Ah, a inveja! Como sofre a alma que dela padece…como se contorce o indivíduo vaidoso e moralmente débil, fustigado no seu orgulho ao ser confrontado por um indivíduo valoroso, portador da honra de que ele carece. Sobra-lhe isso: o deboche.

Ao sair da grandiosa manifestação, Corina Machado teve a moto que a conduzia interceptada pela Guarda Nacional Bolivariana. Ela foi, então, forte e bruscamente arrancada do seu veículo e colocada em outra moto entre dois homens.

Graças às redes sociais (essa ferramenta de interação global que a esquerda lulista está fortemente empenhada em censurar), a notícia do seu sequestro se espalhou rapidamente e, em questão de minutos, autoridades de diversos países mandaram duros recados exigindo sua imediata liberação. O Brasil de Lula, claro, permaneceu em silêncio.

“Amante secreto de Maduro”

No dia seguinte, 10 de janeiro, como se nada tivesse ocorrido, Lula enviou à Venezuela uma embaixadora brasileira para, ao lado dos ditadores de Cuba e da Nicarágua, participar do teatro que consumou o autogolpe de Estado com o qual Nicolás Maduro pretende se perpetuar no poder e continuar matando seu povo de terror e de fome.

A proximidade dos dois eventos – o “abraço da democracia” na Praça dos três poderes, em 8 de janeiro, e o endosso do Brasil ao golpe do ditador vizinho, no dia 10 – explicitou ainda mais a incoerência, a hipocrisia, o cinismo e até a maldade de quem se vale do nome democracia para fazer avançar a tirania, que é o seu exato oposto.

Dentre os vários comentários e trocadilhos aos quais o discurso improvisado de Lula, em 8 de janeiro, deu ensejo, foi do senador Sergio Moro o mais certeiro. Lula não é amante da democracia; “Lula é o amante secreto de Maduro.”

A formação do Ocidente

Guerras no Oriente Médio, invasão da Ucrânia, a ameaça do fundamentalismo islâmico, o imperialismo russo e a estupidez woke/identitária.

Esses foram alguns temas que abordei nos artigos que escrevi ao longo de 2024.

Neste novo texto, gostaria de focar mais no significado do Ocidente, a fim de salientar o que está em jogo com tais ameaças.

Passo a expor, portanto, de forma resumida, o conteúdo do livro O que é o Ocidente, do filósofo político francês, Philippe Nemo.

A tese central desse livro é que, no Ocidente, “foram alcançadas certas figuras do universal cujo desaparecimento ou enfraquecimento afetaria a humanidade como um todo.”

Segundo o autor, a civilização ocidental pode se definir “pelo Estado de Direito, pela democracia, pelas liberdades intelectuais, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia de liberdade baseada na propriedade privada”.

Tais valores e instituições foram o fruto de uma longa luta de construção histórica e de determinados acontecimentos essenciais.

Grécia e Roma

O princípio do governo da lei e o princípio da liberdade individual, por exemplo, foram uma inovação grega, herdada pelos romanos e posteriormente reformulada pelos filósofos políticos ingleses na forma do rule of law, um governo de leis e não de homens, cerne do ideal liberal moderno.

Os gregos inventaram o governo de lei, mas foram os magistrados e jurisconsultos romanos que o aperfeiçoaram no período da República Romana.

Os filósofos estoicos já haviam elaborado a teoria do cosmopolitismo, estabelecendo que a humanidade constitui uma comunidade única partilhando uma natureza humana idêntica.

As relações sociais no seio da comunidade deveriam, portanto, ser regradas tendo por referência uma lei natural, racional, da qual as leis positivas de cada cidade seriam uma aproximação.

O arcabouço conceitual trabalhado pelo direito romano procurou definir a propriedade privada, delimitando juridicamente o “meu” e o “teu” nas diversas situações possíveis.

Ao definir assim o domínio próprio de cada um, assegurando os seus direitos, o conceito de indivíduo ganhou relevância.

O Direito Romano foi não apenas uma das colunas principais sobre as quais se estruturaram os sistemas jurídicos modernos, mas também uma das fontes do humanismo ocidental.

Junto ao civismo grego, o progresso feito por Roma no Direito imprimiu na cultura ocidental o valor do Eu, fornecendo as bases sobre as quais o cristianismo se apoiou para afirmar o valor absoluto da pessoas humana, livre, moralmente responsável, criada e amada por Deus, dotada de uma dignidade intrínseca a despeito de quaisquer fatores contingentes como raça, condição social, gênero, etc.

A moral cristã

Embora se apoie na tradição moral e jurídica herdada da antiguidade pagã, a moral evangélica a supera e transforma por meio do sublime sentimento da compaixão, da caridade.

À exigência de justiça já presente no profetismo judaico, Jesus junta a misericórdia e uma elevada exigência de ação em direção ao outro, ao sofredor, ao próximo.

Trata-se de uma ética da superabundância, que não se esgota no dar a cada um o que é devido, mas alarga-se como doação de si no dever do amor.

“Ama o teu próximo como a ti mesmo”, eis a máxima.

Porque Jesus realizou na Terra o supremo sacrifício, o apelo cristão tornou-se um móbil para a própria sociedade que, insuflada e impulsionada pelos imitadores do Cristo, progrediu gradativamente no caminho da fraternidade universal.

A César o que é de César

Embora tenha havido momentos de confusão entre o poder religioso e o poder temporal, é possível defender a tese de que a dessacralização do poder na Europa foi fruto da religião judaica e da religião cristã, sendo a noção de laicidade depreendida do próprio texto bíblico.

No judaísmo e no cristianismo, o poder espiritual não se curva ao poder temporal; a salvação depende da conversão interior dos homens, nas quais trabalhavam os profetas e os santos.

A missão do Estado, por sua vez, era garantir a ordem social. A frase de Jesus “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, sanciona essa separação de papéis.

Essa cisão ou irredutibilidade entre os dois mundos, que será uma das fontes de nascimento das democracias modernas, também se expressa quando, ao ser confrontado por Pilatos acerca da sua realeza (Tu és rei?), Jesus responde: “Meu reino não é deste mundo”.

A mensagem bíblica, portanto, é uma mensagem de dessacralização do Estado. O Ocidente acostumou-se com essa mensagem e por ela se deixou moldar.

Não obstante, houve diversas tentativas de “ressacralização do Estado, seja sob uma forma autoritária ou absolutista (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel…seja sob uma forma totalitária”.

À esquerda ou à direita, encontram-se inimigos da sociedade aberta, que é a sociedade de direito e de livre mercado, a sociedade que preza a ordem espontânea.

Democracias liberais

Segundo Philippe Nemo, “a democracia é o nome especial dado ao liberalismo político e ao pluralismo nos procedimentos de nomeação de governantes e da tomada de decisões políticas.”

Ela não se desenvolveu, porém, de modo contínuo, mas foi um ideal lançado que precisou contornar inúmeros obstáculos e desvios a fim de reencontrar seu elã inicial e continuar o processo de abertura da sociedade.

Apesar de ter se configurado no Ocidente, a sociedade aberta concerne direta ou indiretamente a toda a espécie humana. Houve um avanço real na organização social e abrir mão desse avanço é uma escolha clara pelo retrocesso.

Adversários externos e internos

Na medida em que o Islã é uma das religiões do livro, há algum aspecto de proximidade do mundo árabe-muçulmano com o Ocidente.

Mas o Islã transformou e descaracterizou profundamente a ética recebida do judaísmo e do cristianismo.

Além disso, o mundo islâmico não assimilou os princípios do civismo grego e do direito romano.

Durante séculos, a educação do Ocidente formou a juventude com seus valores, ideais e normas.

As escolas e universidade formaram mentalidades ocidentais que, por sua vez, asseguravam a perpetuação dessas mesmas instituições.

Esse movimento circular foi rompido.

Tal rompimento, porém, não configurou progresso, mas retrocesso.

A cultura de cada geração é, de modo geral, o resultado da forma como foi educada a geração anterior.

O que hoje se convencionou chamar “cultura woke” é a consequência de décadas de uma educação ocidental marcada pelo desprezo dos seus próprios valores.

Nesse contexto, a excêntrica e perigosa aliança entre a esquerda woke (identitária) e o islamismo faz com que a atual disputa política deixe de ser um debate interno saudável e legítimo dentro do contexto de uma democracia para se tornar uma clivagem civilizacional que ameaça o próprio Ocidente.

Levitsky e a subversão da democracia americana

Reproduzimos abaixo o artigo de Steven Levitsky publicado na Folha de São Paulo em 23 de setembro de 2024. Oportunamente interpolaremos alguns comentários críticos. A começar pela crítica ao título do seu mais recente livro, que repete a perigosa narrativa de “salvar a democracia”.

Depois vem toda essa conversa sobre maioria e minoria, que parece deslocada já que a democracia não é o regime da maioria e sim o regime de qualquer-um (inclusive das múltiplas minorias – e não só as raciais, que merecem todo o destaque no texto).

Por último, Levitsky parece não levar em conta o histórico da democracia americana: ao contrário do que se repete nos bancos escolares, nas academias e na imprensa, os EUA foram retardatários no processo de democratização do mundo: foram o último país a entrar na primeira onda de democratização (que vai de 1849, com a Suíça, até 1921, com os EUA e o Canadá). Até 1920 os EUA eram uma autocracia eleitoral (usando aqui a classificação adotada pelo V-Dem); só viraram uma democracia eleitoral em 1921 e uma democracia liberal em 1969. Sim, embora os EUA tenham adotado um regime eleitoral em 1796, juntamente com a Bélgica e a Holanda, sucedendo a França (em 1792) e Inglaterra e Irlanda (em 1790), isso não significa que tivessem sido uma democracia (antes de 1921). Não há como comparar os EUA com países de “tradição” democrática mais longa, cujos regimes já surgiram como democracias liberais: a Suíça em 1849, a Austrália em 1858, a Bélgica em 1897, a Dinamarca em 1902, a Noruega em 1906, a Nova Zelândia em 1913, a Holanda em 1918 e a Inglaterra em 1919 – para citar todos os exemplos.

Além disso, os EUA tanto acumularam, quanto dilapidaram, capital social, numa velocidade espantosa. As bases sociais da democracia tocquevilliana foram solapadas pela centralização em Washington, pela recorrência aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva, pelo complexo científico-industrial-militar e, é claro, pelas guerras. Trump e o MAGA são uma consequência da dilapidação.

Por ora, vamos ao artigo.

A subversão da democracia americana

Steven Levitsky, Folha de S. Paulo (23/09/2024)

A democracia dos Estados Unidos enfrenta hoje uma ameaça ainda maior que quando escrevemos “Como as Democracias Morrem“, há seis anos. Em 2020, Donald Trump se tornou o primeiro presidente da história dos EUA a tentar roubar uma eleição e impedir a transferência pacífica de poder. Porém, ao contrário do que aconteceu no Brasil, as instituições americanas não conseguiram responsabilizar Trump. Por isso, ele está concorrendo à Presidência mais uma vez e tem boas chances de vencer.

Trump tem sido transparente sobre o que tentará fazer se voltar ao poder. Ele nos diz que usará o Departamento de Justiça para investigar e processar seus rivais, perseguirá a imprensa independente, usará o Exército para reprimir protestos e ordenará a deportação de 15 a 20 milhões de pessoas.

Nosso novo livro – Como salvar a democracia, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2023) – tenta entender por que a democracia americana chegou ao ponto de ruptura. Argumentamos que os EUA estão passando por uma transição inédita — uma transição para uma democracia verdadeiramente multirracial na qual uma maioria branca cristã, anteriormente dominante, está perdendo seu status dominante. Isso desencadeou uma reação autoritária entre uma minoria de americanos.

Isso, no entanto, não é tudo: a Constituição exacerbou o problema ao dar poder a essa minoria autoritária. Vejamos cada um desses problemas.

A democracia americana está em crise porque um dos seus dois principais partidos não está mais comprometido com as regras do jogo democráticas. Os partidos que estão comprometidos com a democracia devem fazer três coisas. Em primeiro lugar, devem aceitar os resultados das eleições, ganhando ou perdendo. Em segundo lugar, devem rejeitar inequivocamente o uso da violência. Em terceiro lugar, devem romper com os extremistas antidemocráticos. O Partido Republicano violou todos esses três princípios desde 2020.

Donald Trump não foi apenas o primeiro presidente da história dos EUA a tentar anular uma eleição, já que a maior parte do Partido Republicano o apoiou.

Os políticos republicanos também começaram a flertar com a violência. Trump e seus aliados abraçaram a insurreição de 6 de janeiro como heróis. Em 2022, o jornal The New York Times encontrou mais de cem anúncios republicanos em que os candidatos ostentavam ou disparavam armas. Não me lembro de nenhum outro grande partido em qualquer democracia estabelecida em que os candidatos abraçam a violência tão abertamente.

Por fim, os republicanos se recusam a romper com as forças antidemocráticas. Líderes não conseguem matar uma democracia sozinhos — eles precisam de cúmplices entre os políticos mainstream. Esses são o que o cientista político Juan Linz chamou de democratas semileais. Eles se parecem com os políticos comuns, mas diferem na forma como respondem às ameaças autoritárias em seu próprio campo político.

Quando extremistas antidemocráticos surgem em seu próprio campo, os democratas leais fazem três coisas: primeiro, condenam publicamente o comportamento antidemocrático; segundo, expulsam os extremistas antidemocráticos de suas fileiras, se recusando a indicá-los ou a apoiar suas candidaturas; terceiro, unem forças com rivais pró-democracia de todo o espectro político para isolar e derrotar os extremistas antidemocráticos.

Os democratas semileais não fazem nada disso. Em vez de repudiar publicamente o comportamento antidemocrático em seu próprio campo, eles minimizam ou justificam esse comportamento — ou simplesmente permanecem em silêncio. Em vez de expulsar os extremistas antidemocráticos, os toleram ou os acomodam. O que é crucial, os semileais se recusam a trabalhar com rivais ideológicos para derrotar os extremistas antidemocráticos, mesmo quando a democracia está em jogo.

Uma lição evidente dos colapsos democráticos na Europa nos anos 1930 e na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970 é que, quando os principais políticos de centro-esquerda ou centro-direita flertam ou cooperam com extremistas antidemocráticos, as democracias têm problemas.

A semilealdade está agora disseminada no Partido Republicano.

Os líderes republicanos sabiam que Trump havia perdido a eleição de 2020 e muitos deles estavam preocupados com seu comportamento antidemocrático às vésperas do 6 de Janeiro, mas eles viabilizaram a invasão do Capitólio mesmo assim. Eles o protegeram ao recusar o impeachment e a condenação de Trump, bloquearam a criação de uma comissão independente para investigar a insurreição de 6 de janeiro e são quase unânimes em apoiar sua candidatura presidencial neste ano.

Por que isso está acontecendo? Por que um partido dominante como o Republicano poderia se afastar da democracia? Argumentamos que se trata de uma reação à democracia multirracial.

O primeiro obstáculo: o ressentimento branco

Para a democracia funcionar, os partidos políticos precisam ser capazes de tolerar a derrota. Isso geralmente acontece quando acreditam que têm chance de ganhar no futuro e que a derrota não trará consequências desastrosas. Contudo, quando os partidos ou seus apoiadores percebem que a derrota representa uma ameaça existencial, eles se radicalizam e, muitas vezes, se voltam contra a democracia.

No capítulo 3 do nosso livro, mostramos como isso aconteceu com a virada autoritária dos democratas sulistas durante a reconstrução pós-Guerra Civil, o primeiro experimento dos EUA com a democracia multirracial que trouxe uma ampla emancipação dos negros.

Os afro-americanos eram maioria ou quase maioria na maior parte dos estados do Sul. A emancipação deles, portanto, aterrorizou os democratas e seus apoiadores. O sufrágio dos negros não só ameaçava o domínio eleitoral dos democratas do Sul como também ameaçava toda a ordem racial.

Para muitos sulistas brancos, isso parecia uma ameaça existencial: eles se lançaram à violência e ao autoritarismo. Como declarou um democrata da Carolina do Norte: “Não podemos superar os negros numericamente. Então, temos que superá-los trapaceando, somando mais votos ou atirando neles”. Foi isso o que fizeram.

Os democratas usaram o terror da violência e a fraude eleitoral para tomar o poder em todo o Sul. Em seguida, se entrincheiraram no poder por meio do registro de eleitores condicionado ao pagamento de impostos, de testes de alfabetização e de outras medidas para acabar com o direito de voto dos afro-americanos. Sem aceitar a derrota, os democratas eliminaram o direito ao voto de quase metade da população, dando início a quase um século de governo autoritário no Sul.

Tememos que algo semelhante esteja acontecendo com o Partido Republicano hoje.

As raízes desse fenômeno estão nas reformas por direitos civis da década de 1960, a segunda experiência dos EUA com a democracia multirracial. A revolução dos direitos civis gerou uma boa dose de ressentimento entre os eleitores brancos, principalmente no Sul, onde eram majoritariamente democratas. O Partido Republicano era minoritário na década de 1960, mas o ressentimento branco a respeito dos direitos civis criou uma oportunidade de expansão da sua base.

Os políticos republicanos calcularam que, se conseguissem conquistar os eleitores brancos revoltados, poderiam se tornar o partido majoritário e, durante uma geração, apelaram para o ressentimento branco.

Começando com Goldwater na década de 1960 e continuando com Nixon e Reagan, os republicanos miraram em eleitores brancos cristãos conservadores. Funcionou. Os sulistas brancos deixaram de ser majoritariamente democratas e passaram a ser majoritariamente republicanos.

O Partido Republicano virou o partido dos cristãos brancos. Como o país ainda era predominantemente branco e cristão nas décadas de 1970 e 1980, se tornar o partido dos eleitores brancos e cristãos ajudou a fazer do Partido Republicano majoritário. Os republicanos venceram todas as eleições presidenciais entre 1968 e 1988, com exceção da eleição do Watergate, em 1976.

A estratégia, no entanto, acabou enfrentando problemas, porque, enquanto os republicanos se tornavam o partido dos cristãos brancos, o país se tornava menos branco e menos cristão. A porcentagem de americanos que se identificavam como brancos e cristãos caiu de 80% em 1976 para 43% em 2016.

Isso representou uma grave ameaça eleitoral para os republicanos. Ficou cada vez mais difícil para um partido esmagadoramente branco e cristão conquistar maiorias nacionais no século 21. Os republicanos não vencem no voto popular para presidente desde 2004. Em 1980, Ronald Reagan recebeu 55% dos votos dos brancos e transformou isso em uma vitória avassaladora. Em 2012, Mitt Romney obteve 59% dos votos dos brancos, mas mesmo assim perdeu a eleição. Quando os republicanos perceberam que estavam vencendo entre os brancos mas perdendo no voto popular, começaram a entrar em pânico.

O problema, porém, ia além de perder eleições. Para grande parte da base republicana, a transição dos EUA para a democracia multirracial parecia uma ameaça existencial. Os cristãos brancos não eram um grupo qualquer. Durante dois séculos, eles ocuparam o primeiro escalão das hierarquias sociais, econômicas, políticas e culturais: eram os políticos, os juízes, os CEOs, os reitores das universidades, os editores de jornais e as celebridades da TV.

Até meados da década de 1980, todos os presidentes e vice-presidentes, todos os presidentes da Câmara, líderes da maioria no Senado, presidentes da Suprema Corte, governadores, CEOs da Fortune 500 e todas as Miss América eram brancos.

Tudo isso está acabando rapidamente agora, bem diante de nossos olhos. O número de políticos negros e latinos do Congresso mais que quadruplicou: de 28 em 1980 para 114 hoje. Pela primeira vez na história, a porcentagem de afro-americanos no Congresso agora é igual à porcentagem de afro-americanos na população em geral. Em 1965, todos os nove ministros da Suprema Corte eram homens brancos. Hoje, apenas quatro dos nove são homens brancos, e só seis dos nove são brancos.

A mudança vai além da política. Vemos isso na presença cada vez maior de famílias não brancas e multirraciais em anúncios, na televisão e nos filmes. Vemos isso na crescente rejeição social a atos racistas (pense nos protestos do Black Lives Matter) e nas contestações cada vez maiores (em Redações e salas de aula) a narrativas históricas que minimizam ou ignoram o passado racista dos EUA.

Esses passos em direção à democracia multirracial são essencialmente liberais: eles universalizam os direitos individuais básicos. A ideia de que indivíduos de todas as raças devem ter acesso igual ao Estado, ser igualmente protegidos pelo Estado e não ser desproporcionalmente perseguidos, encarcerados ou mortos pelo Estado não poderia ser mais liberal. Desprezar as demandas por direitos iguais como “identitarismo” é, além de enganoso, vergonhoso.

Estamos testemunhando um golpe sem precedentes nas hierarquias raciais dos EUA, mas, quando seu grupo está no topo de uma hierarquia social há 250 anos, contestações a essa hierarquia podem parecer uma ameaça. Perder o status social dominante é um acontecimento importante e pode gerar uma sensação de risco existencial. Muitos eleitores de Trump sentem que estão perdendo seu país: eles sentem que o país em que cresceram está sendo tomado deles.

Essa sensação de perda tem impulsionado muitos republicanos comuns em direção ao extremismo. Em uma pesquisa realizada em 2021, 56% dos republicanos concordaram com a afirmação de que “o modo de vida tradicional americano está desaparecendo tão rapidamente que talvez seja preciso usar a força para salvá-lo”.

O segundo obstáculo: instituições contramajoritárias

A radicalização dos republicanos representaria uma ameaça menor se os EUA fossem como outras democracias, em que as maiorias eleitorais governam. O trumpismo nunca representou a maioria dos americanos.

De fato, pela primeira vez na história, a maioria dos americanos abraça os princípios básicos da democracia multirracial no século 21. A maioria apoiou os protestos do Black Lives Matter em 2020. Mais de 60% dos americanos concordam com a afirmação de que a crescente diversidade social torna os EUA um lugar melhor para se viver. Uma pesquisa recente revelou que mais de 60% acha que escolas devem ensinar às crianças a história do racismo nos EUA, mesmo que isso as deixe desconfortáveis.

Isso é muito importante: pela primeira vez, no século 21, os EUA têm uma maioria democrática multirracial. Essa maioria democrática multirracial, contudo, se lançou contra algumas das instituições contramajoritárias mais poderosas do mundo.

É importante dizer que algumas instituições contramajoritárias são essenciais para a democracia. A democracia moderna exige a proteção dos direitos das minorias. Como disse o ex-ministro da Suprema Corte Robert Jackson, alguns domínios devem estar “fora do alcance das maiorias”.

Dois domínios em particular devem permanecer fora do alcance das maiorias. O primeiro são os direitos civis: o direito ao voto, a liberdade de expressão e a liberdade de associação devem ser protegidos dos impulsos da maioria.

Um segundo domínio que deve estar fora do alcance das maiorias é o próprio processo democrático. Os governos eleitos não podem usar as maiorias populares ou parlamentares para se entrincheirar no poder, aprovando leis que enfraqueçam os oponentes ou prejudiquem a competição justa, por exemplo.

Esse é o tipo de tirania da maioria que vimos na Venezuela e na Hungria. Precisamos de mecanismos para proteger o sistema democrático de maiorias que o subverteriam.

Os direitos civis e o direito à competição justa são direitos essenciais das minorias. É por isso que precisamos da Declaração de Direitos dos EUA, do Judiciário independente e de barreiras relativamente altas para reformas constitucionais.

Muitas instituições contramajoritárias, porém, não são essenciais para a democracia. Lembre-se: as democracias devem dar poder às maiorias. Portanto, assim como alguns domínios devem ser colocados fora do alcance das maiorias, outros devem permanecer ao seu alcance.

As eleições são um deles. Aqueles com mais votos devem prevalecer sobre aqueles com menos votos no processo que determina os ocupantes de cargos políticos — nenhuma teoria de democracia liberal justifica qualquer outro resultado.

Outro domínio que deve permanecer ao alcance das maiorias é a legislação: as maiorias eleitorais devem ser capazes de governar. Uma minoria legislativa não deve poder vetar leis apoiadas pela maioria. As instituições que impedem que as maiorias eleitorais ganhem ou governem não são essenciais. Na verdade, são antitéticas à democracia.

Acontece que os EUA têm um número incomum de instituições contramajoritárias antidemocráticas: o Colégio Eleitoral, um Senado com representação extremamente desproporcional, a obstrução (“filibuster”) no Senado e uma Suprema Corte com grandes poderes e composta de ministros com mandato vitalício.

Essas instituições começaram a subverter a democracia dos EUA. As concessões outorgadas a estados escravocratas e pequenos na Convenção Constitucional de 1787 criaram um viés no nosso sistema político — territórios poucos populosos têm representação excessiva. O Colégio Eleitoral os favorece, o Senado os favorece fortemente e, como o Senado aprova os indicados para a Suprema Corte, a Suprema Corte também é enviesada na direção dos estados pouco populosos.

Esse viés rural sempre existiu, mas nunca favoreceu seriamente um partido porque, durante a maior parte da nossa história, os dois principais partidos tinham ramificações urbanas e rurais. Hoje, porém, os partidos estão divididos entre áreas urbanas e rurais, com os democratas estabelecidos em centros metropolitanos e os republicanos em cidades pequenas e na zona rural. Isso dá aos republicanos uma vantagem no Colégio Eleitoral, no Senado e na Suprema Corte.

Os republicanos ganharam no voto popular para presidente apenas uma vez desde 1988 e, no entanto, ocuparam a Presidência durante a maior parte do século 21. A maioria popular não foi suficiente para Joe Biden vencer em 2020. O presidente teve de ganhar no voto popular por pelo menos quatro pontos percentuais — se tivesse ganhado por dois pontos, como Lula, Trump teria sido reeleito (Kamala Harris enfrenta o mesmo problema neste ano).

O Senado tem uma distorção semelhante. Mesmo que os democratas alcancem 51% ou 52% do voto popular, os republicanos controlarão o Senado. Os democratas venceram a votação popular em todos os ciclos de seis anos desde 2000, mas os republicanos controlaram o Senado por quase metade desse período.

Em 2016, os democratas ganharam no voto popular para a Presidência e o Senado e, mesmo assim, os republicanos ocuparam a Presidência e controlaram o Senado.

O governo da minoria é um problema exclusivamente americano. Em nenhuma outra democracia estabelecida as minorias partidárias podem impedir as maiorias eleitorais tão consistentemente quanto nos EUA. Por que isso acontece?

O excesso de contramajoritarismo era muito comum. A Europa tinha muitas instituições antidemocráticas no século 19 — monarquias, eleições indiretas e órgãos legislativos não eleitos ou com representação desproporcional. Com o passar do tempo, no entanto, outras democracias se desfizeram gradualmente de suas instituições pré-democráticas.

A Grã-Bretanha enfraqueceu a Câmara dos Lordes, retirando-lhe o poder de veto. Dinamarca, Suécia, Nova Zelândia e Portugal eliminaram suas câmaras altas não democráticas. Alemanha, Áustria e Bélgica democratizaram seus Senados, os tornando mais proporcionais à população. A Grã-Bretanha, o Canadá, a Austrália, a França e outras democracias estabeleceram regras que permitem que maiorias simples encerrem o debate parlamentar (portanto, não há obstrução por parte da minoria). Todas as democracias europeias e latino-americanas estabeleceram limites de mandato ou idade de aposentadoria para ministros das Cortes Supremas.

Todas as demais democracias presidencialistas do mundo se livraram de seus colégios eleitorais. A Argentina foi a última, em 1994.

Portanto, outras democracias se tornaram mais democráticas nos últimos cem anos, eliminando instituições dos séculos 18 e 19 que permitiam que as minorias impedissem sistematicamente a ação das maiorias. Somente os EUA mantiveram a maioria de suas instituições pré-democráticas.

Democratizar a democracia dos EUA

Os EUA são a única democracia presidencial do mundo com um colégio eleitoral. Temos o Senado com representação mais desproporcional do mundo, com exceção da Argentina e do Brasil.

Nenhuma outra democracia permite que uma minoria do Congresso vete rotineiramente uma legislação regular apoiada pela maioria, e os EUA são a única democracia estabelecida em que ministros da Suprema Corte têm mandatos realmente vitalícios — todas as demais têm limites de mandato ou idade de aposentadoria obrigatória.

Precisamos democratizar a democracia americana.

No livro, propomos 15 reformas que dariam poder às maiorias e contribuiriam para deter o governo das minorias, incluindo o registro automático de eleitores, a abolição do Colégio Eleitoral, o fim do “filibuster”, um Senado mais proporcional e limites de mandato para os ministros da Suprema Corte.

Essas não são reformas radicais — simplesmente colocariam os EUA em linha com outras democracias —, mas são importantes porque, se não tomarmos medidas para fortalecer a maioria democrática multirracial do país, seremos governados por uma minoria autoritária.

Os EUA estão em uma encruzilhada. Ou seremos uma democracia multirracial no século 21 ou não seremos uma democracia. Ambos os caminhos estão diante de nós e não há como voltar atrás.