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Não há dois lados

Os “progressistas” contra os fascistas

As narrativas de dois lados em eterno confronto fabricam guerras. Foi assim que se constituiu a ideia de esquerda e, simetricamente, de direita. Como tomam como sentido da política a ordem (e não a liberdade), para ambas trata-se, em política, de lutar contra o outro lado para implantar a ordem que acham que condiz, no caso da esquerda, com o sentido (ou as leis) da história e, no caso da direita, com a ordem que acham que é designada por deus (quer dizer, pela religião) ou determinada pela natureza.

Atualmente o mesmo esquema é traduzido, pela esquerda, como uma luta dos “progressistas” contra a extrema-direita fascista.

É curioso porque, no lado dos “progressistas”, cabem os ditadores de esquerda. Os que divergem dessa narrativa são então colocados no lado dos fascistas.

Xi Jinping (China), Kim Jong-un (Coreia do Norte), Khamenei e seus braços terroristas (Irã), Bouphavanh (Laos), Chính (Vietnam), Lourenço (Angola), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua) e Canel (Cuba) são todos contra a extrema-direita. Putin (Rússia) é explicitamente antifascista (invadiu a Ucrânia para, supostamente, barrar os nazifascistas). Aliás, o muro de Berlim se chamava (na época em que Putin morava na Alemanha Oriental) Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção Antifascista). A não ser que queiramos enganar os outros, não faz o menor sentido classificar todos esses ditadores de esquerda (ou admirados pela esquerda) como “progressistas”

A única distinção honesta não é entre lados em eterno confronto entre si e sim entre regimes políticos: existem democracias e autocracias (ditaduras). Mas como existem ditaduras de esquerda e de direita, revela-se impotente (como categoria de análise) a distinção entre esquerda e direita ou (como diretiva política) a distinção entre “progressistas” e fascistas. Os regimes de esquerda de Maduro, Ortega e Canel são tão autocráticos quanto os regimes de direita de Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Bukele (El Salvador).

Governantes como Frederiksen (Dinamarca), Støre (Noruega) e Luxon (Nova Zelândia) não se definem por serem de esquerda ou de direita e sim por serem democratas liberais. Eles não são iguais a pretendentes autoritários de extrema-direita como Weidel (Alemanha), Ventura (Portugal) e Abascal (Espanha). O mesmo vale para Kristersson (Suécia), Schoof (Holanda) e Starmer (Reino Unido), que não são iguais a governantes autoritários de esquerda como Lourenço (Angola), Bouphavanh (Laos) e Chính (Vietnam).

Vai e volta e reaparece a ideia de uma “frente ampla contra o fascismo”. Por meio desse truque a esquerda quer que os democratas liberais se rendam, se diluam no condomínio dos “progressistas”, abram mão de apresentar à sociedade sua alternativa, em nome de derrotar a extrema-direita e, obviamente, colocar ou manter no poder a esquerda. O objetivo aqui é impedir a formação de um centro de gravidade democrático que não se defina por alinhamentos à esquerda ou à direita.

No Brasil dos dias que correm essa frente ampla para derrotar o bolsonarismo (de extrema-direita) quer manter o lulopetismo (de esquerda) no poder. Deve estar certo. Pois Zé Dirceu e seu fiel escudeiro Breno Altman são “progressistas”. Delúbio Soares e João Vaccari são “progressistas”. Ricardo Berzoini e Gleisi Hoffmann são “progressistas”. Frei Betto e seu pupilo Luiz Marinho são “progressistas”. O que importa é que todos são antifascistas!

Curioso que nessa já surrada “frente ampla contra o fascismo” dos populistas de esquerda não cabem os que são contra as ditaduras de Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei, Hamas e Hezbollah, Lourenço, Maduro, Ortega e Canel. Por quê? Ora, porque esses são de esquerda. E o objetivo de derrotar a direita é colocar no poder a esquerda, mesmo que seja autocrática. Alguém poderia dizer: viva Stalin (que matou cerca de 20 milhões de pessoas, mas era antifascista) contra Hitler.

Não há dois lados. Democracia e autocracia são regimes políticos, não lados. E, mesmo assim, existem democracias liberais (como Chile e Uruguai – cujo governo era dito de direita e agora é dito de esquerda) e democracias não-liberais (apenas eleitorais, algumas vezes com governos ditos de esquerda, como no México, em Honduras, na Colômbia, na Bolívia e no Brasil e, em outros casos, ditos de direita, como na Argentina e em Israel). E existem autocracias eleitorais (com governos ditos de direita, como na Índia ou ditos de esquerda, como na Bielorrússia) e autocracias não-eleitorais (com governos ditos de esquerda, como em Cuba ou ditos de direita, como no Haiti).

Querer reduzir tudo a dois lados em permanente confronto está no “DNA” da esquerda, que – desde sua pre-história jacobina e, em seguida, bolchevique – pratica a política como continuação da guerra por outros meios (o que, a rigor, do ponto de vista democrático, é antipolítica). É por isso que se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

Quantas ditaduras no mundo de hoje são de extrema-direita?

Eis um levantamento de pouco mais de quarenta principais (incluindo todas as mais crueis) ditaduras atuais do mundo para verificar quantas podem ser consideradas de extrema-direita. É uma refutação da falsa alegação de que a extrema-direita é a única (ou a maior) ameaça atual à democracia no mundo.  O assunto já foi tratado em outro artigo desta revista, intitulado A extrema-direita como único inimigo da democracia.

Por certo os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais (como Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro etc.) – a maioria dos quais dita de extrema-direita – são, sim, uma ameaça à democracia, mas não a única (nem a principal). Ademais, só três deles (Bukele, Erdogan e Orbán) governam países que têm regimes que podem ser considerados autoritários. Não tem nem comparação com o número de governantes de ditaduras que se declaram de esquerda ou estão na órbita de influência de regimes que se declaram de esquerda.

Trump, Vance e Bannon são nacional-populistas (de extrema-direita) mas ainda não estão no governo dos EUA, que seguem sendo uma democracia. Se Trump vencer as eleições de 2024 haverá uma significativa mudança na correlação de forças no âmbito mundial, mas os EUA continuarão sendo – nos curto e médio prazos – uma democracia.

Le Pen é nacional-populista, mas não governa a democracia liberal francesa. Wilders, idem, mas não governa a democracia liberal holandesa.

Farage e os ex-militantes do Brexit aumentaram sua representação política nas ultimas eleições, mas estão longe do governo no Reino Unido, uma democracia liberal.

Chrupalla, Weidel e Gauland, da Alternativa para a Alemanha, não estão no governo da Alemanha, uma democracia liberal.

Rikka Purra, do Partido dos Finlandeses, que pode ser considerado de extrema-direita, não governa a Finlândia, uma democracia liberal.

Abascal e Ventura não governam as democracias espanhola e portuguesa.

Por fim, Bolsonaro já saiu do governo do Brasil e está inelegível até 2030.

Além de Bukele, Erdogan e Orbán sobrou apenas Meloni, que poderia ser considerada nacional-populista e governa de fato a Itália, cujo regime, entretanto, continua sendo democrático liberal.

A seguir vamos mostrar que as ameaças concretas à democracia partem muito mais das ditaduras do que de forças políticas nacional-populistas de oposição que parasitam democracias liberais. Isso é tão óbvio que nem seria necessário argumentar. Ditaduras (autocracias fechadas ou eleitorais, regimes autoritários ou não-livres) são o oposto de democracias.

Partimos da classificação do V-Dem (Universidade de Gotemburgo) de todas as autocracias fechadas (incluindo algumas autocracias eleitorais) que é, em grande parte, coincidente com os países não-livres da Freedom House e com os regimes autoritários da The Economist Intelligence Unit. Esses são os três mais reconhecidos centros de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo.

Abaixo vai a lista de ditaduras (em ordem alfabética), seus governantes atuais, os partidos a que pertencem e suas percebidas orientações políticas:

Afeganistão | Hibatullah Azhundzada e seu partido fundamentalista Talibã não podem ser considerados de extrema-direita. O jihadismo ofensivo islâmico não pode, a rigor, ser considerado de direita ou esquerda – ainda que seja um adversário das democracias liberais.

Arábia Saudita | Mohammad bin Salman é o chefe da corte real da Casa de Saud. Não há partidos políticos no país. O staff do Estado é fundamentalista islâmico, influenciado pela seita dos wahhabbis, uma corrente sunita geralmente conhecida pelo nome salafista. Não tem sentido classificar tal regime como de direita ou de esquerda, embora o fundamentalismo islâmico seja contrário às democracias liberais. A Arábia Saudita também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Azerbaijão | Ilham Aliev e seu Partido Novo Azerbaijão orbitam na esfera de influência da ditadura russa. Mas não podem ser classificados como extrema-direita.

Barein| Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa é o primeiro-ministro do Barein, uma monarquia islâmica sem partidos. O regime não pode ser classificado como de esquerda ou de direita.

Bielorrússia | Aleksandr Lukashenko e seu Partido Independente da Bielorússia não são de extrema-direita. O regime da Bielorrússia  faz parte do eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã etc.) articulado contra as democracias liberais.

Burkina Faso | Ibrahim Traoré e seu Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (a junta militar que governa o país depois de um golpe de Estado de 2022) não podem ser classificados como direita ou esquerda.

Camboja | Hun Sen – um ex-comandante do Khmer Vermelho que mudou de lado – que governa o Camboja há quatro décadas, e o seu Partido Popular do Camboja, alinharam a sua ditadura à ditadura chinesa. Obviamente, não são de extrema-direita.

Catar | Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani é uma monarquia absolutista islâmica. Não tem partidos. A família Al Thani governa o país com mão de ferro desde 1825. Não tem o menor sentido classificar esse regime como extrema-direita. Aliás, o Catar dá abrigo à direção atual do Hamas e financia esse grupo terrorista.

Chade | Mahamat Déby é o chefe da junta militar que governa o Chade. Ele e seu Movimento de Salvação Patriótica estão sendo capturados pela ditadura russa de Vladimir Putin. Tal como no caso da Rússia, não faz sentido classificá-los como direita ou esquerda.

China | Xi Jinping e seu Partido Comunista da China não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê. A China também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Coreia do Norte | Kim Jong-un e seu Partido dos Trabalhadores da Coreia não são de extrema-direita.Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Cuba | Díaz-Canel e seu Partido Comunista de Cuba não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

El Salvador | Nayib Bukele e seu partido Nuevas Ideas são nacional-populistas ou populistas-autoritários que podem, sim, ser classificados como de extrema-direita. Antes Bukele integrou a FMLN, Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, de extrema-esquerda.

Emirados Árabes Unidos | Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum é um monarca absolutista de uma ditadura islâmica (sunita). Como em outros casos de regimes autoritários islâmicos não faz muito sentido classificá-lo como de direita ou de esquerda. Mas os EAU estão no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Eritreia | Isaias Afewerki governa um Estado de partido único na Eritréia. Ainda que não faça muito sentido classificar seu regime totalitário como sendo de direita ou de esquerda, o ditador está na esfera de influência de autocracias (como a Turquia e a Venezuela) e de regimes eleitorais parasitados por governos populistas (como o Brasil).

Essuatini | Mswati II (o rei), Ntfombi (a rainha-mãe) e Russell Diamini (o primeiro-ministro) governam essa ditadura africana. Os partidos políticos são proibidos no reino de Essuatini (antiga Suazilândia). Não há política propriamente dita no país. Não faz sentido classificar o regime como de direita ou de esquerda.

Gaza | Ismail Haniya e Yahya Sinwar e seu partido, o Hamas, embora de orientação sunita, estão a serviço do regime teocrático xiita iraniano na sua ofensiva contra as democracias liberais (em especial as de Israel e dos EUA). São hoje teleguiados pelo eixo autocrático para fazer o serviço sujo de inflamar as populações contra a democracia. Não podem ser classificados como de extrema-direita, pelo contrário: são apoiados pela esquerda (populista, classista e identitarista) em todo o mundo.

Guiné Equatorial | O ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo e seu Partido Democrático da Guiné Equatorial estão sendo caputurados pela ditadura chinesa. Obviamente não pode ser classificado como de extrema-direita.

Haiti | É uma autocracia mergulhada no caos político e social. Não se sabe exatamente quem governa o país.

Hungria | Viktor Orbán e seu partido Fidesz governam a autocracia eleitoral húngara, chamada de “democracia iliberal”. Aliadas de Vladimir Putin, as forças políticas dominante na Hungria são, claramente, populistas-autoritárias ou nacional-populistas de extrema-direita.

Iémen | O Iémen é um país em guerra civil onde se configura dualidade de poder. Os terroristas Houthis, financiados pelo Irã, controlam parte significativa do país. Mohammed Ali al-Houthi, chefe do comitê revolucionário supremo, é um vassalo do eixo autocrático na sua investida contra as democracias liberais.

Irã | Ali Khamenei e seu partido Associação dos Clérigos Combatentes não podem ser considerados de extrema-direita. O Irã faz parte do eixo autocrático (juntamente com Rússia, China, Coreia do Norte – todos autodeclarados de esquerda), articulado contra as democracias liberais. O Irã também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Jordânia | O rei Abdullah II bin Al Hussein controla a monarquia jordaniana de devoção islâmica sunita. Não faz sentido classificar o regime como de extrema-direita.

Kuwait | Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah é o atual Emir do Kuwait, uma ditadura islâmica. Não faz sentido classificar o regime monárquico como extrema-direita.

Laos | Sonexay Siphandone e seu Partido Popular Revolucionário do Laos (PPRL) que governam essa república socialista de partido único estão bem longe de ser de extrema-direita. Pelo contrário, historicamente são de esquerda.

Líbia | Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib com seu movimento Libya al-Mustakbal tentam controlar o país. É uma ditadura islâmica (sunita). Vários grupos jihadistas e tribais controlam partes do país. Não cabe classificar o regime como extrema-direita.

Mali | Choguel Kokalla Maïga e seu Movimento Patriótico pela Renovação governam o país. O Mali está sendo capturado pela ditadura russa (o que também está ocorrendo com Mauritânia e Niger).

Marrocos | O rei Maomé VI e o primeiro-ministro Aziz Akhannouch e seu Partido Nacional dos Independentes controlam essa monarquia islâmica.

Myanmar | Min Aung Hlaing e seu Partido de Solidariedade e Desenvolvimento da União (USDP), ligado aos militares que desfecharam um golpe de Estado, controlam essa ditadura asiática.

Nicarágua | Daniel Ortega e seu partido, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Omã | Haitham bin Tariq Al Said é o sultão da monarquia absolutista islâmica que governa Omã.

Rússia | Vladimir Putin e seu partido Rússia Unida são nacional-populistas, mas não podem ser considerados de extrema-direita. Pela simples razão de que apoiam todas as ditaduras que se declaram de esquerda. A Rússia também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Síria | Bashar al-Assad e seu Partido Socialista Árabe Baath não podem ser considerados de extrema-direita. O regime ditatorial sírio é apoiado ostensivamente pela Rússia e faz parte do eixo autocrático articulado contra as democracias liberais.

Somália | Hassan Sheikh Mohamud e seu Partido da União para Paz e Desenvolvimento, anterior Partido Paz e Desenvolvimento (ligado à Irmandade Muçulmana), são operadores de um regime islâmico.

Sudão | O general Abdel Fattah al-Burhan e seu partido Independente são islâmicos militarizados.

Sudão do Sul | Salva Kiir Mayardit e seu partido Movimento Popular de Libertação do Sudão são aliados da ditadura de Angola, que se declara de esquerda (do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola). Não podem ser considerados de extrema-direita.

Tajiquistão | Emomali Rahmon, Kokhir Rasulzoda e seu Partido Democrático Popular do Tajiquistão são nacionalistas, estatistas e autoritários. Orbitam na área de influência da ditadura russa e se alinham ao Partido Comunista Chinês. Nada, portanto, de extrema-direita.

Turquemenistão | Serdar Berdimuhamedow e seu Partido Democrático do Turquemenistão – no poder  há mais de trinta anos – têm profundas raízes comunistas. O partido foi liderado pelo ex-líder do Partido Comunista, Saparmyrat Nyýazow, desde a dissolução da União Soviética. São populistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Nada de direita.

Turquia | Recep Tayyip Erdoğan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) poderiam, com algum esforço, ser considerados de extrema-direita (ou seja, nacional-populistas ou populistas-autoritários). O AKP é defensor do neo-otomanismo e do nacionalismo econômico. Politicamente, se alinha ao eixo autocrático contra as democracias liberais.

Uzbequistão | Shavkat Mirziyayev e seu Partido Liberal Democrático do Uzbequistão são nacionalistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Têm uma ideologia que se poderia considerar de direita na medida em que esposa o liberalismo-econômico, mas não o liberalismo político, quer dizer, a democracia. Esse partido surgiu de um movimento de empreendores e empresários para dar a aparência de multipartidarismo, mas na verdade é controlado pelo Partido Democrático Popular.

Venezuela | Nicolás Maduro e seu Partido Socialista Unido da Venezuela não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Vietnam | Pham Minh Chính é o chefe do Partido Comunista do Vietnam. Não é necessário dizer que não têm nada de direita. O Vietnam é uma ditadura socialista unitária unipartidária.

Um esboço de classificação

1 – De extrema-direita mesmo (entendendo-se por isso os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais) temos três governantes de regimes autocráticos

Nayib Bukele (de El Salvador), Viktor Orbán (da Hungria) e Recep Erdoğan (da Turquia).

2 – De esquerda ou extrema-esquerda temos (historicamente ou de forma declarada) sete governantes de regimes autocráticos

Xi Jinping (da China), Kim Jong-un (da Coreia do Norte), Díaz-Canel (de Cuba), Sonexay Siphandone (do Laos), Daniel Ortega (da Nicarágua), Nicolás Maduro (da Venezuela), Pham Minh Chính (do Vietnam).

3 – Os ditadores na esfera de influência das ditaduras russa e chinesa (ou do eixo autocrático – incluindo o Irã) governam cerca de vinte regimes autocráticos

Além de todas as sete ditaduras declaradamente de esquerda, temos Ilham Aliev (do Azerbaijão), Aleksandr Lukashenko (da Bielorrússia), Hun Sen (do Camboja), Mahamat Déby (do Chade), Ismail Haniya e Yahya Sinwar (de Gaza), Teodoro Obiang Nguema Mbasogo (da Guiné Equatorial), Choguel Kokalla Maïga (do Mali), Vladimir Putin (da Rússia), Bashar al-Assad (da Síria), Salva Kiir Mayardit (do Sudão do Sul), Emomali Rahmon e Kokhir Rasulzoda (do Tajiquistão), Serdar Berdimuhamedow (do Turquemenistão), Shavkat Mirziyayev (do Uzbequistão).

4 – Os ditadores islâmicos governam cerca de quatorze regimes autocráticos

Hibatullah Azhundzada (do Afeganistão), Mohammad bin Salman (da Arábia Saudita), Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa (do Barein), Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani (do Catar), Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum (dos Emirados Árabes Unidos), Mohammed Ali al-Houthi (do Iémen), Ali Khamenei (do Irã), Abdullah II bin Al Hussein (da Jordânia), Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah (do Kuwait), Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib (da Líbia), Maomé VI e Aziz Akhannouch (do Marrocos), Haitham bin Tariq Al Said (de Omã), Hassan Sheikh Mohamud (da Somália), Abdel Fattah al-Burhan (do Sudão).

Note-se que muitos ditadores islâmicos estão na esfera de influência do eixo autocrático e, portanto, são adversários ostensivos das democracias liberais.

5 – Ditaduras não-classificadas

Burkina Faso, Eritréia, Essuatini, Haiti, Myanmar.

Um esboço de conclusão

O eixo autocrático é tendencialmente de esquerda ou extrema-esquerda e não de extrema-direita, ainda que dele participem regimes ditatoriais dúbios (como o russo) e islâmicos (como a teocracia iraniana, suas ditaduras aliadas, como a Síria e seus braços terroristas no Oriente Médio, na Ásia e na África). Ora, esse eixo, hoje, é a principal ameaça à democracia no mundo e não a chamada “internacional fascista” de extrema-direita (embora essa última também seja uma ameaça, porém menor ou secundária em comparação com a primeira).

Revolução em Curso

Há muita confusão na análise sobre o significado da ascensão da chamada extrema-direita, designação equívoca e anacrônica para o populismo-autoritário ou nacional-populismo (5 Stelle-Grillo-Casaleggio, Le Pen, Brexit, Bannon-Trump, Wilders, Orban, Erdogan, AfD, Chega, Vox, Olavo-Bolsonaro etc.) que floresceu, em especial, após o final da primeira década do século 21.

Não é uma reedição pura e simples dos fascismos dos anos 20-30 do século passado, ainda que seus próceres expressem, via-de-regra, um comportamento fascistoide. Pode-se dizer que é fascista no sentido daquele “Ur-fascismo” ou “fascismo eterno” de Umberto Eco; ou no sentido atribuido por Primo Levi: cada época tem o seu próprio tipo de fascismo; mas não, porém, no sentido estrito do termo em termos histórico-políticos.

Não é um projeto alternativo de sociedade, conservador em termos clássicos, para disputar com liberais e socialistas os rumos da política e sim uma irrupção antipolítica que não tem projeto algum, mas cujo resultado objetivo não é outro senão destruir o sistema tal como está configurado desde o final da segunda grande guerra.

É, nos seus próprios termos, um processo revolucionário que, como tal, não se enquadra no pacto formado em torno de regras aceitas por todos para dar curso ao jogo político. Poderia ser mal-comparado a um torneio de futebol em que um dos times parte para o vale tudo, até gol com a mão, porque o objetivo não é ganhar dos outros times para vencer o torneio e sim acabar com o próprio torneio.

Ora, isso é revolucionário, ainda que para trás, quer dizer, reacionário. As forças revolucionárias tradicionais, chamadas de progressistas, quer dizer, revolucionárias para frente, consideradas de esquerda, foram (ou em breve serão) as mais impactadas por essa insurgência dos novos (velhos) revolucionários para trás. E tiveram (ainda têm) grande dificuldade de perceber que suas táticas foram desconstituídas (ou pelo menos neutralizadas) pela entrada em cena de tribos antipolíticas extremistas, ditas de direita. Não perceberam bem o que aconteceu e continua acontecendo.

O caso do Brasil

Impossível deixar de notar a espantosa incapacidade da militância de esquerda do século passado (da primeira guerra fria) de entender o que está acontecendo. Vejamos o caso do Brasil. Há dez anos já havia ficado claro que o PT perdeu o monopólio das ruas. Cinco anos depois, ficou claro que perdeu também o monopólio das novas mídias (que ainda mantinha em virtude da rede suja de sites e blogs petistas). Não lhe restou alternativa senão se entrincheirar (usando jornalistas alinhados e verbas governamentais de propaganda) em alguns veículos de comunicação tradicionais, incorporando-os ao seu próprio sistema de governança. Em editorial de hoje (30/03/2024), o jornal O Estado de São Paulo abordou o tema sob o título A rua da esquerda está deserta.

Isso não significa que as novas forças que emergiram foram melhores do que as anteriores. O populismo-autoritário (dito de extrema-direita), inclusive por não respeitar as regras mínimas da democracia, conseguiu ser igual ou pior do que o neopopulismo (dito de esquerda). Significa apenas que o PT perdeu o monopólio das ruas e das mídias sociais. O que dirigentes e militantes, ainda exilados no século 20, não se perguntam, é o seguinte: por que isso acontece? Eis o ponto.

Muitas análises começam errando por viés (excesso de ideologia). Avaliam, por exemplo, que as grandes manifestações de rua de 2013 abriram caminho para a ascensão da extrema-direita. No Brasil, em particular, interpretam que no junho de 2013 se tratou de antipetismo (já que teve um impacto na drástica queda de popularidade de Dilma Rousseff, a presidente petista que estava no governo). Mas 2013 não foi nada disso. Não foi um ato de oposição ao governo. Foi uma revolta contra o sistema. O resultado de uma insatisfação difusa que se organizou de forma distribuída, molecularmente e sobre a qual ninguém poderia ter controle. Do ponto de vista da nova ciência das redes foi um swarming.

Junho de 2013 inaugurou a manifestação distribuída, na qual cada manifestante era – e pautava – sua própria manifestação, nela chegando com suas próprias pernas e levando seus próprios cartazes artesanais. Isso foi uma ruptura com as manifestações centralizadas dos sindicatos, centrais e partidos de esquerda, nas quais havia acarreamento e, no final, pagamento de manifestantes (com dinheiro vivo mesmo, além do tal sanduiche de mortadela com tubaína – o que já representava um sinal de decadência ou apodrecimento).

Claro que a atribuição de sentido para um ato é sempre uma disputa. Mas, no caso de 2013, não havia com quem disputar. As pessoas estavam descontentes com o sistema, mas quando perguntadas o que entendiam por sistema não sabiam responder. O que não significa que não estivessem descontentes com o sistema (e deve-se entender aqui por sistema a centralização que deixa as pessoas alheias às decisões sobre tudo que pode afetar suas vidas, notadamente do Estado e suas instituições hieráquicas, inclusive os partidos).

O que está acontecendo?

O que está havendo, portanto, não é a ascensão de uma chamada extrema-direita possível de ser combatida pela direita civilizada, pelo centro moderado liberal e pela esquerda progressista. É uma revolução antipolítica (contra a forma e a dinâmica adotadas pela política praticada por todas essas vertentes). Abrir uma guerra de cerco e aniquilamento contra a extrema-direita não vai resolver o problema. Pelo contrário, pode até agravá-lo porque existe base social real e as pessoas que engrosssam essas movimentações avaliadas como reacionárias não estão exatamente cumprindo ordens, seguindo diretivas, porque não estão aglomeradas em formas de organização centralizadas. Estão apenas se sintonizando e às vezes se dessintonizando, mas sempre nos seus próprios termos. E, chegado o dia da eleição, essas pessoas dão votos politicamente incorretos… Deus do céu! A extrema-direita está crescendo.

Não, os culpados não são as mídias sociais, o fenômeno é social antes de ser um problema das tecnologias, dos programas e dispositivos que viabilizam conexões e ensejam interações. O fenômeno tem a ver com as verdadeiras redes sociais, não com as mídias sociais (no Brasil incorretamente chamadas de “redes sociais” – o que só introduz mais confusão na análise).

Sem entender o que está acontecendo nas redes sociais, suas topologias (seus graus de distribuição) e a fenomenologia da interação que nelas se manifesta, será impossível avançar.

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança.