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O dilema de uma só China

Semicondutores controlam o mundo moderno, os chips de computador que permitem processamento de grandes quantidades de dados, comunicações instantâneas globalmente e funcionamento de nossos computadores e celulares são feitos usando semicondutores. A importância econômica e estratégica dessa tecnologia é autoevidente. Quase nada hoje funciona sem um chip de computador.

Estimativas do mercado colocam que em torno de 56% de toda a produção mundial de semicondutores está concentrada nas fundições da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, mais conhecida pela sigla TSMC. Não é exagero dizer que a qualquer instabilidade na ilha de Taiwan prejudica em grande proporção a economia mundial, ainda mais se levarmos em conta que as placas gráficas de alto poder computacional tão necessárias para pesquisa e desenvolvimento no campo da Inteligência Artificial, dependem das fábricas da TSMC para serem produzidos.

O governo chinês continental tem uma visão imutável de que todos os lados do estreito de Taiwan fazem parte de uma só China, logo a ilha seria uma província rebelde, que Pequim estaria disposta a permitir um regime especial, similar ao de Hong Kong (que nos últimos anos tem visto a sua lista de liberdades democráticas serem erodidas).

Taiwan também comunga da visão de que há uma só China, a ilha nunca declarou sua independência e essa questão é ponto de debate interno, embora o campo pró-independência seja minoritário. Em Taiwan se diz que há uma só China com várias interpretações.  Esse status ambíguo de Taiwan resulta em certo isolamento da ilha em termos internacionais, não sendo aceita como membro da Organização das Nações Unidas e seu sistema de agências, por pressão direta da China, que entende como inadmissível manter relações diplomáticas com Pequim e Taipei simultaneamente.

Os Estados Unidos mantêm o que chamam de política de ambiguidade com Taiwan, ou seja, a um só tempo não possuem laços diplomáticos oficiais, mas vendem armas e fazem exercícios militares regulares, além de administrarem uma embaixada de facto em Taipei e diversos outros laços culturais e econômicos. Asseguram a defesa da ilha em caso de invasão ao mesmo tempo sem um arranjo institucional adensado para tanto.

Nos últimos anos o governo de Pequim tem aumentado a presença militar no estreito de Taiwan. Muitos especialistas em segurança internacional apontam que o esforço de modernização do Exército Chinês é motivado pela necessidade operacional advinda dos planos para a tomada do que eles enxergam ser uma província rebelde. A ameaça que paira sobre Taiwan por conta da política de reintegração da ilha ao território chinês por qualquer método possível, não é como diz a expressão popular “da boca pra fora”. É uma possibilidade relevante, que muitos analisam ser uma questão de quando e não de se irá ocorrer.

As Forças Armadas chinesas demonstram seu poderio conduzido vôos de reconhecimento, bombardeios simulados, além de movimentarem porta-aviões e outros meios navais com constância pela região. Os gastos militares de Taiwan embora em tendência de aumento de seu volume comparado ao PIB taiwanês, ainda estão muito abaixo das capacidades do gigante comunista.

Pequim também se vale de outros recursos, como campanhas de desinformação para tentar a um só tempo influenciar os resultados de eleições em Taiwan e enfraquecer a democracia local contribuindo para a erosão da confiança nas instituições e atores políticos.

Taiwan é uma democracia jovem a ilha pela maior parte de sua história de 1949 a 1987 viveu sobre o regime Lei Marcial que se seguiu a vitória comunista nos estertores da Segunda Guerra Mundial, tendo realizado em 1992 sua primeira eleição presidencial. Ainda assim, as instituições e a própria democracia da ilha têm se mostrado resilientes diante dos ataques chineses, mas quanto tempo poderão resistir, ainda mais se levarmos em conta que Pequim está observando e aprendendo com erros e acertos russos na Ucrânia?

Muito do nosso mundo moderno e do crescimento e desenvolvimento econômico mundial dependem das fundições da TSMC e não é factível no curto e médio prazo mitigar os riscos criando novos fabricantes de semicondutores, a literatura econômica nos mostra que muito do poder fabril se constrói a partir de pesquisa e desenvolvimento, pessoal altamente capacitado e inovador e conhecimentos tácitos internos as firmas. , o que aumenta ainda mais os riscos envolvidos nessa região. Como os governos do mundo vão reagir aos riscos intrínsecos desse dilema chinês?

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança. 

Verdades relativas sobre o conflito Israel x Hamas

Examinemos quatro verdades relativas, tidas e divulgadas falsamente como absolutas, sobre o conflito Israel x Hamas.

1 – A solução para a crise são dois Estados: um de Israel e outro Palestino. Não necessariamente. Só se forem dois Estados democráticos de direito. Mais uma tirania no Oriente Médio (onde já existem dezesseis ditaduras) não resolverá o problema.

2 – A solução para a crise humanitária é um cessar-fogo imediato. Não necessariamente. Se Israel paralisar sua resposta aos ataques terroristas (que continuam) o Hamas ganhará uma trégua para se reorganizar e continuar aterrorizando a população civil israelense (e gerando mais crise humanitária).

3 – Todos os bombardeios de prédios civis com mortes de civis em Gaza violam as leis da guerra. Não necessariamente. Os combatentes do Hamas são civis, não usam uniformes, não ocupam instalações militares e não podem ser distinguidos de civis não combatentes se estiverem no mesmo território.

4 – É necessário fazer uma reforma no Conselho de Segurança, acabando com o poder de veto de algumas potências, para que o ONU recupere seu papel pacificador e tenha capacidade de evitar guerras sangrentas, massacres terroristas e genocídios. Não necessariamente. Como as democracias liberais ou plenas são minoritárias no conjunto de 193 países, as autocracias arriscam ganhar todas as votações em desfavor das democracias.

Passemos agora aos comentários gerais que afetam, direta ou indiretamente, os três primeiros pontos.

Israel tem o direito de autodefesa e o dever de proteger sua população dos ataques terroristas do Hamas. Mas se um cessar-fogo é inaceitável, parece óbvio que, agora, Israel não poderá destruir completamente o Hamas. Não tem condições políticas, nem militares, para fazer isso no curto prazo. Logo, o objetivo da incursão em Gaza deve ser mais realista; por exemplo, o resgate dos reféns feitos pelo Hamas e a destruição de parte do seu arsenal operacional armazenado numa rede imensa de túneis, que ainda ameaça Israel, não a exterminação completa da organização.

O Hamas não pode ser completamente destruído de imediato, em primeiro lugar porque sua ideologia – a do jihadismo ofensivo islâmico que toma como objetivo religioso uma “solução final”: a aniquilação de Israel – não vai desaparecer (e parte significativa da população de Gaza está impregnada dessa ideologia necrófila). Além disso, porque há de fato uma organização (o Hamas) e seus chefes não estão em Gaza e sim protegidos no Catar, no Líbano, na Síria, na Turquia, talvez no Iraque e provavelmente no Irã.

E enquanto isso Israel vai perdendo a guerra da propaganda, uma vez que, ocupando o mesmo território, não há como distinguir os combatentes do Hamas, que são para todos os efeitos civis, dos civis palestinos não combatentes. Todo o ataque de Israel será divulgado como ataque contra civis: não há instalações militares identificáveis em Gaza, os jihadistas não usam uniformes, seus bunkers são prédios civis, em geral escondidos em hospitais, escolas, mesquitas e, inclusive, sedes de organizações humanitárias internacionais.

Mesmo com todo apoio das grandes nações democráticas, Israel não pode aguentar semanas ou meses desse tipo de exposição midiática, que apresenta Israel ao mundo como genocida. O show da vítima, repetido diariamente, com a contabilidade macabra das crianças mortas, das gestantes e dos doentes, dos idosos e das pessoas com necessidades especiais cruelmente assassinados, será devastador.

Os chefes militares israelenses e a extrema-direita nacionalista no governo Bibi podem não gostar disso, mas deverão ser obrigados a engolir a realidade. Claro que, passada a fase mais crítica do conflito, o atual governo de Israel deve ser deposto pelas forças democráticas da própria sociedade israelense, sua política de ocupação da Cisjordânia deve ser radicalmente modificada e deve ser anunciado um plano, ainda que de longo prazo, para a criação do embrião de um Estado democrático de direito na Palestina.

Será muito difícil derrotar o Hamas militarmente se essa organização terrorista não for derrotada politicamente.

Ocorre que o Hamas, além de ter sua direção estratégica mais alta fora de Gaza, como já foi dito, não apenas se esconde na população palestina (usando-a como escudo). Depois de quase duas décadas, o Hamas está relativamente enraizado na sociedade palestina. Sob esse aspecto a comparação do Hamas com o Estado Islâmico é imperfeita.

Seus militantes mais jovens já nasceram sob a ditadura do Hamas. Uma família palestina normal pode não ter nada a ver com o Hamas, mas algum ou alguns dos seus filhos, pode, sim.

São jovens normais, gostam de futebol, têm seus herois imaginários, seus artistas admirados, suas músicas preferidas. Só que neles foi inoculada pelos sacerdotes sunitas do jihadismo ofensivo islâmico uma semente de ódio difícil de ser removida. A explicação padrão que seus professores inocularam para que eles repetissem para si mesmos é que tudo que detestam nas suas vidas, todos os seus carecimentos, sua impossibilidade de viajar e conhecer outros lugares e se relacionar com outras pessoas, de serem quem sonham, enfim, tem uma causa e um conjunto de culpados. A causa é a ocupação de sua terra por Israel e os culpados são os judeus.

Além disso, na medida em que se comprometem com a hierarquia do Hamas, esses jovens passam a ter privilégios, algum dinheiro, passe livre em instituições (inclusive de ensino médio e superior), sobras da ajuda humanitária estrangeira que foi desviada pelos terroristas. Mal-comparando, é como ser recrutado pelo narcotráfico: você vai poder usar aquele tênis bacana, você vai poder desfilar de moto, você vai ganhar por mês o que seus pais não conseguem ganhar em um ano. E vai ser respeitado; ou, pelo menos, temido.

Para quebrar isso sem matar ou prender milhares de pessoas e sem destroçar as famílias só com uma experiência relativamente longa de viver sob outro regime de mais liberdade e igualdade de oportunidades. Para tanto, o Hamas tem que ser derrotado politicamente, sua ditadura tem que ser deposta pela própria população (ainda que sob arbitragem e proteção internacional, inclusive de outros países da região) e um novo governo deve assumir o seu lugar.

Sem isso não há solução, pelo menos uma solução humanamente aceitável – já que o extermínio da sua população, a sua evacuação (para onde?), a sua conversão forçada à democracia (em campos de reeducação) não são saídas admissíveis pelo mundo democrático. Erigir um novo Estado palestino que não seja um Estado democrático de direito – mais uma tirania entre as dezesseis que já povoam o Oriente Médio – não vai resolver o problema. Um proto-Estado autocrático assim já existe em Gaza, onde há governo e esse governo está nas mãos dos terroristas do Hamas.

Nada disso significa, porém, que Israel não deva reagir ao bárbaro ataque terrorista que sofreu no dia 08/10, deixando sua população vulnerável a novas investidas mortíferas do Hamas. Isso seria inexplicável e desumano. Israel tem que eliminar a hierarquia militar jihadista que se esconde em Gaza. Tem que destruir as armas do Hamas (sobretudo seus mísseis e fábricas de mísseis – estejam onde estiverem) e tem que destruir também a imensa infra-estrutura subterrânea que foi construída nos últimos anos (quase um Metrô de Londres): os túneis devem ser lacrados. Como vai fazer isso sem entrar no território de Gaza, gerando vítimas civis, é o problema (e os militantes do Hamas são civis). Mas mesmo que Israel encontrasse uma solução militar para esse problema que não fosse desumana, nada disso bastaria se não encontrasse também uma solução política.

Passemos agora aos comentários sobre o quarto ponto: a ONU.

Como as democracias liberais e plenas são minoria no mundo (no máximo 35 em 193 países), o eixo autocrático (ao qual o governo Lula se alinhou) vai querer propor uma reforma majoritarista na ONU, abolindo o poder de veto no Conselho de Segurança. Se alguma democracia liberal ou plena não tiver poder de veto, as quase 90 autocracias e seus aliados (uma parte do conjunto dos cerca de 60 regimes eleitorais, aquela parte parasitada por populismos, como o Brasil) arriscam ganhar todas as votações por maioria. Por exemplo, poderiam aprovar uma condenação de Israel por genocídio. Ou poderiam decidir que a Ucrânia deveria cessar-fogo em vez de resistir à invasão da Rússia. Obviamente, isso não poderá ser aceito pelo mundo democrático. Se acontecer, será o fim da ONU.

Usar a ONU para validar propaganda é um truque antigo. O sistema das Nações Unidos abriga dezenas de comissões, comitês, agências, programas, fundos, fóruns, institutos de estudo e pesquisa e até uma universidade que não falam pela ONU. Só falam pela ONU a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança (o único com poder decisório) e o Secretariado (que é órgão administrativo, dirigido pelo Secretário-Geral). Além desses, as instâncias orgânicas da ONU são a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social e o Conselho de Tutela.

Em abril do ano passado Lula chegou a dizer que foi absolvido pelo “tribunal da ONU”. Não há tribunal da ONU. Foi um parecer do Comitê de Direitos Humanos segundo o qual a investigação e o julgamento de Lula não foram imparciais.

Lula agora declara que Israel matou milhares (arriscou até prever milhões) de crianças em Gaza sem dizer a fonte. Os petistas dizem que foi a ONU. É falso. Provavelmente a informação veio do “Ministério da Saúde” de Gaza, que é um departamento da organização terrorista Hamas. O mesmo lugar de onde saiu a informação fraudulenta – já desmentida – de que Israel havia bombardeado o hospital Ahli Arab deixando cerca de 500 mortos.

Independentemente do viés parcial de muitos analistas há um problema de analfabetismo democrático. Aí a pessoa vai na TV e reclama que tem que reformar o Conselho de Segurança da ONU abolindo o poder de veto de alguns países. Fazer o quê? A pessoa não sabe que as democracias são minoritárias no mundo, que se as decisões forem por voto de maioria as autocracias ganharão todas as disputas.

A pessoa não sabe que na composição atual do Conselho de Segurança existem 6 ditaduras (autocracias eleitorais e fechadas) e apenas 5 democracias liberais (ou plenas).

A pessoa não sabe que se as três democracias liberais que são membros permanentes do Conselho não tivessem poder de veto, as democracias ficariam vulneráveis ao avanço das ditaduras. Por exemplo, a pessoa não sabe que dos 47 países que formam o Conselho de Direitos Humanos da ONU, 70% não são democracias – incluindo autocracias como China, Cuba, Eritreia, Paquistão, Somália, Sudão, Argélia e Emirados Árabes Unidos.

E a pessoa não sabe nada disso não é por maldade. É por ignorância mesmo. Não sabe diferenciar (seguindo a classificação do V-Dem) uma democracia liberal de uma democracia apenas eleitoral, de uma autocracia eleitoral e de uma autocracia fechada. Ou, em outros termos (da The Economist Intelligence Unit), não sabe a diferença entre uma full democracy, uma flawed democracy, um hybrid regime e um authoritarian regime. Ou, ainda (da Freedom House), um regime freepartly free ou not free. Um meio de comunicação profissional deveria fornecer programas de educação política para seus colaboradores.

Reorganização Internacional

Nicolas Maduro anunciou referendo para se apropriar da Guiana Essequiba, território que representa 74% do território da nação vizinha. Será em 3 de dezembro. A Rússia, talvez o maior aliado da Venezuela, avançou sobre a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, iniciando um conflito que segue em curso. O Hamas, que governava a Faixa de Gaza, realizou uma carnificina em Israel que levou a uma outra guerra que pode se ampliar na região do Oriente Médio. Isto sem falar no risco iminente de invasão de Taiwan pela China.

Algo une estes movimentos e seria muito ingênuo achar que as peças deste quebra-cabeça carecem de articulação conjunta. Rússia, Venezuela, China e Hamas (leia-se Irã) são aliados no tabuleiro internacional e realizam movimentos em conjunto, de forma harmônica e sincronizada, com o objetivo de mover as placas tectônicas da estabilidade internacional como conhecemos.

O tabuleiro internacional se movimenta como um intricado jogo de xadrez, ou seja, precisa ser movido com prudência e paciência, sempre calculando cada uma das jogadas possíveis do adversário. Nada indica, entretanto, que as potências ocidentais possuam qualquer movimento estratégico conjunto. Tem apenas respondido de forma perdida e desorganizada todas as ações de seus adversários, sem coordenação e planejamento.

Está sendo desenhada uma nova estrutura de poder internacional diante da passividade e permissividade das potências ocidentais. Os sintomas são claros diante da corrosão de seus valores, princípios e vértices ao longo dos últimos anos. Se nenhum movimento coordenado das atuais potências for desenhado de forma urgente, veremos em pouco tempo a deterioração da democracia e a implementação de novos modelos e regimes que passam longe da liberdade que conhecemos nos países do Ocidente. 

Isto significa dizer que o mundo está em guerra, porém uma guerra fria e localizada em determinados pontos, porém que são essenciais para definir em que tipo de mundo iremos viver. Ucrânia e Israel lutam sozinhos pela manutenção de regimes democráticos e pela liberdade de inúmeros países – nações que em breve podem ser acompanhadas por Guiana e Taiwan, as prováveis próximas vítimas no tabuleiro internacional.

Como disse, o pano de fundo de todos estes movimentos reside na remodelagem do sistema internacional atual, levando as autocracias, ditaduras e governo autoritários para o controle de uma nova estrutura de poder ao mesmo tempo que a democracia é corroída por dentro nas nações do Ocidente. Iniciativa que aos poucos vem mostrando os resultados esperados por aqueles que desejam a implosão de nossas liberdades. 

Vivemos tempos preocupantes. Há tempos o sistema internacional mostrava sinais de fadiga, porém, uma safra de líderes habilidosos evitou a corrosão em escala maior. Infelizmente os tempos mudaram e o avanço antidemocrático tem crescido de forma exponencial tanto pela direita, quanto pela esquerda. O absurdo se tornou parte do cotidiano e as sociedades parecem ter esquecido as lições do passado. Vivemos o maior e mais importante risco contra a democracia e nossas liberdades em tempos recentes, uma possível reorganização internacional que pode levar nossa civilização, mais uma vez, diante do inimaginável.

Polarização doméstica e insegurança global

Concordo com  Ian Bremmer, fundador e CEO do Eurasia Group, famosa consultoria em análise de risco político, e Robert Gates, secretário da Defesa nas administrações dos ex-presidentes George W. Bush (Republicano) e Barack H. Obama (Democrata), quando criticam a atual disfuncionalidade do sistema político norte-americano e se preocupam com às consequências perigosas do presente grau inédito de polarização doméstica para a segurança dos Estados Unidos e seus aliados.

Recente pesquisa nacional do Centro de Política da Universidade da Virgínia, liderado pelo professor Larry Sabato, contribui para agravar esses temores. Realizado entre 25 de agosto e 11 de setembro últimos, entrevistando amostra nacional de eleitores registrados como Democratas, Republicanos ou Independentes desde 2008, o survey apontou tendências perturbadoras na opinião pública americana. Se a eleição de novembro de 2024 fosse antecipada para hoje, 52% dos respondentes escolheriam reeleger Joe Biden; e 48% iriam de Donald Trump.

Quanto às preferências partidárias, 44% dos entrevistados se definem como Democratas; 38% como Republicanos; e 18% como Independentes. Dos autodeclarados Democratas, 88% expressam intenção de reeleger Biden; 90% dos autodeclarados Republicanos querem a volta de Trump à Casa Branca; enquanto os autodeclarados Independentes dividem-se quase igualmente entre o segundo (51%) e o primeiro (49%).

Questões econômicas: dos 34% dos entrevistados que se autorrotulam como Progressistas (esquerda), 80% pretendem votar em Biden; entre  os 42% dos autodefinidos  Conservadores, 76% cravarão Trump;  e dos 25% que se dizem Moderados, 60% ficam com Biden e 40% com Trump.

Questões sociais:  78% dos respondentes que se declaram Conservadores preferem Trump nesse quesito; e 82% dos que se declaram Progressistas preferem Biden. Entre os que se definem como Moderados no campo social, 54% preferem Biden e 45% preferem Trump.

Agora vêm os resultados mais ‘preocupantes’ da pesquisa para o futuro da democracia na América. Para 41% dos eleitores de Trump e 30% dos eleitores de Biden consideram que a discórdia no país é tão aguda que apoiariam a separação (secessão) entre estados “vermelhos” (maioria Republicana) e “azuis” (maioria Democrata).

Dos eleitores de Trump, 31%  já não creem que a democracia seja um sistema viável e aceitam experimentar formas de governo alternativas. A opinião é compartilhada, ‘pelo avesso’, por 24% dos eleitores de Biden.

Amplos 70% dos que pretendem reeleger o presidente Democrata no ano que vem receiam que uma vitória Republicana resulte em dano duradouro para a república; 68% dos eleitores de Trump alimentam os mesmos na hipótese de uma vitória Democrata.

Fatia robusta do eleitorado de Biden (41%) julga que quem apoia o Partido Republicano e sua ideologia tenha se tornado tão extremista a ponto de que isso justificaria o uso da violência para impedir o G.O.P. de alcançar seus objetivos; 38% dos eleitores de Trump pensam o mesmo a respeito dos Democratas.

Os Estados Unidos estão vivendo sob o signo do identitarismo partidário: 40% dos eleitores de Biden admitem que os valores e crenças políticos formam parte significativa de sua identidade e considera que votar “no outro partido” é ser desleal. E 39% dos eleitores de Trump nutrem as mesmas atitudes em relação aos Democratas.

De acordo com 31% dos eleitores de Trump, os fins justificam os meios e qualquer ação do Partido Democrata será aceitável desde que sirva para atingir os objetivos partidários — atitude compartilhada por 21% do eleitorado trumpista.

Parruda parcela dos eleitores de Biden concorda com o emprego de meios não democráticos para a consecução das seguintes metas ‘progressistas’: restrição/proibição de armas de fogo (74%); programas obrigatórios pró-diversidade em todas as empresas (69%); redistribuição da riqueza para combater as desigualdades de renda (56%); regulação/restrição de manifestação de pontos de vista considerados discriminatórios ou ofensivos (47%); limitação de certos direitos, como liberdade de expressão para proteger os sentimentos e a segurança de grupos marginalizados (31%).

Muitos eleitores de Trump também topam contornar normas democráticas a fim de prestigiar objetivos conservadores: introdução de leis exigindo respeito aos símbolos e líderes nacionais (50%); repressão a protestos e demonstrações que o governo considere ameaçadores da ordem pública (45); autoridade do presidente para desconsiderar decisões do Congresso na área de segurança nacional (37%); restrições à expressão de opiniões consideradas antipatrióticas (37%).

Os temas ‘quentes’ da imigração e da educação evidenciam ainda mais esse abismo político-ideológico: 78% dos entrevistados pró-Biden consideram necessário reformar as leis de imigração a fim de atender às necessidades dos imigrantes ilegais e contribuir para enriquecer a diversidade social da América (contra 58% dos respondentes pró-Trump), enquanto 70% dos eleitores de Trump — e 32% dos de Biden — apoiam a adoção de leis que limitem o acesso dos imigrantes ilegais ao perca-os de trabalho e aos benefícios sociais da educação, da saúde e da seguridade. De outra parte, dos entrevistados pró-Biden sugerem que o currículo escolar enfatize injustiças sistêmicas e outros aspectos negativos da história dos Estados Unidos (contra 55% dos respondentes pró-Trump). Ao mesmo tempo, esse eleitorado trumpista acredita que as escolas públicas devem ser obrigadas a ministrar educação cívica e enfatizar o patriotismo, sem conferir destaque a aspectos negativos da história nacional  (contra 28% do eleitorado de Biden).

Por último, mas não em último, o relatório da pesquisa revela que os eleitores continuam profundamente divididos em suas opiniões quanto ao resultado da disputa presidencial de 2020: 56% dos eleitores de Trump, mas 23% dos de Biden, creem que foi o Republicano que venceu aquele pleito e que a presidência lhe foi roubada por meio de fraude e manipulação do sistema eleitoral. Já 88% dos eleitores de Biden creem que aquela eleição presidencialí foi segura, livre de fraudes e que o candidato Democrata colheu uma vitória inequívoca, em contraste com os parcos 4% dos eleitores de Trump que compartilham essa confiança.

Desafios do Investimento Estrangeiro

Investimento estrangeiro é um assunto que está na pauta do Brasil. Somos um país com forte déficit de poupança interna, que precisa de capital externo para realizar investimentos. Esta é uma realidade antiga que nenhum governo de direita, esquerda ou centro conseguiu resolver e pelo menos nas últimas quatro décadas faz parte do debate brasileiro.

Em 2021, os americanos aportaram US$ 200,1 bilhões no Brasil, ou 22,2% do valor total investido no país. A China, apesar de ser um parceiro comercial relevante, investiu no mesmo período apenas US$ 49,7 bilhões, uma fatia de modestos 5,5%. A Europa foi além e investiu US$ 566,9 bilhões no Brasil, quase o triplo dos americanos. Em tempos de discussão de um acordo de livre-comércio com os europeus, um dado relevante que precisamos manter em nosso radar.

As vantagens em lidar com União Europeia e Estados Unidos são claras, afinal, estamos lidando com países democráticos com instituições estáveis, judiciário independente e regras definidas. Para fluxos de comércio constantes e longos, que geram emprego e riquezas, pilares como estes são essenciais, pois fornecem segurança e manutenção das regras, elementos centrais para dinâmicas comerciais profundas, saudáveis e sólidas, afinal, democracias gostam de democracias.

Para além das democracias, a China desponta como um parceiro sedutor para os países sedentos de investimentos, porém com recursos direcionados para áreas definidas.  Nos últimos anos, o setor de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica foi aquele que mais recebeu investimentos chineses no Brasil. Portos e minas também estão na mira de Pequim. Um desenho que avança sobre setores estratégicos.

Diante disso, é preciso entender até que ponto o investimento estrangeiro em setores críticos, concentrados em empresas de um mesmo país, podem afetar nossa soberania e segurança como nação. Isto porque em geral são empresas que se confundem com governos autoritários e respondem exclusivamente ao seu interesse nacional – algo que se tornou um fato em nações seduzidas pela chuva de yuans proporcionada por Pequim.

Enquanto África e América Latina tem aberto suas portas sem maiores restrições, Europa e Estados Unidos buscaram proteger sua soberania em setores estratégicos. Para evitar tornarem-se vulneráveis, a solução passou por diversificação e competição, ao contrário do modelo proposto pelos chineses. Países desenvolvidos têm buscado receber investimento, porém evitam a dependência. Para isso usam aquilo que se convencionou chamar no meio internacional de mecanismos de verificação, conhecido como screening mechanism, uma ferramenta que merece maior atenção no Brasil.

Em tempos modernos, de inteligência artificial e sistemas remotos de controle, qualquer país pode se tornar vulnerável, especialmente aqueles que precisam demasiadamente de recursos externos. É preciso evitar riscos, atrair capitais de qualidade, essencialmente de países democráticos e criar mecanismos de verificação para que o país evite se tornar refém de países autoritários em setores estratégicos – recursos que chegam fáceis, mas cobram um alto custo adiante. Este é o grande desafio que se impõe ao Brasil, evitar trocar o estatismo do passado pela submissão externa a regimes autoritários no futuro.

Israel X Hamas e o macro cenário internacional 

A compreensão do atual estado de beligerância entre Israel e o Hamas deve remontar à criação do Estado de Israel em 1948, auspiciada por resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que também previa a criação de um Estado palestino. A região da Palestina, território escolhido para os novos Estados, estava sob mandato britânico desde 1923. A criação de Israel, impulsionada pelo movimento sionista, foi desde o início contestada pelos palestinos e pelos países islâmicos. Os palestinos sentiram-se esbulhados em seus direitos territoriais, o que causou uma rivalidade geopolítica, ao lado da tradicional rivalidade religiosa entre judeus e islamitas. Ademais, Israel adotou política de instalar assentamentos que são vistos pelos palestinos como ofensa e provocação.

Em 7 de outubro de 2023, o Hamas (“Movimento de Resistência Islâmica” em árabe), organização terrorista com base na faixa de Gaza, financiado principalmente pelo Irã, mas também pelo Catar, atacou Israel com inusitada amplitude de meios – por terra, pelo mar e pelo ar. Essa ação colheu os órgãos de informação e de defesa de Israel de surpresa, o que causou estranheza, porque tanto os serviços de informação quanto as forças armadas israelenses têm reputação de excelência e são tecnologicamente muito avançados. Pelo menos duas hipóteses podem ser aventadas para as falhas dos órgãos de informação. De um lado, o excesso de confiança em recursos eletrônicos para obter dados sobre o Hamas, em detrimento da capacidade analítica dos agentes de informação, o que teria levado a uma inanição do sistema, incapaz de levar informações suficientes aos níveis decisórios. De outro lado, o sistema teria sido inundado com excesso de informações, além de sua capacidade de processamento, ou seja, os canais de informação estariam sobrecarregados e, portanto, pouco operantes. Outra possibilidade é que informações teriam chegado à cúpula do estado israelense, que, assoberbado pela crise política envolvendo o próprio Primeiro Ministro, não teria tomado as decisões adequadas em resposta ao ataque do Hamas.  Por fim, a dimensão e a eficiência do ataque do Hamas demonstram que houve uma longa e cuidadosa preparação, que não teria sido detectada pelos israelenses. Não é crível que o Hamas tenha empreendido um ataque dessa envergadura sem o conhecimento e até mesmo o consentimento de seu principal patrocinador e financiador, o Irã. 

Potência regional, o Irã foi aliado das potências ocidentais e dos Estados Unidos até a Revolução Islâmica de 1979, quando se instalou uma teocracia sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini. Detentor de uma das maiores reservas de petróleo do mundo, com bem equipadas forças armadas de mais de 500 mil homens, o Irã beneficiou-se da invasão norte-americana do Iraque, que terminou com o equilíbrio de poder regional entre Irã e Iraque, ao ocupar este último e anular sua capacidade bélica. Além do Hamas, o Irã também apoia o grupo radical xiita Hezbollah, que atua principalmente no Líbano e que também lançou foguetes contra Israel, que tem conseguido diminuir suas perdas pela utilização do sofisticado sistema defensivo “Iron Dome” que detecta e destrói foguetes antes de atingirem seu território. Deve-se registrar que tanto o Hamas quanto o Hezbollah atuam como partidos políticos em seus territórios.

O Irã é ator fundamental no cenário do Oriente Médio, pois, além de potência regional inimiga de Israel e das potências ocidentais, margeia o estreito de Ormuz, uma das principais rotas do petróleo e do gás do mundo e que pode ser facilmente fechado. Os Estados Unidos, tradicional aliado de Israel, enviaram dois porta-aviões e o Reino Unido enviou uma força naval para as imediações de Israel. Essa mobilização parece visar mais a uma dissuasão ao Irã do que a uma eventual defesa direta de Israel.

Com o ataque do Hamas, Israel tomou represálias imediatas bombardeando a faixa de Gaza e empreendendo depois uma invasão terrestre que apresenta graves dificuldades, dentre as quais a necessidade de realizar combate urbano em área populosa e a existência de ampla rede de túneis construídos pelo Hamas. Israel tem manifestado o desejo de exterminar o Hamas, objetivo difícil de ser atingido, porque os ressentimentos entre os palestinos e os judeus são muito enraizados e se refletem nos países islâmicos. 

Além dos ataques do Hamas e do Hezbollah, os Hutis, também lançaram foguetes contra o território israelense. Trata-se de um grupo xiita do Iêmen, apoiado pelo Irã e combatido por coalizão liderada pela Arábia Saudita, aliada dos EUA.

Outra frente que se abriu no conflito foi com foguetes vindos do território sírio, que atingiram as Colinas do Golã, as quais faziam parte de território sírio ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias de 1967. A Síria, desde a Primavera Árabe de 2011, tem visto seu Governo ser contestado, mas o regime não caiu porque tem contado com o apoio decisivo do Hezbollah, da Rússia e do Irã. O Irã tem fornecido drones utilizados pela Rússia em ataques na Ucrânia. 

De sua parte, a Turquia, que é membro da OTAN desde a Guerra Fria mas que tem mantido uma política de equilibro entre o Ocidente e sua liderança islâmica, condenou a represália de Israel na Faixa de Gaza como terrorismo. 

A China apoia a solução de dois estados para Israel e Palestina, mas tem adotado um perfil discreto. A caminho de consolidar-se como uma superpotência rivalizando com os EUA, a China tem interesse em uma situação internacional sem grandes transtornos, para não prejudicar seus fluxos de comércio nem suas linhas de suprimento de matérias primas, alimentos e petróleo. O gigante asiático é grande comprador de petróleo da Rússia, do Irã e da Venezuela. 

Esse quadro mostra a complexidade e a extensão das alianças de países que estão imediatamente interessados na disputa Israel-Hamas, ou potencialmente podem ser envolvidos na situação de beligerância, o que pode levar a um aumento dos países intervindo no conflito. Outro fator que pode contribuir fortemente para o espraiamento da luta Israel-Hamas é o crescimento do antissemitismo, bem como do sentimento anti-islâmico, que potencialmente poderá levar os governos, pressionados pela opinião pública, a contemplarem participação mais direta no conflito.

O Itamaraty e a Força Aérea Brasileira vêm realizando operação de repatriação de brasileiros, com êxito parcial. Não há perspectiva, contudo, de que o governo brasileiro possa atuar como mediador para a solução da crise, mesmo porque o Brasil não tem peso específico internacional para agir em cenário em que estão interessadas diretamente as grandes potências.  

A ONU tem se mostrado ineficaz na missão precípua de seu Conselho de Segurança, que é a manutenção da paz. Uma das razões preponderantes é o sistema de poder de veto das potências-membro, os Estados Unidos, a China, a Rússia, o Reino Unido e a França. As Nações Unidas têm funcionado como fórum de repercussão das posições, e têm atuado também para amenizar a crise humanitária. 

Barril de Pólvora

A brutal ação terrorista do Hamas em Israel abriu a caixa de pandora do antissemitismo com uma onda de covardes demonstrações contra judeus ao redor do mundo que nos remetem ao horror vivido pela humanidade nos tempos de Hitler. Travestidas de ações em favor dos palestinos, os protestos buscam esconder a razão principal de seu ódio, focada nos judeus, em Israel e no modo de vida ocidental.

Já escrevi desde o início deste conflito que a guerra travada por Israel vai muito além de suas fronteiras. Ao enfrentar o Hamas, Tel Aviv defende todo o Ocidente, suas políticas, democracia, liberdades e tolerância. Tudo aquilo que o Hamas e seus apoiadores ao redor do mundo repudiam e desejam eliminar da agenda internacional e das práticas nacionais nas mais diferentes nações que defendem este arcabouço de valores.

Chega a ser bizarro enxergar manifestações em favor do Hamas e outros grupamentos de terroristas, em especial por mulheres e grupos LGBTQIA+, maiores focos de políticas de opressão de países que abrigam essas facções criminosas transnacionais. Fato é que curiosamente os manifestantes usam as garantias liberais de liberdade de expressão do Ocidente para realizar protestos – ações que jamais poderiam ocorrer em solo controlado pelos terroristas, em uma espécie de bizarro pacto suicida.

Entretanto, barcos com refugiados continuam a chegar lotados na Europa. Foram os primeiros a celebrar em solo europeu o ataque do Hamas, ainda sob guarda das autoridades portuárias. Em ato contínuo, imigrantes árabes tomaram as ruas das principais cidades europeias pedindo extermínio de judeus, como sempre disfarçados sob o manto da causa palestina, de Londres a Berlim, passando por Copenhague, Paris, Viena e Roma.

Isto nos leva a perguntar que tipo de Europa temos diante de nós. Um continente que ao defender a tolerância, se tornará em breve refém dos intolerantes. Países defensores de um progressismo que aos poucos corrói as estruturas de sua própria sociedade e seus valores. A Eurabia aos poucos se torna realidade e os protestos massivos nas grandes capitais europeias mostraram a clara medida da onda que tomou o velho continente. A Europa se tornou o barril de pólvora prestes a explodir logo depois do Oriente Médio.

Curiosamente, refugiados e imigrantes que chegam na Europa e reforçam os protestos a favor do Hamas relutam em imigrar para os grandes centros árabes e muçulmanos. São 49 países de maioria muçulmana, 23 países que são Estados islâmicos e 15 países sob a lei da Sharia. Uma das grandes questões que se desenha são as razões daqueles que defendem o radicalismo e protestam a favor do Hamas e contra Israel, preferirem enfrentar todas as barreiras imigratórias de costumes, língua e cultura na Europa ao invés de rumar para uma nação com suas tradições. Esta resposta é essencial para entendermos os movimentos geopolíticos que veremos adiante.

O Ocidente precisa refletir sobre sua subserviência ao radicalismo e o uso da tolerância e das nossas liberdades para corroer e arruinar nossas instituições e nosso modelo de sociedade. Estamos diante de um desafio imenso e uma encruzilhada que oferece o caminho da submissão e da involução ou a defesa intransigente de nossas liberdades e direitos. Afinal, como dizia Burke, “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

A ONU sem cláusula democrática não serve mais à democracia

Sabe-se que é difícil falar disso, mas está cada vez mais claro que a ONU se converteu em uma armadilha para as democracias liberais e plenas. A admissão de países sem critérios democráticos – não havia como ser de outro jeito após a segunda guerra mundial – conformou uma maioria avessa às democracias liberais e plenas na organização. As ditaduras e os regimes parasitados por populismos hoje são maioria em quase todas as instâncias da ONU, inclusive no Conselho de Segurança (na sua composição atual, o Conselho tem 6 ditaduras: Albânia, China, Gabão, Moçambique, Emirados Árabes Unidos e Rússia contra 5 democracias liberais: EUA, Reino Unido, França, Suiça e Japão). No Conselho de Direitos Humanos, suprema ironia, as ditaduras (que não respeitam direitos humanos em seus próprios países) perfazem 74% do colegiado.

Na segunda guerra fria em que vivemos essa ordem mundial herdada da segunda grande guerra, que logrou atravessar mais ou menos incólume a primeira guerra fria, praticamente acabou. Na raiz desse problema havia uma ilusão dos democratas de que a democracia se espalharia naturalmente pelo mundo, à medida que a adoção de uma economia de mercado, com a melhoria do bem-estar das populações, ensejasse o surgimento de uma classe média democrática. Isso não aconteceu, nem na China e não vai mais acontecer em lugar algum.

O fato é que se não fosse o poder de veto de EUA, França e Reino Unido, a coisa já teria ido para o beleléu. No limite, com um cessar-fogo imposto pela maioria pró-autocrática da ONU, a Ucrânia estaria condenada a ceder seu território para a Rússia, Israel seria condenado como genocida e sanções a esses países seriam aprovadas por descumprimento das decisões.

As democracias liberais e plenas hoje dependem, quase que exclusivamente, do poder de veto que três democracias liberais ainda têm no Conselho de Segurança. Se for adotada uma regra majoritarista (quem tiver mais votos leva), as democracias correm o risco de virar os grandes vilões do mundo na Organização das Nações Unidas.

Uma ONU não avessa à democracia deveria unir Estados democráticos de direito e não qualquer tipo de Estado. Até o Mercosul tem cláusula democrática. A ONU não tem. Isso significa igualar tiranias sangrentas às mais avançadas democracias. Um voto da Noruega é anulado por um da Síria. O voto da Finlândia é neutralizado pelo da Eritréia, do Reino Unido pelo do Iêmem, da Suíça pelo do Sudão.

Hoje a ONU espelha a ordem não-democrática do mundo engolfado por uma terceira grande onda de autocratização, com 89 autocracias contra apenas 32 democracias liberais (segundo o V-Dem 2023) e um número ainda não determinável (mas que pode chegar à dezenas) de regimes eleitorais parasitados por populismos com propensão crescente de entrar em transição autocratizante.

 Lula – um agente da segunda guerra fria ainda na vibe da primeira – quer adotar o majoritarismo em todas as instâncias da ONU (quem tiver mais votos leva) porque sabe que as autocracias e os regimes eleitorais parasitados por populismos são hoje maioria na organização. Sim, as democracias liberais e plenas são hoje minoritárias no mundo.

A continuar assim – e tudo indica que vai – dias piores virão.


Nota

Usamos aqui a classificação de regimes políticos baseada no V-Dem e modificada por Augusto de Franco conforme mostram os dois diagramas abaixo:

Foto de Taylor Brandon na Unsplash

Israel, Hamas e o crepúsculo do Ocidente

Para mães palestinas que seguram seus filhos feridos não importa a razão de ser do ataque sofrido, para o pai que teve sua família dizimada por terroristas cruéis não importa o motivo do ataque, para os inúmeros reféns que se encontram subjugados e torturados não há barbaridade maior do que a que sofrem. Por qualquer ângulo que se olhe, o martírio de inocentes é injustificável e intolerável. O que deveria causar revolta e indignação é que se tente justificar a crueldade e a barbaridade por floreios retóricos que tomam por base uma argumentação histórica de um conflito milenar.

O mal, quando emerge sob o manto da reivindicação da justiça, é o mal dissimulado e insidioso, é o mal dos hipócritas e dos covardes. E há mal moral enraizado na mente dos que supostamente militam pela paz.

Os pacifistas que fecham os olhos para as atrocidades cometidas contra os seres humanos quando tais atrocidades ferem não aqueles cuja subjugação oferece a bandeira adequada para a sua militância doentia, mas aqueles que supostamente seriam os opressores que a sua ideologia resolveu demonizar são, na verdade, pessoas sem bussola moral, sem integridade e sem equilíbrio para lidar politicamente com uma situação tão delicada como a que o mundo agora vivencia após o atentado terrorista do Hamas.

Não basta clamar por um cessar fogo sem reconhecer que as reivindicações de Israel, como Estado atacado, são legítimas; não adianta apontar os civis mortos no ataque em Gaza sem esclarecer que tais civis são feitos de escudo pelos terroristas que se escondem nos túneis subterrâneos; não serve posar de bom-moço e pedir a paz mundial sem reconhecer que essa paz é reiteradamente ameaçada por déspotas como Vladimir Putin que hipocritamente se coloca no tabuleiro da guerra do Oriente Médio esperando a oportunidade de oferecer seu poderio bélico a todos aqueles que se alinhem à sua insânia expansionista e possam servir aos seus interesses.

Os jovens que se arvoram defensores da liberdade e da igualdade deveriam estar atentos e temerosos com a expansão autocrática contra as democracias liberais, mas, paradoxalmente, o que vemos são estudantes e professores universitários vociferando contra Israel em nome de uma abstração chamada “causa palestina”.

Qual é, afinal, a causa palestina? Quem está travando os tratados de paz senão os próprios fundamentalistas que minam todas as negociações possíveis e espalham o terror para evitar a concórdia? São os terroristas do Hamas que mantêm a população de Gaza subjugada e exposta para que o ódio recrudesça no coração de todos.

Por que a ONU não se interessou em condenar o feroz ataque perpetrado pelos terroristas antes de clamar pela paz? Por que a Assembleia Geral da ONU aprovou um projeto de resolução que pede uma pausa segundo o critério dos Estados árabes alinhados ao que há de mais retrógrado em termos de Direitos Humanos, desconsiderando a decisão coletiva das sociedades livres para as quais Israel tem o direito, senão o dever, de combater e eliminar o grupo terrorista que o atacou? O que faz com que uma instituição como a ONU, que deveria ser um ponto de dissuasão de conflitos, se torne um reprodutor de discursos hipócritas e demagógicos que não aponta com clareza o mal e que foge à responsabilidade de combatê-lo? São respostas difíceis porque talvez a ONU seja apenas o reflexo institucional de um cenário global de ambiguidade moral, de falta de critérios, de perda de prumo e de relativismo doentio.  

O secularismo, tão aclamado por progressistas e materialistas, parece ter levado ao seu oposto: a submissão ao que há de mais radical e primitivo em termos de religião. Por que o Islã não pode se curvar à política liberal do Ocidente, mas a política liberal do Ocidente precisa se curvar ao Islã? Por que o fanatismo de um povo que clama pelo extermínio dos judeus está sendo tolerado e incorporado pela cultura livre que o acolhe? O que significa a place de la République tomada por muçulmanos e simpatizantes gritando “Allah Akbar” após uma carnificina contra os judeus senão o atestado de submissão daquela que foi outrora a pátria dos Direitos do Homem e do Cidadão?

O problema é mais filosófico do que político. O iluminismo, o materialismo, o secularismo, na sua ânsia de renegar o cristianismo e seu legado moral acabou abrindo espaço para outra religião, não compatível com as leis e os costumes ocidentais. O esforço do Ocidente para trocar o cristianismo pelo ateísmo de Estado e virar as costas para sua tradição e para sua história religiosa fragilizou-o sobremaneira.

O niilismo decorrente da falta de raízes permitiu a proliferação de teorias absurdas e aberrantes tidas hoje como respeitáveis e as universidades dissolveram-se no caos do imoralismo que busca antes transgredir do que formar. Sob o nome pomposo de “decolonização”, professores militantes conseguiram fomentar um desprezo pelo que chamam de “eurocentrismo”, que nada mais é que a referência judaico-cristã da história. Movidos por ressentimento e vitimismo, exigem uma retratação em nome de uma suposta marginalização e costumam desprezar os clássicos por se acharem portadores de uma grande verdade atual. Com tudo isso, fizeram da Filosofia uma mera excrescência ideológica na qual se pavoneiam com floreios linguísticos.

Por pouco estudo que se tenha, por pouco que se conheçam os fatos, por simplória que seja a mente de um indivíduo é gritante a iniquidade que há em se justificar atrocidades em nome de uma causa política. O uso da violência no seu aspecto mais bestial não pode ser tolerado e muito menos aclamado. Os intelectuais da extrema esquerda que tratam Israel como “Estado terrorista” e o acusam de genocídio enquanto silenciam sobre a causa original da guerra em curso são ideólogos que falseiam a história.

Nesse crepúsculo do Ocidente haveremos ainda de encontrar vozes lúcidas que renegarão a perfídia. Essas vozes serão muitas vezes silenciadas e perseguidas. Mas elas ressoarão no fundo das consciências momentaneamente obnubiladas pela histeria de um mundo sem rumo e sem fé.