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Foto: Mahmud Hams/AFP

Ideologia e Terror: Israel sob Ataque

Não há justificativa moral ou política para um ato de crueldade; não há teoria que tenha legitimidade quando tenta se impor pela violência e pelo mal.

É preciso que cada cidadão reflita a propósito de sua visão de mundo e de suas convicções, que se questione se aquilo que defende é digno ou iníquo; é preciso que a consciência de cada um esteja desperta para que a brutalidade, a insânia, a perversidade que atravessa o mundo nessa hora sintomática não ponham a perder os esforços daqueles que querem efetivamente alcançar a paz e a fraternidade entre os homens.

O apoio a uma causa política não pode ser motivo de morticínio e a adesão a determinado programa ideológico não se coaduna com a tentativa de aniquilação de um povo. Não é razoável, sob nenhuma ótica dentro dos preceitos éticos fundamentais, que se apoie barbaridades como a execução sumária de civis inocentes, o sequestro de mulheres, crianças e idosos e toda a selvageria que caracteriza os atos dos fundamentalistas islâmicos.

Esses extremistas, porém, encontram nos hipócritas e nos covardes o eco necessário para as suas incursões demoníacas e perversas.

Todos aqueles que, tendo um papel social a cumprir, optam por corroborar com o mal, emprestando sua fama, seu poder ou sua influência a causas desgraçadas como a do terrorismo respondem, de algum modo, por esses crimes.

Não se trata de favorecer uma ou outra narrativa, mas de rechaçar uma delas em absoluto: aquela que relativiza a vida humana, que bestializa o homem, que atenta contra a dignidade e que fere a sensibilidade de quantos ainda não estão embotados pela ideologia nefasta que professam de maneira inconsequente.

O mal moral existe, está bem visível e requer condenação. Não se pode relativizá-lo.

Isso não equivale a aderir ao governo atual de Israel ou negar valor à luta palestina, equivale a resguardar a consciência moral, que não transige com o terror.

O ser humano livre é aquele capaz de pensar e sentir. Se você não sentiu dor e indignação diante dos relatos do horror perpetrado contra os civis inocentes em Israel, uma parte da sua alma adoeceu. E você está procurando a cura no lugar errado.

Uma intrusa no Conselho de Segurança da ONU?

As violações da Rússia ao direito internacional na guerra contra a Ucrânia e a (i)legitimidade do assento permanente russo no Conselho de Segurança da ONU.

Após a desintegração da União Soviética, em 1991, Ucrânia, Reino Unido, Estados Unidos e Rússia assinaram o Memorando de Budapeste (1994), documento no qual os signatários asseguravam o respeito à independência e à soberania da Ucrânia, dentro de limites territoriais que incluíam a região da Crimeia. Em contrapartida, os ucranianos aderiram ao Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).[1] Exatamente 20 anos depois, a Rússia, liderada por Vladimir Putin, rompeu o acordo e invadiu a Crimeia. Sob forte suspeita de manipulação, foram promovidos referendos na península para aprovar sua separação e anexação à Rússia – sem a chancela da ONU e com pressão contrária por parte dos EUA e da União Europeia.[2]

A anexação da Crimeia caracterizou grave violação do direito internacional e pode ser considerada a primeira fase de um conflito que na atualidade alcançou uma dimensão continental: a guerra promovida pela Rússia contra a Ucrânia, desencadeada pela invasão russa de 24 de fevereiro de 2022, representa o primeiro conflito bélico interestatal em solo europeu desde o fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945).

Os episódios citados constituem violações da Rússia às normas de direito internacional conhecidas como jus ad bellum e jus in bello. O país, ademais, é supostamente liderado por um criminoso de guerra: em março de 2023, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandado de prisão contra Putin por comandar a deportação de pessoas – incluindo crianças – o que constitui crime de guerra[3]. O governo ucraniano, por sua vez, argumenta que o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) poderia invocar o art. 42 do Capítulo VII da Carta da ONU, autorizando o uso da força para repelir a invasão – mesmo com voto contrário da Rússia, que tem poder de veto por integrar o P-5[4]. Como veremos mais adiante, a Ucrânia defende que a condição de membro permanente da Rússia é ilegítima.

Jus ad bellum significa “direito à guerra”. Trata-se de um conjunto de normas que estabelecem as condições nas quais os Estados podem recorrer ao uso da força, representando exceções à norma imperativa que proscreve a guerra.[5] Atualmente são duas as possibilidades de legítimo uso da força: (a.) autodefesa, para repelir agressão armada; e (b.) ação militar autorizada pelo CSNU (cap. VII da Carta da ONU). O artigo 2.º, 4, da Carta proíbe a ameaça ou o uso da força e apela a todos os membros para que respeitem a soberania, a integridade territorial e a independência política de outros Estados. Outrossim, a ONU determina que seus membros recorram a instrumentos pacíficos de solução de controvérsias (art. 33).[6] A Rússia, ao invadir a Ucrânia em 2014 e novamente em 2022, violou tanto o artigo 2(4) quanto o 33 da Carta.

            O jus in bello, ou “direito na guerra”, por sua vez, rege a forma como a guerra é conduzida. Também conhecido como “direito internacional humanitário”, seu objetivo é limitar o sofrimento causado pelas hostilidades.[7] Suas normas mais importantes são as Convenções de Genebra de 1949[8]. Segundo Blum e Modirzadeh, professores de Harvard, nos EUA, o jus in bello exige que beligerantes dirijam ataques apenas contra combatentes aptos e alvos militares e evitem danos a civis, bens civis e ao meio ambiente.[9] No conflito russo-ucraniano, contudo, há provas materiais de frequentes violações ao direito humanitário, sobretudo por parte do exército russo, incluindo bombardeios de áreas civis e a transferência forçada de crianças, prática que é proibida pela 4ª Convenção de Genebra de 1949[10] e que ensejou a condenação pelo Tribunal da Haia.

O êxito do mandado de prisão contra Putin emitido pelo TPI dependerá de cooperação internacional, notadamente dos mais de 120 Estados que ratificaram o Estatuto de Roma de 1998.[11]  O fato de a Rússia ser uma potência nuclear e não reconhecer a jurisdição do tribunal torna pouco provável que Putin seja efetivamente preso, sob uma ótica calcada em realpolitik. Não obstante, a sentença tem validade jurídica e reveste-se de simbolismo político: é a primeira condenação de um chefe de Estado fora da África – e de um líder de uma grande potência. A gravidade dos crimes e o ineditismo da decisão podem isolar Putin ainda mais no plano diplomático[12].

O governo da Ucrânia, por meio de seu Ministério de Assuntos Exteriores (MFA), divulgou, em dezembro de 2022, um paper intitulado “Declaração sobre a ilegitimidade da presença da Federação Russa no Conselho de Segurança da ONU e nas Nações Unidas como um todo”.[13] De acordo com o texto, a Federação Russa teria assumido cadeira de membro permanente do CSNU ilegitimamente, infringindo as normas da ONU. O MFA ressalta que a expressão “Federação Russa” sequer consta na Carta das Nações Unidas. O documento argumenta ainda que, em 1991, o pleito de adesão da Federação Russa à ONU e ao P-5, em substituição à URSS, deveria ter sido analisado e efetivado por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), após recomendação do CSNU, conforme preconiza o art. 4 da Carta.[14] O texto acrescenta que o procedimento do art. 4 foi adotado por República Tcheca e Eslováquia quando a Tchecoslováquia deixou de existir em 1993.[15] A mesma deveria ter sido aplicada à então URSS.

O paper do governo ucraniano destaca, também, que a adesão à ONU está aberta a todos os Estados amantes da paz (§ 1, art. 4); a Rússia, contudo, não preencheria esse requisito: consoante o MFA, “três décadas de presença ilegal na ONU foram marcadas por guerras e apreensão de territórios de outros países, mudança forçada de fronteiras reconhecidas internacionalmente (…)”.[16]

É incontestável que a Federação Russa tem violado reiteradamente o direito das gentes. A anexação da Crimeia (2014) e a invasão armada à Ucrânia, em 2022, contrariam normas internacionais de jus cogens, mormente a proibição do uso da força no plano mundial. Ataques a civis e a transferência forçada de crianças configuram infrações ao direito de Genebra e levaram o TPI a expedir mandado de prisão contra Putin. A campanha realizada pela diplomacia ucraniana, contestando a presença da Rússia na ONU, além de sua condição de membro permanente, pretende ser um ponto de partida para a discussão jurídica e diplomática acerca da legitimidade e do status da Rússia na organização internacional. A introdução desse debate jurídico poderá destravar o processo de reforma da ONU, considerada obsoleta por representar a configuração mundial de poder de 1945. O Conselho de Segurança, em particular, precisa tornar-se representativo de um mundo multipolar[17] e contar com processos decisórios mais ágeis, fazendo que a organização consiga prevenir conflitos e restaurar a paz entre as nações.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAS, Vladimir. Putin não deve ser preso, mas só terá livre circulação em países satélites. Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/vladimir-aras-mandado-prisao-putin> Acesso em 22 jun. 2023.

BONET, Pilar. Crimeia, a obsessão de Putin. El País, 2016. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/29/eps/1467215735_437122.html>. Acesso em 18 jun. 2023.

COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Jus in belloJus ad bellum. Disponível em <https://www.icrc.org/pt/guerra-e-o-direito/dih-e-outros-regimes-legais/jus-bello-jus-ad-bellum> Acesso em 24 jun. 2023.

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KIRBY, Paul. POR QUE ENTRADA DA FINLÂNDIA NA OTAN ENFURECE TANTO A RÚSSIA. BBC News Brasil. 2023. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2ndjvvmg4o> Acesso em 25 jun. 2023.

KULIKE, Marcelli. As invasões russas na Geórgia (2008) e na Crimeia (2014). Série Conflitos Internacionais. V. 1, n. 4. Unesp, Agosto de 2014. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/4-invasoes-russas.pdf > Acesso em 21 jun. 2023.

MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em <https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020. 

THE ECONOMIST. Why Russia is deporting Ukrainian children. 2023. Disponível em <https://www.economist.com/the-economist-explains/2023/04/14/why-russia-is-deporting-ukrainian-children>. Acesso em 09 jul. 2023.

_____________. The UN’s structures built in 1945 are not fit for 2020, let alone beyond it (Special Report). 2020. Disponível em <https://www.economist.com/special-report/2020/06/18/the-uns-structures-built-in-1945-are-not-fit-for-2020-let-alone-beyond-it.> Acesso em 01 jul. 2023.

UNITED NATIONS (UN). United Nations Charter (full text). Disponível em <https://www.un.org/en/about-us/un-charter/full-text > Acesso em 18 jun. 2023.

[1] A versão original do Memorando em inglês encontra-se disponível em: https://treaties.un.org/doc/Publication/UNTS/Volume%203007/v3007.pdf , p. 167.

[2]    KULIKE, Marcelli. As invasões russas na Geórgia (2008) e na Crimeia (2014). Série Conflitos Internacionais. V. 1, n. 4. Unesp, Agosto de 2014. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/4-invasoes-russas.pdf > Acesso em 21 jun. 2023.

[3] THE ECONOMIST. Why Russia is deporting Ukrainian children. Abril de 2023. Disponível em <https://www.economist.com/the-economist-explains/2023/04/14/why-russia-is-deporting-ukrainian-children>. Acesso em 09 jul. 2023.

[4]    P-5 é a abreviação para os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China.

[5]   REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 17. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.  P.437

[6] UNITED NATIONS (UN). United Nations Charter (full text). Disponível em <https://www.un.org/en/about-us/un-charter/full-text  > Acesso em: 23 jun. 2023.

[7]   COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Jus in bello – Jus ad bellum. Disponível em < https://www.icrc.org/pt/guerra-e-o-direito/dih-e-outros-regimes-legais/jus-bello-jus-ad-bellum > Acesso em 24 jun. 2023.

[8]    AS CONVENÇÕES DE GENEBRA DE 1949 E SEUS PROTOCOLOS ADICIONAIS. Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), 2010. Disponível em <https://www.icrc.org/pt/doc/war-and-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/overview-geneva-conventions.htm >. Acesso em 22 jun. 2023.

[9]    HARVARD LAW SCHOOL. The war in Ukraine and International Law, 2022. Disponível em

< https://hls.harvard.edu/today/the-ukraine-conflict-and-international-law/ >. Acesso em: 24 jun. 2023.

[10]    Convenção Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra.

[11]   ARAS, Vladimir. Putin não deve ser preso, mas só terá livre circulação em países satélites. Revista Consultor Jurídico, 3 de abril de 2023. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-abr-03/vladimir-aras-mandado-prisao-putin > Acesso em 22 jun. 2023.

[12]     A China é a única grande potência que atualmente apoia a Rússia de Putin, porém sem participação direta no conflito europeu.

[13]   MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em < https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[14]    MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em < https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[15]   O mesmo procedimento aplicou-se aos novos estados que surgiram por ocasião da dissolução da ex-Iugoslávia. Para mais informações, acessar: https://www.un.org/en/about-us/member-states/yugoslavia.

[16]    MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF UKRAINE. Statement of the MFA of Ukraine on the illegitimacy of the Russian Federation’s presence in the UN Security Council and in the United Nations as a Whole. 2022. Disponível em <https://mfa.gov.ua/en/news/zayava-mzs-ukrayini-shchodo-nelegitimnosti-perebuvannya-rosijskoyi-federaciyi-v-radi-bezpeki-oon-ta-organizaciyi-obyednanih-nacij-u-cilomu>. Acesso em 25 jun. 2023.

[17]  O P-5 com poder de veto ainda é o clube vitorioso de 1945, sem representantes da América Latina, África ou sul da Ásia.  Sem reforma, o déficit de legitimidade do Conselho continuará aumentando. Uma análise mais aprofundada acerca da reforma da ONU pode ser encontrada na reportagem especial da revista The Economist intitulada The UN’s structures built in 1945 are not fit for 2020, let alone beyond it.  (Special Report) 2020. Disponível em <https://www.economist.com/special-report/2020/06/18/the-uns-structures-built-in-1945-are-not-fit-for-2020-let-alone-beyond-it.> Acesso em 01 jul. 2023.

Efeito Colateral

Ao mover as peças da Geopolítica internacional com a invasão da Ucrânia, a Rússia deixa marcas no Cáucaso, com a tomada de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão

As peças da geopolítica interacional continuam se movendo de forma sensível. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o jogo passou a ter uma nova correlação de forças, ao mesmo tempo que o prolongamento da guerra passa a gerar reflexos em outras nações.

O conflito em Nagorno-Karabakh pode ser considerado um destes efeitos colaterais. Ao mesmo tempo que a Rússia dificilmente conseguiria lidar com um novo conflito em sua zona de influência, optou por um movimento ousado, ao deixar de apoiar a Armênia, aliada tradicional do Kremlin, para sustentar uma solução que favorece diretamente o principal adversário dos armênios cristão-ortodoxos na região, ou seja, a nação etnicamente turquica e muçulmana do Azerbaijão.

O conflito entre as duas nações do Cáucaso é longo e cheia de detalhes. Tem suas origens no século VII, quando bizantinos cristãos lutaram pelo controle de Nagorno-Karabakh contra árabes muçulmanos. Mais tarde, sob o domínio otomano, a população armênia buscou proteção na Rússia, que voltou a defender os cristãos-armênios dos persas no século XVIII, o que explica a proximidade política entre as duas nações.

Porém, a invasão da Ucrânia mexeu nestas peças. Nikol Pashinyan, premiê da Armênia, já havia sido eleito com uma agenda de aproximação do Ocidente em 2018 e a política de desengajamento da Rússia e sua aproximação com o Azerbaijão passaram a gerar cada vez mais preocupação em Ierevan, capital dos armênios. As forças militares armênias passaram a cooperar com os americanos, ao mesmo tempo que se recusaram a participar dos exercícios conjuntos com a Rússia.

A tensão com o Kremlin cresceu quando o país enviou ajuda humanitária à Ucrânia e a esposa do premiê Pashinyan, Anna Hakobyan, visitou Kiev. Pashinyan foi além e descreveu a dependência do seu país da Rússia como um erro estratégico para a própria segurança de seu país diante da invasão da Ucrânia. Isto fez com que o apoio russo se voltasse inteiramente para o Azerbaijão.

Ao mesmo tempo, Baku se tornou um aliado cobiçado na comunidade internacional, seja para os russos, como para a União Europeia. O Azerbaijão se tornou, em termos de geopolítica, estratégico para Moscou, por localizar-se entre Irã e Rússia, ao mesmo tempo que se transformou em um importante exportador de gás para a União Europeia diante das sanções impostas contra o Kremlin e as empresas russas.

Portanto, não havia timing mais propício para o Azerbaijão ocupar Nagorno-Karabakh, que se tornou uma espécie de protetorado armênio histórico dentro de suas fronteiras. O primeiro movimento foi com apoio da Turquia em 2020 e agora, depois de submeter a região a um bloqueio de dez meses, realizou a ocupação, com a abertura de um corredor humanitário para a saída dos armênios, o que soa mais como um expurgo. Praticamente 70% da população já deixou a região.

O movimento geopolítico iniciado com a invasão da Ucrânia moveu placas tectônicas na região. A tomada de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão foi o primeiro efeito colateral. Outros podem surgir a qualquer momento.

Como o crime organizado deforma a democracia latino-americana

Quando o crime está em ascensão, a própria democracia sofre uma crise de confiança.

O assassinato do candidato presidencial equatoriano Fernando Villavicencio, há um mês, sublinha uma ameaça crescente à democracia em toda a América Latina: a influência crescente de grupos criminosos e de governos que parecem relutantes ou incapazes de enfrentar o crime organizado.

O poder do crime organizado põe em risco o futuro da região e, como importante motor da migração para os Estados Unidos, aponta para uma deterioração ainda maior da crise fronteiriça antes de melhorar.

O crime organizado está presente na América Latina há décadas, mas aumentou dramaticamente a sua presença geográfica nos últimos anos e evoluiu para se tornar mais adaptável e inovador. Mesmo com o aumento da produção e do tráfico de drogas, muitas organizações criminosas diversificaram-se para outras atividades, como a extorsão, a mineração de ouro e o tráfico de seres humanos. Em alguns países, grupos criminosos outrora dominantes dividiram-se em grupos menores. E as linhas entre organizações criminosas e grupos armados de orientação ideológica tornaram-se cada vez mais tênues.

Esta expansão do crime organizado ameaça a democracia latino-americana em vários níveis.

Primeiro, o fracasso dos governos democráticos em fazer progressos contra o crime reforça a crença de que a democracia não é adequada para resolver problemas. Isto é visto mais claramente na edição de 2023 da pesquisa de opinião pública Latinobarómetro, que conclui que apenas 48% dos latino-americanos preferem a democracia a outros sistemas de governo (abaixo dos 63% em 2010), e que um número crescente está aberto ao autoritarismo. A turbulência política em alguns países reduziu ainda mais o foco dos governos no crime, minando qualquer possibilidade de consenso sobre políticas anticrime e reduzindo a coordenação entre governos, criando mais oportunidades para a exploração do crime organizado.

As organizações criminosas também estão corroendo a democracia através das suas extensas ligações com as elites políticas da região. Antes de ser assassinado, Villavicencio denunciou a classe política do seu país por ter sido contaminada pelo crime organizado, num caso apresentando uma queixa contra 21 candidatos a presidente de câmara com alegadas ligações a grupos criminosos. À medida que o crime organizado se tornou mais fragmentado e se expandiu para novas atividades, procurou novas alianças políticas, o que foi facilitado pela fraqueza dos partidos políticos.

Em alguns países, o crime organizado também desafia diretamente a governança democrática, intimidando funcionários ou impedindo os governos de desempenharem funções básicas.

Na Colômbia, os grupos criminosos expandiram o seu controle territorial, ameaçando ou banindo funcionários eleitos que não cooperam, apropriando-se de fundos públicos destinados a infraestruturas e outros serviços, ou restringindo a circulação dos residentes. A Ouvidoria de Justiça da Colômbia alertou recentemente que as eleições regionais marcadas para 29 de outubro poderiam ser comprometidas pela expansão de grupos criminosos e pela sua interferência no processo eleitoral.

No México, os cartéis exibem regularmente a sua força, desafiando cada vez mais o monopólio governamental sobre a violência. O destacamento mais frequente de militares por parte do Presidente López Obrador para combater os cartéis não resultou em ganhos tangíveis para os mexicanos que estão sujeitos às depredações dos cartéis.

De acordo com um estudo da Universidade de Chicago, 13% da população da América Latina vive atualmente sob um sistema de governança criminal, no qual o crime organizado governa ou co-governa um território ou população. O exemplo mais extremo está na Venezuela, onde o regime de Nicolás Maduro preside um sistema em que grupos criminosos favorecidos colaboram com o regime para ajudá-lo a manter o controle e a explorar conjuntamente o tráfico de drogas e a mineração ilegal de ouro.

A criminalidade na região está criando um terreno fértil para regimes mais autoritários. Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele subjugou as notórias gangues de rua do país através de um programa de encarceramento em massa e mantendo um estado de emergência desde março de 2022. Ele agora tem o maior índice de aprovação de qualquer líder na região, está sendo copiado nos países vizinhos Honduras e está inspirando líderes com ideias semelhantes em toda a região. Ele também planeja concorrer à reeleição, embora a Constituição de El Salvador proíba a reeleição presidencial.

À medida que o crime organizado continua a evoluir e a expandir-se, os líderes democráticos da região devem trabalhar para demonstrar que é possível combater o crime organizado no contexto de uma democracia robusta. Isto exige que os governos mantenham um compromisso de longo prazo para construir sistemas de aplicação da lei e de justiça que possam resistir à influência corruptora dos criminosos, desenvolver abordagens localizadas que reflitam a natureza adaptável e fragmentada do crime organizado atual e cooperar entre si no combate às organizações transnacionais.

Também exige maior compromisso e urgência por parte dos Estados Unidos. A população da América Latina precisa de melhores opções do que os modelos da Venezuela e de El Salvador.

Publicado originalmente no Dallas Morning News.

Inteligência Comercial

A China se tornou ao longo dos anos o principal destino das exportações brasileiras e um parceiro econômico importante do Brasil, assim como de diversos outros países pelo mundo. Isso ocorreu em especial nos países menos industrializados, dependentes da exportação de commodities, consumidos em grande quantidade por Pequim. Porém, para além dos ganhos comerciais com o oriente, o Brasil deve se perguntar até que ponto é prudente ser dependente em demasia da sede chinesa. A prudência nos orienta sempre a diversificar e, por conseguinte, atender diversos mercados, protegendo nossos interesses e nossos produtores.   

Nesta esteira, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem defendido uma posição inteligente no que diz respeito ao assunto. Recentemente disse que, sem prejuízo da relação comercial criada com a China, o Brasil não pode prescindir de uma relação bilateral com os Estados Unidos. Para além disso, completo que também devemos mirar na União Europeia, mantendo canais sadios de diálogo comercial com os três atores. 

Estamos diante de um acordo histórico com a União Europeia, algo que será muito benéfico para a economia brasileira, aumentando nosso fluxo comercial com o velho continente. Ao mesmo tempo, isso terá impacto nas cadeias globais de valor, o que fará o Brasil crescer como player relevante nas negociações com outros blocos e nações, afinal, com alcance maior de mercado, iremos adquirir maior influência e importância.

Em Washington, o caminho também está aberto. Depois de crescerem 45% em 2021, as exportações brasileiras para os Estados Unidos cresceram 20% em 2022, passando de US$ 31 bilhões para US$ 37,4 bilhões, batendo o recorde de mais de US$ 70 bilhões em trocas comerciais entre os dois países.

Considerando que somos um país com forte déficit de poupança interna, que precisa de capital externo para realizar investimentos, vale lembrar que os americanos aportaram US$ 200,1 bilhões no Brasil em 2021, ou 22,2% do valor total investido no país. A China, apesar de ser um parceiro comercial relevante, investiu no mesmo período apenas US$ 49,7 bilhões, uma fatia de modestos 5,5%. A Europa foi além e investiu US$ 566,9 bilhões no Brasil.

As vantagens comparativas em lidar com a União Europeia e Estados Unidos são claras, afinal, estamos lidando com países democráticos, com instituições estáveis, judiciário independente e regras definidas. Para os fluxos de comércio constantes e longos, pilares como estes são essenciais, pois fornecem segurança e manutenção das regras, elementos centrais para fluxos comerciais saudáveis e sólidos.

Sem prejuízo das relações construídas com a China, o Brasil deve mirar na diversificação de parceiros comerciais e apostar em blocos e nações com quem dividimos identidade e valores, fatores que facilitam muito as negociações e os fluxos comerciais nas cadeias de valor. O caminho aberto de uma relação bilateral saudável com os Estados Unidos e a finalização dos detalhes do acordo com a União Europeia podem trazer este equilíbrio necessário, tanto na frente comercial, como no ambiente político internacional, posicionando o Brasil como uma importante peça no xadrez global.

Foto: Ricardo Stuckert/PR

No Reino do Bricstão

Na sua viagem à África do Sul, para a cúpula do Brics, Lula declarou: “Agora, você pode fazer uma reunião do Brics com o G7 em condições de superioridade porque o PIB, na paridade de compra, os Brics tem mais”.

Quer dizer que os BRICS – ao contrário do que o próprio Lula declarou horas antes de proferir a fala acima – são para se contrapor ao G7? O que Lula entende por “superioridade”? Nas ditaduras reunidas no Brics há mais direitos políticos e liberdades civis do que nos países do G7? Há mais inovação tecnológica e social? A renda (o PIB per capita) é maior do que nas democracias liberais?

Vejamos.

NOS DIREITOS POLÍTICOS E NAS LIBERDADES CIVIS

Dos 20 países com mais direitos políticos e liberdades civis no ranking da Freedom House (FH 2023), todos (ou quase todos) são democracias liberais (V-Dem) ou plenas (The Economist Intelligence Unit – EIU 2023). Obviamente nenhum deles faz parte do Reino do Bricstão.

1 Finlândia

2 Noruega

3 Suécia

4 Nova Zelândia

5 Canadá

6 Dinamarca

7 Irlanda

8 Luxemburgo

9 Holanda

10 Bélgica

11 Japão

12 Portugal

13 Suíça

14 Uruguai

15 Austrália

16 Eslovênia

17 Barbados

18 Chile

19 Estônia

20 Alemanha

NA INOVAÇÃO

Entre os 10 primeiros colocados no ranking do IGI – Índice Global de Inovação 2022 da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) – só um não é uma democracia liberal (Singapura, o eterno ponto fora da curva e a exceção que confirma todas as regras). Mas, novamente, não aparece no ranking nenhum país do Reino do Bricstão.

1 Suíça

2 EUA

3 Suécia

4 Reino Unido

5 Holanda

6 Coreia do Sul

7 Singapura

8 Alemanha

9 Finlândia

10 Dinamarca

NA RENDA PER CAPITA

A renda per capita média do Brics inflado (US$ PPP 2020) é 20.898. A renda per capita média das democracias plenas (sem Taiwan, porque a China se apropria dos índices) é 48.917. Só uma ditadura, das que foram recentemente incluídas no grupo – os Emirados Árabes Unidos –, tem uma renda acima desse valor. Sim, no ranking dos 27 países com renda per capita (US$ PPP 2020), acima de 40 mil dólares, 20 são democracias liberais ou plenas e apenas 7 são autocracias:

1 Luxemburgo: 112.557

2 Singapura: 93.397

3 Irlanda: 90.789

4 Qatar: 85.290

5 Suíça: 68.755

6 Noruega: 63.548

7 Emirados Árabes Unidos: 63,299

8 EUA: 59.920

9 Hong Kong: 56.154

10 Dinamarca: 55.820

11 Holanda: 54.324

12 Islândia: 52.376

13 Áustria: 51.858

14 Alemanha: 51.423

15 Suécia: 50.923

16 Bélgica: 48.770

17 Austrália: 48.679

18 Finlândia: 47.154

19 Canadá: 46.064

20 Kuwait: 44.847

21 Arábia Saudita: 44.328

22 Nova Zelândia: 42.775

23 Reino Unido: 42.676

24 Coréia do Sul: 42.336

25 França: 42.321

26 Barein: 41.481

27 Japão: 40.232

O QUE É NA VERDADE O BRICSTÃO

Por que o Brasil se alinha a esses países tão “atrasados” – em democracia, em inovação e em renda per capita – do Reino do Bricstão? A justificativa dos militantes lulopetistas é que os BRICS são apenas um acordo econômico “para o Brasil vender mais”. Mas é falsa! O próprio Lula falou várias vezes que os Brics deveriam intervir para forçar uma paz na Ucrânia. E falou também (tem vídeo) que a aproximação com ditaduras como a China não é só comercial, mas estratégica (principalmente geopolítica).

Com efeito, no dia 14 de abril de 2023, em viagem de rendição simbólica  à China, Lula declarou:

“A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial… [para] elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial”.

Fica claro que o BRICS inflado não é outra coisa: é o mesmo delírio do Sul Global. O Bricstão é o embrião de um bloco autocrático de ditaduras (autocracias eleitorais e autocracias fechadas) e de democracias (apenas) eleitorais (não-liberais) parasitadas por populismos e capturadas pelas maiores tiranias do planeta para combater as democracias liberais (sob o pretexto anacrônico e risível de que é preciso derrotar o imperialismo norte-americano e o suposto neocolonialismo europeu).

NÃO É SÓ EUA X CHINA

O fato é que uma segunda grande guerra fria já começou. Claro que ela não se parecerá com a primeira: é outra coisa. E não é apenas EUA X China, como se repete. Estamos diante de uma campanha de exterminação das democracias liberais.

Quando tudo passa a ser China – num modelo explicativo pedestre (porque a China é populosa, porque a China é uma potência econômica e militar que vai ultrapassar os Estados Unidos, porque a China manda na Ásia e na África etc.) o que se esquece com isso?

a) Com isso se esquece que há um eixo autocrático em formação articulando dezenas de países.

b) Com isso se esquece que existem hoje no mundo, segundo o V-Dem, 89 ditaduras (56 autocracias eleitorais e 33 autocracias fechadas), para não falar das 58 democracias (apenas) eleitorais, não liberais, que estão sendo disputadas para ser capturadas pelo eixo autocrático.

c) Com isso se esquece que os populismos, digam-se de esquerda ou de direita, objetivamente, estão tentando levar os regimes que parasitam a se alinharem ao eixo autocrático.

d) Com isso se esquece que, escondido dentro do eixo autocrático, há um projeto de império neoeurasiano capitaneado pela Rússia que, conquanto alucinado, busca juntar Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Sérvia, Irã, Síria e anexar ou colonizar Ucrânia, Geórgia, Moldávia, Polônia, Finlândia e os países bálticos.

e) Com isso se esquece – o mais importante – que o eixo autocrático tem por objetivo principal destruir as democracias liberais ou plenas, reduzidas hoje a menos de quatro dezenas de países. A união das 32 democracias liberais (segundo o V-Dem) com as 24 democracias plenas (segundo a The Economist Intelligence Unit) fornece a seguinte lista dos 35 alvos prioritários atuais ou inimigos principais das tiranias: Alemanha, Australia, Austria, Barbados, Belgica, Canadá, Chile, Chipre, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, República Checa, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai.

É para preocupar? Sim, e muito. Os democratas são acentuada minoria no mundo atual. Vivem em democracias plenas apenas 631 milhões de pessoas. O que dá menos de 8% da população mundial.

Foto: Ricardo Stuckert

Decodificando o discurso que Lula leu na ONU

Muitos jornalistas chapa-branca ficaram esperando o discurso de Lula para dizer: “Que maravilha, é um estadista, veja a diferença para Bolsonaro”. Bem… na comparação com Bolsonaro qualquer um sairia ganhando, até um Cunha, um Geddel ou um Cabral. E ocorre que, dessa vez, não foi o Lula falando o que pensa. Ele leu um discurso preparado por assessores. Se é bom quando ele não diz o que realmente pensa e sim o que assessores petistas acham que seria conveniente ele falar, o que isso diz sobre Lula?

Ouvir a leitura de discursos escritos por assessores é como assistir propaganda achando que é noticiário. Lula só se revela quando fala o que realmente pensa. Como o que ele pensa via de regra é ruim, atrasado e, às vezes, antidemocrático, os passapanistas dizem que foi erro, deslize, tropeço.

Foi um discurso proferido diante de uma reunião esvaziada pelos grandes e poderosos. Lula queria tanto brilhar no cenário global, fazer seu marketing pessoal diante dos bacanões da bala chita, mas os chefes de governo dos países membros permanentes do Conselho de Segurança não estavam presentes na assembleia da ONU – além do anfitrião (Biden dos EUA) – porque não deram tanta importância assim ao evento. Xi da China: não foi. Macron da França: não foi. Sunak do Reino Unido: não foi. Putin da Rússia: não foi.

Quando ao conteúdo do discurso lido, o fato é que, colocado sob a lupa da análise democrática, o discurso é ruim no seu todo. Vejamos a seguir por quê.

O SUMIÇO DA LIBERDADE

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores prepararam para Lula ler na ONU a palavra igualdade ou a palavra desigualdade aparecem 18 vezes, enquanto que a palavra liberdade praticamente sumiu (só aparece uma vez para se referir à liberdade de imprensa e mesmo assim equivocadamente, para tratar Assange como jornalista, o que ele não é – nem representa o que se pode chamar de imprensa). O discurso lido por Lula não se refere à liberdade de imprensa, que falta, por exemplo, na Venezuela, na Nicarágua, em Cuba, em Angola e nas ditaduras do Bricstão.

Ora… segundo o V-Dem, temos hoje no mundo 89 ditaduras (56 autocracias eleitorais + 33 autocracias fechadas) nas quais vive a maioria da população do planeta sem liberdade ou com déficts acentuados de liberdade.

Nos 14 países com mais de 100 milhões de habitantes, 9 são ditaduras (Índia, China, Paquistão, Nigéria, Bangladesh, Rússia, Etiópia, Filipinas e Egito), 3 são regimes eleitorais parasitados por populismos (Indonésia, Brasil e México) e escapam apenas 2 democracias liberais (EUA e Japão) onde vigoram níveis aceitáveis de liberdades civis e direitos políticos.

Os assessores lulopetistas não acham isso relevante porque querem substituir a centralidade da liberdade (a essência da democracia) pelo primado da igualdade (não tomada como igualdade política e sim socioeconômica). O discurso elaborado para Lula ler na ONU corrobora a hipótese de que o conceito de democracia está sendo trocado pelo conceito de cidadania. Como se fosse possível conquistar mais cidadania sem democracia, quer dizer, liberdade. Em autocracias – mesmo naquelas em que a desigualdade socioeconômica está sendo reduzida – não há propriamente cidadãos e sim súditos.

O FANTASMA DO NEOLIBERALISMO

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores prepararam para Lula ler na ONU está escrito:

“O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”.

Ora, do fato de o neoliberalismo ser uma leitura reducionista (economicista) do liberalismo – que era o bicho papão da velha esquerda nos debates de salão dos anos 1990 – não deriva que os deserdados e excluídos do mundo (muito menos das democracias) tenham sido produzidos por essa visão ideológica. Além disso, o nacionalismo autoritário (não conservador, como está escrito, e sim reacionário) não nasceu de uma substituição do neoliberalismo. Isso é um truque para substituir um inimigo por outro sem mudar o padrão de luta política eterna contra um inimigo supostamente responsável por todo mal que nos assola. Um culpado universal para alimentar a degeneração populista da política como uma guerra por outros meios.

É o mesmo discurso do ditador Maduro, da Venezuela – e de outros ditadores de esquerda – de que todos os problemas sociais dos seus países são culpa do neoliberalismo (e do imperialismo, claro).

PROPAGANDA OFICIAL

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores prepararam para Lula ler na ONU está escrito:

“Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país. A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão. A esperança, mais uma vez, venceu o medo. Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre. O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo. Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta”.

Essa parte do discurso é pura propaganda oficial, reproduzindo inclusive slogans do marketing petista como “a esperança venceu o medo” e “o Brasil está de volta”.

E é mentirosa. Desde que foi eleito por uma minoria pouco significativa de votos, de democratas que não são petistas, diga-se, Lula tem feito tudo, menos “unir o Brasil”. Pelo contrário, tem investido na polarização, mantendo Bolsonaro artificialmente vivo, respirando por aparelhos, para construir um inimigo derrotável nas próximas eleições.

BRICS E SUL GLOBAL

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores prepararam para Lula ler na ONU, há uma defesa deformada do propósito do BRICs e do delírio chamado Sul Global. Está escrito:

“As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas. O BRICS surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes. A ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21. […] São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima”.

Não há pluralidade nenhuma no BRICS ampliado (que é, no fundo, a mesma coisa do que o tal Sul Global). Nesses conjuntos não está presente nenhuma democracia liberal. O Bricstão é o embrião de um bloco autocrático de ditaduras (autocracias eleitorais e autocracias fechadas) e de regimes eleitorais (não-liberais) parasitados por populismos e capturados pelas maiores tiranias do planeta para combater as democracias liberais (sob o pretexto anacrônico e risível de que é preciso derrotar o imperialismo norte-americano e o suposto neocolonialismo europeu).

Lula quer pegar uma carona nas grandes autocracias do Bricstão (como China, Índia, Rússia, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã) para se afirmar como líder do Sul Global, uma coleção de países ditos ‘emergentes’ ou ‘em desenvolvimento’, mas na verdade um cafofo de ditaduras.

LULA CONTINUA APOIANDO A RÚSSIA

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores petistas prepararam para Lula ler na ONU, a ditadura russa de Vladimir Putin, mais uma vez, não foi criticada. Está escrito:

“A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações. Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento. No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares. As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU. Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade. A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo. A comunidade internacional precisa escolher: De um lado, está a ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do Estado de Direito. De outro, a renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz. As sanções unilaterais causam grande prejuízos à população dos países afetados. Além de não alcançarem seus alegados objetivos, dificultam os processos de mediação, prevenção e resolução pacífica de conflitos. O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU…”

É um discurso solerte, que mistura assuntos maldosamente, condena o investimento em armas para insinuar que as democracias liberais que estão apoiando a resistência ucraniana à invasão imperialista da ditadura russa estão de algum modo lucrando com a guerra. Na diplomacia internacional isso pode ser encarado como uma ofensa.

Dizer que “a guerra da Ucrânia escancara nossa capacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU” ou é um truísmo ou um escárnio. Não aconteceu uma guerra na Ucrânia: ela foi feita. O único responsável por ela é a invasão por Putin de um território soberano. Lula (ou os redatores do seu discurso) sabe que a Rússia tem poder de veto no Conselho de Segurança e, assim, não seria aprovada nenhuma exigência, reprovação ou sanção emitida pela Organização das Nações Unidas.

Mas não é o pior. Ele propõe que se abram espaços de diálogo para evitar ou acabar com a guerra, como se isso já não estivesse ocorrendo em relação à Rússia desde a invasão da Geórgia, em 2008, da Ucrânia em 2014 e novamente da Ucrânia em 2022. Chefes de Estado de muitas democracias conversaram com Putin, tentando ver quais seriam suas reivindicações, inclusive Biden, em Genebra, em 2021, enquanto o ditador concentrava suas tropas na fronteira ucraniana. Oito meses depois, como Biden havia alertado com antecedência, diante de um mundo ainda meio cético, Putin invadiu militarmente a Ucrânia com o fito de tomar Kiev em uma ou duas semanas, depor Zelensky, prendê-lo ou matá-lo, substituindo-o por um governo títere de Moscou. Não deu certo, como vimos, mas essa era a intenção de Putin, em relação ao qual qualquer apaziguamento significa estímulo à continuidade de suas intenções expansionistas.

Por último, o discurso de Lula condena as sanções impostas à ditadura russa, o que significa – para todos os efeitos práticos – apoiar a invasão. Ainda mais grave do que isso, desde que as sanções foram adotadas, o Brasil aumentou seu comércio com a Rússia. Está, portanto, sabotando as medidas de contenção do expansionismo militar russo adotadas pela coalizão das democracias liberais e, indiretamente, financiando a guerra de agressão movida pelo ditador.

Afetar uma (falsa) neutralidade significa, objetivamente, apoiar Putin e é isso que o governo do Brasil está fazendo e seu presidente está dizendo nesse discurso inqualificável.

Jornalistas chapa-branca do Brasil criticaram Zelensky pelo fato dele não ter aplaudido o discurso de Lula. Por que Zelensky deveria ter aplaudido Lula, que não moveu uma palha para ajudar a resistência ucraniana contra a invasão do ditador Putin? Pelo contrário, fez tudo que pôde para proteger Putin e sabotar as sanções à Rússia agressora. No lugar dele, nenhum democrata de verdade aplaudiria.

POUPANDO AS DITADURAS AMIGAS

No discurso meio terceiro-mundista que os assessores petistas prepararam para Lula ler na ONU as ditaduras amigas (de esquerda) continuam a ser poupadas de qualquer crítica. Está escrito:

“É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças. Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino. A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão. Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas […] O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo. Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria. O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime”.

Nenhuma palavra sobre as próximas eleições na Venezuela, onde o ditador amigo Maduro está cassando o direito de opositores de concorrer. Nenhuma palavra sobre as violações dos direitos humanos na Nicarágua, onde o ditador amigo Ortega está perseguindo dissidentes, tendo já prendido, matado e torturado centenas de opositores e organizações da sociedade civil (inclusive aquelas de caráter humanitário, incluindo a própria igreja católica). Nenhuma palavra sobre a falta de direitos políticos e liberdades civis na ditadura cubana, onde nem há possibilidade de alternância de poder via eleições (porque, simplesmente, não é um regime eleitoral).

Fica claro que o discurso de Lula é parcial e ideológico. É um discurso do nós contra eles. Da luta da esquerda contra a direita (colocada no mesmo balaio da extrema-direita). Da luta de classes contra o capitalismo (chamado eufemisticamente de neoliberalismo). Da guerra dos países pobres contra os países ricos (em nome do fim da desigualdade, mas sem qualquer menção à liberdade: se as grandes autocracias do mundo, às quais Lula agora se alia, resolvessem o problema da desigualdade, estaria tudo resolvido, ainda que as pessoas tivessem a vida do igualitário gado confinado holandês que pode fazer suas refeições várias vezes por dia em boas condições de sobrevivência).

Silêncio Constrangedor

Dentre todos os temas discutidos na Assembleia Geral da Nações Unidas, as violações aos Direitos Humanos ocupam uma posição de destaque. Um assunto que não deveria possuir coloração política vem tomando contornos preocupantes, uma vez que estas violações perpetradas pelo Estado contra os indivíduos têm sido ignoradas quando cometidas por regimes amigos e parceiros de mesma coloração política.

Estamos falando de um direito universal que deve ser respeitado e reconhecido por todos os membros nas Nações Unidas, porém, com o enfraquecimento da democracia em diversos locais do globo, vem sendo desrespeitada continuamente. Não são apenas países africanos, antigas democracias, agora ditaduras, que tem violado este princípio, mas nações em todas as partes do globo.

O Brasil, como nação democrática, deveria ser um dos principais países a denunciar estas violações e trabalhar ativamente pela manutenção da ordem internacional. Nossos governos, porém, mostram hábito inverso e perigoso, aquele de adular parceiros que violam direitos fundamentais e silenciar diante de seus crimes contra os cidadãos. A conveniência do momento tem falado mais alto que a integridade e responsabilidade para o nosso país, seja qual for o viés do governo do momento.

Silenciamos desde o governo passado diante dos crimes cometidos por Vladimir Putin, ações que renderam, inclusive, uma ordem de prisão internacional emitida pelo Tribunal Penal Internacional – situação que infelizmente permanece a mesma neste governo. O Brasil reatou relações com a Venezuela, sob o comando ditatorial de Maduro, sugerindo que o drama, as mortes, sequestros, fugas e torturas ocorridas sob seu regime eram apenas uma narrativa da oposição.

Os exemplos multiplicam-se com a brutalidade do regime de Ortega na Nicarágua. Os banimentos, prisões, fuzilamentos tornaram-se marcas registradas do viés autoritário do governo. O silêncio do governo brasileiro sobre estes abusos é constrangedor na comunidade internacional. Relatório das Nações Unidas apontam execuções extrajudiciais, detenções arbitrarias, tortura, privação da nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país”, em atos que seriam “crimes de lesa Humanidade”, como assassinato, prisão, tortura, violência sexual, deportação forçada e perseguição por motivos políticos. Enquanto isso, o Brasil, diferente de outros países da América Latina, preferiu não oferecer asilo aos novos apátridas da Nicarágua.

Isso sem falar no regime de exceção em curso em Cuba, considerada a mais letal das Américas. Fuzilamentos, assassinatos extrajudiciais, presos políticos e desaparecidos. O Brasil lá esteve antes da abertura da Assembleia Geral da Nações Unidas para reunião do chamado G77. No discurso, o Presidente brasileiro criticou mais uma vez o embargo a Cuba, mas se esqueceu de lembrar das dezenas de milhares que pereceram na luta contra um regime que não tolera crítica ou oposição.

Antes de nos atermos a pautas lúdicas, como a reformar o Conselho de Segurança, nosso país deveria se ater a fazer valer princípios caros para toda humanidade, aqueles que qualquer democracia tem a obrigação de defender. Proteger o indivíduo da força bruta dos governos ainda é o maior desafio de nossa geração.

Os Jogos das Potências

Busca-se aqui analisar a evolução recente do macro sistema internacional, adotando essencialmente a visão realista das Relações Internacionais. Tomou-se como referência o período que vai do final de 2021 até o primeiro trimestre de 2023, repleto de acontecimentos que indicam profundas transformações no cenário internacional. Destacam-se a crescente afirmação econômica, tecnológica e estratégica da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esse período foi estudado buscando organizar os fatos de forma a torná-los mais inteligíveis e fazer que uma realidade cambiante nos pareça mais clara. O foco são as iniciativas, ações e reações, principalmente das grandes potências, que têm capacidade de projetar seu poder internacionalmente, contribuindo para modificar a configuração mundial de poder. As mudanças, que já vinham ocorrendo, foram aprofundadas na época em exame e tendem a ser duradouras, conformando um cenário internacional com duas superpotências em quadro de hostilidade, buscando formar e consolidar suas alianças. 

As potências médias e regionais, com capacidade de projeção de poder limitada no espaço de sua área de influência regional, já sofrem pressão para se alinharem aos estados líderes no cenário geopolítico em formação. A invasão da Ucrânia pela Rússia e o crescimento da China são aspectos decisivos na conformação de uma estrutura de poder de caráter essencialmente bipolar, com dois centros principais, duas superpotências, os Estados Unidos e a China, mitigada pela presença de grandes potências e potências médias ou regionais. As grandes potências são o Reino Unido, a França e a Rússia, todas integrantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, detentoras de arsenal nuclear e de poder de veto na ONU. Potências médias ou regionais são a Índia, a Indonésia, o Irã, o Egito e o Brasil, capazes de exercer seu poder regionalmente, no seu entorno. 

Dois países merecem atenção especial, a Alemanha e o Japão. Ambos foram derrotados na Segunda Guerra Mundial e tiveram fortes restrições em termos de suas forças armadas e seus armamentos, que passaram a ter caráter limitado, apenas defensivo. No entanto, as recentes tendências do teatro internacional, como o crescimento econômico, tecnológico e bélico da China, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, têm levado tanto a Alemanha quanto o Japão a se rearmarem. Contam com o apoio firme da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos. Tendo em vista a dimensão de suas economias e seu avanço tecnológico, esses dois países podem rapidamente passar a ter o status de grandes potências. Como pano de fundo desse rearmamento alemão e japonês, temos a estratégia da OTAN e dos americanos de contenção da Rússia na Europa, e da China na Ásia, onde teriam papel importante. No que diz respeito ao Japão, o país tem ainda a função de contrabalançar o poderio chinês no caso de uma tentativa de retomada de Taiwan, bem como a capacidade de se contrapor às ameaças da Coreia do Norte. 

A Índia, que ultrapassou a população chinesa e está em crescimento econômico e tecnológico acelerado, tem laços fortes com potências ocidentais como os Estados Unidos e o Reino Unido e é importante importadora de armas da Rússia. Embora tenha relações comerciais de vulto com a China, permanecem sem solução os conflitos de fronteira sino-indianos. A Índia tem tentado adotar uma posição de equilíbrio na reorganização de forças que se desenha no cenário internacional. Procura manter as relações comerciais com a China, continuar tendo a Rússia como fornecedor de petróleo e armas, ao mesmo tempo em que participa do QUAD, foro informal de coordenação de defesa de que fazem parte, além da Índia, o Japão, os Estados Unidos e a Austrália. Essa coordenação quadrilateral, que foi criada por iniciativa do Japão em 2007 para contrabalançar a crescente presença e influência chinesa, e foi revigorada em 2017 pelos americanos, realiza exercícios militares conjuntos regularmente.

A proximidade sino-russa foi intensa durante a Guerra Fria e agora tem ajudado a Rússia a aliviar os efeitos das sanções impostas pelas potências ocidentais por causa da invasão da Ucrânia. Essa aliança da China e da Rússia cristaliza um poderoso bloco em contraposição aos Estados Unidos e à Aliança Atlântica.

Outra vertente importante na definição de uma nova configuração internacional tem sido o deslocamento do eixo econômico para a Ásia, região com crescente protagonismo tecnológico, industrial  e comercial, em detrimento dos EUA e da Europa, que têm perdido paulatinamente sua antiga hegemonia. Esse deslocamento já influencia as cadeias mundiais de produção e de suprimento e a economia brasileira terá, necessariamente, de se adaptar à nova realidade. 

De outra parte, é interessante notar a utilização pioneira e intensa de novos meios de combate na guerra russo-ucraniana, com o uso intensivo de drones e da cibernética, ao lado de meios convencionais como os blindados. Esses novos meios de combate, testados nos campos de batalha da Ucrânia, devem alterar profundamente as futuras guerras, junto com o uso de inteligência artificial e a nanotecnologia. 

Do ponto de vista macro-estratégico, registre-se a revigoração da OTAN. A Aliança Atlântica, que se encontrava dividida e em estado próximo à letargia durante o anterior governo norte-americano, que a criticava constantemente, tornou-se mais coesa devido à ameaça russa e está tornando efetiva a antiga recomendação de que seus membros devem alocar 2% do PIB para defesa. Ademais, dois países europeus lindeiros com a Rússia, a Finlândia e a Suécia, solicitaram participar da OTAN, abrindo mão de posição de neutralidade longamente estabelecida. A Finlândia já está integrada na Aliança e a Suécia realiza os trâmites necessários. Embora aumentem a capacidade estratégico-militar da OTAN, esse alargamento de participantes na Aliança Atlântica contribui para a sensação de cerco da Rússia. É importante recordar que a possível entrada da Ucrânia na OTAN foi uma das causas alegadas pelo governo russo para a invasão.

Outra vertente que merece ser considerada é a crescente afirmação do  grupo BRICS no cenário internacional. Espaço informal de concertação política e econômica, o BRICS compõe-se do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, ou seja, integram-no dois membros permanentes e com poder de veto do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A China tem utilizado sua presença no BRICS para aumentar seus contatos e sua influência em relação a países de menor desenvolvimento e tem advogado o aumento de sua composição. Esse objetivo, que foi alcançado na Cúpula de 2023 com o processo de aceitação da Argentina, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos, do Egito e do Irã, aumenta a dimensão geográfica do BRICS, o que deve levar o fórum, no entanto, a uma diluição e dispersão de seu peso diplomático. A grande beneficiada pelo alargamento do número de membros é sem dúvida a China, que aperfeiçoa sua busca de aproximação com países do terceiro mundo, ao passo que o Brasil perde protagonismo. 

Deve-se observar que, se realmente houver uma bipolaridade essencial e rígida, os países em desenvolvimento, principalmente as potências médias regionais, se confrontarão com escolhas estratégicas difíceis, em cenário de fundamental bipolaridade entre os principais centros de poder, como foram os EUA e a União Soviética no pós Segunda Guerra Mundial, e possivelmente no futuro previsível como deverão ser os Estados Unidos e a China. Nesse quadro, os núcleos de poder exercerão intensa pressão para obterem alinhamentos e  lealdades. O Brasil já tem sido pressionado, mas tem resistido pragmaticamente. Além de ter a China como seu principal parceiro comercial, há uma grande dependência do fornecimento de fertilizantes da Rússia. Ademais, temos uma vocação universalista em termos de política externa, com relações diplomáticas com praticamente todas as nações, além de ter relações comerciais amplas e diversificadas. No que diz respeito à campanha da diplomacia brasileira por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, e nossa participação no Conselho de Segurança, deve-se registrar que existe a possibilidade dessa reforma e da nossa acessão. No entanto, seria provavelmente uma participação sem poder de veto, pois não é crível que os atuais membros abram mão de sua prerrogativa de recusar resoluções que considerem prejudiciais a seus interesses estratégicos. Ademais, apesar de sua pujança agrícola e mineral, o Brasil não tem capacidade bélica que justifique sua presença em um órgão que se responsabiliza pela paz e segurança internacionais, segundo a Carta da ONU.

Compromisso Internacional

Em tempos sombrios, quando vivenciamos o eclipse da democracia em diversas partes do mundo, a existência de uma jurisdição internacional capaz de julgar e prender líderes que insistem em cometer crimes usando o poder do cargo é conquista que jamais pode ser minimizada. Não foram poucos os ditadores que assombraram povos inteiros, levando terror a diversos países. A esperança de que sejam responsabilizados é talvez o maior freio ao surgimento de novas safras de autocratas pelo globo.

O Tribunal Penal Internacional criado pelo Estatuto de Roma tem este objetivo. Depois de serem criados tribunais específicos para julgar criminosos, o novo desenho tinha como objetivo trazer uma jurisdição plena e constante onde aqueles que infringissem seus dispositivos pudessem ser julgados. Estamos falando dos crimes de guerra, contra a humanidade, de agressão e genocídio.

O Brasil aderiu ao Estatuto de Roma e passou a integrar o tribunal, passando também a estar sob sua jurisdição. Depois da assinatura pelo governo brasileiro durante o governo Fernando Henrique, o Congresso Nacional ratificou nossa adesão. Atualmente, 123 dos 193 Estados-Membros da ONU ratificaram o Estatuto. Trinta e dois Estados, incluindo a Rússia e os Estados Unidos, assinaram, porém não o ratificaram. China e Índia sequer assinaram.

Nossa Constituição determina que “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Isso significa que a adesão ao TPI tem força constitucional, reforçado pelo artigo 5º, tornando-o cláusula pétrea: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

Vladimir Putin possui um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional. O tribunal afirma que Putin é responsável por crimes de guerra, incluindo a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. O órgão diz que os crimes foram cometidos na Ucrânia pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022, quando começou o conflito. Putin pode ser preso em qualquer país e entregue ao TPI, especialmente aquelas 123 nações que já ratificaram o instrumento internacional e possuem esta obrigação.

O Brasil, como signatário do Estatuto de Roma, tem a obrigação legal de prender Putin se o líder russo desembarcar no país. Se o governo brasileiro se negar a fazê-lo, deverá se explicar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas na esfera internacional. No âmbito doméstico existe a possibilidade de instauração de processo de impeachment por crime de responsabilidade por infringir cláusula pétrea constitucional.

A jurisdição internacional do tribunal penal é um passo importante no processo de evitar graves violações aos direitos humanos, especialmente em países que sofrem abusos de ditadores e autocratas. O Brasil, como nação democrática e plural, tem a obrigação de cumprir com seus compromissos internacionais, especialmente aqueles já incorporados pela nossa Constituição.